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Uma reflexão sobre a igualdade de gênero no Direito Processual

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Atualizado às 08:05

A Constituição Federal de 1988 prevê que todos são iguais perante a lei e referido tratamento isonômico deve existir entre homens e mulheres. Mas será que essa igualdade está refletida na nossa realidade social?

Não há como negar diferenças biológicas e situações que afetam mais as mulheres do que os homens, como a gestação e a amamentação. Mas há de se considerar a existência de uma construção cultural que gera disparidade de gênero na prática, como o cuidado com familiares, especialmente dos filhos, e o trabalho doméstico, que são exercidos de forma majoritária pelas mulheres. Deve-se ter em conta a enorme diferença salarial e do nível de hierarquia dentro dos cargos profissionais, entre outros. Assim, para se chegar em uma igualdade substancial é preciso pensar em questões pontuais de gênero, visando uma efetiva transformação sociocultural.

No final da década de setenta, foi criado o conceito de gênero pelo movimento feminista - por meio da produção acadêmica das mulheres daquela época - e, desde então, o termo tem sofrido diversas interpretações, porém mais usualmente relacionadas ao conceito de gênero que tem como base o "feminismo das diferenças", conforme destaca Marta Ferreira Santos Farah1. De acordo com tal concepção de gênero2, as distinções entre homens e mulheres são acentuadas, estabelecendo-se polaridades.

Se historicamente é consabido que essas distinções acabam por ensejar uma disparidade de tratamento entre homens e mulheres nos mais diversos ambientes, que ainda subsiste nos dias atuais, maior esforço se requer para a implementação de transformações em prol da igualdade. É necessário romper tradições, mitos e mentalidades conservadoras.

A participação das mulheres na área jurídica, por exemplo, ainda é pautada pela desigualdade material. Myrthes Gomes de Campos foi a primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil. Concluiu o bacharelado em direito em 1898, mas só em 1906 conseguiu ser aceita na instituição de classe3. A primeira magistrada, Thereza Grisólia Tang, tomou posse em Santa Catarina em 1954. No STF, a Ministra Ellen Gracie assumiu a presidência do STF de 2006 a 20084 e além dela, as Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber também representam o gênero feminino no Supremo. A ministra Laurita Vaz foi a primeira mulher à frente da presidência do STJ e dirigiu a referida Corte durante o biênio 2016 a 20185.

Apesar de as mulheres constituírem a maior parcela da população brasileira, tal fato não se reflete nos cargos mais altos em cada um dos Poderes da República. No Executivo, a proporção é de uma única Presidente mulher para 37 Presidentes homens e nunca houve uma vice-presidente mulher. Dentre os Ministros de Estado, a proporção é de 1.025 homens para 40 mulheres. No Poder Legislativo, até 2016, sequer havia banheiros femininos nas respectivas Casas e nunca houve uma mulher na presidência da Câmara ou do Senado Federal. No Poder Judiciário, entre os ministros, no STF, a proporção é de 3 mulheres para 166 homens - historicamente. No STJ, há 91,84% de homens e 8,16% de mulheres. A situação é similar nos demais tribunais superiores: 91,21% de homens e 8,79% de mulheres no TSE; 90,24% de homens e 9,76% de mulheres no TST e, por fim, 97,73% de homens e 2,27% de mulheres no STM. A maior porcentagem de mulheres como Ministras dos Tribunais Superiores verifica-se no TST - que, ressalte-se, atualmente é Presidido pela Ministra Maria Cristina Peduzzi -,  mas, ainda assim, com irrelevante proporção. O Censo do Poder Judiciário divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2014 mostrou que apenas 35,9% dos membros da magistratura são mulheres6.

Fato é que essa desproporção e essa desigualdade de gênero na cúpula dos três  Poderes acabam dificultando a inserção na ordem do dia de pautas relevantes aos direitos das mulheres, tais como a violência doméstica, a equiparação salarial, os tratamentos reprodutivos, incentivos de ordem tributária, o incremento de número e qualidade de creches, o respeito à amamentação em local público, entre outros7. A paridade institucional, portanto, é fundamental para que se dê visibilidade aos assuntos de interesse direto das mulheres, mas que, em seu âmago, dizem respeito à sociedade em que se pretende viver.

Algo está sendo feito?

Em 2015, foi pactuada a agenda 2030 da Organização das Nações Unidas e, dentre os seus objetivos, está a promoção da igualdade de gênero, mais especificamente no item 5 - "Igualdade de Gênero"8; em 2020, a OAB instituiu cota de participação mínima de 30% de mulheres em eventos organizados pelo Conselho Federal9. A partir de 2021, as eleições da OAB devem contar com 50% de mulheres nas respectivas chapas10. Apesar desses esforços da OAB, vale registrar que em abril de 2021 as advogadas superaram em número absolutos os advogados, mas ainda não conseguiram a igualdade nos cargos mais altos dentro das empresas e instituições, por exemplo.

Nesse cenário, acredita-se que os movimentos feministas, através de mobilizações, têm contribuído para a garantia de alguns direitos e para uma sensível melhoria na igualdade de gênero.  

No que concerne ao direito processual, mais precisamente no ambiente acadêmico, a desigualdade de gênero sempre foi perceptível, tanto no que diz respeito ao maior quantitativo de professores em relação ao de professoras integrantes das carreiras nas instituições públicas e privadas, quanto no que se refere às publicações e às participações em eventos, nos quais a representação feminina era mínima ou inexistente - não se fala de um passado remoto, mas de situações contemporâneas. 

Nos últimos anos, no entanto, essa realidade tem sido paulatinamente modificada. O incremento da participação feminina nos eventos e publicações relativos ao direito processual é evidente. E muito disso se deve, sem dúvidas, ao trabalho desempenhado por diversos coletivos femininos, que têm, entre seus objetivos, o escopo de promover a igualdade de gênero no ambiente acadêmico do direito processual. Daí a relevância e o orgulho em dizer que o "Elas no Processo" tem cumprido um significativo papel nessa caminhada.

O "Elas no Processo" tratava-se, no início, de um grupo de WhatsApp, criado no dia 29 de abril de 2015 com a finalidade de congregar mulheres que participariam, então, do V Fórum Permanente de Processualistas Civis - Vitória/ES.

Rapidamente, esse grupo - que passou a ter como principal objetivo o fomento à participação feminina nos eventos e nas publicações científicas - transformou-se em um ambiente de parcerias acadêmicas, divulgação de trabalhos recíprocos, promoção de debates jurídicos atuais através de lives, diálogo e muita sororidade. 

Em 16 de agosto de 2016, o primeiro projeto do grupo saiu do papel: foi lançada a obra "Temas Relevantes de Direito Processual Civil: Elas Escrevem", coordenado por Renata Cortez, Rosalina Freitas e Sabrina Dourado e escrito por vinte e quatro processualistas de todo o Brasil. A obra foi publicada pela Editora Armador, posteriormente adquirida pela Editora Juspodivm. Sem dúvidas, essa foi uma obra pioneira, visto que escrita exclusivamente por mulheres processualistas.

De lá para cá, o grupo cresceu e amadureceu: foi criada, em maio de 2020, a marca "Elas no Processo"; foram também criados um canal no youtube e um perfil no Instagram. O coletivo realizou e apoiou diversos eventos acadêmicos, muitas vezes em parceria com outros coletivos, como o "Elas Pedem Vista", o "Instituto de Juristas Brasileiras", o "Mulheres no Processo" do Instituto Brasileiro de Direito Processual, o "Processualistas", o "Abayomi Juristas Negras", o "Advogadas do Brasil", o "LiderA" e o "Elas Discutem".

As integrantes do "Elas no Processo" interagem diariamente através do grupo do WhatsApp, que conta hoje com 140 participantes de todas as regiões do País. Existe uma especial atenção em publicar e realizar eventos em parceria umas com as outras; citar umas às outras; tirar dúvidas entre si; além de um efetivo compartilhamento de dores e amores.

Em agosto de 2021, cinco integrantes do "Elas no Processo" - que também assinam esta coluna -, lançaram a obra coletiva "Acesso à Justiça: um novo olhar a partir do Código de Processo Civil de 2015", pela Editora Thoth: Benigna Teixeira, Fernanda Gomes, Flávia Hill, Flávia Ribeiro e Renata Cortez. O livro conta com artigos escritos por homens e mulheres e duas delas foram vencedoras de um concurso realizado entre as integrantes do "Elas no Processo": Cecília Hildebrand e Paula Ferreira Bovo. A obra conta com o prefácio do ilustre professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro.

O coletivo "Elas no Processo" manteve por aproximadamente um ano uma parceria com o Professor Gilberto Bruschi - a quem se expressa o agradecimento - para a publicação de artigos escritos pelas integrantes do "Elas no Processo" em sua coluna eletrônica: "O Novo Processo Civil Brasileiro". Foram 35 textos publicados!

Chegou a hora, no entanto, do voo solo. A coluna do "Elas no Processo" está no Migalhas! O coletivo publicará quinzenalmente, a partir de hoje, reflexões das integrantes e de convidadas (os) sobre o direito processual.

Compõem o Conselho Editorial da coluna as processualistas Cristiane Rodrigues Iwakura, Fernanda Gomes e Souza Borges, Flávia Pereira Hill, Flávia Pereira Ribeiro e Renata Cortez Vieira Peixoto. Para garantir a máxima qualidade técnica dos artigos, foi criada uma Comissão Revisora, formada pelas processualistas América Nejaim, Benigna Teixeira, Cecília Hildebrand, Gisele Welsch e Lucélia Sena.

O "Elas no Processo" agradece imensamente à Diretoria do Migalhas pelo pronto acolhimento e pela confiança, sendo certo que também o maior e o mais importante veículo jurídico, em formato de portal eletrônico, está contribuindo imensamente para a igualdade de gênero. 

Trata-se, portanto, de uma coluna inclusiva por excelência, que almeja divulgar conhecimento jurídico de qualidade na área do direito processual para além de rótulos ou divisões artificiais, que não condizem com o ambiente científico nem com a sociedade que almejamos para já

Aos leitores e leitoras que comungam esses mesmos ideais e acreditam no avanço do direito processual por obra e com a contribuição de todos e, especialmente, de todas, sejam muito bem-vindos!

__________

1 FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e Políticas Públicas. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(1): 360, janeiro-abril/2004, p. 48.

2 SCOTT, Joan. "Gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo [...] determina univocamente como a divisão social será estabelecida". Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2021.

3 HIGÍDIO, José. Primeira advogada brasileira, Myrthes superou obstáculos para trabalhar. Conjur, 8 mar. 2021.

4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Veredicto.  Boletim informativo. 40 ed., 28 jan. 2009. Disponível aqui. Acesso em: 07 out. 2021.

5 MULHERES no Direito e igualdade de gênero são tema de debate. Migalhas, 21 nov. 2017. Disponível aqui. Acesso em 06 out. 2021.

6 VENTURINI, Anna Carolina; FERES JUNIOR,  João. A Desigualdade de Gênero na Justiça Brasileira. GEMAA. 2015. Disponível aqui. Acesso em 07 out. 2021.

7 Vale destacar aqui importantes iniciativas legislativa em tramitação: 1) PL 1740/2021, 3414/2019, e 1741/2021: a dedução de percentuais do imposto de renda às empresas que contratarem, respectivamente, vítimas de violência doméstica financeiramente dependentes e mulheres chefes de família de baixa renda; 2) PL 5548/2019: a reserva de vagas em empresas terceirizadas para mulheres vítimas de violência ou em situação de vulnerabilidade social; 3) PL 128/2021: Zera as alíquotas de PIS e Cofins sobre absorventes menstruais. Registre-se que também existem iniciativas no sentido de se propor a inclusão destes produtos na cesta básica. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2021. Ainda a respeito da pobreza menstrual, termo adotado pela Unicef para se referir à situação vivenciada por meninas e mulheres devido à falta de acesso a recursos para que cuidem de seu ciclo menstrual, observa-se que no início do mês de outubro, o Poder Executivo Federal sancionou a Lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual - lei 14.214/2021, mas vetou os pontos do projeto de origem (PL 4868/2019) que contemplavam a oferta gratuita de absorventes com fundamentação de ordem técnica, qual seja, a ausência de indicação para a fonte de custeio ou medida compensatória, em violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, à Lei de Diretrizes Orçamentárias deste ano, e à Lei Complementar 173/2020. Neste momento, os vetos seguem para análise pelo Congresso Nacional, podendo ser mantidos ou derrubados. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2021.

8 ONU. Planeta 50-50 em 2030. Disponível aqui. Acesso em 07 out. 2021.

9 Proposição n. 49.0000.2019.013134-1 do Conselho Pleno. Disponível aqui. Acesso em: 07 out. 2021.

10 OAB aprova paridade de gênero e cotas raciais para as próximas eleições da classe. Disponível aqui. Acesso em: 07 out. 2021.