A advogada Luciana Nunes Freire Kurtz, sócia do escritório Freire, Capanema e Belmonte Advogados e sócia do escritório Capanema & Belmonte Advogados, integrou a delegação brasileira na 113ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, representando o setor patronal nos debates sobre o futuro do trabalho.
Com foco na regulamentação do trabalho por plataformas digitais — tema que começa a ser oficialmente discutido pela OIT neste ano —, Luciana compartilhou os principais pontos debatidos, os desafios enfrentados e o impacto esperado dessas deliberações para o cenário jurídico e trabalhista brasileiro.
Confira a entrevista.
Você está acompanhando de perto os debates da OIT em Genebra. Na sua avaliação, quais são os principais desafios enfrentados hoje na tentativa de regulamentar o trabalho por plataformas digitais em nível internacional?
Os desafios da regulamentação do trabalho em plataforma — especialmente do chamado trabalho decente na economia de plataforma — ainda avançaram muito pouco. Este ano marca a primeira discussão sobre o tema, e, conforme o regimento da OIT, os debates são realizados em dois anos. Portanto, a discussão sobre plataformas continuará no próximo ano.
Trata-se de um tema sensível, que gera muita controvérsia entre os mais de 180 países participantes. Todos reconhecem que é difícil estabelecer uma regulamentação horizontal que não inviabilize a atividade, ou que não leve essas empresas a deixarem de atuar ou empregar em determinados países. A regulamentação, portanto, não pode ser rígida ou engessada a ponto de comprometer a viabilidade desse modelo de negócio.
A discussão já começa com uma questão central: esses trabalhadores devem ter vínculo de emprego com as plataformas ou devem continuar atuando como autônomos, de forma independente?
Alguns entendem que deveria haver vínculo formal, com registro como empregados das empresas de plataforma. Já nossa posição, representando os empregadores na delegação brasileira, é a de que se deve respeitar a livre iniciativa e os arranjos produtivos. Entendemos que o trabalhador deve continuar, como já é no Brasil, atuando de forma autônoma e independente — podendo, inclusive, trabalhar para várias plataformas ao mesmo tempo, se desejar, ou utilizar essa atividade como forma de complementar sua renda.
Muitas vezes, esses trabalhadores já possuem um emprego formal, regido pela CLT, e atuam nas plataformas durante os fins de semana ou no período noturno. Nesse contexto, surge a grande discussão: esses trabalhadores deveriam ser registrados pelas plataformas, ou o modelo atual deve ser mantido?
Outro ponto em debate é: sendo autônomos, como esses trabalhadores seriam protegidos pela legislação previdenciária? Em caso de acidente ou doença, como teriam acesso à aposentadoria?
Há também o debate sobre seguro de vida: mesmo como autônomos, os entregadores, motoristas e demais profissionais de plataforma deveriam ter direito a um seguro custeado pelas empresas?
A proteção previdenciária está no centro das discussões. No caso do Brasil, a nosso ver, a resposta já está prevista na legislação: a Lei 8.212/91 estabelece o dever do recolhimento como contribuinte autônomo. Portanto, entendemos que esses trabalhadores devem contribuir mensalmente ao INSS por meio do “carnê do INSS”, garantindo assim sua cobertura previdenciária.
Ainda assim, há outras visões em debate. A delegação dos trabalhadores e representantes do governo brasileiro presentes na OIT entendem que esses profissionais estão em situação de precarização e deveriam ter outros tipos de proteção.
A discussão, no entanto, ainda é incipiente e imatura. O que se observa é que os desafios enfrentados pelo Brasil são comuns a todos os países presentes. Há dúvidas e dificuldades compartilhadas entre os mais de 180 membros participantes em relação à regulamentação do trabalho por plataforma.
Em que medida os debates na OIT podem influenciar a tramitação e o conteúdo do Projeto de Lei nº 12/2024, que trata da regulamentação do trabalho em plataformas digitais no Brasil?
Como a Recomendação e a Convenção da OIT sobre o tema do trabalhador em plataformas ainda serão debatidas na Conferência da OIT de 2026, com efeitos previstos apenas para 2027, a pressão pela tramitação de uma legislação brasileira sobre o assunto deve aumentar, uma vez que o tema foi uma promessa de campanha do atual governo.
Um dos grandes temas da conferência é o fortalecimento da proteção social frente às transformações tecnológicas. Como você enxerga o papel da inteligência artificial e da automação na reconfiguração das relações de trabalho?
O Brasil precisa investir em inovação para garantir sua competitividade em relação a outros países e aumentar sua produtividade. O avanço tecnológico e o uso da inteligência artificial são inevitáveis, e o trabalhador que não se capacitar para essa realidade ficará fora do mercado no futuro.
A proteção contra riscos biológicos no ambiente laboral também está na pauta. Como esse tema vem sendo abordado na conferência?
Esse tema teve forte apelo nas discussões da Conferência da OIT desde o ano passado, em virtude do que passamos com a pandemia da Covid-19. Em todos os países, empregados e empregadores foram pegos de surpresa. Agora, com a Recomendação e a Convenção que devem ser concluídas este ano, espera-se que as regras fiquem mais claras quanto às obrigações que cabem ao Estado e àquelas que competem aos empregadores, nos casos em que houver riscos biológicos efetivamente comprovados na atividade laboral. O grande desafio é separar o risco biológico decorrente da atividade do trabalhador daquele gerado, por exemplo, por uma pandemia ou endemia. Neste tema, o mais adequado seria que houvesse apenas uma Recomendação, com regras gerais e boas práticas. Porém, infelizmente, foi votado no ano passado que também teremos uma Convenção sobre o assunto — e esse instrumento, se ratificado pelo país interessado, tem efeito vinculante.
O que mais te marcou até agora na conferência? Houve algum painel, fala ou articulação que represente um avanço significativo no debate sobre o futuro do trabalho?
O representante dos trabalhadores brasileiros insistiu, em sua manifestação na Reunião Plenária, que o Brasil deve avançar no tema da redução da jornada, uma vez que muitos países que participam da OIT já possuem jornada mensal em torno de 38 a 40 horas. No entanto, esses países apresentam alta produtividade e realizaram essa redução de forma lenta e gradual, levando anos para atingir o patamar atual. No Brasil, é necessário melhorar nossa produtividade para evoluir nessa direção, sendo o melhor caminho a negociação coletiva, que pode adaptar a forma e a jornada de trabalho à realidade de cada região e de cada setor ou atividade, respeitando suas peculiaridades.