Nos bastidores do STF, mudanças que parecem meramente administrativas costumam ter efeitos institucionais profundos. O recente ciclo de aposentadorias e transferências entre turmas reacendeu o debate sobre o equilíbrio político dentro da Corte e sobre a influência que a composição de seus colegiados exerce no rumo das decisões mais sensíveis do país. Em um tribunal que combina autoridade jurídica e peso político, cada nomeação ultrapassa o plano individual e reflete diretamente na forma como o Supremo expressa sua função constitucional e preserva a estabilidade democrática.
É nesse contexto que a 1ª turma ganha protagonismo. A aposentadoria antecipada do ministro Luís Roberto Barroso e a transferência do ministro Luiz Fux para a 2ª turma abriram uma nova vaga, que será preenchida pelo mesmo governo responsável pelas últimas indicações. Embora tais mudanças sejam legítimas e previstas no regimento interno, o momento em que ocorrem desperta atenção.
A concentração de nomeações em um único ciclo presidencial pode reduzir a pluralidade de visões dentro do colegiado, justamente aquele responsável pelos julgamentos penais e políticos de maior repercussão. Assim, compreender essa recomposição é compreender também o desafio do STF de conciliar técnica, independência e diversidade em um cenário onde o jurídico e o político se entrelaçam de forma inevitável.
A 1ª turma e o poder político-institucional do Supremo
O STF possui, em sua própria estrutura, uma dimensão política que se projeta para além da função jurisdicional. Sua divisão em duas turmas, prevista no regimento interno, busca descentralizar os julgamentos e garantir maior celeridade processual, mas também define, de forma silenciosa, o equilíbrio interno de poder e o alcance político das decisões da Corte.
As recentes movimentações decorrentes da aposentadoria antecipada do ministro Luís Roberto Barroso e da transferência do ministro Luiz Fux para a 2ª turma exemplificam esse fenômeno.
Aparentemente burocráticas, as mudanças tiveram impacto direto sobre a 1ª turma, historicamente responsável por julgamentos penais e processos envolvendo autoridades com foro privilegiado. Com a saída de Barroso e a migração de Fux, o colegiado passou a funcionar com apenas quatro ministros - Flávio Dino (presidente), Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin - até que o governo Federal indique o novo integrante.
A próxima nomeação, a ser feita pelo mesmo Executivo que já escolheu Zanin e Dino, deve consolidar uma composição majoritariamente formada por ministros de origem política semelhante. Cármen Lúcia, indicada por Lula em 2006, e Alexandre de Moraes, nomeado por Michel Temer, completam um grupo institucionalmente próximo. Essa convergência não implica controle político sobre o Tribunal, mas sinaliza uma menor diversidade de trajetórias e visões jurídicas, o que pode influenciar, ainda que de forma sutil, o tom dos debates e a amplitude dos dissensos.
O ponto de atenção não está na legitimidade das nomeações (constitucionalmente garantidas e sujeitas ao crivo do Senado), mas na concentração temporal dessas escolhas em um mesmo ciclo presidencial. Quando aposentadorias e rearranjos internos se acumulam, a consequência pode ser uma Corte menos plural e, portanto, mais previsível. Em um tribunal constitucional, previsibilidade não é sinônimo de virtude, na medida que a vitalidade do Supremo depende da pluralidade interpretativa e da força dos dissensos fundamentados, que enriquecem a jurisprudência e preservam o equilíbrio institucional.
Essa discussão ganha relevância diante do papel que a 1ª turma passou a exercer nos últimos anos. O colegiado se transformou no epicentro dos casos de maior repercussão política e institucional.
Sob a relatoria de Alexandre de Moraes, concentrou parte das ações relativas aos atos de 8 de janeiro de 2023 e à tentativa de golpe de 2022, além de processos contra figuras públicas de grande visibilidade. Em 2025, protagonizou o julgamento que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus pela tentativa de subversão do Estado Democrático de Direito, com pena superior a 27 anos de prisão. Antes disso, manteve o bloqueio das contas do ex-deputado Daniel Silveira e determinou, em 2017, o afastamento do senador Aécio Neves, em decisão que tensionou as relações entre o Judiciário e o Congresso Nacional.
Esses precedentes demonstram que a 1ª turma concentra hoje decisões que testam os limites da independência judicial e da estabilidade democrática. Cada julgamento repercute não apenas na jurisprudência, mas também no ambiente político, funcionando como um termômetro da relação entre o Supremo, o Executivo e a sociedade.
É nesse contexto que ressurge o debate sobre a suposta politização do STF. Embora frequentemente exagerada, essa crítica ganha força quando mudanças regimentais e sucessivas nomeações transmitem a imagem de um colegiado homogêneo.
O desafio do Supremo, portanto, é preservar a pluralidade interna e o espaço para o contraditório, evitando que a coesão institucional se converta em uniformidade de pensamento. Cortes constitucionais compostas por ministros de trajetórias e formações distintas tendem a produzir decisões mais equilibradas e resistentes a críticas de parcialidade. O STF, historicamente marcado por dissensos vigorosos e votos densamente fundamentados, deve manter essa tradição como forma de autoproteção e como expressão legítima de sua independência.
A nova configuração da 1ª turma, assim, não representa apenas uma reorganização administrativa, mas reflete o próprio momento político e jurídico do país. Em um Supremo que decide os temas mais divisivos da vida nacional, a diversidade interna é mais que desejável, é essencial para sustentar a legitimidade das decisões e, com ela, a estabilidade do Estado Democrático de Direito.