A sanção da lei 15.266/25, que institui o SICX - Sistema de Compras Expressas, ao permitir contratações instantâneas a partir de catálogos precificados, inaugura um modelo de e-commerce governamental que dialoga com tendências globais de compras digitais, e vem sendo celebrada como um salto de eficiência na aquisição de bens e serviços comuns pela Administração Pública1.
Do ponto de vista da desburocratização, a ideia faz sentido, pois, em vez de estruturar sucessivos pregões para demandas padronizáveis, o Estado passa a operar um marketplace contínuo, integrado ao Portal Nacional de Compras Públicas, com habilitação automatizada e aquisição imediata.
No entanto, para além da aparência de modernização, há efeitos estruturais sobre o regime jurídico das microempresas e empresas de pequeno porte que não estão sendo tratadas pelos autores que enxergam o contexto no viés exclusivamente otimista, inclusive afirmando que o SICX representa uma oportunidade para as MPEs, sem, no entanto, considerar as implicações que vão além da suposta simplificação.
Estudiosos do ramo apontam que a União Europeia, na qual já se encontra há algum tempo implementada a ferramenta de marketplace para compras públicas, tem-se deparado com a dificuldade de envolver fornecedores de pequeno porte no processo de compras eletrônicas, em razão das dificuldades que experimentam na deficiência de pessoal qualificado e de infraestrutura de tecnologia da informação necessária para tanto2.
Implicações de tal jaez, se não forem debatidas com a profundidade necessária, podem comprometer aquilo que a LC 123/06 buscou proteger: a participação competitiva das MPEs no mercado público a partir de tratamento diferenciado assegurado pelo art. 170, IX, da Constituição Federal.
O Tribunal de Contas da União, aliás, em recente acórdão paradigmático resultante de auditoria visando apurar se as ações do governo realmente têm o potencial de ajudar a reduzir as dificuldades enfrentadas pelos pequenos empreendedores, reconheceu a necessidade de aprimoramento da governança e da eficácia das políticas públicas em prol da redução das desigualdades enfrentadas pelos pequenos empreendedores3.
Essa é uma sinalização de que a governança das contratações se alicerça não apenas na eficiência da contratação, mas também em sua sustentabilidade, que exige o resgate de quem mais depende do tratamento diferenciado e impulsiona a economia do país.
Um dos pontos ignorados até então pelos celebradores do SICX é que as preferências das MPEs previstas nos arts. 42 a 48 do Estatuto das Micro e Pequenas Empresas (como as licitações exclusivas, as margens de preferência e as cotas) aplicam-se obrigatoriamente apenas nos processos licitatórios competitivos, mas não nas contratações diretas por inexigibilidade, na qual é contemplado o SICX (art. 79, IV, da lei 14.133/21), nos termos do art. 49 da própria LC 123/064.
Caso as Administrações encampem a simplicidade e eficiência contratual prometida pelo SICX, haverá deslocamento de grande parte das compras de bens e serviços comuns padronizados para um sistema de catálogo com contratação imediata, o que, inevitavelmente, reduz a quantidade de pregões a serem realizados, ambiente no qual as MPEs dispõem de mecanismos efetivos de compensação competitiva.
Se a política pública não for redesenhada para recompor essas garantias frente à implementação do SICX, é possível que as MPEs percam terreno exatamente nos nichos de bens e serviços comuns de menor complexidade, em que tinham a possibilidade de maior presença.
As implicações, no entanto, não se restringem ao universo das contratações derivadas de licitações, mas se ampliam para o campo das contratações diretas, principalmente de pequenas administrações, em que os quantitativos exigidos de produtos e serviços são menores.
Essas contratações, usualmente, não despertam o interesse de grandes fornecedores e permitem maior competitividade às MPEs, e seguiam a dispensa em razão do valor, que não era excepcionada pelo art. 49 da LC 123/06, e agora poderão ser realizadas por inexigibilidade, por meio do SICX.
No Instituto de Previdência de Ilhabela, por exemplo, dos 27 contratos vigentes, dos quais apenas 02 derivaram de procedimento licitatório, 18 foram firmados com MEs, EPPs e MEIs, sendo sua grande maioria resultante de procedimento de contratação direta em razão do valor5. Ainda que o universo de pesquisa seja pequeno, é evidência da assertiva realizada no parágrafo anterior.
Diante da promessa de desburocratização e simplificação do procedimento a partir do marketplace, as pequenas administrações, com limitação de recursos e de pessoal, certamente buscarão utilizar a ferramenta, cedendo esse espaço de mercado das MPEs aos grandes fornecedores, que terão mais condições na precificação de seus produtos e competirão em pé de igualdade formal e desigualdade material com os pequenos.
Embora otimistas prevejam que as MPEs manterão condições estruturais para competir por preço no ambiente do SICX em razão dos benefícios fiscais do Simples Nacional6, não são trazidas evidências, a partir de pesquisas e estudos, que deem respaldo à previsão, seja no contexto de tributação atual ou mesmo dos impactos esperados com o novo desenho tributário.
A partir da implementação da reforma tributária, o regime do Simples Nacional, embora formalmente preservado, tende a sofrer reconfigurações diante da nova base de incidência tributária e da complexidade do sistema de créditos do IBS/CBS.
Um dos impactos previstos consiste no fato de que MPEs submetidas ao regime do Simples Nacional não poderão se beneficiar das isenções e reduções de carga tributária da CBS e do IBS previstas no texto de regulamentação da reforma tributária (LC 214), o que as coloca em desvantagem frente às empresas que se submetem ao regime regular de tributação da CBS e do IBS7.
De uma forma geral, as micro e pequenas empresas enquadradas no Simples Nacional passarão a enfrentar novos desafios de adaptação, competitividade e compliance fiscal, exigindo planejamento tributário ativo, a partir, por exemplo, da reavaliação da cadeia de fornecimento, considerando a vantagem entre o recolhimento do IVA simplificado ou do IVA regular, e da definição de política de precificação compatível com a nova realidade creditícia8.
Nesse contexto, esperar que MPEs se sustentem em um marketplace governamental com preços atualizados e competitivos, e sem o amortecedor tributário que justificava parte da sua vantagem comparativa, parece uma ideia descolada da realidade.
Na verdade, a implementação do sistema, sem reflexão e regulamentação adequada em prol das micro e pequenas empresas, pode criar um cenário de seleção adversa, em que sobreviverão apenas pequenos com margem reduzidíssima ou estrutura quase informal.
O argumento de que as MPEs podem se beneficiar de sua estrutura enxuta para garantir preços mais competitivos parte de uma visão romântica do mercado público que desconsidera que, no SICX, a disputa é permanente e não episódica, os preços são vigiados, comparados e atualizados em tempo real, o governo usará valores de referência definidos nacionalmente e, logicamente, fornecedores com maior escala conseguirão absorver oscilações de custo com mais elasticidade.
Há uma complexidade para as MPEs que consiste na gestão contínua da precificação e, para quem não possui margem robusta, capital de giro ou departamento financeiro estruturado, isso não representa uma oportunidade e sim uma barreira de acesso ao mercado que demanda políticas específicas de mitigação.
Outro obstáculo à visão celebratória do SICX consiste na dificuldade de preparação, pelas MPEs, para uma “logística expressa”, a partir da estruturação para entrega de bens e serviços com rapidez equivalente à agilidade da contratação.
Isso exige estoque prévio, capacidade logística, transporte rápido, fornecedores secundários confiáveis e capital de giro para pagamentos antecipados, condições que estão longe de serem trivialmente acessíveis para micro e pequenas empresas.
A combinação desses fatores (fim gradual das vantagens tributárias do Simples, redução da prática das preferências, alta exigência de compliance, precificação e logística) revela um risco que não pode ser varrido para debaixo do tapete.
Embora a plataforma de marketplace seja um sistema eficiente, é necessário equilibrá-lo, para compatibilizar modernização das compras públicas com o regime constitucional das micro e pequenas empresas, por meio do inevitável debate sobre medidas garantidoras do efetivo acesso das MPEs ao mercado público.
Há caminhos possíveis, como a criação de mecanismos de preferência específicos dentro do SICX, a exigência de que o PNCP - Portal Nacional de Compras Públicas desenvolva lógica de precificação que considere faixas de porte empresarial e a instituição de parâmetros de logística proporcionais ao porte do fornecedor.
Esse é um papel reservado não apenas ao MGI - Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, que regulamentará as regras de uso da plataforma e credenciamento de fornecedores, mas aos atores sociais e às instituições democráticas de forma geral.
O SICX pode ser um avanço importante para o Estado brasileiro, mas, se ignorarmos seus efeitos sobre as MPEs, ele pode transformar o marketplace governamental em um ambiente tão eficiente quanto excludente, negligenciando o princípio do desenvolvimento nacional sustentável, previsto no art. 5º da lei 14.133/21.
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Referências
1 Agência Senado. Sistema eletrônico é incluído na Lei de Licitações para agilizar compras públicas. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/11/24/lei-de-licitacoes-inclui-sistema-eletronico-para-agilizar-compras-publicas;
2 TORRES, Ronny Charles Lopes de; NÓBREGA, Marcos. Licitações públicas e e-marketplace: um sonho não tão distante. 2020. Disponível em: https://www.olicitante.com.br/marketplace-sonho-distante/;
3 TCU, TC 014.601/2025-7, Acórdão 2759/2025, Relator Aroldo Cedraz, julgado em 19/11/2025;
4 CHARLES, Ronny. A (in)aplicabilidade dos benefícios de exclusividade ou preferência a ME e EPP nas contratações diretas por dispensa de valor regidas pela Lei 14.133/2021.. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-inaplicabilidade-dos-beneficios-de-exclusividade-ou-preferencia-a-me-e-epp-nas-contratacoes-diretas-por-dispensa-de-valor-regidas-pela-lei-14-133-2021/;
5 ILHABELAPREV, Portal da Transparência. Acesso em: https://ilhabelaprev.sp.gov.br/transparencia/contratos;
6 NASCIMENTO, Gilmara. COLUNA: SICX: O guia estratégico para MPEs. Disponível em: https://www.jornalcapital.com.br/materias/16144-coluna-sicx-o-guia-estrategico-para-mpes;
7 PIMENTEL, Silvia. REFORMA TRIBUTÁRIA VAI PREJUDICAR 2,5 MILHÕES DE EMPRESAS DO SIMPLES. Disponível em: https://especiais.dcomercio.com.br/golpe-no-simples/;
8 CARVALHO, Girlene. Os impactos da Reforma Tributária sobre o Simples Nacional. Disponível em: https://editoraoabdigital.org.br/os-impactos-da-reforma-tributaria-sobre-o-regime-do-simples-nacional/https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-mantem-exigencia-de-declaracao-sobre-beneficios-fiscais-para-empresas/.