Introdução
Em 12 de novembro de 2025, a 1ª Seção do STJ proferiu decisão unânime no julgamento do Tema repetitivo 1.319, consolidando entendimento favorável aos contribuintes sobre a dedutibilidade dos JCP - Juros sobre Capital Próprio extemporâneos. O acórdão, relatado pelo ministro Paulo Sérgio Domingues, abrangeu os REspsc 2.162.629/PR, 2.162.248/RS, 2.163.735/RS e 2.161.414/PR, estabelecendo precedente vinculante que encerra prolongada divergência interpretativa entre Fisco e contribuintes.
A unanimidade da decisão confere especial força ao precedente, que passa a vincular todas as instâncias judiciais e administrativas, incluindo o CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, onde a matéria gerava constante litigiosidade. O julgamento representa o desfecho de embate jurídico iniciado com a edição da IN RFB 1.700/17, que restringiu a dedução temporal dos JCP.
Breve resumo da controvérsia
O JCP extemporâneo refere-se aos juros sobre capital próprio calculados sobre lucros de exercícios anteriores ao da deliberação societária que autoriza seu pagamento. A controvérsia surgiu porque a legislação não estabelece prazo específico para essa deliberação, criando interpretações diametralmente opostas entre fisco e contribuintes, situação que se intensificou especialmente após 2017.
A questão central que dividia as interpretações era determinar se uma empresa poderia deliberar, em exercício posterior, o pagamento de JCP calculado sobre o patrimônio líquido de anos anteriores, deduzindo tal valor da base de cálculo do IRPJ e CSLL. Esta situação é comum na prática empresarial, especialmente em contextos de incerteza econômica, quando as empresas adotam postura conservadora e postergam decisões de distribuição, preservando recursos para enfrentar cenários adversos.
A Receita Federal consolidou interpretação restritiva, sustentando que o JCP deve ser deduzido apenas no ano de formação do lucro que serve de base para seu cálculo. Esta posição encontrava respaldo na IN RFB 1.700/17, que em seu art. 75, parágrafo 4º, estabelecia que "a dedução dos juros sobre o capital próprio só poderá ser efetuada no ano-calendário a que se referem os limites". O fundamento alegado pela administração tributária era que o regime de competência exigiria o reconhecimento anual da despesa, impedindo sua postergação para exercícios futuros.
Em contraposição, os contribuintes defendiam a possibilidade de dedução do JCP no ano da deliberação, mesmo quando calculado sobre lucros de exercícios anteriores. Esta posição baseava-se na ausência de limitação temporal expressa na lei 9.249/95 e no entendimento técnico de que a deliberação societária constitui o fato gerador da obrigação de pagar JCP, sendo este o momento adequado para o reconhecimento contábil e fiscal da despesa, independentemente do exercício que serviu de base para o cálculo.
A ratio decidendi da decisão
O STJ fixou tese vinculante com clareza meridiana: "É possível a dedução de JCP da base de cálculo do IRPJ e da CSLL quando apurados em relação aos lucros de exercícios anteriores à deliberação que autorizou seu pagamento, desde que observados os requisitos legais do art. 9º da lei 9.249/1995."
A fundamentação da Corte Superior estrutura-se em dois pilares dogmáticos. Primeiramente, estabelece a deliberação societária como marco constitutivo da despesa dedutível. O tribunal reconheceu que o JCP, enquanto despesa tributariamente dedutível, nasce com o ato volitivo da assembleia ou órgão competente que autoriza sua distribuição, não com a apuração do lucro que lhe serve de substrato. Esta distinção temporal é crucial para afastar a aplicação mecânica do regime de competência.
Secundariamente, a decisão reafirma a supremacia do princípio da legalidade tributária. O STJ considerou que a restrição temporal imposta pela IN constitui inovação indevida do ordenamento jurídico por via infralegal, violando o postulado constitucional segundo o qual limitações a direitos tributários somente podem decorrer de lei em sentido formal. A ausência de prazo na lei 9.249/95 não configura lacuna a ser suprida pela administração, mas opção legislativa deliberada.
O acórdão reconhece ainda a natureza jurídica híbrida do JCP. Embora contabilmente represente distribuição de resultado, a legislação tributária o qualifica como despesa financeira por ficção legal. Esta dualidade justifica tratamento diferenciado em relação às despesas operacionais ordinárias, afastando a incidência rígida do regime de competência.
Consequências práticas
A força vinculante do precedente gera efeitos imediatos no contencioso administrativo e judicial. O CARF, que mantinha orientação majoritariamente desfavorável aos contribuintes, deve necessariamente aplicar a tese do STJ, eliminando a divergência entre esferas administrativa e judicial. Esta convergência interpretativa restaura a coerência sistêmica e reduz significativamente a litigiosidade sobre a matéria.
Para as empresas, a decisão restitui autonomia na gestão de políticas distributivas, permitindo que retenham lucros em períodos de instabilidade e deliberem JCP em momentos economicamente mais adequados, sem prejuízo do benefício fiscal. Esta flexibilidade temporal é especialmente relevante para companhias sujeitas a ciclos econômicos voláteis ou que adotam estratégias conservadoras de gestão de caixa.
A decisão abre ainda possibilidade de recuperação de créditos para empresas que, nos últimos cinco anos, deixaram de deduzir JCP extemporâneo por receio de autuação ou que foram efetivamente autuadas e recolheram os tributos exigidos. A recuperação destes valores pode ser pleiteada mediante retificação da Escrituração Contábil Fiscal e outras obrigações acessórias pertinentes.
Considerações finais
O julgamento do Tema 1.319 representa vitória inequívoca do princípio da legalidade tributária e da segurança jurídica. Ao rechaçar a restrição infralegal e reconhecer a deliberação societária como fato gerador da despesa dedutível, o STJ estabelece precedente que fortalece a previsibilidade do sistema tributário e a autonomia empresarial na gestão financeira.
A decisão consolida entendimento técnico-jurídico que respeita tanto a natureza híbrida do JCP quanto os limites constitucionais da atividade normativa da administração tributária.
A controvérsia sobre o JCP extemporâneo encontra, assim, sua resolução definitiva, estabelecendo marco jurisprudencial que orienta tanto a prática empresarial quanto a atuação da administração tributária dentro dos parâmetros constitucionais e legais aplicáveis.
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Referências
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