O universo dos contratos de compra e venda de empresas (conhecidos como operações de fusões e aquisições ou M&A) é repleto de termos e cláusulas importados do sistema jurídico internacional, especialmente do common law (direito anglo-saxão). Um desses termos que gera intenso debate no Brasil é o "sandbagging".
1. O que é "sandbagging"? Origem e definição
A palavra "sandbagging" (que, em tradução literal, significa "saco de areia") carrega uma conotação histórica de astúcia e engano.
A expressão, originária do século XIX, era usada para descrever a conduta de gangues que enchiam meias com areia (aparentemente inofensivas) para agredir suas vítimas de forma sorrateira, obtendo uma vantagem.
No contexto jurídico e empresarial, o sandbagging se refere a uma prática específica em contratos de aquisição de empresas:
- Definição simplificada: Ocorre quando o comprador descobre que uma declaração ou garantia feita pelo vendedor no contrato (as famosas R&Ws) é falsa ou imprecisa durante a fase de auditoria (due diligence).
- A prática: O comprador, ciente da falha, opta por não informar o vendedor sobre o problema, conclui o negócio (o closing) e, somente depois, pleiteia uma indenização por quebra contratual baseada naquela informação que ele já sabia ser inverídica.
O cerne da controvérsia é se essa utilização da informação obtida para buscar indenização futuramente configura uma violação da boa-fé e dos limites da liberdade contratual no Direito brasileiro.
2. A boa-fé objetiva (Art. 422 CC) como pilar do Direito Contratual
O Direito Contratual brasileiro, por ser um sistema de civil law, é fortemente regido por princípios éticos de conduta.
O art. 422 do CC é o principal pilar que sustenta essa exigência, determinando que "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".
A boa-fé objetiva exige dos envolvidos um padrão de comportamento leal, honesto e transparente.
O conflito com o sandbagging
A conduta de sandbagging (saber do problema e silenciar para lucrar depois) é vista por muitos juristas como a antítese dessa lealdade, pois violaria deveres anexos, como o dever de informar e a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium).
O principal obstáculo para a validade da prática de sandbagging no Brasil é justamente o potencial desrespeito à boa-fé. O comprador que age dessa forma pode ter seu comportamento interpretado como desleal ou abusivo.
Se o contrato é omisso (não fala nada) sobre o sandbagging, a doutrina majoritária no Brasil tende a adotar uma postura anti-sandbagging. Nesses casos de silêncio, a admissibilidade da prática é casuística (depende da análise concreta do caso) e sujeita ao julgamento sobre a real intenção e o nível de conhecimento do comprador.
Além disso, o exercício de um direito, mesmo que contratualmente previsto, pode ser considerado um abuso de direito (art. 187 do CC) se exceder os limites impostos pela boa-fé.
3. As cláusulas de sandbagging: Pró ou contra?
Para mitigar a incerteza jurídica gerada pelo conflito entre a autonomia privada e a boa-fé objetiva, as partes em contratos sofisticados podem optar por incluir cláusulas expressas que definem claramente a alocação de risco.
O Direito brasileiro, especialmente após a lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), valoriza a autonomia privada e a alocação de riscos definida pelas partes em contratos empresariais paritários, desde que não violem normas de ordem pública ou a boa-fé.
A) Cláusula anti-sandbagging (pró-vendedor)
Esta cláusula é a que proíbe expressamente o comprador de buscar indenização se ele já tinha conhecimento da falha antes do fechamento do negócio.
- Como auxilia: Esta cláusula é considerada amplamente válida no Brasil, pois está alinhada com a boa-fé objetiva. Ela incentiva a transparência e a discussão imediata dos problemas durante a due diligence, garantindo maior estabilidade ao negócio.
B) Cláusula pro-sandbagging (pró-comprador)
Esta cláusula é a que expressamente permite que o comprador busque indenização pela violação de uma garantia, mesmo que ele soubesse da inveracidade antes de fechar o negócio.
- Como auxilia: Ela trata as garantias (R&Ws) como um mecanismo de seguro ou alocação de risco. Sua principal utilidade é a eficiência negocial: evita que o comprador precise parar a transação para renegociar ou precificar ex ante (antes) cada pequeno risco conhecido, economizando tempo e custos de transação.
A conclusão consolidada é que, embora a boa-fé (art. 422) permaneça como um limite, as cláusulas expressas de pro-sandbagging e anti-sandbagging são, via de regra, plenamente válidas no Direito brasileiro, pois representam a livre manifestação da vontade das partes e a alocação de riscos em contratos empresariais. Elas oferecem segurança ao definir previamente as "regras do jogo" entre as partes.