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É valida a prisão de Bolsonaro por violar tornozeleira eletrônica

A lei de execução penal, no art. 50, II, classifica fuga como falta grave. E o art. 118 estabelece que falta grave acarreta regressão de regime.

25/11/2025

Quando um juiz concede uma prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, ele não faz um ato de benevolência vazia. Ao contrário, ele examina a vida de uma pessoa - seu histórico, sua idade, seu estado de saúde - e chega a uma conclusão fundamentada: essa pessoa pode cumprir sua pena fora de uma cela, mas sob vigilância. Essa decisão repousa em um alicerce muito específico: a confiança de que o condenado respeitará as condições impostas.

Quando Bolsonaro recebeu a prisão domiciliar, o sistema de Justiça, em teoria, reconheceu que ele poderia ficar em casa. Mas para que isso fosse possível, havia uma única exigência: respeitar a tornozeleira eletrônica e suas regras. Ao violar esse equipamento, Bolsonaro não apenas cometeu um ato técnico. Ele destruiu o fundamento sobre o qual toda a prisão domiciliar se assentava.

O fundamento legal

A LEP - Lei de Execução Penal não deixa espaço para interpretações vagas nesse ponto. O art. 50 é absolutamente claro: “Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: II - fugir;”. O parágrafo único do mesmo artigo estabelece que: “O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao preso provisório”. Reforçando esse entendimento, o art. 49, parágrafo único, da mesma lei deixa claro que “pune-se a tentativa com a sanção correspondente à falta consumada”.

Para compreender o peso dessa qualificação, é necessário olhar para o que a doutrina clássica, especialmente através de Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini - autores que estabelecem os padrões de interpretação da LEP no Brasil - explicam sobre as faltas graves na execução penal. Uma falta grave é um descumprimento das obrigações do condenado que atinge a essência da medida de execução. Não é apenas uma desobediência, é a ruptura de um acordo fundamental.

O art. 118, inciso I, da mesma lei de execução penal estabelece que a prática de falta grave acarreta regressão de regime. Isso significa que quando alguém em prisão domiciliar comete uma falta grave, o próximo passo natural é deixar de estar em regime domiciliar. É um mecanismo de tutela do sistema. Se alguém não consegue respeitar as regras de um regime menos gravoso, como poderia respeitar regimes mais severos?

O sistema de monitoramento eletrônico

Aqui está um ponto que a população comum precisa compreender melhor: a tornozeleira eletrônica não funciona apenas como um gadget tecnológico. Segundo a doutrina desenvolvida sobre monitoramento eletrônico no Brasil, especialmente após a lei 12.258/10, esse sistema opera em uma lógica de monitoramento integrado, onde o Centro de Integração de Monitoração (que no caso de Brasília é o CIME) estabelece uma comunicação permanente com o juízo da execução penal.

Quando funciona adequadamente, o sistema transmite ao juiz informações sobre a localização do monitorado, sobre saídas não autorizadas do perímetro autorizado, e - esse é o ponto crucial - sobre violações ou danificações do equipamento. Quando há uma violação, não se trata apenas de um aparelho desligado. É um sinal de que a pessoa foi além das condições que lhe foram impostas.

A doutrina moderna sobre execução penal, conforme desenvolvida em trabalhos acadêmicos recentes, aponta que a monitoragem eletrônica funciona através de um sistema de confiança extremamente frágil. Uma vez que a violação é constatada, o juiz perde a garantia mínima de que as condições estão sendo respeitadas. E sem essa garantia, qual é a razão de manter a prisão domiciliar?

Os princípios da execução penal

Agora vem a questão mais delicada: tudo isso é justo? A resposta está nos princípios que fundamentam toda a execução penal no Brasil. Esses princípios - humanidade das penas, legalidade, personalização da pena e, crucialmente, proporcionalidade - não desaparecem quando alguém violada uma tornozeleira. Pelo contrário, eles ganham um novo significado.

O princípio da proporcionalidade em execução penal estabelece que deve haver "devida correspondência entre a classificação do preso e a forma de aplicação da pena a ele cominada". Isso quer dizer: se a pessoa não consegue manter a confiança necessária para estar em regime domiciliar, então ela não é proporcional a estar em regime domiciliar. A proporcionalidade não é apenas uma questão de quantidade de pena - é uma questão de adequação entre a pessoa e o regime.

Há ainda o princípio da legalidade estrita, que exige que cada decisão seja fundamentada. Um juiz não pode simplesmente castigar alguém por castigar. Mas quando a lei diz que violação de monitoramento é falta grave, e quando falta grave leva a regressão de regime, o juiz está simplesmente aplicando o que a lei prevê. Há fundamentação legal sólida.

E a dignidade da pessoa humana? Ela não está sendo violada. A pessoa permanece sendo tratada como ser humano, com direitos. O que muda é a confiança que o Estado deposita nela de ficar longe de uma cela. Quando essa confiança é quebrada, o retorno à cela não é degradação - é consequência.

Bolsonaro e a intenção revelada

No caso concreto de Bolsonaro, há um elemento adicional que torna a questão ainda mais clara. A violação foi constatada em um momento muito específico: quando havia uma manifestação convocada em frente à sua residência. Segundo a decisão do ministro Alexandre de Moraes do STF, havia indicativos de que a violação representava uma "intenção de fuga", facilitada pela "confusão causada pela manifestação".

Isso não é uma violação casual. É uma violação em contexto que sugere intenção de aproveitar uma oportunidade para deixar o local. Isso muda a análise. A doutrina sobre execução penal sempre distingue entre violações dolosas (com intenção) e violações culposas (sem intenção). Uma violação que parece incluir intenção de fuga é de uma gravidade muito maior.

Quando a lei de execução penal e o CPP trabalham juntos, oferecem ao juiz - particularmente ao STF nesse caso - as ferramentas necessárias para agir. O art. 146-C da LEP estabelece que "a violação comprovada dos deveres impostos" pode levar a "penas disciplinares de natureza grave". E o art. 146-D abre a possibilidade de revogação da monitoração.

Por que perdeu a prisão domiciliar

Nesse ponto, é hora de traçar a linha lógica que leva à conclusão: Bolsonaro perdeu a prisão domiciliar porque violou o fundamento sobre o qual ela foi concedida. Vamos ao passo a passo:

Dignidade humana e proporcionalidade: O último argumento

Poderia alguém argumentar que isso é desproporcional? Que viola a dignidade? A doutrina contemporânea responde: não. O próprio Mirabete, em suas obras sobre execução penal, deixa claro que a proporcionalidade não é sinônimo de brandura. É sinônimo de correspondência entre ato e consequência.

Se um piloto de avião violar as regras de segurança, ele perde a licença. Se um professor violar normas éticas, ele é removido da sala de aula. Isso não é desproporcional - é proporcional. Violações das regras que garantem a segurança do sistema têm consequências. Da mesma forma, alguém que não consegue respeitar as condições de uma prisão domiciliar perde o direito de estar em prisão domiciliar.

A dignidade humana não significa ausência de consequências. Significa que as consequências sejam previsíveis, fundamentadas em lei, e aplicadas com respeito ao devido processo legal. Tudo isso existe aqui.

A lógica do sistema

Bolsonaro perderá a prisão domiciliar não porque o sistema seja arbitrário, mas porque o sistema é lógico. Uma prisão domiciliar existe porque há confiança de que a pessoa a manterá. Quando a confiança é quebrada, o benefício desaparece. É simples, mas é também impecável do ponto de vista jurídico.

A tornozeleira eletrônica não é apenas um equipamento. É um símbolo da promessa que o condenado faz ao Estado: "Vou respeitar as regras". Quando essa promessa é quebrada, a única consequência coerente é o fim do benefício. Isso não é vendetta. É execução de lei.

Victor Gomes Soares de Barros
Professor, pesquisador e autor. Diretor de Pesquisa e Produção Científica da Associação Pernambucana de Jovens Juristas. Poeta nas horas vagas.

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