Migalhas de Peso

O que o STF deixou de discutir na ADIn 7.765/DF

A Dirbi passou no STF, mas ficou o vazio: sem AIR, sem proporcionalidade e sem debate real sobre o tratamento constitucional das MPEs, a transparência vira obstáculo.

21/11/2025
Publicidade
Expandir publicidade

A recente decisão do STF, no bojo da ADIn 7.765/DF1, sobre a constitucionalidade da Dirbi - Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária reacende o debate sobre a compatibilidade entre transparência fiscal e o tratamento favorecido das micro e pequenas empresas.

Foi reafirmada a higidez constitucional da nova obrigação acessória para empresas que usufruem de benefícios fiscais, a despeito dos argumentos trazidos pela Confederação Nacional da Indústria, inclusive de inviabilização prática de acesso de micro e pequenas empresas a incentivos fiscais2.

O ministro relator, Dias Toffoli, no voto condutor, afastou a argumentação relativa ao tratamento favorecido das MPEs por entender que a regra busca dar eficiência e transparência ao sistema de tributação e que a LC 123/06 inclusive prevê casos em que as micro e pequenas empresas devem seguir as mesmas regras tributárias das demais pessoas jurídicas3.

Muito embora haja uma aparência de legitimidade da medida calcada em política tributária de maior governança e transparência, são contundentes as críticas relacionadas à burocratização excessiva pela obrigação de prestar informações que já estão à disposição do Estado4

O Conselho Federal de Contabilidade, a FENACON - Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento - e o IBRACON - Instituto Brasileiro de Auditores Independentes, por exemplo, dirigiram ofício à Receita Federal insurgindo-se contra a Dirbi, destacando que o decreto lei 6.022/07, que instituiu o SPED - Sistema Público de Escrituração Digital teve como propósito a simplificação do sistema tributário por meio da eliminação de redundâncias, e a exigência da nova obrigação acessória iria de encontro a esse objetivo, na medida em que os incentivos e benefícios fiscais já são informados nos módulos do SPED5

Não bastasse isso, há um grande problema em não calibrar o custo regulatório da obrigação acessória conforme o tamanho e a racionalidade econômica do agente obrigado e, nesse ponto, não houve sequer a realização da devida AIR - Análise de Impacto Regulatório pela Receita Federal, a qual é obrigatória aos órgãos reguladores federais desde a edição do decreto federal 10.441/20.

A análise prévia do ato regulatório envolve estudos técnicos e jurídicos e avaliação de possíveis alternativas à regulação, sendo instrumento qualitativo sem o qual a norma editada pelo órgão regulador padece de invalidade6.

O descumprimento da Dirbi pode sujeitar empresas a penalidades, calculadas por mês ou fração, sobre a receita bruta, limitada a 30% do valor dos benefícios fiscais usufruídos7, o que tem o potencial de vultoso impacto aos pequenos negócios, com reduzido nível informacional e que já precisam lidar no dia a dia com empecilhos pragmáticos inerentes a seu porte.

O Estado brasileiro, ao transferir o esforço de transparência da máquina às empresas, precisa considerar que a obrigação acessória tem custo marginal exponencial para as MPEs e custo marginal mínimo para grandes corporações, produzindo efeitos concorrenciais regressivos. Se o Brasil pretende modernizar seu sistema tributário, o caminho não é “nivelar por cima” o dever informacional, tratando desiguais como iguais.

A matéria tem relevância diferenciada a nível socioeconómico, já que as MPEs representam 91% do total de empresas e, em 2024, foram responsáveis por 74% do saldo de empregos formais, o que revela a força do segmento e sua contribuição direta para o desenvolvimento econômico do país8.

A relevância do segmento para a economia conduz à inferência de que ter mais MPEs no mercado deve ser um objetivo nacional, o que não se coaduna, portanto, com a imposição de obrigações assimétricas com impacto marginal brutal sobre o pequeno, e irrelevante para o grande. 

Todas essas questões e tantas outras mais deveriam ter sido levantadas e avaliadas em Análise de Impacto Regulatório a que a Receita Federal está obrigada a realizar, o que abre caminho para discussão judicial, em sede infraconstitucional, em mandados de segurança ou outras ações individuais ou coletivas, tendo em vista a violação do art. 5º da lei da liberdade econômica (lei federal 13.874/19).

A realização de AIR deriva não apenas de normas infralegais, mas da própria Constituição, pois decorre do próprio modelo republicano adotado pela Carta de 889 e deriva de princípios positivados no art. 5º, como o do devido processo administrativo e da segurança jurídica, como de outros previstos no art. 37 (eficiência administrativa) e implícitos no texto constitucional (proporcionalidade e razoabilidade).

A CNI, no entanto, deixou de trazer esse argumento constitucional à inicial da ADIn, tampouco o STF se pronunciou sobre o tema, o que poderia ter feito, já que não se encontra adstrito aos fundamentos da exordial em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Um dos argumentos trazidos na petição inicial da ADIn foi calcado no fato de que a regulamentação do art. 43, § 1º, da lei federal 14.973/24, operada por meio da IN RFB 2.198/24, ao prever que MPEs sujeitas ao pagamento de CPRB - Contribuição Previdenciária sobre Receita Bruta estejam obrigadas à emissão da Dirbi, viola o tratamento diferenciado previsto constitucionalmente, tendo expressamente postulado pela declaração de inconstitucionalidade da regulamentação, por arrastamento.

Ao tratar da questão afeta ao tratamento favorecido das MPEs, o próprio relator destacou a necessidade de que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, ao exercer a regulação da matéria, atente-se para o Estatuto das MPEs. Contudo, sinalizou interpretação preocupante em relação à regulamentação já realizada no âmbito da Receita Federal.

Sobre o tema, o ministro consignou que as empresas de pequeno porte recolhem a CPRB quando optantes por esse regime especial, cuja apuração ocorre fora do Simples Nacional, devendo, portanto, observar a legislação das empresas em geral, já que a LC 123, em seu art. 26, § 4º, somente veda a exigência de obrigações tributárias acessórias além daquelas estipuladas pelo CGSN e atendidas por meio do Portal do Simples Nacional se forem relativas aos tributos apurados na forma do Simples Nacional.

A interpretação restritiva e isolada do dispositivo legal aventado parece não refletir o espírito do Estatuto e ignora o disposto nos parágrafos 3º a 6º de seu art. 1º, os quais, nos termos do parágrafo 7º, caso violados, configuram atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional da atividade empresarial, independentemente de as MPEs serem ou não optantes do Simples Nacional.

Ainda que a LC 123/06 não seja um salvo-conduto às micro e pequenas empresas, também não é uma nota de rodapé irrelevante, pois concretiza um princípio constitucional da atividade econômica (art. 170, IX) e um mandamento expresso do art. 179 da Carta Maior. O entendimento sinalizado, neste sentido, distancia-se da roupagem constitucional dada ao tratamento diferenciado das MPEs.

Além disso, a discussão na Corte também não se aprofundou sobre o princípio da justiça tributária, implementado no art. 145 da Constituição Federal a partir da EC 132/23, que visa conferir efetividade à isonomia material no âmbito das relações tributárias10.

O princípio da cooperação, também trazido pela EC 132/23, embora tenha sido levantado na inicial da CNI, ficou restrito à abordagem da simplicidade tributária, não tendo sequer sido citado na fundamentação do voto condutor do acórdão proferido pelo STF.

Deixou de ser abordada a vertente da referida premissa positivada no art. 145 da Constituição, que diz respeito à evolução necessária do comportamento dos agentes do Fisco. A OCDE (Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico) critica fortemente os sistemas tributários eminentemente coercitivos e tem incentivado proposições como o Horizontal Monotoring implementada na Holanda, que é baseado na confiança mútua entre o Fisco e o contribuinte11

Em suma, o princípio da cooperação tributária não está restrito à simplicidade, mas engloba também a mudança de postura do Fisco, para que atue mais como prestador de serviços fiscais frente ao contribuinte-consumidor, pautando-se sempre pela preservação das empresas. Esse conceito, já aceito a nível internacional, passou distante da discussão constitucional na ADIn.

A ótica constitucional da cooperação conflita com a obrigação acessória em comento, a qual imputa ao contribuinte o dever de prestar informações que já se encontram em poder do Fisco, sob pena de multas expressivas, gerando um ônus desarrazoado ao contribuinte, principalmente para as micro e pequenas empresas, que são a parcela mais vulnerável e desprovida de informação do empresariado. Não há cooperação quando o Fisco continua a enxergar o contribuinte como mero vassalo.

Nesse contexto, é preocupante que o julgamento tenha ocorrido no plenário virtual, sem qualquer pedido de destaque ou intervenção por entidades representativas diversas da parte requerente, principalmente diante do fato de que houve tangenciamento e omissão no debate constitucional sobre teses e matérias relevantes já mencionadas.

Partindo da premissa de que inexiste coisa julgada no controle de constitucionalidade abstrato12, é crucial a provocação para que algum legitimado leve novamente a matéria ao STF com a finalidade de que aprecie a questão com a profundidade merecida e sob o prisma dos princípios e diretrizes constitucionais tributários e econômicos vigentes.

Se há algum acerto na decisão do STF é o reconhecimento de que a diferenciação relacionada ao tratamento diferenciado das MPEs pode (e deve) ser feita na via infralegal, e, quanto a isso, cabe aos operadores do direito o dever de sustentar esse ponto de forma enfática junto às instituições democráticas: transparência não pode virar barreira de entrada.

Quanto ao tema, pende de análise na Câmara dos Deputados PDL 360/24 que visa revogar os efeitos da instrução normativa da Receita Federal que instituiu a Dirbi13

Medidas como essa são essenciais para garantir a regulação equilibrada da matéria, cabendo às instituições democráticas, além dos atores econômicos, associações, juristas e operadores do direito, atuarem de forma incisiva para a defesa da Constituição, em especial naquilo que diz respeito ao tratamento diferenciado e favorecido endereçado às micro e pequenas empresas diante da sua hipossuficiência e da sua relevância social. É necessário discutir o regime constitucional, legal e infralegal com responsabilidade, diálogo qualificado e proporcionalidade regulatória real.

________

Referências

1 STF, ADIn 7765, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 20-10-2025, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 21-10-2025 PUBLIC 22-10-2025;

2 OLIVEIRA, Marcos. Agência Senado. Disponível em: https://rota.apet.org.br/2025/10/stf-valida-obrigacao-de-empresas-informarem-beneficios-fiscais-em-nova-declaracao-eletronica/;

3 AGUIAR, Gustavo. Supremo mantém exigência de declaração sobre benefícios fiscais para empresas. Disponível em:https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-mantem-exigencia-de-declaracao-sobre-beneficios-fiscais-para-empresas/;

4 Confirp. Criação da Dirbi pela Receita Federal gera críticas e preocupações no setor contábil. Disponível em: https://confirp.com.br/criacao-da-dirbi-pela-receita-federal-gera-criticas-e-preocupacoes-no-setor-contabil/;

5 Mendes, Lorena. Penalidades por não cumprimento da DIRBI. Disponível em: https://blog.tecnospeed.com.br/dirbi/;

6 LIMA, Maria Cecília. Entidades Contábeis solicitam exclusão da Dirbi à Receita Federal. Disponível em: https://fenacon.org.br/atuacao-legislativa/entidades-contabeis-solicitam-exclusao-da-dirb-a-receita-federal/;

7 MOTA FILHO, Humberto E. C. Análise de Impacto Regulatório no Brasi: As consequências importam. Revista de Direito. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. 2024. vol. II.

8 HERVEY, Nelson. Compras públicas: assimetrias e potenciais. Disponível em: https://dcomercio.com.br/publicacao/s/compras-publicas-assimetrias-e-potenciais;

9 EVANGELISTA. Gabriel Richer de Oliveira. Regulamentação da Análise de Impacto Regulatório (AIR): o art. 21 do Decreto 10.441/2020 e o devido processo legal. Disponível em: https://justen.com.br/artigo_pdf/regulamentacao-da-analise-de-impacto-regulatorio-air-o-art-21-do-decreto-10-441-2020-e-o-devido-processo-legal/;

10 TAPIAS, Camila Abrunhosa; e ADRIOTTI, Ilse Salazar. NOVOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 132. IBET. Disponível em: https://www.ibet.com.br/novos-principios-constitucionais-tributarios-a-luz-da-emenda-constitucional-no-132-23-por-camila-abrunhosa-tapias-e-ilse-salazar-andriotti/;

11 GOLDSCHIMIDT, Fabio Brun; e ANDRADE, Leonardo Aguirra. Por um princípio da cooperação tributária. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/399826/por-um-principio-da-cooperacao-tributaria;

12 THAMAY, Rennan Faria Krüger. A inexistência de coisa julgada (clássica) no controle de constitucionalidade abstrato. 2014. 53 f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014;

13 Agência Câmara de Notícias. Projeto suspende declaração de incentivos fiscais criada pela Receita Federal. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1145799-PROJETO-SUSPENDE-DECLARACAO-DE-INCENTIVOS-FISCAIS-CRIADA-PELA-RECEITA-FEDERAL.

Autor

Michel de Cesare Procurador do Ilhabelaprev. Membro da Comissão de Direito das MPEs da OAB/SP. Especialista em Direito Tributário. Cursando especialização em Direito Administrativo.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos