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A confiança na tecnologia das interceptações telefônicas

Integridade, cadeia de custódia e (i) licitude probatória - A confiança na tecnologia das interceptações telefônicas: O ponto cego das defesas criminais.

28/11/2025

A interceptação telefônica tornou-se, ao longo das últimas décadas, um dos instrumentos mais utilizados no processo penal brasileiro, entretanto, permanece sendo também um dos meios de prova menos auditados, menos compreendidos tecnicamente e, paradoxalmente, mais aceitos de forma acrítica pelos operadores do Direito, o problema não está apenas na captação em si, mas na forma como o material chega ao processo, fragmentado, sem autenticação, sem bilhetagem, sem hash e, muitas vezes, sem qualquer garantia de que corresponde à realidade comunicacional captada.

O resultado é previsível, provas incompletas, adulteráveis e construídas sem a mínima observância da cadeia de custódia tornam-se pilares de acusações inteiras, quando, tecnicamente, sequer deveriam ingressar nos autos.

A cadeia de custódia como condição de validade da interceptação

A lei 9.296/1996 não se limita a autorizar a interceptação, ela exige, como condição de validade, que o vestígio digital seja íntegro, autêntico e completo, a partir da reforma do CPP (lei 13.964/19), isso se tornou ainda mais evidente, a toda prova digital deve observar as etapas de preservação, coleta, custódia e documentação (arts. 158-A a 158-F do CPP), ressalta-se necessário, que mesmo antes da edição da aludida Lei, todo delito que deixa vestígios se fazia necessário o corpo de delito, e a perícia deveria ser realizado por profissionais oficiais, conforme inteligência dos arts. 158 e 159 do CP (redação anterior), assim como foi decidido pelo STJ, no caso “Operação Negócio da China1” através da pena da ministra Assusete Magalhães no HC 160.662 /RJ, assim como a decisão do ministro Jesuíno Rissato no julgamento do AgRg no recurso em habeas corpus 143.169 - RJ2 no âmbito da “Operação Open Doors”.

A cadeia de custódia é o conjunto de procedimentos documentados que garantem a rastreabilidade da prova, desde a sua coleta até a análise final, seu objetivo é assegurar que o material permaneça íntegro e sem adulterações, o CPP (arts. 158-A a 158-F), ainda, mo caso das provas digitais, aplica-se a norma técnica ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013, assim como os POPs.

Renato Brasileiro de Lima3 traz acerca da cadeia de custódia que “consiste em mecanismo garantidor da autenticidade das evidências coletadas e examinadas, assegurando que correspondem ao caso investigado, sem que haja lugar para qualquer tipo de adulteração. Funciona, pois, como a documentação formal de um procedimento destinado a documentar a história cronológica de uma evidência, evitando-se, assim, eventuais interferências internas e externas capazes de colocar em dúvida o resultado da atividade probatória, assegurando, assim, o rastreamento da evidência desde o local do crime até o tribunal”, Antonio Ap. Belarmino Junior4, aponta que “A inobservância de qualquer das 10 (dez) etapas (reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte), no curso do inquérito policial pode comprometer a credibilidade da prova, gerar sua ilicitude e acarretar nulidade processual, em atenção ao art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal e ao art. 157 do CPP” e por fim Gustavo Badaró5 leciona "Não havendo documentação da cadeia de custódia, e não sendo possível sequer ligar o dado probatório à ocorrência do delito, o mesmo não deverá ser admitido no processo.”

Portanto, sem integralidade, sem ordem cronológica, sem hash e sem extrato de bilhetagem, não há cadeia de custódia, e, sem cadeia de custódia, não há prova, esse entendimento não é doutrina isolada, o STJ, No REsp 1.795.341/RS , trouxe expressamente que se reconhece a nulidade de interceptações com áudios descontinuados, filtrados unilateralmente e sem acesso integral à defesa, com o consequente reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva, “É dever do Estado a disponibilização da integralidade das conversas advindas dos autos, sendo inadmissível a seleção de partes dos áudios interceptados.” (REsp 1.795.341/RS, relator ministro Nefi Cordeiro)

Extrato de bilhetagem e hash: O espelho técnico da comunicação

A bilhetagem não é um capricho técnico; é o elemento de verificação cruzada que confirma a existência das ligações, horários, duração e números envolvidos, sem ela, não há como aferir se o áudio corresponde a um evento real da malha telefônica, por sua vez, o hash digital é a impressão digital do arquivo, condição reconhecida mundialmente para comprovar que o material não sofreu manipulação, sua ausência abre a porta para qualquer forma de edição, corte, perda, adulteração ou substituição, e, portanto, inviabiliza o vestígio, tornando-se prova nula/ilícita, conforme inteligência dos arts. 157 e 564 IV do CPP, Ricardo Jacobsen Gloeckner6 explica com precisão “Se a prova ilícita se caracteriza pela sua realização em desconformidade com alguma norma jurídica ..., tratar-se-á de prova inválida. O ato de realização é inválido; quando reconhecido como tal, a nulidade deverá ser decretada.”, não existe, portanto, interceptação válida sem garantias técnicas mínimas.

Integralidade e paridade de armas: O problema da filtragem unilateral

Outro ponto de ruptura frequente da cadeia de custódia é a entrega de apenas fragmentos selecionados da interceptação, muitas vezes a defesa recebe horas de gravações incompletas, áudios descontínuos, trechos ausentes ou degravações que sequer correspondem ao material bruto.

Esse procedimento viola o contraditório e a paridade de armas, tornando a prova inválida, no mesmo julgado do ministro Nefi Cordeiro se ressaltou que A filtragem do produto da interceptação sem a presença do defensor acarreta vantagem desarrazoada à acusação e implica nulidade.” (REsp 1.795.341/RS)

Se a acusação controla o que entra e o que não entra nos autos, o prejuízo é estrutural, a prova deixa de ser confiável, e ainda, sendo assegurado a defesa, visando a efetividade dos princípios constitucionais a integralidade e totalidade da prova, o ministro Gilmar Mendes assentou que “este Tribunal possui jurisprudência consolidada no sentido de que o direito de acesso da defesa aos elementos de prova já documentados deve ser o mais amplo possível, sendo vedada qualquer seleção prévia acerca do que pode ou não ser conhecido pelo investigado ou réu.”, ainda, na Rcl 78.571/PI, o ministro Edson Fachin consignou que a ciência extemporânea de elementos já produzidos e documentados compromete a eficácia do contraditório e da ampla defesa, reforçando que “não cabe ao magistrado censurar ou protelar, aprioristicamente, a acesso a material já documentado, sob a justificativa de que seria “desnecessária”, sendo essa avaliação exclusiva da parte defensora”., o professor Geraldo Prado7, em sua precursora obra aponta “O conhecimento das fontes de prova pela defesa é fundamental, porque a experiência histórica que precede a expansão da estrutura trifásica de procedimento penal, adequada ao modelo acusatório, contabiliza a supressão de elementos informativos como estratégia das agências de repressão que fundam as suas investigações em práticas ilícitas”.

Emerge claro que a ausência de integralidade e a filtragem unilateral da interceptação corroem a credibilidade da prova e rompem a paridade de armas que sustenta o modelo acusatório, quando a defesa não tem acesso pleno ao conteúdo bruto, perde-se a possibilidade de auditoria técnica e desaparece a transparência que legitima o processo penal.

A prova passa a refletir apenas a versão selecionada pela acusação, criando um desequilíbrio incompatível com o contraditório e com a própria noção de justiça, nessas condições, o vício não é periférico, mas estrutural, contaminando todo o acervo probatório, por isso, sempre que houver supressão, corte ou filtragem do material, a nulidade é inevitável, pois a prova deixa de ser confiável e o processo deixa de ser legítimo.

Nulidade por ausência de fundamentação: Outro vício clássico da interceptação

O STF, ao julgar o Tema 661 da repercussão geral, reconheceu que as prorrogações sucessivas de interceptação só são válidas quando acompanhadas de motivação concreta, ainda que sucinta, demonstrando:

São nulas, portanto, as decisões que se limitam a copiar modelos, repetir fórmulas genéricas ou simplesmente afirmar que “a investigação é complexa”, Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel8 em sua obra trouxeram “O juiz não pode exteriorizar motivação genérica, com expressões vagas ou modelos impressos; caso contrário, a decisão será inválida e, consequentemente, também o será a prova.”

Sem fundamentação, há nulidade absoluta da medida e de todos os atos dela derivados, inclusive interceptações, relatórios, transcrições, prisões baseadas em áudio e toda a cadeia investigativa subsequente, nulidade absoluta é matéria de ordem pública, Ada Pellegrini Grinover9 complementa As nulidades absolutas não exigem demonstração do prejuízo, porque nelas o mesmo é evidente.”

Conclusão: É urgente auditar a prova que sustenta os processos

A confiança cega na tecnologia não pode substituir o compromisso jurídico com a verdade e com a legalidade do vestígio digital, interceptações sem integralidade, sem bilhetagem, sem hash, com trechos suprimidos, decisões genéricas e prorrogações imotivadas não são meras “irregularidades”: são quebras da cadeia de custódia que tornam a prova inutilizável, nula, desprovida de confiabilidade, ainda que seu conteúdo pareça incriminador.

Se a interceptação não permite auditoria técnica, ela não pode formar convicção judicial.

Mais do que nunca, a advocacia precisa deixar de apenas contestar interceptações e passar a auditá-las tecnicamente, exigindo os elementos mínimos de preservação e autenticação previstos na lei e na jurisprudência, esse movimento não defende culpados, defende o processo penal democrático e aplicação justa e correta da lei.

____________________________

1 PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. UTILIZAÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO. NÃO CONHECIMENTO DO WRIT. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO E TELEMÁTICO AUTORIZADA JUDICIALMENTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA COM RELAÇÃO A UM DOS PACIENTES. PRESENÇA DE INDÍCIOS RAZOÁVEIS DA PRÁTICA DELITUOSA. INDISPENSABILIDADE DO MONITORAMENTO DEMONSTRADA PELO MODUS OPERANDI DOS DELITOS. CRIMES PUNIDOS COM RECLUSÃO. ATENDIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 2º, I A III, DA LEI 9.296/96. LEGALIDADE DA MEDIDA. AUSÊNCIA DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRALIDADE DA PROVA PRODUZIDA NA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E TELEMÁTICA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA PARIDADE DE ARMAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO.

(...)

X. Apesar de ter sido franqueado o acesso aos autos, parte das provas obtidas a partir da interceptação telemática foi extraviada, ainda na Polícia, e o conteúdo dos áudios telefônicos não foi disponibilizado da forma como captado, havendo descontinuidade nas conversas e na sua ordem, com omissão de alguns áudios.

XI. A prova produzida durante a interceptação não pode servir apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da prova.

XII. Mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório - constitucionalmente garantidos -, a ausência da salvaguarda da integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas.

(...) à disponibilização da integralidade de mídia, contendo o inteiro teor dos áudios e diálogos interceptados.

XV. Habeas corpus não conhecido, quanto à paciente REBECA DAYLAC, por não integrar o writ originário.

XVI. Habeas corpus não conhecido, por substitutivo de Recurso Ordinário.

XVII. Ordem concedida, de ofício, para anular as provas produzidas nas interceptações telefônica e telemática, determinando, ao Juízo de 1º Grau, o desentranhamento integral do material colhido, bem como o exame da existência de prova ilícita por derivação, nos termos do art. 157, §§ 1º e 2º, do CPP, procedendo-se ao seu desentranhamento da Ação Penal 2006.51.01.523722-9. (HC n. 160.662/RJ, relatora Ministra Assusete Magalhães, Sexta Turma, julgado em 18/2/2014, DJe de 17/3/2014.)

2 (...) 2. A principal finalidade da cadeia de custódia é garantir que os vestígios deixados no mundo material por uma infração penal correspondem exatamente àqueles arrecadados pela polícia, examinados e apresentados em juízo. 3. Embora o específico regramento dos arts. 158-A a 158-F do CPP (introduzidos pela Lei 13.964/2019) não retroaja, a necessidade de preservar a cadeia de custódia não surgiu com eles. Afinal, a ideia de cadeia de custódia é logicamente indissociável do próprio conceito de corpo de delito, constante no CPP desde a redação original de seu art. 158. Por isso, mesmo para fatos anteriores a 2019, é necessário avaliar a preservação da cadeia de custódia.(...)

3 LIMA, Rentado Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 9ª ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 608.

iv Belarmino Junior, Antonio Aparecido, INQUÉRITO POLICIAL e seus aspectos processuais, AM2 editora e distribuidora de livros, Leme/SP., 2025, pág. 35

v BADARÓ, Gustavo. A Cadeia de Custódia da Prova Digital. In: Direito Probatório. Londrina: Thoth, 2023, p. 183

vi Nulidades no Processo Penal, 3ª ed., SaraivaJur, 2018, p. 165

vii Prado, Geraldo, A cadeia de custódia da prova no processo penal, 1. Ed. – Rio de Janeiro, Marcial Pons, 2021, pág. 122.

viii Interceptação Telefônica, RT/Thomson, 2018, p. 169-170

ix As Nulidades no Processo Penal, RT, 2001, p. 30

Antonio Belarmino Junior
Doutorando pela Universidade de Salamanca, Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais- Sevilha, Pós Graduado em Ciências Criminais - FDRP/USP, ex-Presidente da ABRACRIM SP, Professor e autor.

Joaquim Bartolomeu Ferreira Neto
Perito digital com certificações internacionais, especialista em contraditório da prova digital e identificação de nulidades ocultas.

Glauber Guilherme Belarmino
Advogado, sócio fundador do escritório Belarmino Sociedade de Advogados, Doutorando em Direito de Estado e Governança Global e Mestre em Direito Digital e Novas Tecnologias pela USAL.

Dellano Sousa
Dellano Sousa é advogado criminalista, especialista em provas digitais e em computação forens, é presidente da Comissão de Investigação Defensiva da ABRACRIM-CE.

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