1. Introdução: Os fundamentos da proteção das marcas
A propriedade intelectual, em especial no que tange à proteção de marcas, desempenha papel central na organização das relações de mercado contemporâneas, ao permitir que agentes econômicos distingam seus produtos e serviços por meio de signos reconhecíveis pelo consumidor. O registro de marca confere propriedade e garante ao titular o direito ao uso exclusivo do sinal distintivo visualmente perceptível em todo o território nacional, nos termos do art. 122 e 129 da lei 9.279/96 (LPI - Lei de Propriedade Industrial). É um sinal da necessidade de se equilibrar tal exclusividade que, entretanto, e o mesmo tempo, o sistema de proteção marcária exija a observância a limites normativos que visam impedir o uso indevido desse instrumento como mecanismo de exclusão concorrencial, sobretudo quando se trata da tentativa de apropriação de expressões de uso comum, genérico ou descritivo.
Diante desse contexto, o ordenamento jurídico brasileiro, por meio da lei de propriedade industrial, consagra, em seu art. 124, um conjunto de restrições ao registro de determinadas espécies de sinais distintivos. Entre essas limitações, destaca-se, para fins da análise proposta neste artigo, a do Inciso VI, que traz a vedação à registrabilidade de sinal genérico, comum, meramente descritivo ou de uso necessário, justamente para evitar a constituição de exclusividade indevida sobre elementos do vocabulário comercial que devam permanecer disponíveis a todos os agentes do mercado. O objetivo central da norma é preservar a função distintiva da marca e assegurar que o direito de exclusiva se aplique apenas a sinais que verdadeiramente cumpram o papel de individualizar produtos e serviços de um determinado titular. O presente artigo analisa um caso paradigmático da jurisprudência brasileira envolvendo a marca nominativa “Língua de Gato”, detida por companhia brasileira. A controvérsia teve início com ação judicial promovida por empresa concorrente, que buscava a nulidade dos registros da expressão “Língua de Gato” no INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial, sob a alegação de ausência de distintividade e caráter genérico da expressão, amplamente conhecida no Brasil e no exterior para designar um tipo específico de chocolate oblongo e achatado.
A partir da análise jurisprudencial e do suporte teórico, pretende-se demonstrar que a proteção marcária deve estar comprometida com a realização dos princípios constitucionais da função social da propriedade, da livre iniciativa e da livre concorrência, não podendo ser instrumentalizada para a criação de reservas artificiais de mercado em detrimento do interesse público.
2. O caso “Língua de Gato”: Quando o nome é de todos
A análise do caso envolvendo a tentativa de exclusividade sobre a marca nominativa “Língua de Gato” como adiantado, permite uma reflexão aprofundada sobre os limites impostos ao direito marcário, em especial à luz do art. 124, inciso VI, que veda o registro de sinais genéricos, necessários, comuns, vulgares ou meramente descritivos. A controvérsia gira em torno da possibilidade jurídica de apropriação, por meio de registro de marca, de uma expressão que, ao longo de décadas, consolidou-se como referência genérica para um tipo específico de chocolate oblongo e achatado conhecido tanto no Brasil quanto no exterior como “língua de gato”.
A disputa judicial instaurada em face do INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial e da empresa titular do registro da marca, tinha como objetivo declarar a nulidade de dois registros 906.413.478 e 906.413.966, relativos à marca nominativa “Língua de Gato”. A autora sustentou que a expressão não possuía distintividade suficiente para ser objeto de proteção exclusiva, por configurar denominação de uso comum no setor de confeitaria, especialmente na indústria chocolateria. Argumentou, ainda, que tal expressão remonta ao século XIX, com uso disseminado em diversos países europeus, sendo identificada, por exemplo, como “cat’s tongue” em inglês, “langue de chat” em francês e “katzenzungen” em alemão. Tal historicidade reforçaria sua natureza genérica e o consequente impedimento ao registro com exclusividade.
Em primeira instância, o pedido foi julgado parcialmente procedente, tendo sido acolhida a tese de que a expressão “Língua de Gato” seria genérica para chocolates, mas não para outros produtos não alimentícios. Reconheceu-se, assim, a nulidade de um dos registros, de classe envolvendo produtos como chocolates e doces, sob a fundamentação de se tratar de termo descritivo e de uso comum. Entretanto, o segundo registro, referente a produtos não vinculados ao segmento de chocolates, foi mantido. Na visão da julgadora, a ausência de vínculo direto com o objeto alimentício justificaria o afastamento da natureza descritiva da marca, permitindo, assim, sua proteção em outras classes.
Tal distinção foi superada pelo TRF-2, por ocasião do julgamento das apelações interpostas por ambas as partes. A 2ª turma Especializada, por unanimidade, reformou parcialmente a sentença para declarar também a nulidade do segundo registro. O acórdão promoveu análise mais rigorosa quanto à função descritiva do sinal nominativo, concluindo que a exclusividade sobre a expressão “Língua de Gato” comprometeria os princípios fundamentais que regem a disciplina marcária, como a função social da marca, a proteção ao consumidor e a vedação à concentração de mercado por meio do monopólio de sinais de uso necessário.
A Corte entendeu que a expressão “Língua de Gato” não deteria distintividade capaz de autorizar o seu registro como marca nominativa, sendo termo que identifica espécie de produto dentro de uma categoria alimentícia amplamente difundida, e que, por isso, não poderia ser apropriado por nenhuma empresa em caráter exclusivo, ainda que se tentasse estender sua proteção a produtos correlatos ou acessórios. Nesse sentido, o TRF-2 pontuou que a manutenção do segundo registro poderia gerar confusão ou associação indevida entre produtos de diferentes fabricantes, implicando barreira injustificada ao ingresso de novos agentes no mercado.
Além disso, o acórdão destacou que as marcas nominativas e mistas possuem regimes de proteção distintos. A marca mista protege a impressão geral gerada pela combinação de elementos visuais e textuais, não sendo o elemento nominativo isoladamente protegível. Como no caso não foram impugnados registros mistos, mas exclusivamente os registros nominativos, entendeu-se que não havia incongruência em invalidar os registros com base na ausência de distintividade da expressão isolada.
A decisão do TRF-2 reforça a função limitadora do art. 124 da LPI, cuja ratio legis reside na necessidade de garantir a livre utilização de sinais que são de interesse coletivo e uso necessário no comércio. Trata-se de norma que expressa equilíbrio entre a proteção da inovação e a liberdade de mercado, impedindo que empresas utilizem o instituto da marca como instrumento de apropriação indevida de expressões que devem permanecer acessíveis a todos os agentes econômicos. Ao vedar o registro de sinais genéricos e descritivos, o legislador buscou preservar o espaço concorrencial e assegurar que marcas cumpram sua função principal, qual seja, distinguir produtos ou serviços de diferentes origens empresariais, e não monopolizar características ou denominações próprias da categoria a que pertencem.
Nesse contexto, evidencia-se que o arbítrio conferido ao titular de registro marcário encontra limite na própria CF/88, de modo que “a propriedade, e especialmente aquela resultante das patentes e demais direitos industriais, não é absoluta - ela só existe em atenção ao seu interesse social e para propiciar o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”1. Assim, ao vedar o uso exclusivo da expressão “Língua de Gato”, o TRF-2 não apenas resguarda a livre concorrência e a função distintiva das marcas, mas também reafirma que nenhum agente pode se apropriar de sinal que designa categoria de produto, sob pena de ferir o interesse público e o desenvolvimento econômico tutelados pela lei de propriedade industrial.
Acresce-se que a marca exerce função que transcende a mera identificação de produtos ou serviços, constituindo-se como instrumento estratégico de diferenciação no mercado e de estímulo ao consumo. Como destaca Denis Borges Barbosa, a marca atua, antes de tudo, como um identificador da origem de produtos, serviços ou mercadorias. Quando utilizada com finalidade publicitária, além de indicar a procedência, busca estimular o consumo e fortalecer a imagem do negócio. A proteção jurídica das marcas tem por objetivo, em primeiro plano, preservar o investimento realizado pelo empresário e, em segundo, garantir que o consumidor possa diferenciar produtos de boa ou má qualidade2. A decisão também dialoga com a doutrina ao reconhecer que termos do domínio comum não podem ser objeto de apropriação exclusiva, justamente por carecerem de novidade e distintividade. Nas palavras de Denis Borges Barbosa, “a marca do domínio comum também é irregistrável, mas convenciona-se reservar a noção de novidade para as marcas que não estão no domínio comum, e que não tenham sido previamente apropriadas dentro dos limites de sua especialidade”3.
Assim, mesmo que a marca não tenha sido anteriormente registrada, sua inserção no vocabulário comum e sua utilização descritiva consolidada no setor de confeitaria inviabilizariam o preenchimento do requisito de novidade, tornando ilegítima sua proteção como marca nominativa. Como aponta Denis Borges Barbosa, não é possível conceder propriedade exclusiva sobre algo que já é de uso alheio, como ocorre com expressões verbais de uso comum; apropriar-se delas para proveito de uma pessoa só seria tão absurdo quanto cercar uma praça e construir nela uma casa para uso privado.4 O símbolo pretendido como marca, portanto, deve se destacar suficientemente do vocabulário comum para justificar sua exclusividade. No caso analisado, a tentativa de exclusividade sobre o uso da expressão “Língua de Gato” configuraria afronta à função social da marca, cabendo ao Judiciário, como o fez o TRF-2, repelir pretensões que cerceiem o uso coletivo da linguagem e limitem indevidamente a atividade econômica de terceiros.
Ao proibir o uso exclusivo de um sinal que designa diretamente a natureza e a forma de um produto, o Tribunal protege não apenas o mercado, mas também o consumidor, que tem direito à clareza na identificação dos produtos. O uso de um termo descritivo como marca registrada poderia induzir o consumidor à falsa crença de que se trata de um produto exclusivo ou de qualidade superior, apenas em razão da apropriação do termo comum.
Outro aspecto relevante é a função preventiva e pedagógica da jurisprudência administrativa e judicial sobre registros marcários. Empresas que tentem registrar expressões de uso comum ou genéricas deverão, à luz deste caso, rever suas práticas e, se for o caso, demonstrar de forma robusta a aquisição de distintividade por meio de uso continuado e reconhecido no mercado (o chamado secondary meaning), o que não ocorreu no caso em análise.
3. Conclusão: A existência de limites à registrabilidade
Em conclusão, o caso “Língua de Gato” representa um exemplo paradigmático de aplicação dos princípios que regem o direito marcário no Brasil. Ao impedir a utilização de um termo comum e amplamente utilizado, a decisão busca fortalecer os fundamentos constitucionais da livre iniciativa, da vedação à concorrência desleal e da função social da propriedade. Revela-se, portanto, como um marco interpretativo na jurisprudência sobre os limites da registrabilidade de sinais distintivos nominativos, contribuindo para o amadurecimento da proteção à propriedade intelectual em conformidade com os interesses públicos e econômicos da sociedade.
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1 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 24.
2 Id., p. 698.
3 Id., p. 705.
4 Id., p. 710.