“Falta de escritura ou contrato particular não invalida doação disfarçada de empréstimo.” Esse foi o entendimento da 3ª turma do STJ ao negar provimento ao recurso especial de um homem que buscava impedir que sua ex-companheira vendesse um imóvel, sob o argumento de que a aquisição somente teria ocorrido em virtude de um empréstimo concedido a ela durante o casamento.
O caso, que tramita em segredo de justiça, envolve matrimônio regido pela separação total de bens, no qual a esposa recebeu, durante a união, uma fazenda em doação do marido. Com a dissolução do vínculo e a subsequente intenção de vender o imóvel, instaurou-se a controvérsia, tendo o ex-cônjuge ajuizado a referida ação de cobrança.
Ocorre que, com a análise do conjunto probatório das instâncias ordinárias, verificou-se que o suposto “empréstimo” era, na verdade, uma doação disfarçada, utilizada para dar lastro financeiro à compra do imóvel. Na tentativa de justificar a transferência do dinheiro empregado na aquisição da fazenda, o ex-marido teria incluído, em sua declaração de Imposto de Renda, informações sobre um suposto empréstimo entre o casal, prática por vezes utilizada para evitar a incidência de tributos e outras formalidades.
No julgamento, a relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que exigir o preenchimento dos requisitos formais (escritura pública ou instrumento particular) para reconhecimento do negócio em questão seria o mesmo que reconhecer a invalidade da doação e, consequentemente, proteger o doador que tenta dissimular o negócio.
Isso porque, conforme o art. 538 do CC1, considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. Assim, a intenção de doar deve ter, ou ao menos deveria ter, o único propósito de beneficiar a donatária, sem qualquer expectativa de reembolso. Caso a doação fosse considerada nula, haveria a restituição ao patrimônio doador, o que, na prática, equivaleria aos efeitos de um empréstimo em proveito justamente de quem arquitetou a simulação, o ex-marido, premiando-o pela própria torpeza.
Nesse sentido, merece atenção o art. 167 do CC2, que trata da simulação relativa, um tipo de simulação jurídica em que um negócio jurídico válido (no caso, a doação) é oculto por outro que lhe serve de disfarce (no caso, o falso empréstimo). Diferente da simulação absoluta (em que não há vontade de produzir efeito jurídico, e por isso tal denominação), na simulação relativa as partes querem um negócio real, mas o encobrem sob a aparência de outro. O ponto controverso da decisão surge porque o final do próprio dispositivo exige que o negócio dissimulado seja “válido na substância e na forma”, hipótese que levaria à nulidade da doação entre as partes.
Ocorre que, para que se configure a simulação, é essencial a existência de uma aparência negocial capaz de induzir terceiros a acreditar, com base em confiança legítima, que adquiriram determinados direitos ou assumiram certas obrigações. Descoberta a simulação, podem coexistir dois movimentos: buscar a declaração de nulidade do negócio aparente, para que prevaleça o cenário jurídico dissimulado, hipótese que não corresponde ao caso envolvido na decisão; ou defender a subsistência do negócio aparente, a fim de resguardar direitos constituídos sob a aparência.
Este último, quando pertinente, condiciona-se à observância do § 2º do art. 167 do CC3. Tal dispositivo resguarda os direitos de terceiros de boa-fé em face das partes que praticaram a simulação. No caso noticiado, verificou-se que a indicação de empréstimo nas declarações de Imposto de Renda foi ato unilateral do ex-cônjuge que, somado à ausência de condições econômicas da ex-esposa para suportar eventual empréstimo, evidenciou a sua boa-fé.
Sendo assim, a decisão reforça que o entendimento da Corte busca impedir que ritos e solenidades se sobreponham à realidade comprovada, evitando que requisitos formais se convertam em instrumento de vantagem do simulador. Reprimir a simulação é, portanto, defender a integridade do negócio jurídico, garantindo que a realidade dos fatos contribua para um sistema mais justo, previsível e seguro. A formalidade permanece relevante ao negócio; sua função, contudo, é servir à segurança jurídica, e não, servir de escudo para fraudes.
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1 Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.
2 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
3 § 2 o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.