Cada pessoa vive a história a partir de um determinado ponto. Ao olhar o presente ou analisar o passado, somos induzidos a pressupor erroneamente que algumas coisas existem desde o início dos tempos enquanto outras surgiram como um raio, em um breve instante de inspiração. A verdade é que as grandes mudanças se dão em sucessões de eventos, envolvendo sangue, suor, lágrimas, esforço, que às vezes são esquecidos.
A Defensoria Pública da Bahia completa agora 40 anos e é um ótimo exemplo. Hoje, ela é grandiosa e o verde da esperança que a representa é conhecido. Mas, foi um longo caminho.
A história da instituição da Instituição é marcada por 3 etapas especialmente desafiadoras: a) a sua implantação nos primeiros 15 anos, b) a conquista e início da autonomia, na primeira década do ano 2000 e c) a sua consolidação enquanto ator social relevante, após a Emenda Constitucional 80/2014. Como é uma história muito extensa, faremos um recorte para falar dessa última etapa, apesar de saber que ela seria impossível sem as duas anteriores, tão importantes e difíceis quanto ela.
O marco histórico do início desta etapa é a luta pela aprovação da chamada PEC das Comarcas, que se tornaria a Emenda Constitucional 80/2014. É a mais importante legislação sobre a Defensoria Pública brasileira, ao lado da Emenda Constitucional 45/2004. A Emenda 80 ampliou o tamanho da instituição, ressaltando o seu papel central na democracia e superando a visão meramente assistencialista. Estabeleceu a obrigatoriedade da sua presença em todas as comarcas e a sua iniciativa de lei. A Bahia foi decisiva no processo.
O ex-Deputado Federal baiano Amauri Teixeira foi o relator e principal batalhador pela sua aprovação dentre os congressistas. Pouco depois, um grupo de Defensores e Defensoras Públicas da Bahia que haviam se empenhado na luta pela alteração da Carta Magna assumiu a direção do órgão.
Esse grupo dedicou-se a construir um projeto de Defensoria Pública que democratizasse o acesso dos mais vulnerabilizados aos seus direitos, aliando os crescimentos da instituição e das pessoas que nela trabalham à prestação do serviço. O desafio era imenso. Vale lembrar que, enquanto a Constituição agora obrigava a chegada da defensoria a todas as comarcas, nos 2 anos anteriores, a instituição havia reduzido drasticamente a sua cobertura na Bahia.
Enquanto todo o país reconhecia o papel do órgão como representação popular e vanguarda na defesa da democracia e direitos humanos, a representação da sociedade civil na instituição vinha sendo tratada com absoluto desdém e, não raro, desrespeito. Poucos conheciam os serviços
Era necessário, portanto, modernizar a Defensoria Pública da Bahia e isso somente poderia ser feito se fosse entendido que ela não poderia tentar apenas espelhar o Poder Judiciário, o Ministério Público ou qualquer órgão do sistema de justiça. Os eixos do novo projeto se assentavam sobre princípios: consolidação do modelo público de assistência jurídica gratuita por meio da Defensoria Pública, reforço da autonomia institucional, ampliação dos canais de participação popular, expansão dos serviços. Sabia-se também que o fortalecimento dos que nela trabalham somente seria atingido de maneira sólida, se os outros objetivos fossem alcançados.
Em março de 2015, a Bahia iniciaria um ciclo de 10 anos no qual se tornaria paradigma, vanguarda quando o assunto era acesso de justiça por. Começava a década verde, que duraria até fevereiro de 2025.
Orientado por um Planejamento Estratégico moderno, o pioneirismo foi a característica mais forte da instituição. Foi implantado o orçamento participativo para ouvir a população na definição das áreas nas quais priorizar seus recursos. Foram realizados estudos demonstrando como o sistema de acesso à justiça era mais barato e eficiente. Foi instituída a política de cotas raciais e étnicas, que passou a inspirar todo o sistema de justiça, por ter se provado a mais eficiente do país. A Ouvidoria externa foi valorizada e respeitada como nunca nos espaços institucionais. Com apoio, as ouvidoras brilharam e viraram referências nacionais. O povo estava no centro de tudo.
Internamente, a Defensoria também virou outra. Passou a gerir a própria folha de pagamento e as próprias licitações, o que não fazia antes. Desenvolveu sistemas próprios para gestão da carreira e dos serviços internos. Implantou o portal da Transparência e a Controladoria Interna, também inexistentes até ali. Criou seu primeiro Regimento Interno. Aprovou Resoluções paradigmáticas, como as Condições Especiais de Trabalho e a Política de Saúde Suplementar. Instituiu a votação eletrônica nas suas eleições internas.
Em 2018, foi aprovada a primeira lei encaminhada pelo Defensor Público Geral, embora em conjunto com o Governador, que proporcionou uma grande reforma na Instituição. Nos anos seguintes, regulamentou e implementou matérias importantes oriundas dessa lei, que permitiriam a melhoria e crescimento dos serviços, seja através dos plantões no interior do estado, seja através do provimento por cumulação de comarcas ainda sem defensores, seja pela possibilidade de exercício de trabalho extraordinário, por exemplo.
Pensando na necessidade de alcançar mais cidadãos, foi desenvolvido um Sistema inédito de identificação de comarcas a serem instaladas e elaborados, pela primeira vez, Planos de Expansão. Assim, foram realizados dois concursos e o quadro de Defensores Públicos subiu de 266 para 420. As comarcas atendidas regularmente saltaram de 22 para 71 comarcas, sendo 52 delas com defensores titulares. A Defensoria chegou a todos os 27 territórios de identidade do Estado.
Algumas modificações internas foram muito importantes para possibilitar um crescimento tão rápido. Foi possibilitado que defensores ascendessem na carreira mesmo sem deixar o interior do Estado, o que antes era proibido. As unidades do interior foram estruturadas, com material, serviço e servidores de apoio, como nunca tiveram. A organização administrativa pulou de 6 para 15 Defensorias Públicas Regionais. Um ponto crucial: foi extirpada a política que estabelecia uma hierarquia entre capital e interior
Também foram implementadas políticas de expansão transversal dos serviços como o Grupo do Juri, o Núcleo de Equidade Racial, o Núcleo de Igualdade Étnica, o Núcleo do Consumidor, Núcleo de Atuação Estratégica, Assessoria de pesquisas, Núcleo de Gestão Ambiental e o premiadíssimo Projeto Mãos que Reciclam, que revolucionou o atendimento dos catadores de material reciclável. Nasceram equipes multidisciplinares por todo Estado, o que era impensável na época. Foi instalada a representação da Defensoria Pública em Brasília para acompanhamento dos processos nas Cortes Superiores e peticionamos, pela primeira vez, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Garantiu-se a integralidade do acesso à justiça.
Foram instaladas inúmeras sedes na capital e no interior em um intenso movimento de saída dos Fóruns. Foi construída em Vitória da Conquista, a primeira sede com recursos próprios. Foi implantado o sistema de econúcleos (unidades sustentáveis), com a entrega de 4 unidades das 5 em funcionamento no Estado (e início da implantação da última). Foram entregues à população não apenas uma, mas três unidades móveis de atendimento (caminhões adaptados para atuação itinerante), serviço e cultura que antes não existia.
Até então, nem se falava nessa espécie de atuação. Foi disponibilizada uma sede específica para atendimento à população em situação de rua, com um posto avançado para emissão de documentação civil na sede da Defensoria.
A impressionante e meteórica estruturação interna possibilitou que a Defensoria Pública da Bahia inovasse também na produção de dados. Foram produzidas pesquisas históricas, como as que catalogaram todos as audiências de custódia realizadas em Salvador e desmentiram mentiras sobre o instituto ou as que revelaram que a maioria dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas eram obrigados a trabalhar, antes de terem sido acusados de atos infracionais. Buscando melhorar a cultura interna, realizaram-se os Censos institucionais para compreensão das questões raciais, de gênero, LGBTQIAPN+; pessoas com deficiência, pessoa idosa no âmbito da nossa instituição e foram elaborados inúmeros cursos de capacitação a partir dos seus achados.
A Bahia protagonizou a elaboração de documentos importantes, como a Carta de Salvador, que fixou parâmetros para a política de cotas no âmbito da Defensoria Pública brasileira. Protagonista, elaborou Planos de redução da letalidade policial, discutiu a política de drogas, instituiu pela primeira vez o Programa de formação popular em direitos para mulheres, o Defensoras Populares, iniciativa que se espalharia por outras Defensorias Públicas do país. Implementou a Série Juri Simulado-Releitura do Direito na História, que partilhava o conhecimento sobre o sistema de justiça, mas também a reflexão sobre os personagens importantes da nossa história.
A pujança da Defensoria Pública da Bahia naquela década se revelou também através do reconhecimento dos demais poderes e da sociedade civil, através das mais importantes premiações do país. Foram Prêmios Innovare, prêmios no Congresso Nacional de Defensores, prêmios pela comunicação, prêmios pelo desenvolvimento de tecnologia, prêmios pelo combate ao racismo, até a ONU premiou e reconheceu pela primeira vez o trabalho consolidado da Defensoria Pública na defesa dos direitos das mulheres.
O Verde da Defensoria baiana, literalmente, conquistou o mundo. Foram dezenas de prêmios realmente e homenagens realmente relevantes, sem contar as centenas de indicações, e todas sempre pensadas e divulgadas como conquista da instituição e não como propaganda dos seus gestores.
A DPE passou a ser procurada e visitada por todos, pois era considerada exemplo. Pela primeira vez, um ministro do STF esteve nos espaços de uma Defensoria Pública brasileira. Ministros da Justiça e representações internacionais começaram a buscar com frequência a instituição. No CONDEGE, Conselho de Defensores Gerais, a Bahia sempre era respeitada e convidada a compor as diretorias, pois era tratada como referência.
A imprensa descobriu a Defensoria, juntamente com a população. A Defensoria da Bahia era simplesmente a mais popular do país nas redes sociais, assim como a mais popular instituição do sistema de justiça baiano. Outras Defensorias vinham a Bahia em busca de inspiração. Nossos projetos eram exportados frequentemente e muitas vezes premiados também nos Estados que os importaram.
A Defensoria Pública da Bahia produziu e foi objeto de filmes, programas de rádio, podcasts realmente inovadores, fortalecendo o conhecimento das pessoas sobre os serviços e direitos viabilizados pela instituição. Produziu centenas de cartilhas, vídeos e campanhas também premiados nacionalmente. A Defensoria Pública da Bahia tornou-se conhecida por muito mais pessoas.
Em 2024, após tantos passos, tantas iniciativas, tanto esforço criativo, chegou o marco definitivo da autonomia institucional nos moldes da EC 80. Aprovamos a primeira lei proposta exclusivamente pela Defensoria Pública, com dispositivos que não apenas fortaleceram o tratamento simétrico com as carreiras do sistema de justiça, mas consolidaram os mecanismos de ampliação do acesso à justiça nos tribunais superiores, por meio do fortalecimento do grau mais alto da carreira. Há quem pense que aconteceu do dia para a noite, mas foi o resultado de um processo de 10 anos, que, repetimos, não seriam possíveis sem as conquistas das duas primeiras etapas desta história.
O mais surpreendente é que no período a conjuntura externa não era favorável. O orçamento da instituição não foi suficiente para fechar a conta em nenhum desses anos. Nenhum. Todos os avanços foram construídos ao mesmo tempo em que se buscava suplementação orçamentária.
Durante esse período, o país enfrentou inéditas turbulências políticas e uma gravíssima pandemia. Ganhava corpo no país um discurso contra o serviço público e instituiu-se o teto de gastos (agora revogado porque inexequível). Nada, porém, conseguiu parar a instituição, que em vez de procurar culpados, trabalhou. Foi durante essa grande tempestade que a Bahia aprendeu que verde era a cor da Defensoria Pública e que pessoas do Brasil inteiro passaram a admirar e desejar trabalhar com aquela camisa de esperança. Foi durante os anos difíceis, como fruto de muito esforço, que a instituição conseguiu mostrar o seu valor.
Quando a década verde se encerrou, os membros da Defensoria Pública da Bahia haviam concluído cerca de 19 milhões de atuações, entre atendimentos, itinerâncias, manifestações processuais, projetos de educação em direitos. Foram 10 anos em que não foram renomeados, encerrados ou apagados projetos antigos. Não foram substituídos a toque de caixa sistemas criados por gestões anteriores. Não se usurpavam realizações dos antecessores. Fazia-se muito, mas não havia afobação porque ninguém pensava em esconder qualquer sucesso dos anos anteriores, nem em criar factoides para dar a impressão artificial de que se faz algo inovador. Nada disso era necessário porque o sucesso era real, reconhecido por todos. Existiam, de fato, inovações.
A defensoria era celebrada e homenageada. As suas festas sempre incluíam a prestação de serviços para a o povo e jamais excluía ou separava servidores e assistidos dos defensores e autoridades externas. Ela chamava gente e se completava porque conquistava tribunais e ruas. Enchia de alegria e justiça a praça e o poeta. Sabemos que este texto está muito longo para a época de internet, mas as construções mais belas e duradouras seguem realmente um ritmo mais lento. Na verdade, essas longas linhas não passam de um breve resumo. Aquela época deixou uma lição e cabe aos defensores e servidores terem a sabedoria de entendê-la:
Uma instituição que defende os necessitados somente cresce efetivamente se estiver ao lado deles. A sociedade civil não é boba e nem massa de manobra. O resto é ilusão passageira, sem lastro, castelo de areia. A defensoria baiana ainda colhe os frutos daquela década. Muita sementes foram plantadas, mas se a planta não for regada, murchará. Cumprimos honrosamente a missão de levar dignidade para pessoas de comunidades distantes, colocamos luz sobre a existência dos invisíveis sociais. Pelas estradas de chão, de barco ou a pé, estivemos bem mais perto de quem mais precisa. A história revela que nesta década a Bahia ficou verde e venceu. Esperamos que volte a vencer!
Texto em homenagem ao ex-Deputado Federal baiano Amauri Teixeira, herói nacional da Defensoria Pública, vergonhosamente esquecido na celebração dos 40 anos da Defensoria Pública da Bahia, e a todos os defensores, servidores e cidadãos que construíram essa história.
Clériston Cavalcante Macedo, Firmiane Venâncio e Rafson Ximenes, ex-Defensores Públicos-Gerais da Bahia