A remuneração do capital próprio no Brasil costuma ser associada, quase exclusivamente, à distribuição de dividendos. Entretanto, desde a edição da lei 9.249/1995, o ordenamento prevê mecanismo específico para essa finalidade: os JCP - juros sobre capital próprio. Trata-se de instituto que combina remuneração societária com efeito fiscal relevante, mas que segue pouco explorado fora do ambiente das companhias abertas e de grandes grupos econômicos.
O JCP, previsto no art. 9º da lei 9.249/1995, permite que a pessoa jurídica deduza, na apuração do lucro real, juros “pagos ou creditados” ao titular, sócios ou acionistas, calculados sobre o patrimônio líquido e limitados a taxa oficial de juros, aplicada pro rata die. Na prática, aproxima-se o tratamento do capital próprio ao do capital de terceiros: se os juros de dívida são despesas dedutíveis, também se admite, em certa medida, a dedução da remuneração do capital aportado pelos sócios.
Do ponto de vista econômico, o desenho é assimétrico. Na esfera da empresa pagadora, o JCP é contabilizado como despesa financeira e reduz a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Na esfera do beneficiário, por sua vez, o valor é, em regra, tributado via imposto de renda na fonte à alíquota de 15%, como rendimento financeiro. A economia obtida com a redução de IRPJ/CSLL tende a ser superior ao IR retido na fonte, de modo que, no saldo global, há menos recursos destinados ao Fisco e mais recursos líquidos disponíveis ao acionista, em comparação com cenário de distribuição exclusiva de dividendos isentos.
A partir de 1/1/24, a lei 14.789/23 alterou de forma sensível a disciplina do art. 9º, especialmente no que se refere à base de cálculo. O legislador passou a indicar, de forma taxativa, quais contas do patrimônio líquido podem compô-la, privilegiando capital social e determinadas reservas de capital e de lucros e excluindo, de forma expressa ou implícita, diversos ajustes de avaliação patrimonial e reavaliações a valor justo. A intenção legislativa é clara: reduzir espaços de “turbinamento” artificial do patrimônio líquido apenas para fins de geração de JCP dedutível.
Outro ponto relevante diz respeito a atos praticados entre partes dependentes. A nova redação passou a tratar de forma específica operações intragrupo, como integralizações, incorporações e reorganizações societárias, prevenindo o uso de aumentos meramente formais de patrimônio líquido com o único propósito de potencializar a base de JCP. O efeito prático é estreitar de forma relevante planejamentos mais agressivos, sem afastar, contudo, a utilização do instituto em contextos de substância econômica reconhecível.
A Receita Federal, por sua vez, editou regulamentação e materiais orientativos detalhando a aplicação dessas novas regras. Além disso, por meio de instrução normativa, buscou restringir, de maneira controvertida, a inclusão na base de cálculo de parcelas do capital social formadas a partir de determinadas reservas de incentivos fiscais. Essa tentativa de limitação infralegal vem sendo objeto de severa crítica doutrinária e já se projeta como novo campo de contencioso, inclusive porque toca diretamente em política pública de estímulos regionais e setoriais convertidos em subvenções para investimento.
Em paralelo, a jurisprudência passou a enfrentar questões específicas atinentes ao JCP. Ganha destaque o chamado JCP extemporâneo, isto é, calculado e deduzido com base em lucros de exercícios anteriores. O STJ vem adotando orientação favorável à possibilidade de dedução, desde que respeitados os requisitos legais e mantida a coerência contábil e fiscal entre o período de geração do lucro e o momento de crédito dos juros. Abre-se, com isso, espaço para teses de recuperação de tributos pagos a maior em exercícios pretéritos, o que aumenta a relevância do instituto não apenas para planejamentos futuros, mas também sob a ótica de créditos fiscais.
Do ponto de vista prático, a vantagem do JCP pode ser ilustrada no nível da demonstração de resultado. Considerando, por hipótese, empresa no lucro real com lucro de R$ 1 milhão antes de IR/CSLL e sem JCP, a carga de IRPJ e CSLL de 34% resultaria em R$ 340 mil para o Fisco, restando R$ 660 mil de lucro líquido distribuível como dividendos isentos à pessoa física. Se, no mesmo cenário, a companhia remunera os sócios com JCP de R$ 400 mil, dentro dos limites legais, a base tributável de IRPJ/CSLL é reduzida a R$ 600 mil, gerando R$ 204 mil de IRPJ/CSLL. O sócio recebe R$ 400.000,00 de JCP (com IRRF de 15%, equivalente a R$ 60.000,00) e R$ 396.000,00 de dividendos isentos. O resultado agregado é uma carga fiscal total de R$ 264 mil e uma remuneração líquida ao sócio de R$ 736 mil, superior ao cenário sem JCP, apesar da incidência do IR na fonte.
Esse ganho econômico, porém, não autoriza o uso indiscriminado do instituto. A própria lei 9.249/1995 condiciona o pagamento de JCP à existência de lucros ou de reservas de lucros suficientes, limitando o montante dedutível a percentual do lucro do período ou da soma de lucros acumulados e reservas, conforme o caso. Pagamentos realizados em contexto de prejuízos ou com reservas insuficientes são candidatos naturais à glosa fiscal. Soma-se a isso a necessidade de observar, com rigor, o novo conceito de patrimônio líquido-base, restringindo a inclusão de ajustes contábeis que não representem, de fato, capital exposto ao risco da atividade.
No plano legislativo mais amplo, o JCP também aparece como alvo em propostas de reforma da tributação da renda. Diversos projetos cogitam vedar a dedução dos juros sobre capital próprio, sob o argumento de que o mecanismo representaria benefício sem contrapartida relevante em termos de política econômica, ou, ao menos, reduzir substancialmente o seu alcance. Em paralelo, discute-se a reintrodução de tributação sistemática sobre dividendos e a instituição de modelos de imposto de renda mínimo para pessoas físicas de alta renda, o que impacta diretamente a comparação entre alternativas de remuneração do capital próprio.
Nesse contexto, o instituto dos juros sobre capital próprio permanece em uma espécie de zona de transição. De um lado, é figura consolidada, com disciplina legal clara, regulamentação recente e jurisprudência relevante, inclusive em favor dos contribuintes. De outro, sofre restrições legislativas pontuais e enfrenta um ambiente de possível revisão estrutural no bojo da reforma da tributação da renda. Isso exige abordagem cautelosa, tanto na implementação de novas políticas de JCP quanto na revisão de estruturas já existentes.
Do ponto de vista de governança e planejamento, a pergunta adequada não é apenas se o JCP “gera economia”, mas se o desenho societário, o perfil do patrimônio líquido, o regime tributário adotado e o perfil dos sócios justificam a adoção do mecanismo. Empresas no lucro real com lucratividade recorrente, estrutura de capital estável e sócios pessoas físicas tendem a se beneficiar mais do instituto. Já em estruturas com resultados voláteis, elevado contencioso fiscal ou forte dependência de ajustes contábeis de fair value, a análise tende a ser mais restritiva.
Em síntese, os juros sobre capital próprio continuam sendo ferramenta legítima de planejamento societário e tributário, com potencial de gerar eficiência relevante na alocação entre Estado e acionistas. Ignorar o instituto, sobretudo em estruturas mais complexas ou em grupos empresariais com hábito de distribuição regular de resultados, significa, em muitos casos, renunciar a uma opção legalmente prevista e tecnicamente manejável. Enquanto o legislador não define, em definitivo, o futuro do JCP, parece recomendável que empresas e consultores incluam o tema na pauta de avaliação periódica de sua política de remuneração do capital, com especial atenção às mudanças introduzidas a partir de 2024 e aos desdobramentos jurisprudenciais em curso.