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O Estado deve tratar o candidato ou eliminá-lo? A verdade constitucional sobre saúde e concursos públicos

Problemas de saúde tratáveis não devem excluir candidatos e o Estado deve garantir cuidado enquanto a seleção avalia a capacidade para o cargo.

16/12/2025
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A história de cada concurseiro é marcada por coragem. Em um país onde a desigualdade ainda é regra, não exceção, quem decide estudar para concurso enfrenta jornadas de trabalho cansativas, longos deslocamentos, falta de tempo, falta de dinheiro e, ainda assim, insiste em acreditar que o mérito pode vencer as barreiras sociais. Por isso, a etapa final de um concurso deveria ser um momento de honra - não de injustiça.

Nos últimos anos, contudo, multiplicaram-se os casos de candidatos eliminados por critérios odontológicos e de saúde completamente desproporcionais: número mínimo de dentes, antagonistas perfeitos, ausência total de cáries, inexistência de próteses, anatomias ideais e outras exigências que nada dizem sobre a capacidade de exercer as funções do cargo. A pergunta que surge é inevitável e profundamente necessária: o Estado deve eliminar o candidato ou oferecer tratamento, como manda a Constituição?

Para responder, é preciso lembrar o que a Constituição Federal determina: saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Isso inclui, de forma clara, a saúde bucal. O Sistema Único de Saúde integra ações de prevenção, diagnóstico, restauração, reabilitação e fornecimento de próteses. Ou seja, a Constituição não apenas reconhece a saúde como direito fundamental - ela impõe ao Estado a obrigação de garantir o cuidado integral.

Mas o que ocorre nos concursos públicos?

O Estado, que falhou em oferecer atendimento odontológico adequado à população, exige - no edital - aquilo que ele mesmo não proporciona. Exige dentes perfeitos quando não garante manutenção preventiva. Exige oclusão impecável quando não oferece tratamento ortodôntico. Exige ausência de cáries quando nem sempre há profissional disponível no posto de saúde. Trata-se de um paradoxo constitucional: o Estado cobra o que não entrega.

Essa contradição viola princípios basilares:

  • Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III);
  • Isonomia material (art. 5º);
  • Razoabilidade e proporcionalidade (art. 37, caput);
  • Vedação ao comportamento contraditório;
  • Impossibilidade de exigir o impossível.

A ausência de dentes, as cáries, as próteses antigas ou a necessidade de tratamento ortodôntico não são escolhas. São consequências diretas da desigualdade social, dos limites da saúde pública e, muitas vezes, das omissões históricas do próprio Estado. Ao eliminar candidatos por essas condições, a Administração não está apenas sendo injusta - está penalizando quem foi vítima de sua própria falha estrutural.

É aqui que os tribunais têm assumido papel fundamental. A jurisprudência consolidada reconhece que:

  • problemas de saúde tratáveis não podem eliminar candidatos;
  • exigências estéticas ou anatômicas são ilegais;
  • critérios sem relação com o cargo são inconstitucionais;
  • candidatos devem ser readmitidos quando a eliminação viola princípios constitucionais;
  • o Estado não pode se beneficiar da própria omissão.

Diversas decisões têm afirmado que, diante de condições bucais tratáveis, a Administração deveria conceder prazo, orientar tratamento pelo SUS ou permitir o prosseguimento até que a situação seja corrigida. Isso porque o objetivo do concurso público é selecionar quem tem competência - não quem teve mais acesso a dentista durante a vida.

Quando a eliminação se baseia em imperfeições odontológicas, ela deixa de avaliar capacidade funcional e passa a medir desigualdade social. Não é apenas injusto: é inconstitucional.

O recado é claro: o Estado não deve eliminar - deve cuidar.

Quando a saúde é tratável, o candidato não pode ser punido. Quando o problema decorre da omissão estatal, o candidato não pode ser excluído. Quando a exigência não guarda relação com o cargo, ela deve ser anulada.

Se você foi eliminado por critérios odontológicos, procure orientação especializada. Seu esforço, sua história e seu futuro merecem proteção.

Autores

Ricardo Fernandes Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial MilItar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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