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Tema 1.313 do STJ: Honorários por equidade e a fragilização da advocacia

Tema 1.313/STJ: Decisão polêmica fixou honorários por equidade em ações de saúde contra o SUS. Na prática, aviltou a advocacia, ignorou a complexidade do litígio e premiou a ineficiência do Estado.

7/11/2025

1. Introdução

O STJ, ao julgar o Tema repetitivo 1.313, fixou tese que estabelece um novo paradigma para a fixação de honorários advocatícios em demandas de saúde contra o Poder Público. A decisão, que determina a aplicação da apreciação equitativa (art. 85, § 8º, do CPC) e afasta os patamares mínimos previstos no § 8º-A do mesmo artigo, baseia-se na natureza existencial e não patrimonial do direito à saúde.

Embora a intenção declarada seja garantir o acesso à justiça e evitar o enriquecimento sem causa, a tese suscita profunda preocupação na comunidade jurídica, pois, na prática, promove a fragilização da advocacia e, paradoxalmente, parece premiar a ineficiência estatal.

A decisão do STJ, mesmo que embasada em razões de justiça social e na natureza existencial do direito à saúde, representa um retrocesso sob o ponto de vista da valorização da advocacia e cria uma perigosa assimetria entre o tratamento conferido às demandas contra o Estado e aquelas ajuizadas contra entes privados — sobretudo planos de saúde.

Este artigo propõe uma análise crítica do Tema 1.313, questionando a dualidade interpretativa criada entre ações contra o Poder Público e ações contra planos de saúde privados, e expondo como essa distinção, embora juridicamente fundamentada, desconsidera a realidade da atuação profissional e os incentivos perversos gerados no sistema de judicialização da saúde.

2. Entendimento fixado pelo STJ no Tema 1.313

O STJ firmou a seguinte orientação:

"Nas demandas em que se pleiteia do Poder Público a satisfação do direito à saúde, os honorários advocatícios são fixados por apreciação equitativa, sem aplicação do art. 85, § 8º-A, do CPC".

Ou seja, o STJ definiu que nas ações em que se pleiteiam prestações de saúde, como fornecimento de medicamentos, insumos, cirurgias ou tratamentos médicos, contra o Poder Público, os honorários advocatícios devem ser fixados por apreciação equitativa, considerando a natureza existencial do direito à saúde, e não com base no valor da causa ou do proveito econômico obtido.

Em síntese, os principais pontos da tese são:

O fundamento central da Corte Superior reside na premissa de que o direito à saúde possui natureza existencial, e não patrimonial. Embora o fornecimento de medicamentos, exames ou procedimentos médicos possua um custo econômico mensurável, esse valor não se traduz em proveito econômico para o paciente, que não incorpora o bem ou serviço ao seu patrimônio de forma alienável.

A decisão, portanto, afasta a aplicação das regras gerais de fixação de honorários, que priorizam o percentual sobre o valor da condenação ou do proveito econômico (art. 85, § 2º e § 3º, do CPC), e recorre à equidade (§ 8º), reservada para causas de valor inestimável ou irrisório. Além disso, o STJ afastou a aplicação do § 8º-A, introduzido pela lei 14.365/22, que visava coibir o aviltamento dos honorários por equidade ao estabelecer patamares mínimos.

3. A dualidade injustificada: SUS vs. planos de saúde. A contradição e seus efeitos práticos

O ponto mais sensível da tese reside na distinção entre ações contra o Poder Público (SUS) e ações contra operadoras de planos de saúde privados. O STJ justifica o tratamento diferenciado alegando que, no primeiro caso, trata-se da concretização de um dever constitucional (art. 196), enquanto no segundo, discute-se o cumprimento de uma obrigação contratual, onde o proveito econômico é evidente.

Contudo, essa distinção ignora um fato crucial: a razão de pedir (a causa petendi) é, em essência, a mesma. Em ambos os casos, o cidadão busca a intervenção judicial para obter um tratamento, medicamento ou procedimento de que necessita para preservar sua vida ou saúde. A complexidade fática e a urgência existencial são idênticas.

A decisão cria uma dualidade incoerente entre causas idênticas em seu objeto e natureza, mas com partes distintas. Tanto nas ações contra o SUS quanto nas movidas contra operadoras de planos de saúde, a razão de pedir é a mesma: o fornecimento de um tratamento médico, medicamento ou procedimento necessário à sobrevivência e dignidade do paciente.

O litígio contra o Poder Público é notadamente mais complexo, demorado e oneroso para o profissional. Envolve a superação de obstáculos burocráticos, a necessidade/dispensa de astreintes e, frequentemente, o descumprimento contumaz das decisões judiciais pelos gestores públicos, exigindo do advogado um esforço continuado e desproporcional.

No entanto, o STJ entende que, se o réu for o Estado, o trabalho do advogado deve ser remunerado por "equidade"; se o réu for um plano de saúde, os honorários incidem sobre o valor econômico do tratamento.

Essa distinção, em vez de promover justiça, fragiliza a advocacia e premia a ineficiência estatal. Os advogados que enfrentam a máquina pública — com toda sua lentidão, burocracia e reiterados descumprimentos de decisões judiciais — são justamente os que mais enfrentam obstáculos, riscos e custos para garantir a efetividade do direito à saúde.

O resultado é paradoxal: quanto mais difícil e custosa a atuação, menor a remuneração do advogado.

Ao fixar honorários por equidade, que tendem a ser irrisórios e desvinculados do valor real da prestação obtida, o Judiciário desestimula a atuação qualificada na defesa do direito à saúde contra o ente público. O advogado, que é o motor da concretização do direito fundamental, tem seu trabalho desvalorizado em comparação com o colega que atua em uma causa de mesma natureza existencial, mas contra um plano de saúde privado.

4. O prêmio à ineficiência estatal

A consequência mais perversa do Tema 1.313 é o incentivo à ineficiência administrativa. A sucumbência tem, entre suas funções, a de desestimular o litígio desnecessário e punir a parte que deu causa ao processo.

Quando o Poder Público, por omissão ou falha na gestão, força o cidadão a buscar o Judiciário para ter acesso a um direito fundamental, ele deve ser onerado de forma a internalizar o custo de sua ineficiência. A fixação de honorários por equidade, em valores reduzidos, transforma a sucumbência em um custo irrisório para o Estado, que passa a ter um incentivo financeiro perverso para manter o status quo de descumprimento.

O gestor público, que falha em prover o direito à saúde, sabe que o custo da derrota judicial será minimizado pela equidade. Isso não apenas desvaloriza o trabalho do advogado, mas também enfraquece o papel pedagógico e punitivo da sucumbência, transformando o Judiciário em um mero balcão de distribuição de saúde, sem que haja a devida responsabilização pelo erro administrativo que originou a demanda.

Em um cenário onde a judicialização da saúde é crescente, a tese do STJ envia uma mensagem clara: o custo da ineficiência estatal será suportado, em grande parte, pela desvalorização da advocacia.

5. A inversão de incentivos e o enfraquecimento da advocacia

Sob o pretexto de "evitar o enriquecimento sem causa" ou "preservar o erário", o julgamento do Tema 1.313/STJ inverte o eixo da responsabilidade estatal. Ao reduzir o valor dos honorários de sucumbência, o Tribunal acaba transferindo o ônus da ineficiência administrativa para os profissionais que judicializam essas falhas.

Em outras palavras, a omissão do Estado é compensada com a desvalorização do trabalho do advogado, que muitas vezes atua de forma essencial para a concretização do direito fundamental à saúde.

Além disso, o critério da "equidade" abre espaço para subjetivismos e arbitrariedades, dificultando a previsibilidade e segurança jurídica. Cada magistrado poderá atribuir valores distintos a causas semelhantes, o que desestimula a advocacia especializada e afasta profissionais experientes dessas demandas, em prejuízo direto da população vulnerável.

6. O argumento da natureza existencial: uma meia verdade

O direito à saúde é, de fato, um direito existencial, mas sua tutela judicial possui natureza econômica concreta. O medicamento, o insumo hospitalar ou a cirurgia possuem custo definido — tanto que o próprio Estado realiza licitações e orçamentos para adquiri-los.

Negar o caráter econômico dessas demandas é ignorar a realidade fática: há, sim, um proveito mensurável, que pode e deve servir como base para a fixação de honorários, conforme o art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC.

Se a indenização por dano moral, de natureza não patrimonial, admite fixação pecuniária e percentual, por que a efetivação do direito à saúde não poderia adotar o mesmo critério?

O argumento da natureza existencial não deve servir como escudo para reduzir direitos dos advogados ou beneficiar entes públicos negligentes.

7. Conclusão: uma decisão que fragiliza quem sustenta o sistema de justiça

O Tema 1.313 do STJ, embora busque uma solução para a complexa questão dos honorários em ações de saúde, peca ao criar uma distinção que não se sustenta na realidade fática e processual. A natureza existencial do direito à saúde não pode servir de pretexto para aviltar a remuneração do profissional que o concretiza.

O julgamento reflete uma visão desequilibrada entre o dever estatal de garantir o direito à saúde e a valorização da advocacia, essencial à administração da Justiça (art. 133 da CF/88). A aplicação da equidade, nesses casos, deveria ser a exceção, não a regra. A justiça social não se constrói à custa da desvalorização profissional daqueles que tornam efetivos os direitos fundamentais.

É imperativo que o Judiciário reavalie a aplicação irrestrita da equidade, especialmente considerando a dificuldade e o risco inerentes à litigância contra a Fazenda Pública. A valorização da advocacia, que é essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, passa pela garantia de uma remuneração justa e proporcional ao trabalho realizado.

Enquanto o Estado permanece ineficiente e impune diante de seus descumprimentos judiciais, o advogado — que atua na linha de frente da cidadania — é quem paga o preço. E a tese do STJ, ao tempo em que tenta proteger os cofres públicos de condenações vultosas, acaba por desproteger a própria sociedade, ao reduzir o incentivo para que advogados qualificados assumam a árdua tarefa de fiscalizar e exigir o cumprimento do dever constitucional de saúde por parte do Estado. A verdadeira justiça não pode ser alcançada premiando a ineficiência e fragilizando o pilar da defesa dos direitos fundamentais.

O resultado prático é claro: a decisão do STJ, embora revestida de boas intenções, termina por premiar a ineficiência estatal e enfraquecer a advocacia que defende o direito à vida.

Evilasio Tenorio da Silva Neto
Advogado especialista em Direito da Saúde e Direito Civil. Titular do TSA - Tenorio da Silva Advocacia, escritório considerado referência nacional na defesa dos usuários de planos de saúde e do SUS.

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