1. Introdução
O STJ, ao julgar o Tema repetitivo 1.313, fixou tese que estabelece um novo paradigma para a fixação de honorários advocatícios em demandas de saúde contra o Poder Público. A decisão, que determina a aplicação da apreciação equitativa (art. 85, § 8º, do CPC) e afasta os patamares mínimos previstos no § 8º-A do mesmo artigo, baseia-se na natureza existencial e não patrimonial do direito à saúde.
Embora a intenção declarada seja garantir o acesso à justiça e evitar o enriquecimento sem causa, a tese suscita profunda preocupação na comunidade jurídica, pois, na prática, promove a fragilização da advocacia e, paradoxalmente, parece premiar a ineficiência estatal.
A decisão do STJ, mesmo que embasada em razões de justiça social e na natureza existencial do direito à saúde, representa um retrocesso sob o ponto de vista da valorização da advocacia e cria uma perigosa assimetria entre o tratamento conferido às demandas contra o Estado e aquelas ajuizadas contra entes privados — sobretudo planos de saúde.
Este artigo propõe uma análise crítica do Tema 1.313, questionando a dualidade interpretativa criada entre ações contra o Poder Público e ações contra planos de saúde privados, e expondo como essa distinção, embora juridicamente fundamentada, desconsidera a realidade da atuação profissional e os incentivos perversos gerados no sistema de judicialização da saúde.
2. Entendimento fixado pelo STJ no Tema 1.313
O STJ firmou a seguinte orientação:
"Nas demandas em que se pleiteia do Poder Público a satisfação do direito à saúde, os honorários advocatícios são fixados por apreciação equitativa, sem aplicação do art. 85, § 8º-A, do CPC".
Ou seja, o STJ definiu que nas ações em que se pleiteiam prestações de saúde, como fornecimento de medicamentos, insumos, cirurgias ou tratamentos médicos, contra o Poder Público, os honorários advocatícios devem ser fixados por apreciação equitativa, considerando a natureza existencial do direito à saúde, e não com base no valor da causa ou do proveito econômico obtido.
Em síntese, os principais pontos da tese são:
- Critério de fixação: os honorários serão arbitrados por apreciação equitativa, segundo o art. 85, § 8º, do CPC — afastando-se o critério percentual estabelecido como regra.
- Justificativa: o direito à saúde (contra o Poder Público) possuiria natureza existencial, e não patrimonial, o que inviabilizaria sua tradução em valores financeiros.
- Exclusão de outras regras: a decisão afasta o uso do valor da causa, o valor do medicamento ou o valor da condenação como base de cálculo, bem como os patamares mínimos de honorários previstos no § 8º-A do art. 85 do CPC.
- Objetivo declarado: garantir acesso à justiça a pacientes hipossuficientes e evitar que os cofres públicos sejam onerados de forma desproporcional.
- Âmbito de aplicação: a tese se limita às ações contra o Poder Público, não alcançando as demandas contra planos de saúde privados, nas quais o proveito econômico é patrimonial e, portanto, mensurável.
O fundamento central da Corte Superior reside na premissa de que o direito à saúde possui natureza existencial, e não patrimonial. Embora o fornecimento de medicamentos, exames ou procedimentos médicos possua um custo econômico mensurável, esse valor não se traduz em proveito econômico para o paciente, que não incorpora o bem ou serviço ao seu patrimônio de forma alienável.
A decisão, portanto, afasta a aplicação das regras gerais de fixação de honorários, que priorizam o percentual sobre o valor da condenação ou do proveito econômico (art. 85, § 2º e § 3º, do CPC), e recorre à equidade (§ 8º), reservada para causas de valor inestimável ou irrisório. Além disso, o STJ afastou a aplicação do § 8º-A, introduzido pela lei 14.365/22, que visava coibir o aviltamento dos honorários por equidade ao estabelecer patamares mínimos.
3. A dualidade injustificada: SUS vs. planos de saúde. A contradição e seus efeitos práticos
O ponto mais sensível da tese reside na distinção entre ações contra o Poder Público (SUS) e ações contra operadoras de planos de saúde privados. O STJ justifica o tratamento diferenciado alegando que, no primeiro caso, trata-se da concretização de um dever constitucional (art. 196), enquanto no segundo, discute-se o cumprimento de uma obrigação contratual, onde o proveito econômico é evidente.
Contudo, essa distinção ignora um fato crucial: a razão de pedir (a causa petendi) é, em essência, a mesma. Em ambos os casos, o cidadão busca a intervenção judicial para obter um tratamento, medicamento ou procedimento de que necessita para preservar sua vida ou saúde. A complexidade fática e a urgência existencial são idênticas.
A decisão cria uma dualidade incoerente entre causas idênticas em seu objeto e natureza, mas com partes distintas. Tanto nas ações contra o SUS quanto nas movidas contra operadoras de planos de saúde, a razão de pedir é a mesma: o fornecimento de um tratamento médico, medicamento ou procedimento necessário à sobrevivência e dignidade do paciente.
O litígio contra o Poder Público é notadamente mais complexo, demorado e oneroso para o profissional. Envolve a superação de obstáculos burocráticos, a necessidade/dispensa de astreintes e, frequentemente, o descumprimento contumaz das decisões judiciais pelos gestores públicos, exigindo do advogado um esforço continuado e desproporcional.
No entanto, o STJ entende que, se o réu for o Estado, o trabalho do advogado deve ser remunerado por "equidade"; se o réu for um plano de saúde, os honorários incidem sobre o valor econômico do tratamento.
Essa distinção, em vez de promover justiça, fragiliza a advocacia e premia a ineficiência estatal. Os advogados que enfrentam a máquina pública — com toda sua lentidão, burocracia e reiterados descumprimentos de decisões judiciais — são justamente os que mais enfrentam obstáculos, riscos e custos para garantir a efetividade do direito à saúde.
O resultado é paradoxal: quanto mais difícil e custosa a atuação, menor a remuneração do advogado.
Ao fixar honorários por equidade, que tendem a ser irrisórios e desvinculados do valor real da prestação obtida, o Judiciário desestimula a atuação qualificada na defesa do direito à saúde contra o ente público. O advogado, que é o motor da concretização do direito fundamental, tem seu trabalho desvalorizado em comparação com o colega que atua em uma causa de mesma natureza existencial, mas contra um plano de saúde privado.
4. O prêmio à ineficiência estatal
A consequência mais perversa do Tema 1.313 é o incentivo à ineficiência administrativa. A sucumbência tem, entre suas funções, a de desestimular o litígio desnecessário e punir a parte que deu causa ao processo.
Quando o Poder Público, por omissão ou falha na gestão, força o cidadão a buscar o Judiciário para ter acesso a um direito fundamental, ele deve ser onerado de forma a internalizar o custo de sua ineficiência. A fixação de honorários por equidade, em valores reduzidos, transforma a sucumbência em um custo irrisório para o Estado, que passa a ter um incentivo financeiro perverso para manter o status quo de descumprimento.
O gestor público, que falha em prover o direito à saúde, sabe que o custo da derrota judicial será minimizado pela equidade. Isso não apenas desvaloriza o trabalho do advogado, mas também enfraquece o papel pedagógico e punitivo da sucumbência, transformando o Judiciário em um mero balcão de distribuição de saúde, sem que haja a devida responsabilização pelo erro administrativo que originou a demanda.
Em um cenário onde a judicialização da saúde é crescente, a tese do STJ envia uma mensagem clara: o custo da ineficiência estatal será suportado, em grande parte, pela desvalorização da advocacia.
5. A inversão de incentivos e o enfraquecimento da advocacia
Sob o pretexto de "evitar o enriquecimento sem causa" ou "preservar o erário", o julgamento do Tema 1.313/STJ inverte o eixo da responsabilidade estatal. Ao reduzir o valor dos honorários de sucumbência, o Tribunal acaba transferindo o ônus da ineficiência administrativa para os profissionais que judicializam essas falhas.
Em outras palavras, a omissão do Estado é compensada com a desvalorização do trabalho do advogado, que muitas vezes atua de forma essencial para a concretização do direito fundamental à saúde.
Além disso, o critério da "equidade" abre espaço para subjetivismos e arbitrariedades, dificultando a previsibilidade e segurança jurídica. Cada magistrado poderá atribuir valores distintos a causas semelhantes, o que desestimula a advocacia especializada e afasta profissionais experientes dessas demandas, em prejuízo direto da população vulnerável.
6. O argumento da natureza existencial: uma meia verdade
O direito à saúde é, de fato, um direito existencial, mas sua tutela judicial possui natureza econômica concreta. O medicamento, o insumo hospitalar ou a cirurgia possuem custo definido — tanto que o próprio Estado realiza licitações e orçamentos para adquiri-los.
Negar o caráter econômico dessas demandas é ignorar a realidade fática: há, sim, um proveito mensurável, que pode e deve servir como base para a fixação de honorários, conforme o art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC.
Se a indenização por dano moral, de natureza não patrimonial, admite fixação pecuniária e percentual, por que a efetivação do direito à saúde não poderia adotar o mesmo critério?
O argumento da natureza existencial não deve servir como escudo para reduzir direitos dos advogados ou beneficiar entes públicos negligentes.
7. Conclusão: uma decisão que fragiliza quem sustenta o sistema de justiça
O Tema 1.313 do STJ, embora busque uma solução para a complexa questão dos honorários em ações de saúde, peca ao criar uma distinção que não se sustenta na realidade fática e processual. A natureza existencial do direito à saúde não pode servir de pretexto para aviltar a remuneração do profissional que o concretiza.
O julgamento reflete uma visão desequilibrada entre o dever estatal de garantir o direito à saúde e a valorização da advocacia, essencial à administração da Justiça (art. 133 da CF/88). A aplicação da equidade, nesses casos, deveria ser a exceção, não a regra. A justiça social não se constrói à custa da desvalorização profissional daqueles que tornam efetivos os direitos fundamentais.
É imperativo que o Judiciário reavalie a aplicação irrestrita da equidade, especialmente considerando a dificuldade e o risco inerentes à litigância contra a Fazenda Pública. A valorização da advocacia, que é essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, passa pela garantia de uma remuneração justa e proporcional ao trabalho realizado.
Enquanto o Estado permanece ineficiente e impune diante de seus descumprimentos judiciais, o advogado — que atua na linha de frente da cidadania — é quem paga o preço. E a tese do STJ, ao tempo em que tenta proteger os cofres públicos de condenações vultosas, acaba por desproteger a própria sociedade, ao reduzir o incentivo para que advogados qualificados assumam a árdua tarefa de fiscalizar e exigir o cumprimento do dever constitucional de saúde por parte do Estado. A verdadeira justiça não pode ser alcançada premiando a ineficiência e fragilizando o pilar da defesa dos direitos fundamentais.
O resultado prático é claro: a decisão do STJ, embora revestida de boas intenções, termina por premiar a ineficiência estatal e enfraquecer a advocacia que defende o direito à vida.