COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, Angelica Carlini, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
segunda-feira, 27 de julho de 2020

A pandemia covid-19 e o fortuito interno humano

Texto de autoria de João Hora Neto "A vida não é boa nem má, apenas arbitrária..."Joseph Brodsky Introdução Induvidosamente, a discussão acerca da pandemia Covid-19 é de ingente importância, à vista dos seus reflexos no mundo jurídico; afinal, múltiplas e variadas relações contratuais são atingidas, causando insegurança e frustração aos contratantes. Re vera, não se sabe ao certo qual o instituto jurídico que caracteriza o fenômeno pandêmico e, a partir disso, qual o instrumental jurídico aplicável ao conflito contratual, ou seja, se é caso de revisão ou de resolução (extinção). Este breve estudo argumenta que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, classificando-a como um fortuito interno humano, por decorrer da atividade humana ao longo da história, bem como aponta que os riscos pandêmicos devem ser arcados pelo contratante mais forte, com base na Teoria do Risco. Também vaticina que, na sociedade pós-moderna do século XXI (massificada, plural, complexa), uma nova realidade contratual se impõe, representada pelos contratos empresariais e existenciais, a exigir soluções jurídicas distintas, inclusive por força da Lei da Liberdade Econômica em consonância com os princípios sociais do contrato. O estudo discute, enfim, se a revisão deve ser a regra ou a exceção a ser adotada ou, até mesmo, se a revisão é a única solução possível. 1. A miséria do coronavírus, a responsabilidade civil e o fortuito interno Em sede de responsabilidade civil, há dois pressupostos inafastáveis - nexo e dano - posto que a culpa é atinente apenas à responsabilidade civil aquiliana (subjetiva), mas não ocorrente na responsabilidade objetiva. O nexo causal é uma relação de causa e efeito, ou seja, é um elo naturalístico entre a conduta e o resultado, significando um vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo concluir se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do dano. Contudo, não se trata apenas de uma compreensão naturalística (leis físicas) entre causa e efeito, haja vista que, além da identificação do elo naturalístico, faz-se imperioso a presença do liame jurídico, com base em juízo de probabilidade, uma vez que nem toda condição é causa do evento. No Brasil, há algumas teorias acerca do nexo causal, sendo a teoria da causalidade adequada a mais aceita, consoante art.403 Código Civil. De forma unânime, informa a doutrina que o nexo causal é um pressuposto indelével da responsabilidade civil em geral, quer seja subjetiva ou objetiva, contratual ou extracontratual, apenas mitigado em situações especialíssimas, como é a hipótese da responsabilidade fundada no risco integral. Também há situações em que o nexo causal é rompido, afastando o dever de indenizar, como, por exemplo, nas hipóteses da culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior. Em relação ao caso fortuito e a força maior, a despeito de persistir confusão na doutrina acerca da sua distinção, é patente e meridiano atestar-se que são causas exonerativas da responsabilização civil (civil ou consumerista), com base na regra do art. 393 § único do Código Civil, não obstante sem previsão no Código do Consumidor. Grosso modo, entende-se por caso fortuito os acontecimentos advindos da ação humana (greve, conflito armado), enquanto a força maior decorre dos acontecimentos da Natureza (act of God) (furações, tempestades, maremotos etc.). A partir de tal compreensão e à luz da melhor doutrina (CAVALIERI FILHO, Sergio, 2018), o caso fortuito decorre de um evento imprevisível e inevitável, enquanto a força maior deriva de um acontecimento previsível, porém inevitável, concluindo-se assim que a imprevisibilidade é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto que a inevitabilidade o é da força maior. Demais disso, anote-se que o caso fortuito tem duas variantes doutrinárias, ou seja -- fortuito externo e fortuito interno -- sendo que a primeira implica no rompimento do nexo causal, mas a segunda não (fortuito interno), pois constitui risco ligado à atividade do sujeito responsável, sendo conexo ao desempenho do seu empreendimento. Em essência, enquanto o fortuito externo afasta o dever de indenizar, pois o dano não guarda relação com a atividade desenvolvida pelo ofensor, o fortuito interno gera o dever de indenizar, uma vez que o dano causado tem relação com a organização da empresa, isto é, com a atividade desenvolvida pelo fornecedor, cuja atividade se torna impossível exercer sem abarcar esses riscos. Conclui-se, pois, que o fortuito interno não exclui a responsabilidade civil, mormente porque, apesar de inevitável a ocorrência do risco, as suas consequências são evitáveis, pelo menos em larga escala, com base no estado da técnica (avanço técnico/científico) a cargo do detentor do monopólio da atividade. 2. A pandemia Covid-19 e o fortuito interno humano O Direito existe para resolver o conflito humano, sendo um produto cultural da humanidade e não uma abstração celestial, como assim conclui o genial sergipano Tobias Barreto: "O Direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana". A miséria pandêmica é uma realidade inconteste, a exigir uma solução jurídica iluminada pela legalidade civil-constitucional. O novo coronavírus - esse inimigo oculto - tem a natureza jurídica de um fortuito interno que diz respeito à Humanidade em geral, ou seja, à própria sobrevivência do ser humano. Nesta pesquisa, sustenta-se que a milenar existência humana no planeta gerou a Covid-19, o que significa dizer que a pandemia é um efeito e não uma causa. Ao estudo não interessa a discussão se o coronavírus tem origem em morcegos chineses contaminados (o que seria a hipótese de força maior) e muito menos que é produto da mente sórdida e demoníaca de algum cientista, que, por iniciativa própria ou a mando político-ideológico, criou o vírus mortal (o que seria a hipótese de caso fortuito externo). Viver é arriscar-se! E foi o risco da ação humana no planeta Terra, permeada de conflitos de variados matizes, quem gerou o novo coronavírus - o fortuito interno humano - que é inerente à vida humana em si, e que, ipso facto, faz persistir o dever de indenizar, uma vez que a pandemia não é causa excludente de responsabilidade civil. 3. A classificação moderna do contrato Impõe-se, hodiernamente, uma renovada mentalidade civil constitucional, voltada para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação entre particulares (MORAES, Maria Celina Bodin de, 2016), com a observância, por exemplo, de que o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) pode ser relativizado, uma vez que o contrato (obrigação) deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança (COUTO E SILVA, Clóvis V.do, 2018), também voltado para a materialização do programa constitucional. No mundo atual há três contratos bem distintos - civilístico, empresarial e de consumo - cuja natureza jurídica implica na adoção de um direito civil geral ou comum (contrato civil) ou de dois direitos especiais (o direito empresarial e o direito do consumidor), todos eles, contudo, operacionalizados à luz da teoria do 'diálogo das fontes'. A moderna classificação aponta a existência de outras espécies contratuais, largamente entrelaçadas entre si, à vista da superação da dicotomia direito público/direito privado, além da múltipla e variada gama de relações jurídicas insertas na sociedade contemporânea. 4. O contrato empresarial e o contrato existencial Ainda que reconheça a serventia da classificação clássica dos contratos dominante no século XX, mormente a distinção entre contrato paritário e de adesão, sugere Antonio Junqueira de Azevedo (2010) a adoção de uma nova classificação contratual para o século XXI, com a distinção entre contrato empresarial e contrato existencial. À luz da dicotomia proposta, entende-se por contrato empresarial aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial "ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade" (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Já o contrato existencial é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010). Como contrato empresarial, exemplifica-se todos os contratos que tenham por fim precípuo a obtenção do lucro, isto é, os contratos de franquia, de agência, de distribuição, de locação comercial, de consórcio interempresarial, de engineering, de compra de matéria prima, de fornecimento, de transporte, contratos bancários, dentre outros. Já o contrato existencial exemplifica-se como todo contrato de consumo em que o consumidor é o destinatário final ou não vise a obtenção de lucro, à luz da Teoria Finalista, além do contrato de trabalho, o de aquisição da casa própria, o de locação da casa própria, o de conta corrente bancária, dentre outros, figurando como seu objeto característico bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o património mínimo existencial do ser humano (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros) (GALVANO, Renato Rodrigues Costa, 2019). Na doutrina, aponta-se um critério bastante diferenciador entre ambos, isto é, a intenção ou não de lucro, assim resumido: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018). Um outro critério deveras diferenciador diz respeito a maior ou menor interferência judicial, haja vista que no contrato empresarial a intervenção judicial deve ocorrer de forma mais branda, em respeito ao pactuado pelas partes (pacta sunt servanda), não sendo possível a revisão judicial como regra, mas apenas em caráter excepcional, conforme art. 421 § único do Código Civil, alterado pela Lei da Liberdade Econômica. Já no contrato existencial, por interpretação inversa, a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em homenagem aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante não pode ser visto como um mero interesse 'descartável'. Demais disso, a boa fé objetiva deve incidir com graduação variável, posto que nos contratos empresariais pode haver uma maior dispositividade dos deveres anexos de conduta, com menor incidência da boa fé objetiva em respeito ao pact sunt servanda; já nos contratos existenciais, pode haver uma menor dispositividade dos deveres anexos e uma maior incidência da boa fé objetiva. 5 A Covid-19 e os contratos empresariais e existenciais Como dito, a pandemia não faz romper o nexo causal. Baseado na Teoria do Risco, entende-se que a parte mais forte da relação contratual é quem deve assumir os riscos, indenizando os danos decorrentes, por ser a detentora do monopólio privado do serviço ou do produto, quer seja por desenvolver uma atividade ou uma profissão que não aufira proveito econômico (risco criado), quer seja por desenvolver uma atividade que tire proveito econômico ou lucro (risco proveito). Tal compreensão também se funda no brocardo que diz, onde está o ganho, aí reside o encargo (ubi emolumentum, ibi onus), ou, ainda, quem aufere o bônus suporta o prejuízo, de sorte que a mesma solução é extensível às duas outras modalidades de risco (risco profissional e risco integral). O estudo não adota uma solução única e generalizante, como se uma panaceia aplicável a todo e qualquer contrato, indistintamente, até porque há uma gama infinda de espécies contratuais, típicas e atípicas, o que dificultaria em muito uma solução planificada e universal. Para a solução do caso concreto, também sob a égide da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), entende-se que o primeiro passo adotável é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio - se empresarial ou existencial - posto que, a partir disso, advirão soluções jurídicas diversas. Nos contratos empresariais a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda). Portanto, nos contratos empresariais, doravante classificados como contratos paritários (art. 421-A CC), a regra é a prevalência da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda), de sorte que a intervenção judicial, em caso de desequilíbrio econômico do contrato, deve ocorrer com esteio na Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º, V), aplicável em sede de 'diálogo das fontes'. Malgrado isso, entende-se que a interferência judicial deve preferir a revisão à resolução, a fim de salvar o contrato, em homenagem ao princípio da conservação dos contratos (Enunciado n. 22 da I Jornada de Direito Civil), pertinente à função social dos contratos, sob sua eficácia interna. Já nos contratos existenciais, por interpretação inversa ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), alterado pela Lei da Liberdade Econômica, que disciplinou os contratos empresariais -- entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional. Ademais, considerando que o contrato existencial é eminentemente de consumo, impõe-se a aplicação genuína da Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível, à luz do princípio da conservação do contrato, haja vista que o direito à revisão é uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), desde quando a onerosidade excessiva seja superveniente à formação do contrato. Em suma: em sede de contratos existenciais, a revisão contratual deve ser a única hipótese permitida, por interpretação contrária ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a intervenção mínima prevista na Lei da Liberdade Econômica, bem como a excepcionalidade da revisão contratual, somente é aplicável aos contratos empresariais, profissionais ou de lucro. Considerações finais Na compreensão de que a pandemia Covid-19 é um fato jurídico, uma vez que repercute no universo dos contratos, o estudo a classificou como um fortuito interno humano, posto que advindo da atividade humana ao longo da história, não implicando em rompimento do nexo causal. Argumentou-se que a pandemia é um efeito e não uma causa, bem como observou-se que a responsabilização civil dela derivada deve ficar a cargo do contratante economicamente mais forte, em razão da atividade por ele desenvolvida, à luz da Teoria do Risco. O estudo não acolheu o entendimento generalizante e uniforme aplicável a todos os contratos, sem distinção, no sentido da revisão ou extinção. Preferiu-se pautar na dicotomia moderna do contrato - contrato empresarial e contrato existencial - uma vez que melhor abarcaria uma gama infinda de tipos contratuais atinentes a um grupo ou outro, tornando assim a solução jurídica mais prática e efetiva. Por derradeiro, a pesquisa concluiu que, nos contratos empresariais, a intervenção estatal deve ser mínima, em respeito ao pacta sunt servanda, sendo apenas excepcional a revisão ou resolução do contrato e que, ainda assim, deve-se priorizar a revisão, com base no 'diálogo das fontes', para salvar ou conservar o contrato. Diferentemente, nos contratos existenciais, a intervenção dever ser máxima, por interpretação inversa da Lei de Liberdade Econômica, para fins de efetivar os princípios sociais do contato em prol do contratante vulnerável, sendo a revisão a única hipótese possível. ___________ AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185. ___________________________. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 186. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A Obrigação como processo. São Paulo: editora FGV, 2018, p. 20-21. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 99. EROLES, Pedro. Boa Fé Objetiva nos Contratos. Especificação Normativa, Cogência e Dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125. FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais. Teoria Geral e Aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. GALVANO, Renato Rodrigues Costa. A Boa Fé Objetiva no Âmbito dos Contratos Relacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 111. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana. Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 14. ____________ *João Hora Neto é doutorando em Direito pela UFBA; professor adjunto de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe; juiz de Direito do Estado de SE. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).
Texto de autoria de Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Hercules Alexandre da Costa Benício O texto explica o que é assinatura eletrônica e demonstra, com exemplos práticos, como o cidadão pode utilizá-la para assinar contratos e outros atos jurídicos, além de propor interpretações e sugestões à doutrina, à jurisprudência e à legislação diante da necessidade de o Direito se adaptar à Era da comunicações remotas (capítulo 1).   De um modo simplificado, pode-se dizer que, ao longo da História, para a certificação de autoria de documentos, evolui-se do uso dos sinetes sobre cera derretida até a assinatura eletrônica, passando pela assinatura de próprio punho. Deixa-se de abordar outras formas de certificação ao longo da história pelos limites deste artigo (capítulo 2).   O "certificado digital" é a identidade virtual de uma pessoa e fica armazenada em algum dispositivo (token, celular, nuvens etc.); é, metaforicamente, o anel-sinete. Após ter o "certificado digital", a pessoa pode assinar eletronicamente qualquer documento conectado o dispositivo que contém o seu certificado digital ao computador e digitando a sua senha pessoal (o seu PIN). Metaforicamente, assinar eletronicamente é pressionar o "anel-sinete" sobre a cera derretida para deixar a sua marca. (capítulo 3).   As assinaturas eletrônicas podem ser classificadas:   a) quanto à tipicidade, em: a.1) típicas: as disciplinadas em lei ou ato infralegal, no que se incluem as assinaturas eletrônicas no âmbito do e-Notariado e do ICP-Brasil; e a.2) atípicas: as decorrentes de pacto entre as partes.   b) quanto ao nível de segurança, em: b.1) simples: aquela que "permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário" (art. 2º, I, MP nº 983/2020); b.2) avançada: aquela que "está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável" (art. 2º, I, MP nº 983/2020), no que se inclui a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado; e b.3) qualificada: aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil).   Assinatura eletrônica no âmbito do e-notariado (capítulos 3.1. e 4) No âmbito dos Cartórios de Notas, qualquer cidadão pode gratuitamente obter um "certificado digital notarizado" emitido no seio da plataforma "e-Notariado", comparecendo pessoalmente a uma serventia para sua identificação pessoal. O fundamento é o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ. Com esse "certificado digital notarizado", o cidadão poderá assinar eletronicamente qualquer ato notarial, como escrituras públicas de compra e venda, de procuração etc. O certificado digital notarizado não pode, ainda, ser utilizado para assinar eletronicamente atos fora dos Cartórios, mas entendemos que convém seja espraiado o seu uso para além dos cartórios, caso em que a assinatura eletrônica aí valeria como um reconhecimento de firma.   Assinatura eletrônica no âmbito do ICP-Brasil (capítulo 3.2.) A assinatura eletrônica decorrente de certificados emitidos no âmbito do ICP-Brasil é eficaz para qualquer ato jurídico por força do art. 10 da MP 2.200-2/2001. Os referidos certificados podem, pois, ser utilizados tanto em Cartórios de Notas (em concomitância com a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado) quanto fora. Para obter um certificado digital no seio do ICP-Brasil, a pessoa deve comparecer pessoalmente perante uma pessoa jurídica incumbida da função de "Autoridade Registradora" (AR), a qual fará os cadastros necessários e, se for o caso, entregará o dispositivo (como um token, um cartão etc.) no qual ficará o certificado digital. A IN ITI nº 02/2020 e a Medida Provisória 951/2020) autorizam que esse registro seja feito de forma não presencial, o que poderá ameaçar a viabilidade financeira das empresas que lidam como AR. O ITI, que é uma autarquia, é a Autoridade Certificada Raiz (AC Raiz). Ele é incumbido de executar as diretrizes dadas pelo "Comitê-Gestor da ICP-Brasil", órgão público colegiado vinculado à Casa Civil da Presidência da República. Ele também coordena e fiscaliza as Autoridades Certificadoras (ACs). O ITI não pode emitir certificado digital diretamente ao usuário final. 6.4. A emissão do certificado digital ao usuário final é feita por uma Autoridade Certificadora (AC) após o cadastro feito pela respectiva Autoridade de Registro (AR). Podemos citar, a título de exemplo, várias pessoas jurídicas incumbidas da condição de AC no âmbito do ICP-Brasil, como a Serpro, a Certisign, a Caixa etc.   Assinatura eletrônica fora dos cartórios e do ICP-Brasil (capítulo 3.3.) Vige, no ordenamento jurídico brasileiro, a atipicidade das assinaturas eletrônicas: as partes podem, por acordo, estipular outras formas de assinatura eletrônica (art. 10, § 2º, da MP nº 2.200-2/2001). A título de exemplo de assinaturas eletrônicas atípicas - aquelas decorrentes de acordo entre as partes -, citam-se as praticadas por bancos e corretoras de valores mobiliários com seus clientes, as fornecidas por empresas de assinatura eletrônica e, inclusive, as baseadas em mensagens por e-mail ou por WhatsApp na forma do previsto em contrato.   Proposições para doutrina, jurisprudência e legislação (capítulo 4) O conceito de "documentos assinados" previsto o art. 219 do CC alcança documentos físicos e eletrônicos bem como assinaturas físicas ou eletrônicas. Instrumento público eletrônico são escrituras públicas eletrônicas. Documentos públicos eletrônicos são aqueles produzidos e despapelizados por agentes público com sua assinatura eletrônica, a exemplo de certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos e dos próprios atos notariais eletrônicos. Quando a legislação exige manifestação de vontade presencial, deve-se se entender que aí está abrangida também a manifestação de vontade por canal de comunicação remota e instantânea, tudo conforme o que Mário Luiz Delgado batiza de princípio da presença virtual. O certificado digital notarizado (aquele emitido no âmbito do e-Notariado) deve ser espraiado para valer como assinatura eletrônica para atos praticados fora dos Cartórios de Notas, como em instrumentos particulares (cfr. Provimento nº 103/2020 - CN/CNJ) ou, até mesmo, em petições dirigidas a processos judiciais. O legislador deve adaptar a legislação para afastar dúvidas interpretativas acerca do valor jurídico dos documentos eletrônicos. Clique aqui e confira o artigo na íntegra. *Carlos E. Elias de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, advogado/parecerista, ex-advogado da União, ex-assessor de ministro STJ e professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral. **Hercules Alexandre da Costa Benício é tabelião e oficial de Registro do 1º Ofício de Notas, Registro Civil, Protesto, Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Doutor e mestre em Direito e Estado pela UnB. Ex-procurador da Fazenda Nacional. Professor de Direito Civil e Direito Notarial e Registral.
Texto de autoria de Angélica L. Carlini A pandemia da COVID-19 que afeta intensamente o Brasil tem provocado inúmeras reflexões no âmbito dos contratos e, muito em especial dos contratos de seguro. Nosso objetivo neste trabalho é refletir sobre a cobertura de lucros cessantes nos contratos de seguro e a possibilidade de pagamento de indenização aos segurados em decorrência da paralisação de suas atividades por ordem dos governos estaduais e municipais que determinaram a suspensão do funcionamento de lojas, centros comerciais, restaurantes e outras atividades que pudessem provocar a aglomeração de pessoas e, em consequência, facilitar o contágio. No Brasil, a cobertura para lucros cessantes pode ser encontrada nos seguros empresariais - multirrisco; nos seguros de riscos nomeados - aqueles em que o segurado escolhe as coberturas que precisa contratara e os riscos são descritos na apólice de seguro; e nos seguros operacionais, aqueles em que estão cobertos todos os riscos a que o segurado está sujeito, exceto aqueles que estiverem expressamente mencionados na cláusula de riscos excluídos. Os seguros de riscos operacionais também são chamados de all risks, porém a tradução livre "todos os riscos" não é exatamente a melhor porque o seguro cobre "todos os riscos" exceto aqueles que constem na cláusula de riscos excluídos. Os seguros de riscos nomeados e de riscos operacionais são aqueles comumente contratados por grandes empresas, tanto nos setores da indústria, como no comércio e prestação de serviços, muitas das quais com riscos bastante específicos e que encontram guarida nessa modalidade de apólice. Já os seguros empresariais são contratados por empresas de menor porte e seu pacote de multirrisco facilmente contém cobertura para os riscos aos quais elas comumente estão expostas. Os contratos de seguro de riscos operacionais e riscos nomeados quase sempre estão organizados em coberturas básicas e obrigatórias e coberturas adicionais. As básicas e obrigatórias são danos materiais, incêndio, lucros cessantes, roubo, quebra de máquinas, queda de raio, explosão; e as coberturas adicionais podem ser: danos elétricos, vendaval, fumaça, desmoronamento, responsabilidade civil entre outras. Durante mais de cinquenta anos a cobertura de lucros cessantes foi regulada pela Portaria 17, de 1963, do antigo Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização que antecedeu o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP como órgãos reguladores e fiscalizadores do mercado de seguros no Brasil. Em 2017, a Circular SUSEP n. 560 revogou a Portaria 17 e outros eventuais normativos sobre lucros cessantes que pudessem existir e, deliberou no artigo 2º que o objetivo do seguro de Lucros Cessantes é garantir uma indenização pelos prejuízos resultantes da interrupção ou perturbação no movimento de negócios do segurado, causada pela ocorrência de eventos discriminados na apólice. Determinou, ainda, que na estruturação de seus planos de seguro as sociedades seguradoras poderão prever coberturas adicionais, desde que os riscos cobertos estejam diretamente relacionados com o ramo de Lucros Cessantes e não sejam típicos de outros ramos. Nas apólices de seguro de lucros cessantes praticadas no Brasil é comum que entre os riscos excluídos estejam expressamente relacionados os atos de autoridade pública, salvo para a propagação de danos cobertos na apólice; e, danos causados por contaminação. Como interpretar as cláusulas dos contratos de seguro com cobertura para lucros cessantes neste momento, em que a pandemia da COVID-19 obrigou ao isolamento social e a interrupção de muitas atividades econômicas consideradas não-essenciais? A literalidade já leva a conclusão de que não há cobertura, porque como se vê nas determinações do regulador os lucros cessantes cobertos pelo contrato serão aqueles decorrentes de eventos discriminados na apólice, ou seja, de danos materiais provocados por incêndios, queda de raio, desmoronamento, danos elétricos, queda de aeronave, entre outros. É a cobertura para as empresas concessionárias de rodovias utilizarem quando a enchente destrói uma ponte que impede a passagem de veículos na estrada por vários dias ou semanas, obrigando a construção de um desvio que interrompe a passagem por uma praça de pedágio. Ou, na mesma situação quando as chuvas torrenciais provocam desmoronamento de um talude que interrompe totalmente a passagem de veículos e a rodovia fica inoperante, obrigando os usuários a utilizar vias secundárias. Nessas situações não há cobrança de pedágio e a concessionária deixa de receber os valores de lucro para os quais tinha expectativa. A interpretação histórica da cláusula nos levará à conclusão de que não havia no Brasil até o mês de fevereiro de 2020, nenhum temor maior para riscos de pandemia. Existiam alguns temores para epidemias e, nos seguros ambientais para o risco de contaminação. Mas para a hipótese de pandemia não havia nenhum temor mais acentuado que pudesse provocar a inserção em contratos de seguro. No aspecto teleológico a interpretação dos contratos de seguro deverá se ater às circunstâncias para as quais os seguros foram contratados. Que riscos o segurado temia no momento em que contratou a cobertura de lucros cessantes? Os danos decorrentes de paralisação da atividade empresarial em razão de uma pandemia, com certeza, não estavam no espectro de riscos dos empresários no momento em que contrataram os seguros de danos materiais e de lucros cessantes deles decorrentes. Nesse sentido, a nova redação do artigo 113 do Código Civil dada pela Lei 13.874, de 2019, a chamada Lei de Liberdade Econômica, contribui para a reflexão. Determina o artigo 113 que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua contratação. O conceito de racionalidade econômica comporta inúmeras reflexões, mas, para interpretação do contrato de seguro com cobertura para lucros cessantes, é oportuna a lição do Prof. Dr. Oksandro Gonçalves publicada no Migalhas de 06 de maio de 2020, sob o título A Racionalidade Econômica dos Contratos em Épocas Pandêmicas, na qual ele afirma: (...) é preciso considerar em qualquer interferência sobre o contrato, a sua racionalidade econômica. Esta deve ser inferida a partir das informações disponíveis no momento da celebração em comparação com as novas informações. Natural, portanto, que exista entre os contratantes um nível de assimetria de informação típica da racionalidade limitada a que todos estão sujeitos. Todavia, a confiança depositada por elas no instrumento contratual será uma forte impulsionadora de ajustes privados eficientes. Para tanto, serão consideradas as particularidades do contrato, maximizando o nível de satisfação de cada uma das partes. Contratos de seguro multirrisco, de riscos nomeados ou de riscos operacionais com cobertura para lucros cessantes são contratos pactuados entre contratantes que até março de 2020, tinham em comum a impossibilidade de supor que uma pandemia de COVID-19 atingiria o Brasil com força suficiente para impactar as atividades econômicas a ponto de suspender parte significativa delas. Ninguém em sã consciência poderia imaginar até março de 2020 que fosse necessário utilizar em larga escala o isolamento social para conter a propagação do vírus. Os contratos de seguro são bastante peculiares: contratos individualizados que se sustentam na existência de uma mutualidade, que contribui para que todos os resultados dos riscos cobertos possam ser indenizados a cada um dos participantes do fundo. Seguradoras tem obrigação de garantir que o fundo seja corretamente organizado e administrado, ou seja, que tenha condições de suportar os pagamentos das indenizações durante todo o período de vigência dos diferentes contratos. A obrigação do segurador é garantir o interesse legítimo do segurado em relação a pessoas ou coisas, contra riscos predeterminados. A predeterminação do risco está longe de ser uma restrição aos interesses dos segurados. Bem ao contrário, a predeterminação é a única forma pela qual os seguradores conseguem realizar cálculos atuariais e estatísticos que viabilizam a organização e gestão do fundo mutual, formado com a contribuição dos segurados e cuja correta administração é que permite aos seguradores cumprirem sua obrigação legal e contratual: garantir o interesse legítimos dos segurados. Nenhum fundo mutual dos seguros de lucros cessantes possui, neste momento, recursos decorrentes de cálculos de estatísticas e probabilidades de danos decorrentes de pandemia. Nenhum cálculo poderia ter levado em conta a perspectiva de que uma empresa tivesse que ficar por três meses inativa, embora com todas as condições técnicas e operacionais em perfeitas condições de utilização. Essa hipótese não estava entre os riscos predeterminados para a cobertura de lucros cessantes, por isso não existem recursos para indenização. E o futuro? Poderemos ter cobertura de riscos para lucros cessantes em decorrência da interrupção da atividade por ordem do governo como prevenção de contaminação em pandemias? Provavelmente sim. Quase todos os grandes riscos da história da humanidade foram inseridos nos contratos de seguro. O problema não é o valor e nem o tipo de risco. O ponto chave é ter conhecimento técnico sobre o risco para poder formular estudos atuariais e estatísticos. Se os valores necessários para a formação do fundo não forem muito altos, será possível constituir reservas para os riscos decorrentes de pandemia. Também será possível que os futuros contratos de locação, de franquia, de atividades em centros comerciais, entre outros, levem em consideração o risco de pandemia para adequarem suas cláusulas e previsões. A história da humanidade é a história do progresso tecnológico e da superação das dificuldades da natureza. A atividade de seguros acompanha essa história e insere coberturas para riscos à medida em que eles se tornam mais recorrentes, conhecidos e tornam possível a avaliação da extensão dos danos que provocam. O elemento fundamental para que um risco possa ser incluído em contratos de seguro é o conhecimento de sua frequência e a extensão dos prejuízos que pode causar. Sendo assim, não é difícil que no futuro existam seguradores com apetite para oferecer no mercado a cobertura de lucros cessantes quando houver interrupção da atividade em decorrência de pandemia. Vamos aguardar e acompanhar o desenvolvimento das opções de seguro depois da pandemia. Neste momento, a melhor técnica e juridicamente mais adequada aponta para a inexistência de cobertura para riscos decorrentes de pandemia na cláusula contratual de lucros cessantes. *Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC do Rio Grande do Sul. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros - ENS. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT e Conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro - AIDA
1. INTRODUÇÃO Publicada em 1º de julho de 2020 e com entrada em vigor no dia seguinte, a nova Lei de Locações na Argentina (Ley nº 27.5511) assume um perfil mais intervencionista em busca de prestigiar a parte mais vulnerável dos contratos (o inquilino) e de promover políticas públicas que facilitem o acesso de classes sociais mais vulneráveis à moradia. A tentativa de maior intervencionismo nos contratos de locação merece ser acompanhada por todos os juristas brasileiros, especialmente para verificar se essa postura argentina gerará ou não um efeito reverso: o de aumento do preço dos aluguéis e o da diminuição de ofertas de imóveis para locação. Como se sabe, o excesso de intervencionismo pode inibir os proprietários a alugarem seus imóveis ou a aumentarem os preços a fim de absorver os novos riscos causados pelo dirigismo contratual. Achar um grau razoável de intervencionismo é sempre um desafio. Neste pequeno artigo, nosso objetivo é apenas relatar os artigos da Nova Lei de Locações Argentina. Essa nova lei modifica o Código Civil Argentino - CCArg ("Código Civil y Comercial de la Nación"), veicula regras autônomas e altera a Lei de Mediação Obrigatória Prévia a Processos Judiciais. Vamos ao relato de cada um dos artigos do novo diploma. 2. MODIFICAÇÕES FEITAS NO CÓDIGO CIVIL ARGENTINO Os arts. 1º ao 12 da nova Lei de Locações na Argentina modifica o CCArg. Vamos relatar o conteúdo dos dispositivos do CCArg que foram modificados. 2.1. Domicílio contratual eletrônico (art. 75, CCArg) O domicílio contratual não precisa ser apenas geográfico, mas também pode ser eletrônico (como um endereço de e-mail) para efeito de recebimento de notificações, comunicações e intimações. 2.2. Proibições em locações residenciais (art. 1.196, CCArg) Em locação residencial, ficam proibidos: (1) cobrar mais de um aluguel antecipado; (2) a cobrança de "luvas", ou seja, de um valor pela "localização" do imóvel; (3) a emissão de notas promissórias ou outros títulos de crédito, pois só o contrato de locação pode representar a dívida; (4) o depósito de "entrada" a ser pago pelo inquilino para começar a locação não pode ser superior a um mês. 2.3. Prazo mínimo dos contratos de locação residencial (arts. 1.198 ao 1.199, CCArg) O prazo mínimo de locações de imóveis deixa de ser de 2 anos para ser de 3 anos, salvo prazo maior expressamente maior. Não importa se a locação é residencial ou comercial. É irrelevante também se a locação tem uma finalidade que se cumpra em prazo menor. Há, porém, exceções de casos em que se admite pactuação de prazo menor a esse triênio legal, a saber: (1) renúncia do locatário ao prazo mínimo legal, desde que ele esteja na coisa; (2) locação para embaixada ou corpo diplomático; (3) locação de imóvel mobiliado para fins de turismo, de descanso ou similares, a qual não poderá ser superior a 3 meses, sob pena de se afastar a sua natureza de locação por temporada; (4) locação para guarda de coisas; (5) locação de espaço em prédios destinados a exposições de objetos ou serviços. 2.4. Denúncia vazia pelo inquilino e multas (arts. 1.221 e 1.221 bis, CCArg) O inquilino pode resilir imotivadamente (denúncia vazia) o contrato após 6 meses de locação mediante notificação com antecedência de 1 mês. Terá, porém, de pagar uma multa de 1,5 aluguel se exerceu esse direito antes de um ano de locação ou uma multa de 1 aluguel se exerceu esse direito após um ano de contrato. A multa poderá ser afastada se o inquilino tiver feito a notificação com três meses de antecedência e se já tiver transcorrido mais de 6 meses de contrato. Em locações residenciais, o inquilino pode, dentro dos últimos três meses do prazo do contratual, notificar o locador para, em 15 dias, negociar a renovação do contrato. Se este ficar em silêncio, o inquilino pode resolver o contrato sem pagamento de multa alguma. 2.5. Reparações por deteriorações não causadas pelo inquilino (art. 1.201, CCArg) O locador, ao ser notificado pelo inquilino, tem de fazer as reparações de deteriorações ocorridas no imóvel sem culpa do inquilino. Se não o fizer dentro do prazo de 24 horas ou, na hipótese de inexistir urgência, no prazo de 10 dias, o inquilino pode realizá-la às custas do locador. Há presunção de recebimento da notificação emitida ao domicílio indicado pelo locador no contrato, ainda que o locador não a tenha efetivamente recebido por motivos imputados a ele (como uma recusa ao recebimento ou uma mudança de endereço sem prévio aviso). 2.6. Inviabilidade superveniente de uso ou de fruição do imóvel (art. 1.203, CCArg) Se o uso ou a fruição do imóvel se torna inviável por motivo não imputado ao inquilino, este pode pedir a rescisão contratual ou a suspensão do pagamento do aluguel enquanto o imóvel não voltar a ser viável. A nova lei deixou mais claro esse direito do inquilino, deixando de falar em caso fortuito para, no seu lugar, valer-se da expressão "causas não imputáveis ao locatário". 2.7. Direito a dedução de valores no aluguel (art. 1.204 bis, CCArg) É assegurado o direito de o inquilino, após prévia notificação, deduzir do aluguel valores que eram devidos pelo locador, como os relativos a reparações do imóvel. 2.8. Dever de arcar com despesas alheias aos benefícios normais da locação (art. 1.209, CCArg) O locatário só é obrigado a arcar com despesas condominiais ou tributárias relativas aos benefícios normais e permanentes que lhe são propiciados pelo uso do imóvel. Portanto, não tem de arcar com nenhuma despesa extraordinária (como a famosa "taxa extra") nem com tributos extraordinários. Não tem de arcar também com despesas "carimbadas" formalmente como contribuição condominial ordinária quando, na verdade, não tem relação com os benefícios normais e permanentes propiciados ao inquilino com a locação. 2.9. Notificação prévia à ação de despejo (art. 1.222, CCArg) No caso de locação residencial, a ação de despejo por inadimplemento de aluguel só é cabível mediante prévia notificação do inquilino para, em 10 dias, pagar a dívida atrasada. á presunção de recebimento da notificação emitida ao domicílio indicado pelo inquilino no contrato, ainda que o inquilino não a tenha efetivamente recebido por motivos imputados a ele (como uma recusa ao recebimento ou uma mudança de endereço sem prévio aviso). Trata-se aí de um exemplo de aplicação do que chamamos de princípio do aviso prévio a uma sanção2, que é um princípio geral de direito e que, no Brasil, já foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ3. 2.10. Vedação de condicionar o recebimento das chaves ao pagamento prévio de dívidas (art. 1.222, CCArg) No caso de locação residencial, o locador não pode se recusar a receber as chaves de volta do imóvel. Não pode condicionar o recebimento das chaves ao prévio pagamento de qualquer dívida. Se o fizer, o inquilino fica liberado de pagar qualquer aluguel ou valor adicional, desde que, em até 10 dias, faça o depósito judicial das chaves. 2.11. Atribuições e remuneração dos corretores de imóveis (art. 1.351, CCArg) Somente corretores de imóveis devidamente inscritos na forma da lei podem exercer a atividade de intermediação de locações de imóveis. O dever de pagar a comissão ao corretor é de todas as partes, salvo se cada parte tiver contratado um corretor para si (hipótese em que cada um pagará a comissão do respectivo corretor). 3. ARTIGOS DA NOVA LEI QUE NÃO ALTERAM OUTROS DIPLOMAS Os arts. 13 a 21 da Nova Lei de Locações não alteram diploma algum. Vamos visitá-los. 3.1. Garantias em contrato de locação residencial (art. 13, Nova Lei de Locações na Argentina) Em locação residencial, se o locador exigir alguma garantia, o inquilino tem o direito de lhe oferecer duas opções entre as seguintes: (1) imóveis; (2) fiança bancária mediante requisitos indicados no contrato; (3) seguro de caução mediante requisitos indicados no contrato; (4) fiança mediante requisitos indicados no contrato; (5) garantia pessoal do próprio locatário que comprove renda. A garantia, no máximo, pode corresponder a 5 aluguéis, salvo para a última opção de garantia retrocitada (em que a garantia poderá ser de até 10 aluguéis). O locador é obrigado uma das garantias oferecidas pelo inquilino. 3.2. Reajuste do aluguel anualmente e por um índice misto (art. 14, Nova Lei de Locações na Argentina) O reajuste do aluguel só poderá ocorrer anualmente (antes da nova Lei, era semestral) e deverá seguir um índice fruto da mistura do índice geral de correção monetária e do índice específico de variação do salário dos trabalhadores. 3.3. Consignação judicial do valor do aluguel (art. 15, Nova Lei de Locações na Argentina) Se o locador se recusar a receber o aluguel, o inquilino tem de notificá-lo para receber o valor em até 48 horas. Passado esse prazo, o inquilino tem de promover a consignação judicial em até 3 dias úteis após o vencimento do prazo fixado na notificação extrajudicial, tudo sob as custas do locador. 3.4. Comunicação obrigatória ao Governo (art. 16, Nova Lei de Locações na Argentina) Os contratos de locação têm de ser comunicados ao Governo, que mantém controle desses dados. Se o locador não fizer essa comunicação, ele está sujeito a sanções. 3.5. Programa Governamental de Aluguel Social (arts. 17 ao 20, Nova Lei de Locações na Argentina) O novo diploma argentino cria um programa governamental de aluguel social com o objetivo de facilitar o acesso a uma moradia digna mediante contratos formais de locação. Entre as várias diretivas desse programa, estão estas: (1) evitar discriminações contra as pessoas em situação de violência de gênero à luz da "Ley de Protección Integral a las Mujeres"; (2) regular entidades que oferecem fianças e seguros de caução; (3) disponibilizar subsídios e linhas de crédito; (4) estimular o aumento de ofertas de imóveis para locação; (5) facilitar locação a aposentados e desempregados que recebam auxílio desemprego; e (6) auxiliar quem tenha dificuldade de oferecer alguma das garantias locatícias. 3.6. Estímulo a meios extrajudiciais de resolução de conflitos (art. 21, Nova Lei de Locações na Argentina) O Poder Executivo deve estimular o uso de meios extrajudiciais de resolução de conflitos, como a mediação e arbitragem gratuita ou a baixo custo. 4. MODIFICAÇÃO DO ART. 6º DA LEI DE MEDIAÇÃO PRÉVIA OBRIGATÓRIA O art. 22 da nova Lei de Locações altera o art. 6º da Lei de Mediação Prévia Obrigatória (Ley nº 26.589, may 3 de 20104) de modo a estabelecer que, mesmo para a propositura de ação de despejo, é obrigatória a prévia tentativa de uma mediação. Antes da mudança legislativa, o locador poderia dispensar a mediação prévia obrigatória e, desde logo, propor a ação judicial de despejo. 5. CONCLUSÃO Manter-se atento ao regime locatício de outros países é saudável para nós, brasileiros, que também precisamos velar por uma legislação que trate das locações de imóveis conciliando, de um lado, os preceitos do livre mercado com, de outro lado, a necessidade de agir com justiça em favor da parte mais vulnerável. O modelo jurídico argentino de locações guarda muitas semelhanças com o brasileiro. Não foi nosso objetivo apontar todas essas semelhanças, mas apenas o de trazer a lume as modificações ocorridas neste ano no nosso vizinho latino-americano. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília - UnB -, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado/Parecerista, ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. ___________ 1 Disponível aqui. Acesso em 1º de julho de 2020. 2 Disponível aqui. 3 A propósito, extrai-se o seguinte excerto do voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1.812.465/MG, de sua relatoria (3ª Turma, DJe 18/05/2020): "É interessante notar, ainda, que a moderna doutrina do Direito Civil tem apontado para a existência de um princípio - ou mesmo um subprincípio - do aviso prévio a uma sanção, fundamentado na boa-fé objetiva, ao contraditório e à vedação da surpresa. Nesse sentido, a doutrina afirma que: Pelo princípio do aviso prévio a uma sanção, todas as pessoas têm direito a serem lembradas previamente à imposição de uma sanção. Toma-se o verbete "sanção" no sentido mais amplo possível a fim de abranger qualquer restrição de direitos. Sabemos que a palavra "sancão" diz respeito a uma punicão, mas aqui estamos, por escolha metodológica nossa, a utilizá-la de um modo amplo para abranger qualquer situação jurídica em que uma pessoa haverá de sofrer alguma restrição de direito (punição ou não) por conduta de outrem. Assim, o corte da luz do devedor, a prisão civil do alimentado inadimplente, a constituição do devedor em mora são exemplos do que aqui chamamos de "sanção". O fundamento do princípio ora enfocado é a boa-fé objetiva, do qual decorre a vedação à surpresa, e o princípio do contraditório, de que deflui o direito do interessado em contrapor-se a uma ameaça de restrição de direito. Embora estejamos a focar o Direito Civil e o Processo Civil, o princípio do aviso prévio a uma sanção ultrapassa essas fronteiras para iluminar todos os demais ramos do Direito, com as adaptações necessárias. É um princípio geral do direito brasileiro. Fazemos uma advertência. O princípio do aviso prévio a uma sanção é fruto de outros princípios, conforme já mencionamos. É, na verdade, um sub-princípio. Muitos casos concretos que iremos apontar aqui como exemplo de aplicação desse princípio, mas obviamente também poderiam ser resolvidos pela aplicação dos princípios matrizes, mas isso importaria um esforço argumentativo maior. O princípio do aviso prévio a uma sanção é uma cristalização didática de vários princípios com objetivo de facilitar a linguagem jurídica na resolução de casos concretos, na criação de regras (como na atividade legislativa) e na manutenção de uma coerência sistêmica do direito."(Oliveira, C.E.E. de. O princípio do Aviso Prévio a uma sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado Federal, Maio/2019 (texto para discussão nº 259) 4 Disponível aqui (com texto anterior à mudança feita pela Nova Lei de Locações na Argentina).
Texto de autoria de João Pedro Leite Barros e Marcelo Matos Amaro da Silveira Introdução Após um "longo e tenebroso inverno" finalmente temos no Brasil uma lei que cuida dos impactos da pandemia de Covid-19 nas relações privadas, o que já era esperado há algum tempo por todos os operadores do direito. A lei 14.010/2020, sancionada na sexta-feira, dia 12 de junho de 2020, finalmente corporiza e positiva as normas trazidas pelo PL 1179/2020, estabelecendo o denominado Regime Jurídico Emergencial e Transitório em matéria de direito privado. O mencionado projeto, de autoria do senador Antônio Anastasia e relatoria da Senadora Simone Tebet, como se sabe, foi elaborado pela pena de grandes civilistas em conjunto com o presidente do STF e ministros do STJ. Sua tramitação se deu "a jato" no Senado Federal, mas acabou andando a passo mais lento na Câmara dos Deputados e praticamente "encalhando" na mesa da Presidência da República, somente sendo sancionada no último dia do prazo e com 8 dos seus 21 artigos vetados. A lei, grosso modo, determina a suspensão ou impedimento de contagem dos prazos de prescrição, decadência e usucapião, traz a permissão da "virtualização" das reuniões e assembleias das pessoas jurídicas, altera o regime da prisão do devedor de alimentos, e também suspende o prazo de abertura do inventário e finalização da partilha no direito sucessório. Ela também regulou algumas questões de direito concorrencial e de certo modo modulou o início de vigência da LGPD, que entrará em vigor no dia 1º de agosto de 2020, mas somente terá suas sanções e penalidades produzindo efeitos a partir de agosto de 2021. Além disso é preciso destacar que os vetos acima mencionados atingiram artigos que tratavam de proibição de reuniões e assembleias presenciais, regras de interpretação da revisão dos contratos, suspensão de despejos liminares, restrições relacionadas com o direito condominial, transporte em rodovias e remuneração de aplicativos de transporte. Esses vetos ainda serão apreciados pelo Congresso Nacional, sendo possível que alguns artigos surjam novamente. Já quanto ao nosso objeto de estudo, o Direito do Consumidor, a lei trouxe impactos diretos e indiretos ao art. 49 do Código de Defesa do Consumidor. Isto porque, além do seu art. 8º trazer ressalvas expressas ao artigo, o seu artigo 3º, mais especificamente no §2º, contém norma que tangencia o direito de arrependimento do consumidor. O objetivo do presente texto é, portanto, evidenciar e analisar quais são os impactos e suas consequências. O direito de arrependimento do consumidor Como bem se sabe as relações contratuais são formadas pelo princípio do pacta sunt servanda, que pode se verificar com maior ou menor força dependendo do tipo de relação verificado. Inegável dizer que quando as partes estabelecem entre si uma relação obrigacional elas se vinculam, sendo fundamental destacar esse aspecto mesmo no contexto atual da pandemia1. Nesse viés, assevera CLOVIS DO COUTO E SILVA que a obrigação é um processo cujo fim é o cumprimento2, sendo que o programa obrigacional decorrente polariza para o adimplemento, o que evidencia a força obrigatória dos contratos. A vinculação, aliás, é um dos principais elemento que dá força às relações obrigacionais, já que é ela que garante que o objetivo buscado pelos contratantes seja alcançado, através do cumprimento das obrigações. Mesmo que se argumente, de forma absolutamente correta, que esse princípio deva ser lido em conjunto com outros (como o da boa-fé objetiva e da função social) e que sua incidência seja mais ou mesmo robusto dependendo do tipo de contrato ou da sua natureza, não se pode ignorar sua importância. Essa máxima também afeta o direito do consumidor, sendo certo que há nesse campo que ora analisamos a existência de vínculo entre o consumidor e o fornecedor3, que mesmo relativizada e de certa forma enfraquecida, ainda assim garante a obrigatoriedade dos pactos. Neste sentido, considerando que não se verifique a incidência de outros princípios ou eventuais abusividades, o contrato celebrado entre o consumidor e o fornecedor deve ser cumprido pontualmente e em sua totalidade. Portanto, se a vinculação entre as partes e o cumprimento da obrigação constituem a regra desse tipo de relação, a livre desvinculação somente pode ser encarada como algo extraordinário. O direito de arrependimento representa uma ruptura na realidade normal do direito das obrigações, já que rompe com a vinculação das partes, e consequentemente significa uma quebra do pacta sunt servanda4. O direito de arrependimento, ou retratação, portanto, não é a regra geral do direito obrigacional, somente podendo ser verificado quando haja autorização legal expressa ou quando seja pactuado pelas partes5. Dentro dessa noção fundamental, é válido destacar o disposto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor, que garante a possibilidade de arrependimento, pelo consumidor, do contrato celebrado fora do estabelecimento comercial6. A norma, portanto, suaviza a força obrigatória nas relações contratuais de consumo quando a compra do produto ou contratação do serviço se der "fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio". Importante que se diga que o conceito da expressão "fora do estabelecimento comercial" também se aplica às contratações eletrônicas, sendo a norma consumerista complementada pelo decreto 7.962/20137. O direito de arrependimento, também conhecido como prazo de reflexão, é um direito legítimo, potestativo8, irrenunciável9 e indisponível que surgiu para responder essencialmente aos problemas colocados pelo descompasso do regime geral da invalidade dos vícios da vontade, especialmente da coação e erro. Visa, por essência, a proteger a declaração de vontade do consumidor10. Com isso o CDC garante um tempo 7 dias para que a pessoa que comprou um bem por meio remoto possa refletir melhor sobre sua compra, e eventualmente exercer seu direito de retratação, desistindo da compra muitas vezes adquirido por impulso. Além disso, no âmbito dos contratos eletrônicos, e das já tradicionais compras pela internet, emerge, efetivamente, a necessidade de proteção do consumidor, a fim de evitar as compras por impulso ou realizadas sob forte influência da publicidade sem que o produto esteja sob contato do consumidor ou sem que o serviço possa ser melhor examinado11. Com efeito, a desconfiança na contratação eletrônica tem origem em sua natureza jurídica sui generis: ausência de contato físico com o vendedor, a fluidez ou desmaterialização da contratação, o caráter atemporal da oferta, a complexidade técnica jurídica e a própria execução do contrato, sem contar a busca desenfreada por parte de fornecedores de esconder as frequentes políticas comerciais ávidas pelo lucro. Em conclusão: apesar de abrandar a força obrigatória dos contratos, o que não deixa de ser uma ingerência na autonomia privada12, se analisado formalmente, o direito de arrependimento serve para contrapor a força econômica dominante do fornecedor em detrimento da vulnerabilidade absoluta do consumidor. O impacto direto: Art. 8º da lei 14.010/20 Com o irrompimento da pandemia causada pela Covid-19 grande parte da população mundial se viu subitamente obrigada a iniciar processos de isolamento social, o que o que não foi diferemente da situação verificada no Brasil. A partir do final do mês de março de 2020 as principais cidades e estados do país, em maior ou menor medida, estabeleceram normas que determinaram o fechamento do comércio e encerramento de atividades econômicas que não eram essenciais, e tal movimento acabou sendo complementado pela adoção do regime de trabalho remoto por diversas empresas, e a adesão maciça das pessoas à "quarentena" ou isolamento voluntário. Essa situação fez com que uma realidade que já estava em franca expansão virasse praticamente a regra, e com isso o comércio eletrônico passou a ter um protagonismo considerável no mercado de consumo. Diante do fechamento dos shoppings centers e das "lojas de rua" das principais cidades, os consumidores passaram a ser obrigados a fazer suas compras online. Da mesma forma, com as restrições de funcionamento dos restaurantes o pedido delivery, através dos aplicativos ou do contato direto com o estabelecimento, se tornou a única opção para consumir "comida de fora". Parece inegável dizer que, passado mais de 90 dias do início da "quarentena", certos hábitos já sofreram alterações permanentes, sendo inegável que a pandemia irá contribuir para a consolidação definitiva do comércio eletrônico e dos pedidos delivery. Como bem aponta MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO13 durante a pandemia houve um aumento expressivo do consumo pela internet, tanto de produtos essenciais quanto de produtos supérfluos. E essa situação não é só verificada no Brasil, sendo certo que o dono da gigante do comércio eletrônico da Amazon caminha a passos largos para se tornar a primeiro trilionária do mundo14, o que será potencializado pela pandemia. Considerando essas premissas parece ser totalmente prudente que uma lei que regulasse aspectos de direito privado em razão da pandemia trouxesse uma norma sobre as compras fora do estabelecimento, e mais especificamente aquelas relacionadas com o sistema de delivery. E foi nesse contexto que o RJET trouxe o art. 8º, estabelecendo que: Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Trata-se de norma que busca dar certa segurança jurídica nos tempos de pandemia, estabelecendo hipóteses de ressalva ao direito de arrependimento do consumidor, aplicando uma interpretação extensiva do artigo 49 em favor dos fornecedores15. É um dispositivo, desta forma, que não é imune a críticas, pois de certa forma limita o direito do consumidor. Contudo, na nossa opinião ele traz uma orientação correta e e com importante cariz pedagógico. A suspensão da aplicação do direito de arrependimento nas hipóteses de pedidos delivery e de medicamentos parece ser equilibrada e necessária para os tempos pandêmicos16. Em uma primeira análise, percebe-se que é uma norma certeira e pontual, porque acaba evitando que os consumidores comprem produtos de consumo imediato e medicamentos e tenham que posteriormente "quebrar" o isolamento para devolver o produto. Detidamente, a norma parece apenas consolidar uma "suspensão de direito" que efetivamente nunca existiu. A verdade é que não faz muito sentido permitir, por exemplo, que um consumidor peça uma pizza por meio de um aplicativo e 7 dias depois se arrependa do pedido. No mesmo sentido, não é prudente autorizar que haja desistência após a compra por telefone de um medicamento. Em ambas as situações é possível afirmar, de certa forma, que o direito de arrependimento nunca foi um verdadeiro direito. Sobre o tema, há muito já defendíamos17 que as restrições ao direito de arrependimento são válidas, desde que os produtos ou serviços em voga possuam natureza especial, como aqueles citados na RJET, assim como outros, como o caso de bens personalizados, ebooks, etc. Destarte, verifica-se no art. 8º um caráter pedagógico, confirmando uma noção que é absolutamente consentânea com o objetivo do art. 49 do CDC. Assim, correta a orientação do legislador ao restringir de forma expressa a possibilidade de retratação dos consumidores que fizerem pedidos delivery ou comprarem medicamentos fora do estabelecimento comercial. Por fim, ressalta-se que essa norma não se aplica para as hipóteses de produtos que sejam entregues com vícios, como a pizza sem o recheio desejado, ou o medicamento com o lacre violado, pois aí estaríamos diante de vício ou defeito do produto18. Sempre importante sublinhar que o arrependimento é um direito potestativo do consumidor, a ser praticado sem qualquer justificativa. Por outro lado, sempre há também a possibilidade de devolução de produtos ou serviços que possuam vícios, pois nesse caso estamos diante de inadimplemento do fornecedor. Existe nesse caso a quebra na confiança da relação consumerista, que justifica a incidência das normas de responsabilidade previstas nos artigos 18 a 25 do CDC19. Esse regime permanece intacto pelo RJET, que somente estabeleceu a suspensão do direito de arrependimento até o dia 30 de outubro de 2020 para as hipóteses acima examinadas, e somente nessas situações. O impacto indireto: Art. 3º da lei 14.010/20 Já evidenciamos o impacto direto do RJET sobre o direito de arrependimento do consumidor, que fica suspenso em alguns poucos casos nos termos do art. 8º da lei ora em análise. Mas como já deu para perceber, esse não é o único impacto no art. 49 do CDC que vislumbramos. É possível apontar um impacto indireto que decorre do art. 3º da lei da pandemia, cujo conteúdo é, in verbis: Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (grifo nosso) A mencionada norma determina a suspensão ou impedimento dos prazos prescricionais desde o início da vigência do RJET até o dia 30 de outubro de 2020, sendo inegavelmente uma disposição feliz e que traz necessária segurança jurídica em tempos pandêmicos. Além disso, o artigo 3º, em razão do seu parágrafo 2º, estende essa suspensão ou impedimento aos prazos decadenciais, que como se sabe em regra não sofrem incidências suspensivas e/ou impeditivas20. Importante sublinhar que a decadência é, na lição de JOSÉ FERNANDO SIMÃO, "fenômeno extintivo de direitos potestativos aos quais se fixou um prazo para seu exercício"21. Considerando essa importante lição, é possível facilmente verificar o prazo de 7 dias para exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC é um prazo decadencial. Sendo o arrependimento um direito potestativo o prazo para exercê-lo será, sem sombras de dúvidas, decadencial. Desta forma, levando-se em conta a natureza do prazo arrependimento e determinação de suspensão dos prazos decadenciais contida na lei 14.010/2020 perguntamos: o prazo do direito de arrependimento, a partir da entrada em vigor do RJET, está suspenso ou impedido dependendo? A resposta é positiva! Inegável afirmar que os prazos do art. 49 do CDC restaram impedidos ou suspensos durante o prazo previsto no RJET, sendo certo que os ditames do seu art. 3º aplicam-se aos prazos decadenciais previstos no diploma consumerista22. Assim, excetuando-se as hipóteses em que o direito de arrependimento estiver suspenso pelo art. 8º do RJET, o prazo do direito de arrependimento não corre. Se o prazo já tiver iniciado ele será suspenso até a data limite. Se ele não tiver iniciado ainda, especialmente porque a compra fora do estabelecimento foi realizada após o início da vigência do RJET, ele estará impedido até a data limite. Ultrapassado esse ponto, contudo, uma outra pergunta deve ser feita: o que significa dizer que o prazo de 7 dias para exercício do direito de arrependimento pelo consumidor está suspenso ou impedido? Aqui a resposta da pergunta não é tão simples, e merece uma maior reflexão. A princípio, dizer que o prazo está suspenso ou impedido significaria dizer que o consumidor teria até o dia 30 de outubro de 2020 para se retratar da compra feita. Ou seja, imaginemos que uma pessoa compre uma calça e uma blusa em um site de compras online no dia 1º de julho de 2020. Se os prazos decadenciais estão suspensos, a tendência seria dizer que essa pessoa poderia desistir da compra até 7 dias depois do dia 30 de outubro de 2020. Porém, essa não é a interpretação mais correta. Isto porque o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor é um ato complexo que demanda, além da declaração de vontade de desistir da compra, um ato material, qual seja, a devolução do produto comprado. O consumidor não pode apenas informar ao fornecedor sobre o arrependimento, ele deve necessariamente devolver o bem adquirido. Se tal ato material não se efetivar o direito de arrependimento nunca produzirá efeitos, se tornando inválido. O ato de arrependimento pode ser identificado como bifásico, dependendo de uma ação declaratória (a retratação) e uma ação material (a entrega). Nesses termos, devemos levar em conta essa premissa, bem como a intenção da norma, para interpretar da melhor forma como se procede a suspensão ou o impedimento do prazo de exercício do direito de arrependimento. Entendemos, portanto, que a suspensão ou impedimento do prazo somente interfere no ato material de devolução do produto, e não à declaração de vontade. Isto significa dizer que o consumidor, para se arrepender do contrato celebrado fora do estabelecimento, deve informar a sua intenção ao fornecedor dentro do prazo do art. 49 do CDC. Porém, o ato material de devolução do produto, fica suspenso, podendo ser exercido a partir do dia 30 de outubro de 2020. Não custa lembrar que o consumidor deve cientificar o fornecedor o seu exercício do direito de arrependimento por qualquer meio disponível, seja por telefone, e-mail, aplicativo, site ou qualquer outra forma, bastando uma declaração inequívoca do ato. Para tanto, é possível adotar de forma análoga a orientação do enunciado 619 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF, que diz: "a interpelação extrajudicial de que trata o parágrafo único do art. 397 do Código Civil admite meios eletrônicos como e-mail ou aplicativos de conversa on-line, desde que demonstrada a ciência inequívoca do interpelado, salvo disposição em contrário no contrato". Por outro lado, é oportuno dizer que, ao lado do fornecedor, encontra-se o instituto do abuso do direito, disposto no artigo 187 do CC23. Referido instituto impõe limites da autonomia privada no exercício do direito subjetivo e funciona como dispositivo de segurança para as normas jurídicas formalmente aplicadas, atuando sobre o exercício do direito subjetivo, no caso destaque, o direito de arrependimento do consumidor24. Exemplificando: não pode o consumidor dar uso ao produto25 e, ainda que esteja no prazo para o exercício do direito de arrependimento, exercê-lo, em total afronte à boa-fé nas relações de consumo, ou seja, se a pessoa comprar um tenis pela internet e tão logo receba o produto corra uma maratona, não pode exercer o direito de arrependimento, mesmo que esteja dentro do prazo de 7 dias. Trata-se de atuação em abuso de direito, que é vedada no ordenamento brasileiro. Conclusão Retomando o raciocínio, a sugestão ora exposta parece ser a interpretação mais harmoniosa com as normas de proteção do consumidor e também com a sua segurança e integridade, já que a necessidade de isolamento se mantém, mesmo que os movimentos de reabertura das cidades se verifiquem no presente momento. Várias cidades que iniciaram processos de reabertura começar a ver os índices de contágio e internações pela covid-19 aumentar, ficando claro que as pessoas devem tentar permanecer em isolamento o máximo que puderem, somente saindo de casa quando for imprecindível, o que certamente não é o caso de uma devolução de produto comprado de forma remota. Assim, voltando ao caso da pessoa que compra a calça e a blusa no site de compras online, portanto, defendemos que ela tenha que informar à loja de sua desistência no prazo de 7 dias da compra. Por outro lado, a "obrigação" de devolver o produto fica suspensa até a data limite definida no RJET, devendo o ato material ser particado após 30 de outubro de 2020, ressalvada a possibilidade do fornecedor, por conta própria e com totalmente segurança, recolher o produto junto ao consumidor se assim desejar. Por fim, sempre bom destacar que caso o consumidor tenha problemas com o fornecedor, o caminho primevo é a tentativa de resolução administrativa da questão26. A negociação e o diálogo são fundamentais nesse momento, sendo fundamental que as partes se comuniquem e ajam da forma mais aberta e transparente possível. Cabe ao consumidor, portanto, informar dentro do prazo a sua desitência da compra, e ao fornecedor ou aguardar o fim do prazo, ou se movimentar para recolher o produto, sendo certo que se alguma divergência se verificar eles devem dialogar e negociar. *João Pedro Leite Barros é professor em Direito do Consumidor na Universidade de Brasília. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Brasília/ Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito do Consumidor e Direito da Arbitragem pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Processual Civil pelo IDP. Associado Titular do IBERC. Advogado. **Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Associado Titular do IBERC. Advogado em BH. __________ 1 Como bem aponta PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Disponível aqui. 2 SILVA, Clovis do Couto e. A obrigação como Processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 23. 3 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 275-276 4 GOMIDE, Alexandre. Direito de Arrependimento nos Contratos. 217 f. Tese (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), Lisboa, 2009, p. 116-119. 5 Como no caso das arras penitenciais: SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. As Arras Penitenciais e o Exercício do Direito de Arrependimento. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, vol. 2, p. 50 e ss. Porto Alegre: Lex Magister, 2020. 6 GOMIDE, Alexandre. Direito de Arrependimento nos Contratos, cit., p. 161-162. 7 SCHREIBER, Anderson. Contratos Eletrônicos e Consumo. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, p. 88-110, Rio de Janeiro, 2014, p. 104-105. 8 TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpcão, Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Método, 2018, p. 380. 9 Como defende GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 10 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 866. 11 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2010, p. 911 e ss. 12 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do consumo. Coimbra: Almedina, 2005, p. 114. 13 SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. A suspensão do direito de arrependimento do artigo 49 do CDC. Disponível aqui. 14 Disponível aqui. 15 GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à "Lei da Pandemia" (14.010/20 - RJET): Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Disponível aqui. 16 SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. A suspensão do direito de arrependimento do artigo 49 do CDC. Disponível aqui. 17 BARROS, João Pedro Leite. O direito de arrependimento nos contratos eletrônicos como forma de extinção das obrigações. Um Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. In: Estudos de Direito do Consumidor. Centro de Direito do Consumidor da Universidade de Coimbra. n.14. 2018, p.149 e ss. 18 Como bem apontam CATALAN, Marcos; GERCHMANN, Suzana Rahde. Se eu estiver a ser sincero hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã? Disponível aqui. 19 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 1204-1207. 20 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral, v. 1, 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 583. 21 SIMÃO, José Fernando. Prescrição e Decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 193. 22 GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Comentários à "Lei da Pandemia" (14.010/20 - RJET): Análise Detalhada das Questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Disponível aqui. 23 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 24 Sobre o tema, já tivemos oportunidade de nos manifestar. Confira: BARROS, João Pedro Leite. O excesso de informação como abuso do direito (dever). Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Curitiba, v. 7 n. 25, p. 11-60, mar. 2017. 25 Aqui não se confunde com a possibilidade de o consumidor de testar/provar o produto, aferindo sua qualidade. 26 Como já defendemos em BARROS, João Pedro Leite. Diálogo como fiel da balança - mudança de paradigma em face do covid-19, disponível aqui.
Texto de autoria de Angélica L. Carlini Planos de saúde são contratos que se sustentam na existência de uma mutualidade para a qual contribuem todos os usuários. O pagamento mensal realizado pelo usuário tem duas destinações fundamentais, conforme se pode constatar na Sala de Situação da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS1: o pagamento de despesas assistenciais e o pagamento de despesas administrativas, de distribuição e outras de caráter operacional. Portanto, o valor pago mensalmente pelos usuários individuais ou coletivos constituem os recursos necessários para sustentar a assistência aos próprios usuários no pagamento de consultas, exames, internações, tratamentos ambulatoriais e medicamentos; e, para sustentar a operação administrativa das operadoras de saúde. No Brasil segundo informa a ANS existem hoje 714 operadoras ativas com beneficiários, ou seja, operando normalmente em todo o território nacional em uma das modalidades previstas em lei: cooperativas, autogestão, medicina de grupo, seguradoras, filantropia ou administradora de benefícios. As operadoras de saúde podem atuar com planos individuais ou familiares; planos coletivos por adesão ou empresariais; ou, com planos coletivos empresariais de até 30 vidas. Os planos individuais ou familiares têm reajustes anuais em percentual fixado pela ANS; e, os planos coletivos por adesão ou empresariais, tem reajustes fixados em contrato e que levam em conta dois fatores: a sinistralidade do grupo (quantidade e tipo de utilização feita ao longo do ano) e, variação da inflação de produtos médico-hospitalares e medicamentos, que é usualmente denominada de Índice de Variação Médico-Hospitalar ou, simplesmente, inflação médica. A ANS informa também em sua Sala de Situação que a distribuição dos usuários dos planos de saúde está assim formalizada A maior quantidade de usuários está alocada nos planos coletivos empresariais que, certamente sofrerão grande impacto em decorrência da pandemia e das consequências negativas na atividade econômica, tanto no período do isolamento social como no retorno que ainda não tem exata previsão no Brasil. Muitas empresas foram obrigadas a demitir empregados, a encerrar atividades e outras não voltarão a operar normalmente em um curto período de tempo, como é o caso do setor de turismo, de eventos e de entretenimento. Com menor atividade econômica ou tendo que repensar seus modelos de negócios, muitas empresas vão cortar o pagamento de benefícios como seguros de vida, planos de saúde, vale refeição, bolsas de estudo entre outros. Até que a atividade econômica se recupere os cortes de despesas serão compreensíveis e esperados, quando não apoiados pelos próprios trabalhadores para que seja possível manter os empregos. Com essa realidade colocada para análise e sugestão de todos, o Poder Legislativo está discutindo projetos de lei que têm por objetivo: (i) estabelecer em caráter excepcional que até 2021 os índices máximos de reajuste dos planos de saúde coletivos sejam limitados aos que forem definidos pela ANS e em 2022 os reajustes obedecerão regras de transição a serem estabelecidas; (ii) reduzir pela metade o valor das mensalidades dos planos de saúde de qualquer natureza enquanto durar a pandemia; (iii) proibir o reajuste de qualquer plano de saúde durante o período de emergência decorrente da pandemia; (iv) alocar o atendimento médico à distância como cobertura obrigatória dos planos de saúde, inclusive para emissão de atestados e receitas. As propostas do Poder Legislativo se referem ao fato de que foram colocados à disposição das operadoras de saúde os valores do fundo garantidor, estimados em 15 bilhões de reais. De fato, a ANS ofereceu às operadoras de saúde a possibilidade de utilizarem recursos do fundo garantidor com a contrapartida da obrigação de atender inadimplentes e, continuar pagando regularmente os prestadores de serviços médicos, hospitalares, laboratoriais, entre outros. A maior parte das operadoras de saúde não aceitou a proposta da ANS e, portanto, não utilizará os recursos do fundo garantidor. Em uma análise rápida parece que o setor de saúde suplementar teria à sua disposição 15 bilhões para gastar e não quis. Por que não quis? Porque a proposta da ANS foi para que as operadoras utilizassem os recursos dos ativos garantidores mas devolvessem os valores a cada mês, ou seja, constituíssem novas garantias todos os meses em valores compatíveis com suas provisões técnicas. Em outras palavras, poderiam gerir os valores depositados porém, com a obrigação de devolver todos os meses para que haja garantia de que as operadoras de saúde suplementar não se tornarão insolventes. Os recursos disponibilizados para utilização das operadoras de saúde são recursos da Provisão de Eventos Ocorridos e não Avisados, conhecido como PEONA. É o valor que a operadora de planos de saúde tem que provisionar para conseguir pagar os procedimentos e eventos em saúde que já tenham ocorrido e, que ainda não tenham sido lançados contabilmente. A provisão da PEONA é obrigatória e seu cálculo depende de um atuário que prepara a Nota Técnica Atuarial da PEONA, que é apresentada ao órgão regulador. A PEONA tem por principal objetivo impedir a insolvência porque se constitui em reserva para procedimentos e eventos em saúde que já foram realizados pelo usuário e seus beneficiários, junto à rede credenciada ou, por escolha própria com reembolso no caso dos seguros saúde, mas sem que esses valores decorrentes da utilização tenham chegado ao conhecimento da operadora e, em consequência, tenham sido contabilizados para serem pagos. Se os valores da PEONA garantem a solvência das operadoras e que os prestadores de serviços serão pagos, é fundamental que esse ativo garantidor esteja sempre atualizado e correto. A utilização desses recursos seria, então, provisória porque se impõe a devolução. A ANS deliberou que as operadoras que utilizassem os recursos da PEONA deveriam devolver todos os meses. A grande maioria das operadoras de saúde entendeu que seria melhor não assinar o acordo proposto pela ANS, continuar recebendo as mensalidades e atendendo os usuários e, negociar com os inadimplentes caso a caso. Os projetos de lei parecem estar alicerçados em uma premissa equivocada. Os recursos existentes nos fundos garantidores não estão liberados para utilização pelas operadoras de saúde. Se utilizados deverão ser devolvidos no mês o que é bastante difícil se as operadoras não estiverem recebendo o valor das mensalidades ou, se esse valor estiver defasado em relação a realidade da inflação dos preços médico-hospitalares. Também parece equivocado que os projetos de lei defendam a moratória para todos, mesmo para aqueles que podem pagar por não terem sido atingidos pelos efeitos perversos da pandemia no setor econômico; ou, para aqueles que poderiam negociar valores compatíveis com suas possibilidades, diretamente com a operadoras, em especial as empresas que são o maior volume de contratantes como comprovam os dados da ANS. Aprovados os projetos terão o condão de descaracterizar a essência da atividade das operadoras de saúde porque não haverá arrecadação suficiente para a correta composição do fundo mutual e, em consequência, o custeio dos procedimentos e eventos de saúde poderão ficar seriamente comprometidos. Sem arrecadação de mensalidades não há fundo mutual e sem ele, não são contratos de operadoras de saúde. Mesmo as operadoras que atuam com rede própria precisam custear seus médicos, hospitais, equipes de saúde, exames, medicamentos, manutenção de equipamentos de alto custo, entre tantas outras responsabilidades próprias da atividade econômica de saúde suplementar. Acreditar que seja possível responder por todas as responsabilidades de um setor complexo que atua em redes contratuais, sem recursos provenientes das mensalidades é, minimamente, intervenção inadequada e que poderá gerar resultados bastante desastrosos para as mais de 700 operadoras do setor e, igualmente para seus usuários. Rodolpho Barreto Sampaio Júnior2 Mais do que uma discussão filosófica sobre a liberdade, a intenção é ressaltar que o empreendedor tem a liberdade de dedicar-se a uma atividade econômica sem deparar-se com percalços desarrazoados estabelecidos pelo estado. É certo que existem limites à atividade econômica, limites esses estabelecidos em prol da sociedade. Todavia, tais limites não podem se tornar mais relevantes que a atividade econômica em si. Os projetos de lei supra mencionados modificam a estrutura do contrato de saúde suplementar, sua essência e formação. Se proibida a cobrança de mensalidades, ou, permitida apenas cobrança de metade dos valores previstos nos cálculos atuariais ou, ainda, se negada a possibilidade de aumento das mensalidades em valores compatíveis com os custos de procedimentos e eventos de saúde, o contrato perderá sua estrutura jurídica e atuarial. Será qualquer outra figura jurídica ou não jurídica, mas não será contrato de saúde suplementar. Impressiona que se ignore que a estrutura da atividade de saúde suplementar se materializa em rede, com inúmeros contratos interligados e interdependentes, para que seja possível organizar os atendimentos aos usuários, desde os mais simples até os mais complexos que envolvem vários profissionais, equipamentos e instalações apropriadas. Irrigar essa rede com o pagamento dos serviços prestados é tarefa essencial da garantia que os planos de saúde são legalmente obrigados a cumprir, em consonância com o disposto no Código Civil. Garantir mediante pagamento do prêmio determina o artigo 757 da lei civil, riscos predeterminados que afetem o interesse segurável. Garantir o interesse segurável contra riscos predeterminados é atividade que na sociedade contemporânea, complexa e de risco, só pode ser desenvolvido e concretizado por empresas que se organizam adequadamente para isso. Subtrair do planejamento empresarial os valores necessários para custeio de serviços e remuneração de investimentos é demolir as estruturas contratuais, ou, simplesmente, enfraquece-las a ponto de se tornarem não confiáveis. No plano jurídico, os projetos de lei agridem a Constituição Federal, a Lei de Planos de Saúde e a própria legislação que regula as atividades da ANS. No plano econômico serão responsáveis por graves problemas de solvência e custeio que para algumas operadoras de menor porte serão insuperáveis. Já vivemos uma pandemia, não precisamos de mais caos. O Estado brasileiro criou mecanismos jurídicos para a defesa dos consumidores e o sistema nacional de direito do consumidor tem dado inúmeras provas de sua eficiência. No âmbito administrativo ou judicial as leis de proteção e defesa do consumidor têm sido utilizadas de forma plena, o que obriga o mercado a se tornar mais confiável em todas as diferentes áreas da atividade econômica, sob pena de sofrer consequências cumulativas de sanção e obrigação de reparar. Os projetos de lei ora supra mencionados parecem não confiar no sistema de defesa do consumidor, na regulação da área de saúde suplementar e, ainda menos na maturidade que o mercado adquiriu ao longo de sua trajetória. O momento é para o desenvolvimento de inúmeras formas de negociação, mediação e conciliação de interesses e necessidades. Os usuários de operadoras de saúde devem ser estimulados a apresentar suas dificuldades de pagamento às operadoras, aos canais de solução de conflitos públicos e privados, de forma que cada situação receba a atenção necessária para que os melhores resultados possam ser concretizados. Todos terão que negociar, aprender a dialogar e a desenvolver propostas possíveis de serem adotadas. A criticidade exacerbada só tem lugar se acompanhada de propostas de solução e aprimoramento dos setores econômicos. Sem essas propostas as críticas são inúteis e se perderão no tempo sem que a história sequer as mencione. A maior contribuição do Direito neste momento de pandemia e efeitos econômicos perversos e perceptíveis no empobrecimento diário de milhões de pessoas em todo o mundo, será estimular o diálogo, a compreensão, a negociação e a construção de acordos que permitam a soluções passíveis de contemplarem os melhores resultados em um quadro complexo mas que, com toda certeza, poderá ser superado com bom senso e equilíbrio. *Angélica L. Carlini é doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC/RS. Docente do ensino superior na UNIMES, UNIP e Escola de Negócios e Seguros - ENS. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT e conselheira da seção brasileira da Associação Internacional de Direito do Seguro - AIDA. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 20 de junho de 2020. 2 SAMPAIO JÚNIOR, Rodolpho Barreto. Lei de Liberdade Econômica e seus Reflexos sobre o Direito Civil. In OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Lei de Liberdade Econômica e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. S.Paulo: D'Plácido, 2020, p. 197.
Texto de autoria de João Pedro Kostin Felipe de Natividade e André Luiz Arnt Ramos A Pandemia de COVID-19 trouxe consigo desafios notáveis para a Teoria e para a Prática do Direito Civil. Em especial, do Direito Contratual. Sinal disso é a pop up ativada quando se acessa o Portal do Processo Eletrônico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Tratando-se de ação/petição envolvendo Coronavírus, (...), ASSINALE o assunto COVID - 19 na opção Demais Assuntos na classificação processual (Portaria 57/2020 do CNJ)". Há, aqui, um sintoma de que a crise do Sistema de Saúde contamina (ou contaminará) também o de Justiça. Não é difícil entender o porquê do assoberbamento do Poder Judiciário com demandas oriundas de dificuldades suscitadas pela Pandemia. Ela, afinal, trouxe consigo uma sucessão de tragédias humanas, sociais e econômicas. Particularmente na ambiência dos contratos, afeta diretamente os próprios contratos, as relações contratuais e os contratantes. Daí não serem raros exemplos como (i) o do restaurante italiano que perde 90% do faturamento e consegue decisão judicial que redimensiona o aluguel1; (ii) a do lojista que loca espaço em Shopping Center que consegue análogo abrandamento do custo do contrato necessário para a retomada de sua atividade econômica2; e o do estudante que, em Santa Catarina, obteve decisão que suspende o pagamento de parcelas do FIES3. Em desempenho quase que da função de marinheiro, o Judiciário age rápido para consertar o navio em meio à tempestade, mantendo em segurança as relações privadas4. Só que, quando a poeira baixar, essa Justiça da emergência será sucedida pela Justiça da imputação. E então tudo aquilo que fizemos ou deixamos de fazer nesse período poderá ser avaliado sob o prisma da responsabilidade. Por isso, convém perguntar: se sofrer algum dano durante a pandemia, como a vítima deve agir? E quais as consequências de sua conduta? As indagações (e suas respostas) relacionam o agora e o depois da Pandemia no diapasão da incumbência da mitigação de prejuízos, conhecida também como duty to mitigate the loss - normativa que repercute a resposta da vítima sobre a reparação de danos patrimoniais5. Já de início, é importante corrigir um erro comum. A vítima não necessariamente deve agir. Isso porque não existe no Direito brasileiro norma que proíba a autolesão patrimonial. Mas isso não significa que sua conduta proativa ou desidiosa seja ausente de consequências jurídicas. É o que se visualiza com um simples exercício: imagine que um motorista descuidado bate em um táxi. Nada obriga o taxista a consertar o táxi; ele pode deixar seu veículo na garagem por um, dois, três... meses. Mas se fizer isso, não deverá ser indenizado pelos lucros cessantes relativos ao tempo em que o carro ficar parado por sua escolha. Quer dizer: a vítima pode agir como bem entender após o evento lesivo, mas, quando se discutir a reparação, o quantum deverá ser fixado como se ela tivesse escolhido a resposta esperada. Mas o que seria isso? Mesmo sem impor à vítima uma conduta, o Direito espera que o prejudicado aja para se reaproximar da situação em que estaria sem o evento lesivo. Rectius: para a recomposição do estado anterior ao prejuízo. A função reparatória da responsabilidade, neste prisma, serve de critério normativo e orientador6. Na eventualidade de haver dois ou mais caminhos de recomposição, o Direito idealizará a resposta normal, em detrimento de soluções custosas ou anômalas. Assim, por exemplo, o descumprimento do contrato de transporte individual de passageiro pelo não comparecimento do transportador na data e local ajustados é uma situação patológica à luz do processo obrigacional. Também é, todavia, remediável: o passageiro prejudicado pelo inadimplemento ainda pode chegar ao local de destino mediante, por exemplo, a chamada de um Táxi ou o uso de algum aplicativo de transporte. Poderia, também, chamar uma limusine ou um helicóptero. Ou, ainda, simplesmente desistir do propósito que tinha ao contratar. A resposta normal e esperada, evidentemente, seria o táxi ou o aplicativo de transporte7. Mas nada impede ao credor a opção por meio menos módico (limusine ou helicóptero) ou inesperado (abandonar a viagem). Nessa hipótese de divergência em relação à resposta normal e esperada, haverá repercussão no plano obrigacional. É dizer: a reparação deverá ser fixada de modo contrafactual, como se a vítima tivesse adotado a resposta esperada, mesmo que não o tenha feito. O desvio da resposta esperada interrompe o nexo entre o dano e o ofensor originário, transferindo à vítima as consequências - positivas e negativas - de sua escolha. Esse entendimento foi aplicado pelo STJ ao julgar o REsp 256.274/SP. Na ocasião, a Corte decidiu que os lucros cessantes devidos a título de seguro deveriam ser fixados como se o segurado tivesse reaberto o restaurante incendiado em noventa dias a contar do pagamento dos danos emergentes, tempo que o Tribunal considerou suficiente para o reparo. Em miúdos: o STJ definiu a resposta esperada - consertar o restaurante em 90 dias - e fixou a indenização com base nela. Definidas essas premissas, cabe perguntar: em que medida a COVID-19 afeta a mitigação? A Pandemia pode limitar - como não raro limita - a escolha do agente; pode privá-lo de liberdade em múltiplos perfis: negativo, pela coerção exercida pelos gestores de saúde ao decretar proibições e suspensões de atividade; positivo, pela carência de possibilidade de escolher e agir; e substantivo, pela privação de capacidades, que são condições para o exercício e a vivência de liberdades. No primeiro caso aventado, do taxista que teve seu carro danificado por acidente de trânsito, medidas sanitárias que suspendam atividades de oficinas ou de fábricas de peças importam demora no reparo que não pode ser atribuída ao profissional. Eventual reparação, então, deverá ser fixada incluindo os lucros cessantes do período em que o reparo não pode ser realizado. Assim que decretos executivos determinarem a reabertura das oficinas, o Direito espera que o taxista volte a trabalhar após o conserto. Se escolher outro curso de ação, o ofensor deixará de responder por essa parte do prejuízo, face à indicada interrupção do nexo causal. No segundo caso, do passageiro frustrado pelo não comparecimento do transportador, a vítima pode não ter a liberdade de escolher a resposta esperada por falta de meios. Imagine que um morador de uma cidade pequena agendou um exame não reembolsável num município vizinho e contratou os serviços de uma van para realizar o trajeto. Se o transportador não comparecer no horário acordado, o direito espera que o passageiro encontre alguma forma de realizar o exame. Mas se, naquele dia, não houver outros meios de transporte disponíveis ou o passageiro não tiver condições econômicas de contratar outro serviço, o liame causal segue hígido, fazendo do ofensor o responsável pelo prejuízo sofrido. Agora, suponha que o transportador se proponha a prestar o serviço em outro dia e que o exame possa ser reagendado mediante o pagamento de uma taxa. Neste caso, o direito espera que o passageiro altere a data do exame e concorde com o adiamento do serviço, salvo se alguma situação particular justificar outro curso de ação (ex. cirurgia marcada para o dia seguinte). Se o passageiro recusar o transporte e não reagendar o exame, a indenização patrimonial deverá ser fixada como se o exame tivesse sido adiado, contemplando apenas a taxa de reagendamento. A Pandemia, que hoje nos assola com crises sanitária, econômica e de gestão, irradiará desafios e efeitos deletérios para além de sua superação. Há, então, um desafio para o presente de, em correspondência a Neurath8, reconstruir a embarcação do Direito Civil em meio à tempestade e às águas revoltas do Direito e da Economia em tempos de COVID-19. Também é certa a urgência de esboçar uma cartografia do que se projeta para além do horizonte da Pandemia. A embarcação, afinal, precisa continuar a navegar e seguir seu curso. *João Pedro Kostin Felipe de Natividade é mestre em Direito pela UFPR. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Advogado. **André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor da Universidade Positivo. Advogado. __________ 1 Justiça do DF concede redução de 50% no aluguel de restaurante italiano. 2 Justiça do RJ autoriza redução no aluguel de lojista de shopping na Zona Oeste durante a pandemia. 3 Justiça suspende parcelas do Fies para estudantes de universidade de SC. 4 Isso quando as partes não refletem e renegociam suas relações, evitando o recurso ao Judiciário. 5 Embora o STJ e a doutrina majoritária entendam que a mitigação se fundamenta na boa-fé objetiva, melhor sorte assiste à causalidade. Ver: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020. 6 Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020.p. 94-95. 7 LETSAS, George; SAPRAI, Prince. Mitigation, Fairness and Contract Law. In: KLASS, Gregory; et.al. Philosophical foundations of contract law. Oxford: Oxford University Press, 2014. Disponível em . Acesso em 31/05/2020. 8 Otto Neurath, ao discutir os problemas da linguagem científica, anotou que: "Nós somos como marinheiros que precisam reconstruir seus navios no mar aberto, sem jamais poder desmontá-los em uma doca seca e nela reconstruí-los a partir dos melhores materiais" (NEURATH, O. Protocol sentences. Tradução de George Schick. In: AYER, A. J. (Org.). Logical Positivism. Nova York: The Free Press, 1959, p. 201). Tradução livre. No original: "We are like sailors who must rebuild their ship on the open sea, never able to dismantle it in dry-dock and to reconstruct it there out of the best materials".
Texto de autoria de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira e Úrsula Goulart Em 20 de maio de 2020, foi aprovado no Senado Federal o PL 2.113/20, e que está em fase de apreciação pela Câmara dos Deputados1. O projeto aprovado sofreu algumas modificações no seu texto inicial, e tornou prejudicado o Projeto de Lei nº 890/2020, que visava alterar o Código Civil criando o art. 798-A em que ficava estabelecido que o segurador não pode se eximir ao pagamento do seguro, ainda que da apólice conste a restrição se a morte ou a incapacidade do segurado provier da infecção por epidemias ou pandemias, ainda declaradas por órgão competente. O Projeto de lei 2.113, de 2020, por sua vez, acrescenta o artigo 6º-E na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, para determinar que o seguro de assistência médica ou hospitalar, bem como o seguro de vida ou de invalidez permanente, inclusive o já celebrado, não pode conter restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da emergência de saúde pública de que trata a lei. O projeto implica em uma norma temporária para uma situação transitória, não incluindo, portanto, futuras pandemias, diferentemente do proposto no PL 890/2020. O objetivo do PL 2.113, 2020, é proteger os segurados, calcado nos princípios da boa-fé e na defesa do consumidor. A mudança implica em resumo nas seguintes proibições às seguradoras: i) restringir a cobertura de qualquer doença ou lesão decorrente da pandemia da Covid-19; ii) restringir a exclusão dos riscos decorrentes da pandemia da Covid-19 no seguro de vida ou de invalidez permanente; iii) realizar o aumento do prêmio pago pelo segurado; e iv) suspender e/ou cancelar os contratos por falta de pagamento durante a Covid-19 (estado de emergência pública) em virtude de mora do segurado no pagamento do prêmio. Além das proibições, o referido projeto estabelece o dever das seguradoras de: i) efetuar o pagamento da indenização no prazo de 10 (dez) dias corridos contados a partir da data de protocolo da documentação comprobatória na sociedade seguradora; e ii) permitir o parcelamento do débito do consumidor após o fim do período da calamidade pública antes de proceder à suspensão e/ou o cancelamento do contrato em razão da inadimplência. O projeto de lei acaba por beneficiar o segurado/consumidor, já que terá garantido a cobertura e a manutenção do seguro durante a pandemia, mesmo diante de sua inadimplência no pagamento do prêmio, assim como o direito de, após o período, parcelar o débito antes de ter suspenso e/ou cancelado o contrato. Todavia, o projeto de lei interfere na dinâmica da relação contratual, o que pode impactar de forma direta o setor securitário, haja vista a inclusão de cobertura de sinistro não considerado para fins de cálculo atuarial necessário para manter o fundo mutual e o equilíbrio econômico do contrato. Além de afetar o próprio fundo quando permite que haja um inadimplemento sem que isso afete a manutenção do contrato. No que tange à obrigatoriedade da cobertura do risco decorrente de pandemia, cabe esclarecer que sua exclusão depende do que está previsto nas apólices dos seguros. Nos seguros de vida e acidentes pessoais é comum verificar essa exclusão de riscos, o que acaba ficando a critério das seguradoras. Isso em razão da dificuldade de quantificar o prêmio e de realizar cálculos atuariais precisos quando se trata de riscos extraordinários como é a hipótese da pandemia da Covid-19. Como já salientado por Thiago Junqueira2, a título de exemplo, a Circular SUSEP nº 440, de 27 de junho de 2012, que regula os planos de microsseguro de pessoas (seguro de valor baixo, prêmio mais barato, proteção mais baixa), prevê, no art. 12, inc. I, alínea d, a possibilidade de exclusão de riscos causados por "epidemia ou pandemia declarada por órgão competente"3. Além disso, o item 69 da designada "Lista de verificação" (versão de setembro/2012), que traz requisitos para o envio de novos planos de seguro de pessoas à SUSEP (em busca da aprovação de sua comercialização), prevê: "Riscos excluídos - Epidemias e Pandemias" (Orientação da Procuradoria Federal junto à SUSEP)4. Logo, é possível que a seguradora exclua a morte ou invalidez permanente do segurado decorrente de epidemias ou pandemias da cobertura, devendo, in casu, prever de forma expressa e clara a respectiva exclusão. Logo, existe por parte de normas regulatórias da SUSEP uma permissibilidade da exclusão da cobertura de riscos em casos de pandemia. Ademais, o Código Civil estabelece, no artigo 757: "Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados". Desta forma, não sendo o risco predeterminado, não há que se falar em cobertura. Portanto, não há ilegalidade na restrição, na liberdade da seguradora de delimitar os riscos cobertos. E a pandemia é um risco extraordinário, risco catastrófico, que foge à álea normal. No entanto, deve-se observar que a questão posta pode ser lida à luz das normas consumeristas, quando aplicável, o que ressalta o dever do segurador de informar de forma prévia e clara sobre as exclusões, devendo observar a forma que foi comercializado o seguro; se o segurado recebeu a apólice, e se estava de forma expressa a exclusão, negritado. Mesmo com todo esse cuidado, nada impede de ser alegado que se trata de uma cláusula abusiva por limitar o direito do consumidor, limitar a responsabilidade do fornecedor, atraindo uma interpretação mais favorável ao segurado/consumidor (arts. 6º, III, 30, 51, I, §, 1º, 54, § 4). Independentemente de algumas seguradoras terem declarado que irão realizar o pagamento integral das indenizações, em caso de morte ou invalidez permanente do segurado por infecção de Covid-195, isso decorria de ato de mera liberalidade, o que, por si só, não confere segurança jurídica e não abrangeria todas as seguradoras6. A despeito da indagação acerca de qual será a fonte de retirada das quantias indenizatórias, haja vista o papel da seguradora de gestora de um fundo mutual coletivo ao qual não tem plena ingerência. O projeto de lei facilitaria para os segurados que não precisariam eventualmente buscar a solução do conflito no Poder Judiciário, e evitaria a insegurança jurídica em razão da possibilidade de decisões divergentes pelos diversos órgãos julgadores, seja em razão das regras que regulam o contrato de seguro e as normas regulatórias, desde que observada a legislação consumerista. Além disso, o processo judicial é demorado, o que postergaria o recebimento da indenização. Um dos maiores problemas trazidos pelo PL 2.113, de 2020, decorre da forte interferência dos contratos de seguro, que são pautados na mutualidade, na sinistralidade, em que se busca o equilíbrio entre o prêmio pago e a cobertura dos riscos previstos. A intervenção legislativa na cobertura de risco inicialmente não previsto, que não teve a sua cobertura considerada para fins de cálculos atuariais, para definição do prêmio pode colocar em xeque o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, afetando a base atuarial dos seguros. Isso porque mitiga a correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia que deve ser prestada pela seguradora, já que o projeto não permite nem o aumento do prêmio, nem a suspensão e/ou cancelamento do seguro pelo não pagamento pelo segurado. No que diz respeito à impossibilidade de aumento do prêmio por parte da seguradora durante o curso da relação contratual, cabe apontar que o reajuste do prêmio decorre da essência do contrato de seguro. Mas para isso é preciso que haja uma circunstância que agrave o risco, tendo em vista o disposto no Código Civil, arts. 757, 760, 768 e 769 . A possibilidade de ajustes se dá pela base do contrato, pois, como já dito, o seguro é baseado no mutualismo, de conteúdo técnico e econômico, apesar de jurídico. O fundo mutual tem de ter exata correspondência entre a garantia que ela está prestando e o prêmio que vai ser pago pelos segurados. Logo, não adianta a seguradora cobrar um prêmio baixo, pois vai comprometer a sua solvência e ainda pode ser multada pela SUSEP7. Quanto à impossibilidade de as seguradoras suspenderem e/ou cancelarem os contratos em razão do inadimplemento, é uma forte intervenção, pois a lei assegura à seguradora o não pagamento de indenização em caso de mora no pagamento do prêmio pelo segurado (art. 763 e 796 do Código Civil). Por fim, quanto ao prazo de 10 dias para pagamento da indenização, o Projeto de lei se pautou na Circular nº 440, de 2012, citada anteriormente, que, no caput do art. 63, prevê que o prazo máximo para o pagamento da indenização ou do benefício é de dez dias corridos contados a partir da data de protocolo de entrega da documentação comprobatória, requerida nos documentos contratuais, junto à sociedade seguradora ou entidade aberta de previdência complementar ou seu representante. Entretanto, esse prazo se refere apenas aos microsseguros, o que não é a regra geral, já que, pelo disposto no na Circular nº 302 da SUSEP, aplicável para seguros de pessoas, o prazo é de 30 dias (art. 72)8. Não há dúvidas de que o projeto está pautado em movimento ancorado no princípio da solidariedade de valor ético e jurídico e que atende aos interesses dos segurados, dos consumidores, de seus familiares em uma fase tão peculiar de pandemia. No entanto, não podemos deixar de observar que, caso o texto seja aprovado pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Executivo, poderá haver um efeito reflexo, acarretando um aumento substancial nos prêmios dos novos seguros, onerando as novas apólices, entre outras repercussões. As mudanças legislativas, administrativas e as decisões judicias em um momento peculiar de pandemia em que se vislumbra uma tríplice crise: de gestão, sanitária e econômica, não pode deixar de avaliar as consequências pós-covid-19 e os impactos nos setores de saúde, economia, inviabilizando o desenvolvimento de certas atividades que podem afetar negativamente o próprio consumidor (art. 20 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). É preciso ter cautela e equilibrar os interesses merecedores de tutela por meio de uma interpretação pela lente da legalidade constitucional. *Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Advocacia Pública pela CEPED-UERJ. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da PUC-Rio e da pós-graduação Lato Sensu do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED-UERJ). Membro do IBDCivil, IBIOS, do IBDCont e IBERC. Advogada. **Úrsula Goulart é mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro -EMERJ. Membro da AIDA. Advogada. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 25 maio 2020. 2 Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020. 3 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020. 4 Disponível aqui. Acesso em: 28 maio 2020. 5 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. 6 A respeito do tema, merece destacar as reflexões de Angelica Carlini. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2020. 7 Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. 8 Disponível aqui. Acesso em 30: maio 2020.
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Renato Mello Leal "Inteligência é a capacidade de se adaptar a mudanças. A genialidade é antes de tudo a habilidade de aceitar a disciplina".Srephen Hawking Muitos e excelentes artigos jurídicos têm sido escritos e publicados, inclusive e especialmente nesta coluna Migalhas Contratuais, acerca dos impactos da pandemia da covid-19 sobre as relações contratuais. De fato, as necessárias e prudentes restrições impostas pelas autoridades públicas à maior parte das pessoas e respectivas atividades geram inevitáveis alterações em suas rotinas, hábitos e negócios, o que repercute em praticamente todos os contratos, sejam eles civis, empresarias ou de consumo, haja vista que a maioria das relações interpessoais são disciplinadas por contratos. Nesse sentido, relevante tem sido a contribuição da comunidade jurídica acadêmica na análise e divulgação dos efeitos desta gravíssima pandemia nas mais diversas espécies de contratos, inclusive e especialmente nos contratos de locação de imóveis, sejam eles comerciais ou residenciais, com suas respectivas particularidades, pois nos imóveis comerciais, via de regra, houve uma grande diminuição - quiçá impossibilidade - de fruição, enquanto que nos imóveis residenciais, por outro lado, a flagrante tendência foi de incremento na utilização, inclusive por força da quarentena que adveio da lei Federal 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispôs sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública envolvendo a covid-19, bem como do decreto Federal 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamentou a referida lei, provocando, em larga medida, o aumento da atuação profissional em home office, de tal modo que, em geral, as pessoas passaram a ficar muito mais tempo dentro de suas residências. O maior foco na análise dos impactos da pandemia nas locações imobiliárias é plenamente justificável não apenas por elas fazerem parte do cotidiano da maioria dos brasileiros, que via de regra não possuem imóveis próprios, dependendo, portanto, da locação de imóveis residenciais e comerciais de terceiros, mas principalmente pela circunstância desses contratos, quanto ao momento do seu cumprimento, serem classificados como de trato sucessivo ou de execução continuada. Ao revés, nos contratos classificados como instantâneos ou de execução imediata, os efeitos da pandemia geram pouco ou nenhum efeito, pois tanto o aperfeiçoamento quanto o cumprimento de tais contratos se operam de imediato, como é o caso, por exemplo, de uma compra e venda à vista de gêneros alimentícios em um supermercado, ou até mesmo de uma compra e venda à vista de máscaras descartáveis em uma farmácia. Neste último exemplo, é interessante observar que o motivo da contratação é a pandemia da covid-19, mas os efeitos desta sobre tal contrato são inexistentes. Por outro lado, nos contratos de execução continuada ou de trato sucessivo, dentre os quais o contrato de locação imobiliária é um clássico exemplo, o cumprimento das obrigações de ambas as partes (a do locador disponibilizando o imóvel e a do locatário pagando os aluguéis) se dá de modo sucessivo ou periódico. Não se olvide que há uma terceira categoria nessa classificação quanto ao momento do cumprimento do contrato, qual seja, a dos contratos de execução diferida, em que o cumprimento se dá de uma só vez, mas posteriormente ao momento do aperfeiçoamento do contrato, como é o caso de uma compra e venda de um bem móvel a prazo, em que o negócio se aperfeiçoa com a entrega da coisa, mas o pagamento se dá no futuro, mediante o pagamento de um boleto bancário com vencimento para dali a 30 dias, por exemplo. Não há dúvidas de que esses contratos também podem ser afetados pelas consequências da pandemia, mas as hipóteses são mais restritas e fogem do escopo do presente artigo. Voltando aos contratos de execução continuada ou de trato sucessivo, é perfeitamente possível que, no momento do aperfeiçoamento de um contrato de locação de um imóvel comercial, por exemplo, o cenário econômico, político e social seja um, que esse estado de coisas se mantenha estável inclusive por um longo período, mas que, a partir de um determinado momento, seja tal contrato direta e fortemente impactado por um evento extraordinário e imprevisível, que dificulte o cumprimento das obrigações contratuais das partes, como é o caso da pandemia que atualmente nos castiga. Mas há uma outra espécie de locação, a de bens móveis, que, a despeito de ser regida por um outro diploma legal, também é naturalmente um contrato de execução continuada ou de trato sucessivo, contrato esse igualmente impactado pelos efeitos da pandemia, mas de maneira diferente, dadas as peculiaridades que decorrem da própria natureza da coisa locada. À primeira vista, pode parecer que o contrato de locação de bens móveis seja um negócio jurídico de menor relevância econômica. No entanto, além do clássico exemplo da locação de veículos, setor econômico nada desprezível, que atende não apenas aqueles que viajam a lazer ou a negócios, mas também milhares de motoristas de aplicativos e inúmeras e gigantescas frotas de empresas diversas, como daquelas que prestam serviços de telecomunicações, há um outro segmento de grande envergadura econômica que também envolve a locação de bens móveis, qual seja, aquele que fornece para a construção civil - uma das molas propulsoras da economia nacional -, os mais diversos equipamentos auxiliares de tal atividade, tais como guindastes, gruas, elevadores de cremalheira, plataformas de trabalho aéreo, andaimes suspensos e tubulares, fôrmas para concreto, escoramentos metálicos, equipamentos de proteção coletiva, dentre outros. Diversamente da locação imobiliária, regida por legislação esparsa, especificamente pela Lei Federal n.º 8.245, de 18 de outubro de 1991, com suas alterações, promovidas, dentre outras, pela lei Federal 12.112, de 09 de dezembro de 2009, a locação de bens móveis é regida pelo próprio Código Civil de 2002, precisamente pelos artigos 565 a 578. Também de modo diferente do que ocorre com a locação imobiliária, a locação de bens móveis sofre impactos de mais fácil solução em decorrência da pandemia da covid-19, e isso em decorrência da própria natureza da coisa locada. É que na locação de bens móveis, a própria mobilidade do objeto contratual facilita a devolução das coisas locadas e a subsequente extinção do contrato, caso as partes contratantes não cheguem a bons termos quanto ao reequilíbrio econômico‑financeiro do negócio, especialmente quando os bens móveis locados estiverem empregados em atividades tidas como não essenciais. De fato, se os bens móveis locados estiverem empregados em atividades tidas como essenciais, não nos parece haver razão para a alteração das bases negociais, pois, via de regra, o locatário estará desenvolvendo normalmente as suas atividades empresariais, recebendo também regularmente as respectivas contraprestações, de tal modo que não se apresenta como razoável a sua eventual pretensão de, em tais circunstâncias, buscar a redução ou inexigibilidade temporária dos aluguéis dos bens móveis empregados na sua atividade, sob pena inclusive de violação aos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, em sua eficácia interna. A título de exemplo, imaginemos os contratos de locação de ambulâncias para o transporte de enfermos ou os contratos de locação de equipamentos metálicos auxiliares da construção de hospitais definitivos e de campanha, de obras públicas de infraestrutura e de saneamento básico, dentre outras obras inequivocamente tidas como essenciais. Sobre a essencialidade ou não das atividades em tempos de quarentena e de isolamento social, não se pode olvidar que o Brasil é um país de dimensões continentais, com grande variedade de culturas, hábitos, atividades econômicas e fluxo de pessoas. Também por essa razão, nos pareceu acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal ao reconhecer, em 15 de abril de 2020, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341, a competência concorrente dos entes federativos para, dentre outras ações administrativas e normativas, legislarem sobre a essencialidade ou não de certas atividades, pois com isso são melhor consideradas e atendidas as particularidades de cada região, inclusive no tocante à velocidade e abrangência do contágio comunitário pela covid-19. Com isso, é perfeitamente possível que uma atividade específica seja considerada como essencial num certo estado, no Distrito Federal ou num determinado município, ao mesmo tempo em que, em outros entes federativos, a mesmíssima atividade seja considerada como não essencial e, por conta disso, seja legitimamente impedida de prosseguir em operação durante o período de quarentena e de isolamento social. É justamente nesse ponto que residem as maiores dificuldades, pois, como vimos, são nas atividades não essenciais que pode se verificar de modo legítimo a necessidade de alteração das bases negociais de um contrato de locação de bens móveis e pode haver, como de fato há, uma diversidade de enquadramentos de certas atividades, Brasil afora, como essenciais ou como não essenciais. Um ótimo exemplo disso é a atividade da construção civil e a sua respectiva cadeia produtiva, aqui incluída a locação de equipamentos metálicos que lhe são auxiliares, tais como fôrmas, andaimes e escoramentos. No município de São Paulo, por exemplo, os serviços de construção civil em geral e também a comercialização de materiais de construção são consideradas atividades essenciais, nos termos do anexo único e do artigo 2º do decreto municipal 59.298, de 23 de março de 2020, alterado, dentre outros, pelo decreto municipal 59.405, de 08 de maio de 2020. Por outro lado, no Estado do Ceará, somente as obras públicas foram excepcionadas, pelo respectivo inciso VIII, da determinação de suspensão de funcionamento de que trata o artigo 1º do decreto Estadual 33.519, de 19 de março de 2020, alterado, dentre outros, pelo decreto Estadual 33.544, de 19 de abril de 2020. Como se vê, no município de São Paulo continuam em pleno funcionamento, por exemplo, as obras privadas de construção de edifícios, sejam eles residenciais ou comerciais. Todavia, no Estado do Ceará, as mesmíssimas obras estão impedidas de funcionar. Nesses locais e casos em que as obras estão suspensas por imperativo normativo, tem sido muito frequente que as construtoras locatárias notifiquem as empresas locadoras dos respectivos equipamentos auxiliares, alegando que a pandemia provocada pelo novo coronavírus seria um motivo de força maior ou um caso fortuito, pretendendo com isso eximir-se totalmente de suas contraprestações contratuais de pagamento dos aluguéis enquanto as suas obras estiverem suspensas, ainda que permanecendo na posse direta de tais equipamentos. Não é essa, no entanto, a solução jurídica que nos parece a mais adequada. Como se sabe, no que diz respeito ao inadimplemento das obrigações, o caso fortuito e a força maior estão previstos no artigo 393, caput e parágrafo único, do Código Civil de 2002. Conforme as lições de Flávio Tartuce1, caso fortuito é um evento totalmente imprevisível, enquanto a força maior é um evento previsível, mas inevitável. A despeito da distinção entre os dois institutos ser academicamente importante, tanto que é feita, muito embora com algumas divergências conceituais, pela maioria - quiçá pela totalidade - dos doutrinadores civilistas, o fato é que, na prática, tal diferenciação é de pouca relevância, quer por ser muito tênue a diferença entre as duas figuras em alguns casos concretos, quer porque a consequência prática de ambas costuma ser a mesma, qual seja, a extinção da obrigação sem consequências para as partes. Corroborando esse entendimento, vejamos os seguintes ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho2: Advertimos, outrossim, que as situações da vida real podem tornar muito difícil a diferenciação entre caso fortuito e força maior, razão por que, a despeito de nos posicionarmos a respeito do tema, diferenciando os institutos, não consideramos grave erro a identificação dos conceitos no caso concreto. Ademais, para o direito obrigacional, quer tenha havido caso fortuito, quer tenha havido força maior, a consequência, em regra, é a mesma: extingue-se a obrigação, sem qualquer consequência para as partes. Seja como for, não nos parece ser o artigo 393 do Código Civil a norma aplicável a contratos de trato sucessivo ou de execução continuada afetados pela pandemia da covid-19, isto é, àqueles contratos que geram obrigações sucessivas que se protraem no tempo, sendo o contrato de locação de bens móveis, como vimos, um clássico exemplo de tal modalidade contratual, haja vista que a prestação convencional de disponibilização do bem locado se renova mensalmente, ao mesmo tempo em que também se renova mensalmente a contraprestação obrigacional de pagamento dos aluguéis. Ora, vimos que a principal consequência do caso fortuito ou força maior é a extinção da obrigação, sem culpa, isentando as partes de responsabilidades, o que parece ir de encontro ao princípio da conservação contratual, um dos corolários da função dos contratos, especial e naturalmente naqueles de trato sucessivo. Além disso, a própria parte final do caput do artigo 393 do Código Civil traz a seguinte e expressa ressalva quanto à ausência de responsabilidade pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior: "se expressamente não se houver por eles responsabilizado". Ou seja, ainda que fosse aplicável o artigo 393 aos contratos de locação de bens móveis impactados pela pandemia do novo coronavírus, em muitos casos os locatários teriam ainda assim de responder pelos prejuízos resultantes do suposto caso fortuito ou de força maior, haja vista que é muito frequente, nos contratos de locação de móveis, que haja cláusula prevendo a responsabilidade do locatário pelos eventos decorrentes de caso fortuito ou força maior. E isso decorre do fato do locatário estar na posse direta do bem. Ora, sendo a posse um dos atributos da propriedade, é natural que as partes de um contrato de locação de bens móveis convencionem regra similar à da res perit domino, segundo a qual a coisa perece nas mãos do dono, ou, no caso, nas mãos daquele que estiver na posse direta do bem, inclusive por serem deste os respectivos deveres de guarda e conservação da coisa locada. Como se não bastasse, o artigo 575 do Código Civil de 2002, inserido no Capítulo que trata da Locação de Coisas, também prevê que é o locatário quem responde por dano decorrente de caso fortuito, valendo ressaltar que, atualmente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência conferem rigorosamente o mesmo tratamento jurídico tanto para o caso fortuito quanto para a força maior, haja vista a identidade de efeitos para ambos os institutos jurídicos. Aliás, também vimos que essa regra de que é o locatário quem responde pelos infortúnios decorrentes de caso fortuito ou força maior decorre não apenas da lei e do contrato, mas inclusive dos costumes, ou seja, das regras de tráfego, pois é intuitivo que, nos contratos em que há transferência da posse direta da coisa, quem deve responder pelos eventos de caso fortuito ou força maior é quem estiver na posse da coisa, até mesmo por influência da referida regra da res perit domino. Até aqui, parece-nos ter restado evidenciado que não é o artigo 393 do Código Civil que deve ser aplicado para os impactos da pandemia da covid-19 sobre as relações contratuais, inclusive e especialmente sobre os contratos de locação de bens móveis. Para reforçar tal conclusão, vejamos as seguintes e recentes lições de José Fernando Simão3, em artigo publicado nesta mesma coluna Migalhas Contratuais: Em tempos de coronavírus, revisitar as categorias jurídicas é preciso. Preciso, como necessário. A precisão teórica é o objetivo. (...) A força maior (e, aqui, acreditem: é inútil fazer a distinção com o caso fortuito como se verá a seguir e mais inútil ainda se fazer a distinção entre fortuito externo e interno) conta com definição legal (art. 393, parágrafo único, do CC). (...) Por que a distinção é irrelevante para se abordar os efeitos do vírus sobre as relações contratuais? A um porque não se há distinção eficacial entre o caso fortuito e a força maior (explico isso a seguir). A duas porque não se trata de caso fortuito nem de força maior a pandemia. (...) Se a prestação é exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não estamos diante da força maior em seu sentido clássico. Isso porque há uma figura específica para resolver exatamente essa situação. Há categoria própria. (...) Há uma pandemia e, por ato do Poder Executivo, os Shoppings Centers fecham. Não há público, não há faturamento. O shopping center cobra dos lojistas a componente fixa do aluguel. Há uma pandemia e o comércio de rua, por ato do Estado, fecha suas portas. Não há público e o lojista precisa pagar o aluguel. A pergunta que cabe em ambos os casos é: há uma impossibilidade de se cumprir a prestação que é pecuniária (dar dinheiro)? A resposta é obviamente negativa. Aliás o jornal Valor econômico de hoje, dia 27.03.2020, afirma que "caixa alto ajuda grandes empresas a enfrentar a crise". Segundo o jornal, 85% das companhias que tem ação na bolsa conseguem honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que ficassem 12 meses sem faturar. E metade das empresas restantes (15%, portanto) suportariam 6 meses. São 97 empresas não financeiras que fazem parte do IBOVESPA e do Índice Small Caps. (...) Há setores da economia realmente colapsados pelo caos pandêmico e o confinamento preventivo. Alguns contratos têm o sinalagma afetados por conta das mudanças profundas verificadas entre o momento de sua celebração e o de sua execução. A alteração radical da base do negócio exige que se busque um reequilíbrio das prestações, se possível, ou sua resolução, se impossível. (...) Assim, a base jurídica da revisão contratual será, em leitura alargada, o art. 317 do Código Civil. In verbis: Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. (...) Em notas conclusivas, podemos afirmar que será intenso o trabalho do Poder Judiciário para garantir a conversação dos contratos firmados pré-pandemia, ou seja, 20 de março de 2020. A tendência de resolução do contrato, bem como de suspensão total de seus efeitos é nefasta ao equilíbrio contratual e ao sistema jurídico como um todo, com gravíssimos reflexos econômicos. Como se vê, a pandemia da covid-19 pode, em tese, configurar hipótese de onerosidade excessiva para uma das partes, o que permitiria a revisão contratual, nos termos do art. 317 do CC, a fim de se restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, mas não se admite, em absoluto, a simples exoneração de responsabilidades do devedor por suposto motivo de caso fortuito ou força maior. E mais, em se tratando de contrato de execução continuada ou de trato sucessivo, como é o caso do contrato de locação de bens móveis, o dispositivo legal efetivamente aplicável é o art. 478 do Código Civil, que assim preceitua: "Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". Registre-se, por oportuno, que o artigo 478 do Código Civil exige a presença de diversos requisitos concomitantes, dentre eles a "extrema vantagem para a outra" parte do contrato, em contraposição à onerosidade excessiva verificada para uma delas. Não nos parece despropositado admitir que a pandemia da covid-19 seja um acontecimento extraordinário e imprevisível. Também é possível admitir que em razão disso teria surgido uma onerosidade excessiva para o locatário, especialmente quando este estava empregando a coisa locada em uma atividade regionalmente considerada como não essencial. Mas não nos parece razoável admitir que tais circunstâncias provoquem "extrema vantagem" para a locadora, muito pelo contrário, pois é de se presumir que a locadora dos bens móveis também esteja sofrendo intensamente todos os impactos da pandemia da covid-19, com queda abrupta no fechamento de novos contratos, aumento significativo da inadimplência de seus clientes e subsequente redução dramática de suas receitas. Feitas todas essas ponderações, parece-nos que, diante da pandemia da covid-19, as alternativas que estariam legitimamente à disposição dos locatários de bens móveis, especialmente daqueles que empregam as coisas locadas em atividades não essenciais, seriam as seguintes: a) pleitear amigável ou judicialmente a revisão do contrato, por onerosidade excessiva, nos termos do artigo 317 do Código Civil, a fim de que se restabeleça o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; ou b) resilir unilateralmente o contrato, contanto que antes proceda à devolução à locadora das coisas locadas. Registre-se que a renegociação das bases do contrato é a meta a ser buscada, tanto por uma questão de respeito ao princípio da conservação contratual, desdobramento da eficácia interna da função social dos contratos, quanto porque o locador, ao se deparar com as dificuldades do locatário que teve as suas atividades suspensas em decorrência da pandemia, seja por força do princípio constitucional da solidariedade social ou da fraternidade, seja por uma questão de cooperação, dever anexo ao princípio contratual da boa-fé objetiva, tem o dever de renegociar. REFERÊNCIAS GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 2: obrigações - 20. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019. SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas Contratuais. 03 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.2: direito das obrigações e responsabilidade civil - 12. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor da pós-graduação do Centro Universitário Mackenzie. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado em SP. **Renato Mello Leal é mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade FADISP. Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de artigos jurídicos. Advogado em SP. __________ 1 TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.2: direito das obrigações e responsabilidade civil - 12. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 214. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 2: obrigações - 20. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 325. 3 SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas Contratuais. 03 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2020.
Texto de autoria de Ronnie Preuss Duarte A Covid-19 e as modificações das obrigações: rebus sic stantibus x pacta sunt servanda Sabe-se que há muitos séculos o direito civil lida com a permanente tensão entre a autonomia privada (e a força vinculativa do contrato) e o imperativo de justiça, a recomendar a revisão de ajustes que se tornem marcadamente iníquos1. Historicamente, desde o século XII, o direito testemunha um movimento pendular que ora prestigia estritamente o que foi contratado (pacta sunt servanda), ora admite a consideração das alterações supervenientes ao status quo contemporâneo à contratação (rebus sic stantibus)2. Nos últimos tempos, por influxo do liberalismo no Brasil, havia franca opção por enfatizar a força vinculativa dos contratos, o que se extrai, inclusive, de vários dispositivos da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Contudo, em razão dos acontecimentos recentes e consoante já se percebe, haverá uma tendencial mitigação, por parte dos tribunais, da afirmada vinculatividade. Reforça-se a responsabilidade dos juízes na criação de padrões decisórios claros para a construção de uma jurisprudência que atenda aos reclamos do momento com o necessário equilíbrio e sem incorrer em qualquer dos pecados capitais: a omissão conveniente ou o intervencionismo exagerado. Nesse contexto singular, aos juízes é confiada a excelsa responsabilidade de, dentro do sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu inaugurar, clarear os caminhos e dar densidade a preceitos normativos resultantes da aplicação do direito a casos concretos, construindo um indicativo estável para todos aqueles envolvidos no tráfego jurídico. Aqui, o esforço é pela delimitação de um novo âmbito de legitimidade interventiva (ou seja: quando a intervenção do Judiciário será legítima), afastada, de logo, a abertura de uma via irrestrita para juízos de equidade, hipótese expressamente interdita em expressa previsão legal (parágrafo único do art. 140 do CPC). Neste ensaio, pretende-se a enunciação de critérios gerais para a atividade decisória no contexto presente, como forma de trazer alguma previsibilidade diante de um ambiente novidadeiro e, com isso, fomentar a segurança jurídica essencial à estabilidade das relações econômicas3. Revisão dos contratos: alteração das circunstâncias e a (re)distribuição dos riscos São várias as teorias doutrinárias voltadas à enunciação dos pressupostos e limites à revisão dos contratos, com particular destaque para a alteração da base do negócio (Geshäftsgrundlage), adotada explicitamente pelo Código Civil Alemão e pelo legislador português4. A regra em qualquer país situado em patamares avançados de desenvolvimento civilizatório é o estrito cumprimento ao quanto pactuado. Cuida-se, para além de imperativo da segurança jurídica, de requisito essencial à sanidade econômica de qualquer nação. As exceções dependem do atendimento aos pressupostos indicados no respectivo ordenamento jurídico. Assim é aqui no Brasil5. Na verdade, subjacente ao regime jurídico das relações obrigacionais está posta uma matriz de distribuição de risco. Aos sujeitos no tráfego jurídico são imputados riscos pelas superveniências, sendo certo que "as normas de risco não são meros postulados técnicos: elas correspondem a imperativos de justiça"6. Os prejuízos eventualmente sofridos recaem nas esferas jurídicas nas quais se verifiquem, daí a origem de expressões cujas origens remontam ao período justinianeu: res perit domino, casum sentit dominus, casum sentit creditor, the loss lies where it falls. Nos contratos sinalagmáticos, a regra da distribuição de riscos sugere que, tornando-se inviável a entrega da prestação por um dos contratantes, sem culpa deste, extingue-se a obrigação da contraparte (casum sentit creditor)7. A assunção de riscos é uma expressão da autonomia privada. É da essência da economia contratual que uns ganhem e outros percam no âmbito das relações negociais. Ao contrário do que pretendem alguns, não há norma geral que assegure, mediante um juízo de equidade, a redistribuição de prejuízos resultantes do malogro de qualquer dos contratantes por fatos supervenientes, ainda que decorra de circunstância injusta e inesperada. A partir da leitura dos dispositivos legais que admitem a revisão de contratos, infere-se uma limitação à respectiva admissibilidade. Há quase que um consenso no sentido de que só as alterações objetivas, relacionadas à prestação, é que relevam para fins de perquirição da revisibilidade8. Àquele que perde o emprego ou é acometido por moléstia grave não é dado, por exemplo, pretender eximir-se do pagamento das prestações pecuniárias por ele assumidas9. São as alterações na economia interna do contrato que podem atender aos pressupostos à revisão (ou à resolução) dos contratos. Nem a desgraça pessoal, nem a ventura trazida em superveniência é motivo suficiente para uma alteração nos ajustes contratuais. Os ganhos inesperados e as perdas imprevistas são da fisiologia das relações negociais10. No que toca ao reforço da excepcionalidade da revisão dos contratos civis em nosso ordenamento, temos de aludir às alterações da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) ao Código Civil, designadamente a previsão contida no respectivo artigo 421 do CCB11. Também digna de nota a previsão do art. 421-A, na qual se estabelece a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais, prevendo expressamente que "a revisão contratual, quando cabível, somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada". Cuidam-se de opções políticas legítimas do legislador que, em atenção à previsibilidade que convém à atividade econômica, claramente limita as intervenções judiciais nos contratos, operando-se na hipótese as regras ordinárias de distribuição de riscos. O dispositivo, mesmo em situações emergentes da Covid-19, serve de norte hermenêutico. A absoluta singularidade das circunstâncias presentes, os padrões decisórios e a jurisprudência de exceção; Não se pode desconsiderar a magnitude das repercussões sociais da pandemia da Covid-19, as quais se revelam absolutamente imprevisíveis. A analogia com as grandes conflagrações bélicas é mais que adequada. A doutrina reconhece fenômenos assemelhados como desencadeadores de efeitos jurídicos singulares, notadamente no campo das relações obrigacionais. Juristas portugueses e alemães inserem-nos na categoria conceitual das "grandes alterações das circunstâncias" ou "grande base do negócio"12. A história dá conta de grandes desenvolvimentos que foram incorporados ao direito na sequência de aplicações vanguardistas de institutos jurídicos realizadas em momentos de crise. Sobre o ponto, há interessante estudo de LOBBAN tratando especificamente dos impactos jurídicos da Primeira Grande Guerra em vários países europeus13. A tendência é que, pelo menos para a regulação dos efeitos jurídicos da pandemia, construa-se uma jurisprudência de exceção, que deverá atender à finalidade precípua de solucionar os significativos desafios do momento. É confiada aos juízes a missão de velar pela criação de padrões decisórios claros, evitando casuísmos animados pelo sentimento de comiseração e permitindo que a justiça seja administrada com observância à igualdade reclamada para todos os cidadãos em situação idêntica. A responsabilidade é enorme, já que, por razões óbvias, magistrados não possuem o conjunto de informações necessário à aferição dos efeitos macroeconômicos dos padrões decisórios que venham a ser estabelecidos. MENEZES CORDEIRO anota que ao juiz cabe a ponderação dos efeitos da decisão não apenas no caso concreto, mas também na sociedade, considerados os casos análogos que mereçam idêntico tratamento14. Em situações de perdas generalizadas, a multiplicação de decisões em casos individuais pode trazer reflexos econômicos extremamente perniciosos e imprevistos, levando à paralisia ou à quebra de agentes econômicos ou de segmentos empresariais importantes. Este será um ponto sempre digno de consideração. Bem por isso há de se ter, como condição à utilização de um importante sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu criar, uma preocupação singular na densificação de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, trazendo previsibilidade e ensejando uma uniformidade da aplicação do ordenamento jurídico. Assim, reforça-se o dever de observância aos elementos da decisão previstos no art. 489 do CPC. O dever de solidariedade contratual como uma manifestação da boa-fé. O desenvolvimento da doutrina da boa-fé, contudo, deu-se na Alemanha a partir da vigência do BGB em 1900. A partir do § 242 do BGB, consagradora de uma norma "aberta", construções doutrinárias e jurisprudenciais desenvolveram figuras que se consolidaram, influenciando subsequentemente vários códigos europeus. A resolução por onerosidade excessiva, a revisão contratual, a lesão e o estado de perigo são figuras associadas originalmente à boa-fé. Diz-se que a referência à boa-fé é "uma das janelas do sistema", apta à promoção da oxigenação do direito15. E em momentos de aguda crise, como aquele agora vivenciado, o recurso à boa-fé é ferramental de grande utilidade para juristas e aplicadores do direito. É, para usar a metáfora empregada por GALLO ao tratar dos conceitos jurídicos indeterminados, um "cheque em branco" ou uma "delegação" que o legislador concede à jurisprudência e ao intérprete16. As figuras da onerosidade excessiva e da supressio são dois exemplos de construções que, partindo da cláusula geral da boa-fé, vieram a ser consagradas na doutrina e na jurisprudência no contexto de crise decorrente de conflitos bélicos17. Inclusive, no caso da onerosidade excessiva, com a positivação de disciplina autônoma em vários ordenamentos jurídicos alterados sob inspiração alemã, dispensando-se a partir de então o recurso à cláusula geral18. Aqui no Brasil, para os fins perseguidos no presente trabalho, é de se referir à doutrina de SCHREIBER que, nestes tempos de pandemia tem angariado muita simpatia, por potencialmente servir de apanágio para a litigância excessiva que se prevê em razão da crise instalada. Em livro lançado em 2018, o jurista carioca defende, a partir da boa-fé objetiva (art. 422 do CPC), a criação de um dever de renegociação dos contratos em desequilíbrio. Para o autor, verificada uma situação de desequilíbrio contratual e sem a necessidade de previsão normativa específica, impõe a cláusula geral da boa-fé que o atingido , como dever anexo, cuide de "avisar prontamente à contraparte acerca do desequilíbrio contratual identificado", existindo a partir daí um "dever de ingressar em renegociação com vistas a obter o reequilíbrio do contrato". O dever de cooperação quedaria violado no caso de inércia diante do convite à renegociação. Não haveria, segundo SCHREIBER, a obrigação de aceitar a propostas, mas tão-somente o de entabular tratativas sérias com vistas ao reequilíbrio contratual, endereçando respostas em tempo razoável: a pronta interação e a comunicação satisfariam o dever lateral. Seria uma "obrigação de meio" e não de resultado19. O dever de renegociação, de inegável relevo nestes tempos pandêmicos, insere-se, como dito, num dever mais amplo de cooperação. A sua incidência, com a devida documentação, é de suma relevância para os fins de prova da violação do dever de solidariedade, nas condições presentemente defendidas. Mas o dever de cooperação pode ser visto em maior amplitude em circunstâncias absolutamente extraordinárias. ERHARDT JUNIOR, em escrito publicado em 2007, tratou dos reflexos do princípio constitucional da solidariedade, admitindo a possibilidade de se impor, nas relações contratuais, "atos de auxílio mútuo (colaboração), a partir de uma perspectiva solidarista". Na altura já advertia para a necessidade de cuidar "para que tal doutrina não se torne justificativa ideológica a um intervencionismo desorientado"20. A jurisprudência traz exemplos concretizadores do solidarismo contratual, a exemplo dos incontáveis precedentes do Superior Tribunal de Justiça reafirmando, há muito, a teoria do adimplemento substancial. Em acórdão relatado pelo ministro ROSADO DE AGUIAR, à míngua de expressa previsão legal, entendeu-se que "não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerado o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora"21. Mais recentemente, em acórdão relatado pelo ministro VILLAS BOAS CUÊVA, acolheu-se a exceção de ruína para alterar o regime de um plano de saúde coletivo cujo regime, se mantido, seria ruinoso para a empresa fornecedora, levando-a potencialmente à quebra da sociedade com prejuízo para todos os conveniados. Houve uma oneração coletiva dos consumidores para assegurar a manutenção da atividade econômica em benefício comum. É de se destacar a referência expressa, no acórdão, à "função social do contrato e solidariedade intergeracional, trazendo o dever de todos para a viabilização do próprio contrato de assistência médica". Registrou-se, ainda, na altura, a existência de "vedação da onerosidade excessiva tanto para o consumidor quanto para o fornecedor (art. 51, § 2º do CDC)"22. Os princípios constitucionais da solidariedade (art. 3º, I, da CF) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), apesar de banalizados, merecem referência por encontrarem, nos precedentes acima referidos, bem como na proposta agora apresentada, alguma concretização. Com efeito, é de se reconhecer, em determinadas situações extraordinárias, um dever de solidariedade nas relações contratuais. Não sob uma perspectiva romântica que imponha o dever moral de auxílio e de repartição equânime de perdas em ambiente de interesses legítima e essencialmente antagônicos, como sói ocorrer no âmbito das relações contratuais. Uma solidariedade que, destaque-se, é recíproca e não se dirige necessariamente ao contratante hipossuficiente. Nas relações de massa, em situações extremas, a imposição de uma conduta solidária e de pequenos sacrifícios em desfavor de uma coletividade de contratantes afigura-se possível. A proteção transitória da contraparte, em teoria economicamente mais forte, pode se fazer necessária para a preservação de organismos econômicos e até de setores da economia, atendendo-se ao bem comum23. Em tempos de sofrimento extraordinário e com base na boa-fé, o que se afirma é a possibilidade residual, em situações-limite, do juiz, ponderando as circunstâncias presentes no caso concreto, inclusive as condições subjetivas (pessoais) dos litigantes, proceder à mitigação de prejuízos escandalosos a uma das partes, sempre que a medida em causa impuser perdas mínimas à contraparte. É oportuno frisar que, considerado o contexto da pandemia, mesmo fora do âmbito das relações contratuais, o solidarismo também pode ser imposto por violação à boa fé subjetiva, agora já com base no art. 187 do CCB. Assim, sempre que na situação específica o exercício de direito subjetivo (inclusive direitos potestativos) ou de posição jurídica individual se configurar como extremamente lesiva a outrem, sem benefício correspondente para o respectivo titular, poderá o juiz determinar as medidas adequadas para a asseguração do dever de solidariedade. A figura tem aplicabilidade potencial em relações familiares, condominiais e societárias24. Delimitando o âmbito extraordinário de incidência do dever de solidariedade; O grande desafio, no presente ensaio, é delimitar o âmbito de incidência do dever anexo em causa, evitando a generalização de juízos de equidade e a disseminação de insegurança jurídica. A solidariedade que aqui se defende é limitada. Atende a situações específicas que exsurgem da pandemia. Se faz presente quando estiver, de um lado, parte exposta transitoriamente à iminente percepção de grave prejuízo patrimonial ou pessoal e, do outro, uma contraparte que não experimentará maiores danos com o retardamento do cumprimento ou com a temporária modulação da prestação de acordo com critérios de equidade. Imaginemos a situação de um microempresário atuante num pequeno comércio ambulante que, em virtude do isolamento, tenha sofrido solução de continuidade operacional transitória, incorrendo em mora e passando severa privação. Imaginemos, ainda, que o veículo utilizado para a atividade comercial tenha sido ofertado em garantia a um grande banco, comprovando-se que, nas tratativas de renegociação, foi solicitada a postergação do vencimento para a oportunidade normalização das atividades comerciais, garantido o pagamento de todos os encargos contratados. Em situação assemelhadas, visando a preservação do crédito do devedor e os prejuízos decorrentes da excussão da garantia, viável será a concessão de tutela jurisdicional para a suspensão temporária do pagamento, já que o banco credor não quedará exposto ao risco de percepção de prejuízos significativos. Importante frisar que o dever de solidariedade é recíproco. Não se destina à proteção exclusiva de hipossuficientes ou de parte individualmente mais fraca. Grandes grupos empresariais podem ser beneficiários da norma. Em relações jurídicas homogêneas massificadas, por exemplo, a revisão ou a resolução de contratos em escala poderá comprometer a continuidade das atividades empresariais da contraparte, justificando a atuação da norma, desde que preenchidos os pressupostos. Pela natureza excepcional, é de se recusar a respectiva incidência, por exemplo, de maneira indistinta a relações jurídicas massificadas e sem a consideração às particularidades individuais (de cada caso concreto). É de se evitar a sua aplicação no âmbito das ações coletivas, dada a dificuldade de se considerar a situação singular de cada indivíduo do grupo (substituídos no processo). A concessão linear de descontos ou moratórias é algo que pode impingir inaceitável dano à contraparte credora que também estará, provavelmente, atravessando período de crise. É de se recusar, ainda, a aplicação do dever de solidariedade quando não houver desproporção entre a gravidade das repercussões nas esferas pessoais de ambos os contratantes. À guisa de exemplo, utilizemo-nos do mesmo exemplo trazido acima, do microempresário ambulante, todavia substituindo o banco credor por uma pessoa física igualmente afetada em seus rendimentos por força da Covid-19 e, portanto, com problemas de iliquidez. Ausente a desproporção, forçoso o afastamento da incidência do dever de solidariedade, cuja aplicação é circunscrita a situações excepcionais. Dever de solidariedade em sua dimensão processual; A dimensão processual do dever de solidariedade é admissível por força da previsão contida no art. 8º do CPC, para o qual, "ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade e a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência". É na concretização do direito material, tornado efetivo por intermédio do processo sempre com a necessária atenção ao bem comum e à preservação da dignidade da pessoa humana que se abre a possibilidade das repercussões processuais do dever de solidariedade decorrente da boa-fé. Dá-se como exemplo as situações de violação às obrigações contratuais já judicializadas, quando da execução de decisões definitivas ou provisórias. Estas, no presente momento, podem eventualmente materializar a violação do dever de solidariedade. A superveniência da pandemia é hipótese em que se defere ao réu a dedução de novas alegações nos autos (art. 342, I, do CPC), sendo ela um fato público e notório a dispensar a produção de prova (art. 374, I, do CPC). O art. 493 do CPC permite, aliás, que, ouvida a adversa parte para evitar a prolação de decisão surpresa (nos termos do respectivo parágrafo único), o fato modificativo seja passível de conhecimento oficioso pelo juiz. Também o art. 933 do CPC permite a respectiva consideração oficiosa, por parte do relator, em grau de recurso. A noção de "fato modificativo", para os fins aqui colimados, merece uma interpretação extensiva. Cuida-se de um fato novo ensejador do impedimento temporário para a execução de decisão25. Se, por ocasião da prolação da decisão e à luz do conjunto probatório existente, o juiz ou o relator constatarem situação em que o dever de solidariedade se apresenta, poderá retardar o cumprimento da decisão judicial, atendidos os pressupostos já indicados, nomeadamente a ausência de prejuízo de maior monta a ser suportado pelo beneficiário da tutela jurisdicional. Imaginemos, por exemplo, uma relação locatícia envolvendo como locador um abastado industrial e como locatário sem recursos e cujo contrato de trabalho foi rescindido por força das consequências da Covid-19, tornando-se inadimplente em plena situação de "lockdown". Independentemente de qualquer previsão normativa, com base no dever de solidariedade que resulta da cláusula geral da boa-fé, o juiz poderia retardar extraordinariamente a efetivação do despejo. No caso de ações em curso, admitida a possibilidade de consideração de superveniências fáticas, poderia o juiz suspender a execução do despejo ou, em grau de recurso, conceder-se efeito suspensivo temporário, até a normalização das atividades sociais. *Ronnie Preuss Duarte é diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia do Conselho Federal da OAB. __________ 1 TERRANOVA registra expressamente que parte da doutrina e da jurisprudência encontram o fundamento da cláusula rebus sic stantibus na equidade. Pode-se afirmar, então, ser ela um mecanismo para concretização do sentimento de justiça contratual no caso concreto (TERRANOVA, Carlo G. Il Codice Civile Commentario - L'eccessiva onerosità nei contratti. Milâo: Giuffré, 1995, p. 17) 2 MENEZES CORDEIRO traz o escorço histórico, anotando expressamente quanto à cláusula rebus sic stantibus uma "evolução pendular quanto ao tema: os juristas do século das luzes vieram a apoiar e, depois, a desamparar, de novo, a doutrina da clausula". (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV. p. 269) 3 OTERO afirma expressamente que uma das emanações da segurança jurídica é a "garantia decorrente da previsibilidade de que tais decisões concretas se traduzirão na aplicação ao caso individual de critérios já fixados em termos gerais por normas jurídicas antecipadamente conhecidas". (OTERO, Paulo. Lições de introdução ao estudo do direito. Lisboa: Pedro Ferreira, 1998, vol. 1, t. I, p. 204 4 Na sua concepção original, construída por OERTMANN, base do negócio "consiste na representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou na representação comum aos vários intervenientes, sobre a existência de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a firmação da vontade". (ALMEIDA COSTA, Mário Julio. Direito das Obrigações. Coimbra: Almedina, 2004, p. 295.)) 5 Sobre os pressupostos ver TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. ún. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 438-439) 6 MENEZES CORDEIRO, idem, p. 296 7 "Nos denominados contratos bilaterais, o risco, de algum modo, distribui-se pelas partes: o credor vê desaparecer o seu direito pela impossibilitação da prestação, mas exonera-se da contraprestação, tendo a faculdade, se já a houver realizado, de a reaver nos termos do enriquecimento sem causa". (MENEZES CORDEIRO, idem, p. 295) 8 "Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença, tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações, porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só o enriquecimento de um e empobrecimento do outro". (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 1913-2004. Instituições de Direito Civil: volume 3: contratos, rev. e atual. Caitlin Mulholland. - 22. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 180-181) 9 Nesse contexto, entendeu o STJ que, para justificar a revisão contratual, seria necessário fato imprevisível ou extraordinário, que tornasse excessivamente oneroso o contrato, não se configurando como tal eventual desemprego ou redução da renda do contratante. (...). Esta Corte já decidiu que tanto a teoria da base objetiva quanto a teoria da imprevisão "demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato" (AgInt no REsp 1.514.093/CE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJe de 7/11/2016), não sendo este o caso dos autos. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 1.340.589/SE, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 27/05/2019) 10 Como bem lembra VARELA, tratando especificamente de uma compreensão bastante restritiva do que se entende impossibilidade de cumprimento, afastando-se o infortúnio pessoal como escusa para o inadimplemento: "A dureza que a solução possa revestir em certos casos, forçando o devedor a sacrifícios aparentemente excessivos para cumprir, não é ao direito civil, através do afrouxamento do vínculo obrigacional, que compete atenuá-la, mas ao direito processual civil, impedindo na acção executiva a penhora e a venda judicial de bens essenciais à vida e ao sustento do executado e de seu agregado familiar" (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, p. 73) 11 Art. 421, parágrafo único do CCB - "Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". 12 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV, p. 326 13 LOBBAN, Michael. Special issue the Great War and private law: Introduction Lobban. Reino Unido: Hart, 2014, p. 165, consultado em 12.5.2020 no endereço eletrônico. Também VARELA dá conta que, na Alemanha, durante primeira guerra mundial, houve um alargamento do conceito de impossibilidade de cumprimento da prestação para fazer frente ao contexto existente. Na altura, alguns setores da doutrina alemã "consideravam liberatória, em certos termos, a mera impossibilidade relativa ou econômica" (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, pp. 68-69) 14 "Perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode, perante as outras, ter consequências distorcidas: a sua ponderação requer a instrumentalização própria dos departamentos técnicos que é suposto auxiliarem o legislador na sua tarefa. Por outro lado, a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes, e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador." (Idem, p. 329) 15 VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil: relatório. Lisboa: Editora FDUL, 2000, p. 65 16 Diz o autor, ainda, que seriam "um tipo de anel de conjunção ou de ligação entre aquela que é esfera típica do legislador e aquele que é, por seu turno, o campo de ação do intérprete e do juiz". (GALLO, Paolo. Buona fede oggetiva e transformazioni del contrato. Rivista di Diritto Civile. Pádua: Editora Cedam, n. 2, mar-abr, 2002, p. 240) 17 NEVES também lembra de decisão do Supremo Tribunal Alemão que, no contexto de crise imediatamente posterior à Primeira Grande Guerra admitiu a "Aufwertung" (reavaliação da moeda). (NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. Rio: Editora GZ, 2018, p. 198) 18 MENEZES CORDEIRO, em afirmativa expressamente refutada por LOBBAN, registrou que "a grave crise econômica registrada na Alemanha, no espaço entre as duas guerras, levou a jurisprudência a reconhecer definitivamente eficácia à alteração das circunstâncias, em nome da boa fé" (idem, p. 274). Em outra obra, sobre a surrectio, ver, do mesmo autor, o Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, v. 1, 1999, p. 206. 19 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, kindle, Pos 4864 de 12806 e ss. 20 ERHARDT JUNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque. O princípio constitucional da solidariedade e seus reflexos no campo contratual. publicado em 05/2007 no sítio, em consulta realizada em 13/5/2020 21 REsp 469.577/SC, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 25.3.2003, DJU 05.05.2003, p. 310 22 Resp 1479420/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 01.09.2015, DJe 11.09.2015 23 Anote-se que a medida de normatização de um regime emergencial deve ser adotada preferencialmente pelos poderes Executivo ou Legislativo, como ocorreu com as medidas provisórias 925/2020 e 948/2020, quando um regime especial foi instituído para a proteção dos setores da aviação civil, do turismo e da cultura. Contudo, em situações extremas, consideradas as circunstâncias, também o estado-juiz poderá fazê-lo. Como já indicado, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a exceção de ruína para adequações em relações coletivas. 24 Como bem pontuado por MENEZES CORDEIRO, "as instâncias de decisão - maxime, os tribunais - foram levadas, com ou sem o apoio da doutrina, a encontrar novas soluções, por vezes mesmo contra legem. Instáveis no início, essas soluções vieram a cristalizar-se em institutos que hoje ninguém poria em dúvida' e conclui dizendo que "apenas a inventividade permitirá encontrar soluções ainda redutíveis ao Direito e não ao mero arbítrio" (Idem, p. 265). 25 Apesar da ausência menção expressa no texto legal no que toca a atendibilidade superveniente dos fatos impeditivos (em particularidade que é comum ao CPC/73), CUNHA observa que "os fatos impeditivos podem, entretanto, ser objeto de conhecimento superveniente, devendo, então, ser considerados inseridos na previsão legal". (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 91).
Texto de autoria de Bruno Casagrande e Silva, Jânio Urbano Marinho Júnior e Ricardo Alves de Lima Em dezembro de 2019 a realidade como conhecíamos até então deixou de existir. A OMS declarou que um vírus originado na China tomou proporções de pandemia, com potencial de repetir o efeito devastador da gripe espanhola do começo do século XX, uma das mais mortais pandemias que o mundo já havia experimentado. José Fernando Simão1, em precisa reflexão, propõe que vivíamos uma Belle Époque - que ele se refere como a Realidade A - que acabou, no Brasil, no dia 11 de março de 2020, quando passamos a viver uma nova realidade, a Realidade B, temporária e fugaz, porém fortemente marcada pelos efeitos da Covid-19 em toda a sociedade, nos diversos ramos contratuais inclusive. Os efeitos econômicos da paralisação da humanidade são evidentes e dispensam aprofundados estudos para a sua constatação. Os seus efetivos impactos somente serão apurados no futuro, porém há impactos imediatos que já são sentidos por todos. Assim, não tardou a distribuição de processos judiciais, em sua maioria empresariais, visando postergar ou revisitar os contratos até então vigentes no afã de se precaver de eventuais problemas financeiros ou mesmo visando benefícios oportunistas. Se aqui, no Brasil, ainda estamos discutindo o PL 1.179, de 2020, nossos irmãos portugueses rapidamente declararam estado de emergência, em 18 de março de 2020, e aprovaram a Lei nº 4-C, em 6 de abril de 2020, buscando solucionar alguns dos problemas relativos aos arrendamentos de imóveis habitacionais ou não-habitacionais2, impondo uma moratória contratual indiscriminada aos contratos lá celebrados já aplicável às rendas vencidas a partir de 01 de abril de 2020. Segundo o artigo 1º da lei 4-C, trata-se de "um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica provocada pela doença Covid-19", que se aplica, em linhas gerais, no caso de arrendamento habitacional, quando ocorrer uma redução da renda familiar do arrendatário superior a 20% e comprometimento percentual dessa renda acima de 35% (artigo 3º). A moratória, também, é aplicável ao arrendamento urbano não habitacional nas hipóteses do artigo 7º da mesma lei, que se refere basicamente às situações de suspensão das atividades empresárias em razão da COVID-19, podendo, nos termos do artigo 8º, o pagamento ser diferido para depois do término do período emergencial, com o pagamento sendo feito parceladamente, em 12 meses, no grão mínimo de um duodécimo mensal. O regime excepcional português proíbe a cobrança de mora, de indemnização (multa) e a resolução de contratos, sendo que a caducidade3 (fim de vigência) dos contratos de arrendamento urbano habitacional também foi suspensa por 3 meses, para não prejudicar as famílias arrendatárias. Não se olvide, em primeiro lugar, que a doutrina brasileira já vem defendendo a necessidade de uma lei para estabilizar o mercado e dar tranquilidade ao cidadão. Uma primeira tentativa, como já dito, está se dando no PL 1.179, de 2020, que foi aprovada no Senado Federal e tramita na Câmara dos Deputados em uma espécie de fast track, afastando a concessão de liminar para desocupação em algumas hipóteses, entre elas, o termo do contrato por tempo (artigo 59, §1º, incisos VIII e IX da lei 8.245, de 1991). Sob esse aspecto, não se pode negar a ousadia do legislador português em trazer uma ampla regulamentação do tema em tão breve período. O projeto brasileiro, que foi originalmente proposto pelo Senador Antonio Anastasia, propunha "suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020", quando os locatários residenciais eventualmente experimentassem alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração (artigo 10 do projeto original). Esse dispositivo não consta do texto aprovado no Senado Federal e enviado para a Câmara dos Deputados, mudança que desde já, consideramos positivas, pelos motivos que passamos a tecer. Já se pode perceber, quer pela solução dada em Portugal, quer pela atual discussão legislativa no Brasil, que a possibilidade de moratória ou mesmo a suspensão parcial do contrato de locação residencial é polêmica4. José Fernando Simão afirma que "a pandemia que gera desemprego ou redução de remuneração não altera o sinalagma contratual e não é motivo (em termos jurídicos) para a revisão contratual", pois não há restrições ao uso do imóvel5. A par da discussão, o fato é que já se tem notícia de dezenas de decisões judiciais, ora sendo extremamente benevolentes com os locatários, ora adotando uma linha mais restritiva. No caso brasileiro, observando a produção das decisões judiciais organicamente, nos parece que se caminha para uma busca de solução mais casuística, diversamente da opção portuguesa. Se o problema da moratória irrestrita, adotada por Portugal, parece ser o engessamento da mesma solução frente a situações, certamente diferentes juridicamente, no Brasil, a discussão caminha para uma busca de critérios mais adequados para os diferentes casos assemelhados que já começam a assoberbar o Poder Judiciário, ainda que com muitos equívocos. À guisa de exemplo de opções equivocadas, com a devida vênia, apresentamos a decisão da 8ª Vara Cível da Comarca de Campinas, em São Paulo, que concedeu medida liminar em favor um restaurante localizado em praça de alimentação de shopping suspendendo o pagamento do aluguel mínimo mensal e do fundo de promoção e propaganda enquanto o shopping permanecer fechado por determinação do poder público6. Note-se, por exemplo, que nesse caso, ainda que se trate de tutela provisória, a magistrada impõe moratória que, se repetida na totalidade de lojistas, pode comprometer a própria existência do shopping como um todo. A situação não seria menos grave que, ao arrepio da realidade atual - onde o diálogo e transação são as melhores soluções aos problemas, a magistrada decide pela não realização de audiência de conciliação por pressupor a impossibilidade de composição consensual entre as partes, sem sequer ouvir a parte ex adversa. Um ponto que deve ser observado no modelo brasileiro é que as locações residenciais e não-residenciais são influenciadas por princípios diversos do Direito. Enquanto nas locações residenciais são regidas pelo direito fundamental à moradia, oportunamente previsto no caput do artigo 6º da Constituição Federal, a locação não-residencial deve ser analisada à luz do princípio da preservação da empresa. Portanto, de fato, não parece ser razoável conferir a mesma solução jurídica, de forma indiscriminada, para as locações residenciais, que - como dito - não traz restrições ao uso do imóvel, e para as locações não residenciais, em que o próprio Poder Público impôs restrições duras aos empresários. Certamente, um aspecto que merece ser considerado na moratória irrestrita é o possível incremento da crise econômica que pode causar (ou que possivelmente ocorrerá) e que não pode ser ignorado pelo Direito brasileiro, até mesmo porque, segundo o artigo 20 da LINDB, atualmente, "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Sob outro aspecto, não se deve ignorar que a locação residencial se relaciona com o direito constitucional à moradia. Ainda que, de fato, não haja alteração no sinalagma contratual, o Direito não pode desprezar esse aspecto, que parece ter sido considerado pelo projeto de lei ao limitar a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo (artigo 9º). A questão que se coloca, portanto, é se isoladamente esse instrumento processual seria capaz de adequadamente equilibrar as situações econômico-financeiras das partes no contrato de locação. Em coluna eletrônica, Anderson Schreiber7 aponta aquele que acreditamos ser o melhor caminho a ser seguido no Brasil, a adoção cautelosa na análise do contrato, casuisticamente, observando-se a boa-fé objetiva e o dever de indenizar. Acreditamos que a medida mais adequada é que, considerando a disponibilidade dos bens tutelados, não seria um modelo semelhante ao português, que - com uma solapada indiscriminada - impôs uma moratória que necessariamente depende de prova de situação fática para ser aplicável, o que com certeza, em razão da nossa cultura negocial brasileira, resultaria no mesmo volume de demandas para comprovação dos fatos questionados perante o Poder Judiciário, gerando uma avalanche processual de mesma intensidade caso a opção fosse pela inércia legislativa. O incentivo e desenvolvimento da mediação e da arbitragem é a solução que nos parece mais oportuna, buscando, nesse período de instabilidades a busca de um contrato de "soma zero", onde nem locador nem o locatário saiam em posição de vantagem ou prejuízo. Isso somente será possível se os magistrados compreenderem que a mediação é uma solução indispensável, diferentemente da opção que vem sendo adotada em liminares pelo Brasil, e não partirem da presunção de que os contratos de locação não poderão ser cumpridos, onerando apenas os locadores. Como lembrado por Flávio Tartuce, "chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade"8. Na busca de uma solução, Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício defendem a edição de medida legislativa, tendo efetivamente proposto uma possível emenda ao PL 1.179, de 2020, fixando um pagamento mínimo de 30% do valor devido e parcelando-se o saldo "pelos seis meses seguintes à data do vencimento"9. Propõem, também a possibilidade de extensão da moratória aos empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O interessante da proposta de Tartuce, Simão e Bunazar - que devemos deixar evidente - é que a base jurídica para fundamentar a opção legislativa já se encontra positivada no Direito Brasileiro, no artigo 916 do Código de Processo Civil, sendo reconhecida a sua plena eficácia e constitucionalidade. Com as mais devidas vênias, acreditamos que o caminho proposto pelos autores, cuja solução se apresenta em patamares fixos, seja a melhor a ser adotada. Note-se que os próprios autores, cientes das dificuldades que envolvem a casuística, fizeram constar uma norma de salvaguarda do locador, nos seguintes termos: "O juiz deverá levar em consideração a condição econômico-financeira do locador para, se for o caso, deixar de aplicar o disposto neste artigo ou mitigar equitativamente sua aplicação". De outra banda, acreditamos louvável e digna de reflexão a ideia de Marco Aurélio Bezerra de Mello10, que propõe uma lei federal de natureza excepcional e temporária, impondo um dever colaborativo em nível de direito material, dentro de uma roupagem diversa da proposta anterior, porém bastante promissora. Realmente, uma normativa que imponha às partes o dever de renegociar colaborativamente talvez tenha o condão de atuar educativamente, promovendo um consenso privado, até mesmo dispensando a intervenção de terceiros e reforçando a autonomia da vontade dos envolvidos. Ambas propostas têm méritos, buscando uma solução segura e justa em momento em que, sem dúvidas, há pressa. A primeira, se alicerça em um patamar processual testado e firme, porém incompatível com a liberdade de contratar. A outra, busca a solução mais próxima da liberdade de contratar, porém demanda atuação processual. A vantagem da segunda sobre a primeira reside, tão somente, no fato em que - havendo acordo - evita-se a judicialização e se acelera o resultado, preservando a autonomia da vontade. Não havendo acordo, em um segundo momento, a moratória compulsória deve ser considerada, conforme proposta supra, até porque, inclusive, serve como patamar mínimo e prévio, com um efeito educativo de incentivar a renegociação, mas não absoluto, já que existe a ressalva que permite o afastamento da regra geral conforme for o caso concreto do locador. A nosso ver, a soma dessas duas propostas funciona como um guia de resolução de conflitos, uma tentativa de instilar bom senso às massas, que acabam partindo para a beligerância sem ter a real compreensão do custo - humano e financeiro - de uma demanda judicial. O direito de propriedade é considerado essencial, remontando à primeira geração de direitos fundamentais. Ele deve ser conformado pela principiologia contemporânea do Direito Civil Constitucional, que busca assegurar o Direito à moradia e a preservação da empresa, porém uma medida de moratória compulsória deve ser aplicada cum grano salis, sob pena de inviabilização generalizada do próprio instituto da locação no Direito brasileiro por um período longo de tempo, causando um mal ainda maior - jurídico e econômico - do que aquele que se busca combater. *Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Faculdade de Nova Mutum (FAMUTUM). Membro do IBDCont, IBDCivil e IBERC. Advogado e consultor jurídico. **Jânio Urbano Marinho Júnior é mestre em Direito pela FADISP. Defensor Público Federal. Vice-Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União. Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas Campos Salles. ***Ricardo Alves de Lima é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra/USP. Especialista em Direito Empresarial pela UCB/INPG. Diretor Acadêmico da EXCELSU Educacional. Coordenador de cursos de pós-graduação lato sensu. Avaliador do INEP/MEC. Advogado inscrito na OAB/SP n.º 204.578. __________ 1 SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas: Uma reflexão de 7 de abril de 2020. IBDFAM, 2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 2 Na legislação portuguesa os nossos contratos de locação de imóveis são denominados arrendamentos. O termo locação é mais apropriado para bens móveis. 3 As questões sobre a resolução e a caducidade dos contratos de arrendamento são tratadas em diversos artigos no CC Português, por exemplo: artigos 1047º e ss, 1051º e ss, 1083 e ss. Assentando algumas controvérsias na aplicação do instituto da caducidade o Tribunal da Relação do Porto, firmou posicionamento por acórdão unânime em 11 de janeiro de 2018, nos autos da Apelação 4075/16.2T8MTS-C.P1, com relatoria do Des. Aristides Rodrigues de Almeida. Acesso em:08 mai. 2020. 4 Para um aprofundamento dessa polêmica, recomenda-se consultar artigo publicado nesta mesma seção do Migalhas pelo Professor Flávio Tartuce: TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em:08 mai. 2020. 5 SIMÃO, José Fernando. Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Migalhas Contratuais. Migalhas, 30.04.2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 6 TJ/SP. Tutela Cautelar Antecedente. 1010893-84.2020.8.26.0114. 8ª Vara Cível de Campinas. Juíza Bruna Marchese e Silva. Julg. 30 mar. 2020 e publ. 04 maio 2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 7 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas Contratuais. Migalhas, 23.03.2019. Acesso em: 08 mai. 2020. 8 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em: 08 mai. 2020. 9 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; BUNAZAR, Maurício. Da necessidade de uma norma emergencial sobre locação imobiliária em tempos de pandemia. Migalhas Contratuais. Migalhas, 11 maio 2020. Acesso em: 11 maio 2020. 10 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27 abr. 2020. Acesso em: 08 mai. 2020.
Texto de autoria de Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício Bunazar Tramita no Congresso Nacional - atualmente na Câmara dos Deputados - o Projeto de lei 1.179/2020, proposto pelo senador Antonio Anastasia, após uma iniciativa do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A proposta legislativa cria um "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (covid-19)"; e contou com a nossa participação, conjuntamente com outros juristas, liderados pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que assessoraram os trabalhos legislativos. Naquela etapa inicial, quando o projeto era debatido no Senado Federal, fizemos sugestões ao texto, algumas delas acatadas, a saber: a) aprimoramento do dispositivo que trata da prescrição e da decadência (art. 3º) e; b) previsão a respeito da prorrogação automática dos mandatos dos síndicos em condomínios edilícios, vencidos no período da pandemia (art. 12, parágrafo único). Entretanto, entre as sugestões que não foram acolhidas, destacamos a regra geral a respeito da possibilidade da revisão contratual nos contratos de locação urbana. O projeto aprovado traz apenas uma previsão a respeito do afastamento do despejo liminar - permitido pelo artigo 59 parágrafo único da lei 8.245/1991 -, em algumas hipóteses envolvendo a locação imobiliária (art. 9º). Abaixo, transcrevemos a nossa proposição sobre revisão dos contratos de locação urbana, ao lado da redação original que constava do PL 1.179/2020: Nas justificativas que enviamos ao Professor Otávio Luiz Rodrigues, Jr., coordenador da comissão de juristas que atuou no Senado Federal, pontuamos o nosso entendimento conjunto de que a simples suspensão do pagamento dos aluguéis pelos locatários, como constava do projeto, seria excessivamente onerosa aos locadores. Por isso, nos termos do novo § 5º, a situação econômica do locador também deve ser levada em conta e, se for o caso, a moratória deve ser afastada. Propusemos, ainda, a moratória legal em termos próximos aos do artigo 916 do Código de Processo Civil vigente. Esse plano de pagamento por nós sugerido, por estar previsto na própria lei processual, é interessante, experimentado e aceito pelas partes e magistrados, já havendo larga experiência quanto à sua efetivação, e pode, portanto, ser aplicado para outras esferas, como por exemplo nas locações. Também sugerimos a inclusão de preceito segundo o qual a regra incidiria para a locação não residencial, desde que exercida por empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O objetivo seria a tutela de pequenos empresários locatários, dando-lhes a oportunidade de fazer uso da moratória legal, se for o caso. Essas sugestões acabaram por se acatadas pela comissão de juristas que auxiliava o Senado Federal para a aprovação do projeto. Todavia, infelizmente, a proposição - artigo 10 do projeto -, acabou por ser retirada pelo próprio Senador Anastasia e também pela Relatora, Senadora Simone Tebet. A retirada deveu-se à preocupação dos senadores mencionados com a situação dos locadores, que poderiam vir a ser prejudicados economicamente ao não receberem a integralidade do que lhes é devido. No entanto, a realidade que se revela neste curto período de crise é a da existência de inúmeras demandas ajuizadas por inquilinos pleiteando ora a redução do valor dos alugueres, ora a cessação integral da obrigação de pagar. À falta de uma norma legal que forneça critérios objetivos e, por isso seguros aos magistrados, o que se vê são decisões muito divergentes entre si, o que colabora para a criação de um ambiente de insegurança jurídica e de incremento de conflitos. Se dúvida havia sobre a necessidade de uma lei disciplinado especificamente a questão da locação em tempos de pandemia, a realidade fática superou essa dúvida. Em pesquisa realizada no portal Jusbrasil no dia 8 de maio de 2020, em ferramenta que propicia o encontro de julgados que mencionam os termos não só nas suas ementas como também nos corpos das decisões, foram encontrados 182 resultados com as expressões "locação" e "pandemia"; e 149 resultados com "locação" e "Covid". Pontue-se que tal pesquisa elenca não só decisões de segundo como de primeiro grau. Entre essas, como já apontado, existe uma grande variação nas conclusões dos julgadores, notadamente em sede de cognição sumária, para a concessão ou não de tutelas provisórias. De início, afastando-se a concessão de medidas de urgência para a suspensão ou redução dos pagamentos de aluguéis, destacamos, somente para ilustrar: "LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO REVISIONAL. PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. SUSPENSÃO DA OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO OU REDUÇÃO DO VALOR DA LOCAÇÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA DECORRENTE DO COVID-19. Requisitos ausentes. INDEFERIMENTO. Manutenção da decisão recorrida. Ausentes os requisitos legais do art. 300 do CPC, o indeferimento da tutela provisória de urgência é medida que se impõe. RECURSO DESPROVIDO" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2070513-61.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13513877, São José dos Campos, Vigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antonio Nascimento, julgado em 28/04/2020, DJESP 05/05/2020, pág. 2236). "LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. TUTELA DE URGÊNCIA DESTINADA A SUSPENDER A EXIGIBILIDADE DOS ALUGUÉIS EM FACE DA QUARENTENA DECORRENTE DA PANDEMIA POR COVID-19. DESCABIMENTO. Moratória que pelo regime legal não pode ser imposta ao credor pelo Juiz, devendo decorrer de ato negocial entre as partes ou por força de especial disposição legal. Evocação. Do caso fortuito e força maior que tampouco autoriza aquela medida. Cabimento, porém, da vedação à extração de protesto de título representativo do crédito por aluguéis. Recurso parcialmente provido". (TJSP, Agravo de instrumento n. 2063701-03.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13459046, São Paulo, Trigésima Sexta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Arantes Theodoro, julgado em 06/04/2020, DJESP 13/04/2020, pág. 1824). Outros julgados e decisões, porém, concedem as medidas pleiteadas, com redução de percentuais dos aluguéis que variam de 20% a 50% do valor pago, enquanto durara pandemia. Mais uma vez somente a ilustrar, cite-se decisum da 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal Paulista que, em 6 de maio, reformou decisão de primeiro grau que havia indeferido a concessão da tutela provisória, e que restou assim ementada: "Locação comercial. Tutela de urgência. Pandemia por COVID19. Redução do valor do aluguel em face da proibição à abertura do estabelecimento comercial. Fato do príncipe que corresponde à figura da força maior. Artigo 317 do Código Civil que autoriza nesses casos a readequação do valor da contraprestação. Redução em 50% que se mostra razoável enquanto persistir aquela proibição. Recurso provido" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20817534720208260000, Relator Des. Arantes Theodoro, data de julgamento: 06/05/2020, 36ª Câmara de Direito Privado). Também existem decisões, em sede de locação em "shopping center", que determinam o pagamento de valores mínimos, diante da ausência de atividades no local, como outra do Tribunal Paulista, em que se concedeu tutela provisória de urgência para o pagamento apenas do "aluguel percentual". Como consta do trecho de sua ementa, que novamente cita o art. 317 da codificação privada, "pela análise dos elementos constantes nos autos, em juízo de cognição sumária, considerando a relação continuada de locação, o fechamento do shopping devido à pandemia e os dados apresentados, cabe, a priori, observar a teoria da imprevisão, nos termos do art. 317 do CC, sopesando os valores sociais em conflito. Assim, estão preenchidos os requisitos necessários para concessão da tutela de urgência em relação ao pagamento temporário de 'aluguel percentual' até ulterior deliberação, mantidos os pagamentos das despesas de condomínio e demais encargos" (TJSP, Agravo de instrumento n. 20670017020208260000, Relator Des. Kioitsi Chicuta, data de julgamento: 23/09/2016, 32ª Câmara de Direito Privado). Como dissemos anteriormente, as decisões já passam de uma centena, em pouco mais de dois meses, sendo desnecessário mencionar outros julgados, uma vez que a finalidade deste artigo é reforçar a conveniência de uma norma jurídica que traga algum critério objetivo para a resolução das disputas locatícias, que devem se avolumar nos próximos meses, e também depois que passar o primeiro surto da pandemia. Em não havendo norma jurídica específica, os julgadores serão obrigados a decidir com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito - como determina o artigo 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro -, o que, não raro, conduz a julgamentos de equidade, por definição, imprevisíveis e inseguros. A nossa opinião é que é necessário se garantir uma coerência decisória por meio de um parâmetro lega de modo a evitar o colapso do regime contratual da locação por disparidade de decisões em casos idênticos. Espera-se, assim, que o Congresso Nacional aproveite a tramitação do PL 1.179/2020 para regulamentar a questão premente das locações imobiliárias e trazer um mínimo de certeza e de segurança para locadores e locatários. Se por um lado são louváveis as ponderações de parte da doutrina no sentido de se privilegiar "análise do caso concreto", por outro a experiência mostra que esse espaço de conformação deixado ao magistrado é fonte de grandes instabilidades, como já se viu em inúmeras experiências do Direito Contratual Brasileiro. Como palavras finais, não se pode negar que uma norma jurídica tratando do tema traria maior certeza para a tese que ora se propõe, devendo a temática ser debatida pela comunidade jurídica nacional nestes duros tempos, de "escolhas trágicas". *Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente e Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico. **José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico. ***Maurício Bunazar é pós-doutorando, doutor e mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil do Damásio Educacional e do IBMECSP. Fundador e Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado em SP.
Texto de autoria de Salomão Resedá Sumário: 1. A INTRODUÇÃO E O "ERA UMA VEZ". 2. E A HISTÓRIA DO CHAPEUZINHO VERMELHO? 3. VOVOZINHA, É VOCÊ?; 4. A DESCOBERTA DO LOBO MAU. 5. A TRAVESSIA DA FLORESTA DEPOIS DO COVID-19. 6. A CONCLUSÃO. NA HISTÓRIA, NÃO PODERIA FALTAR O CAÇADOR. Resumo: Quando do início do alcance da pandemia do COVID-19 no Brasil, a FEBRABAN anunciou que os cinco maiores bancos a ela vinculados fariam uma prorrogação de até duas prestações dos financiamentos travados com seus consumidores. Muitos comemoraram esta atitude por parecer algo bastante benéfico ao consumidor, mas seria isso mesmo? Será que por trás da vovozinha deitada na cama, não existe um lobo mau escondido? 1. A introdução e o "era uma vez". Era o início da determinação de quarentena por parte dos Estados. O país ainda tentava posicionar-se perante a pandemia que se tornava uma realidade incontestável. Aquilo que apenas era um acontecimento em países estrangeiros começava a apresentar suas sombras sobre o território pátrio. Apesar do susto social, algumas instituições financeiras sinalizaram a adoção de medidas de prorrogação de duas parcelas de financiamento de bens, abrangendo os meses de março e de abril do corrente ano de 2020. A notícia caiu como um bálsamo perante as nuvens de más notícias que se aproximavam. Enquanto os Estados se preparavam para a determinação do isolamento social horizontal, os economistas projetavam a forte redução da capacidade produtiva, da empregabilidade e, por consequência, o aumento da situação de inadimplência dos indivíduos. Nessa esteira de causa e consequência, as instituições bancárias anteciparam-se e anunciaram a possibilidade de prorrogação de duas prestações vinculadas aos meses mais críticos - pelo menos por uma projeção inicial - decorrentes pela pandemia. Sob o manto de um esforço para assegurar medidas de estímulo à economia, a FEBRABAN comunicou que os cinco maiores bancos associados estariam "comprometidos em atender pedidos de prorrogação, por 60 dias, dos vencimentos de dívidas de clientes pessoas físicas e micro e pequenas empresas para os contratos vigentes em dia e limitados aos valores já utilizados"1. Apesar de toda empolgação oriunda do anúncio, alguns cuidados devem ser levados em consideração antes de aderir à proposta. 2. E a história do chapeuzinho vermelho? Historicamente, afirma-se que Charles Perrault foi o primeiro escritor a reproduzir a história do Chapeuzinho Vermelho, no século XVII, a partir da edição de uma coleção de contos populares. Originário do Norte dos Alpes, o conto original detinha imagens inadequadas ao público alvo, o que acabou impondo a necessidade de alteração de algumas premissas, a fim de assegurar o acesso ao público alvo: as crianças. Porém, foi apenas com os irmãos Grimm, no século XIX, que houve a formatação nos padrões atualmente reconhecidos. Independentemente das alterações impostas para atender ao universo das histórias infantis, a história de Chapeuzinho Vermelho apresenta uma menina - aqui representada historicamente pela ideia de fragilidade feminina - que é exposta ao ambiente hostil da floresta, com a missão de atravessá-la para levar mantimentos à sua avó que reside no meio do boque sombrio. No curso, encontra um lobo que consegue chegar primeiro à residência da anciã e tenta adotar as mesmas características para enganar a personagem principal e devorá-la. Diversas conclusões podem ser alcançadas a partir da análise do conto. Uma delas encaixa perfeitamente no conteúdo desse ensaio: as aparências podem enganar o interlocutor. De fato, cada situação apresentada deve ser abordada com a calma necessária para a identificação dos pontos de sua estrutura, pois uma análise açodada, certamente, conduzirá a uma armadilha que poderá custar - na figura metafórica da história - a vida do personagem. A decretação da pandemia e o avanço da covid-19 sobre o país expuseram a sociedade brasileira a uma floresta escura e nada convidativa, na qual não se sabe, exatamente, o que pode ser encontrado à frente. O emaranhado de notícias representa as folhas que encobrem o céu azul e claro a ser contemplado. Mas, para continuar a caminhada é preciso até que seja possível alcançar o confortável colo da "vovozinha", a qual aguarda ansiosa para acolher e cuidar da Chapeuzinho. Porém, quem está na cama não é aquela dos abraços carinhosos, mas, sim, um lobo mau disfarçado querendo enganar a fatigada viajante. Voltando ao anúncio da Federação Brasileira dos Bancos deve-se destacar, desde já, que não há prática abusiva. Acontece que o momento em que foi lançada a nota poderá influenciar na percepção do recado dado. Os cinco maiores bancos do Brasil reuniram-se para, como dito, postergar, o pagamento de duas prestações dos financiamentos celebrados entre eles e os consumidores2, e nesse ponto, não há qualquer empecilho, já que essa conduta está inserida no espectro dos direitos vinculados ao credor. Diante de toda a agitação causada e a título de curiosidade, foram acessados os sites das instituições bancárias que anunciaram essa prorrogação. Um ponto comum encontrado foi a dificuldade de localizar os contratos que estipularão os parâmetros para a referida prorrogação. Escondido diante de todo o investimento em publicidade e propaganda, verifica-se um comportamento comum: a inexistência de um local onde se possa alcançar a informação de maneira rápida e clara. Depois de alguns minutos investigando as diversas páginas, pode-se dizer que as propostas dos brancos aderentes ao anúncio da FEBRABAN resumem-se a uma situação: o cliente poderá solicitar a prorrogação de até duas prestações do seu financiamento. Ao aderir a esta proposta haverá a postergação delas para o final do contrato e, "com base no prazo prorrogado, cada empréstimo será recalculado, mantendo a taxa de juros do contrato original"3. Em momento nenhum foi mencionado que haveria uma remissão do valor referente às duas parcelas, mas apenas uma suspensão e é, exatamente, nesse ponto em que pode estar o lobo mau disfarçado de vovozinha. 3. Vovozinha, é você? A celebração de um contrato resulta na existência de polos de credores e devedores. A visão simplista e quase maniqueísta de uma postura hermeticamente identificada entre ambos é uma realidade afastada da relação contratual moderna. A complexidade dos tratos sociais conduz à perspectiva segundo a qual um polo poderá ser qualificado como credor e devedor diante de uma mesma relação contratual. Detentor do direito de exigir o cumprimento de uma obrigação, o credor tem as mais diversas ferramentas sob seu pálio para impor ao devedor o atendimento daquilo que resta indicado nas cláusulas contratuais. De fato, não se pode negar que a evolução da sociedade impôs à autonomia da vontade a necessária mutação para autonomia privada, aliviando o peso da espada imposta ao devedor, ao promover uma ponderação dos interesses envolvidos através de princípios tão consolidados como a função social dos contratos e a boa-fé objetiva. Ao detentor do crédito, cabem dois comportamentos: o primeiro, e mais comum, seria impor ao devedor o cumprimento do quanto acordado. Por sua vez, uma segunda postura envolve o que se denomina de remissão. Nesta hipótese, há o perdão da dívida, sendo a sua grafia feita com a utilização de dois "s" face a sua origem nas expressões latinas "remissio", "remissionem" que, por sua vez, significam "perdoar"4. O Código Civil trabalha com a questão da remissão a partir do art. 3855. Inexistente no diploma anterior, este dispositivo impõe que, para haja a validade do referido perdão, se faz necessária a aquiescência por parte do devedor6. Não poderá, portanto, o credor impor o seu perdão. Apesar de parecer uma conduta benévola, o diploma civilista imprime a necessidade de aceite pelo sujeito passivo, o que implica reconhecer, conforme mencionado por Flávio Tartuce, que "a remissão constitui um negócio jurídico bilateral, o que ressalta o seu caráter de forma de pegamento indireto"7. Doutrinariamente, o ato de remissão é subdividido em duas percepções: a renúncia expressa e a tácita. A primeira, como a própria denominação já nos conduz a concluir, se trata de um comportamento devidamente identificado através de documento público ou particular - seja ele inter vivos ou mortis causa -, no qual o credor deixe clara a sua evidente intenção de perdoar o débito, e que deverá ser submetido à aquiescência do devedor. Por sua vez, a modalidade tácita está representada em comportamentos segundo os quais o credor se posiciona de maneira incompatível com a conservação do seu status creditório. Neste ponto, destaca-se que não é possível haver presunção de remissão por qualquer ato praticado pelo credor. As hipóteses são aquelas restritamente previstas em lei, sob pena de chancelar comportamentos desprovidos da real intenção de remitir8. Um determinado gerente de um mercado local da cidade de São Paulo costumava adquirir produtos para o empreendimento a partir do empenho de suas rendas. Ele se dirigia aos fornecedores e, utilizando de sua capacidade econômica celebrava a compra dos bens faltantes nas prateleiras. Todo final do mês, seu empregador fazia o depósito, juntamente com a remuneração mensal, do valor gasto com as estas aquisições. Acontece que, em determinado momento, ao chegar ao trabalho, o gerente recebeu o comunicado que teria sido desligado do quadro de funcionários do empreendimento e que deveria retornar apenas para receber os valores decorrentes de suas verbas rescisórias. Mesmo surpreso e não satisfeito com a situação, compareceu na data agendada para percepção do que lhe era devido. Houve, então, o pagamento das verbas trabalhistas, nada mais sendo mencionado pelo seu empregador referente ao montante depreendido para compra dos produtos naquele mês. Diante disso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foi submetido a análise desta situação. Após todo o transcurso processual, o TJ/SP concluiu que o aceite do valor referente às verbas trabalhistas não poderia ser qualificado como renúncia tácita por ausência de previsão legal, impondo ao empregador a obrigação de pagar o montante gasto pelo seu, agora, ex-empregado9. Reconhecendo a postura adotada pelo Código Civil brasileiro, que opta pela adoção de um rol taxativo ao explicitar os casos de remissão tácita de dívida, não se pode entender que a simples ausência da cobrança acarreta a presunção de que o devedor foi perdoado da dívida, vez que o ato de cobrar é escolha que se encontra dentro do feixe de direitos do credor. A percepção trazida pela remissão, então, é de real perdão, pois consiste no ato do credor que abre mão do seu crédito em favor de um devedor que, por sua vez, apresentou sua aquiescência quanto ele. Mais uma vez destaca-se a importância da manifestação por parte do devedor, tanto assim que o art. 388 do Código Civil aponta no sentido de que, em caso de solidariedade, apenas aquele que adimpliu com esse requisito legal será alcançado pelos seus efeitos, permanecendo os demais vinculados ao débito, desde que deduzida a parte proporcional ao perdoado. 4. A descoberta do lobo mau. Voltando à proposta dos bancos, percebe-se que, pelos contornos da remissão apontados anteriormente, não há compatibilidade com comportamento proposto. Todas as instituições financeiras que tiveram seus sites visitados informaram que as parcelas suspensas seriam aportadas ao final do prazo originário. A garantia seria, apenas, de manutenção da taxa de juros, porém, sem que haja a efetiva suspensão de seu cômputo. Prova dessa situação está no endereço eletrônico do Banco do Brasil que consigna em sua previsão contratual que "Além da prorrogação das parcelas, a incidência dos juros será diluída ao longo de todo o cronograma de pagamentos. As linhas contempladas utilizam recursos próprios do BB e devem estar em dia no momento da prorrogação. O objetivo é garantir que as micro e pequenas empresas não necessitem dispor de seus caixas para pagar empréstimos neste momento, liberando recursos para garantir o pagamento de funcionários e fornecedores"10. Quando o consumidor se submete aos encantos da sereia, ele estará apenas prorrogando sua dívida; alongando sua dor e, por consequência suportando um maior encargo econômico a partir do pagamento de um volume de juros incrementados quando comparado com o que originalmente era previsto. Partindo para uma visão mais concreta do problema, projeta-se a seguinte situação: há um contrato de empréstimo que envolve o pagamento de sessenta prestações. Nele, o consumidor pleiteia a suspensão de duas prestações que, segundo as instituições financeiras, serão arremessadas para o final do financiamento. Ao prorrogar o pagamento dos valores que deveriam ser adimplidos no presente, o consumidor concorda com a possibilidade de gestão de novo volume de juros compensatórios. Estes acréscimos serão computados mês a mês, até a nova data designada para a quitação deste saldo em aberto. O resultado direto disso será, sem sombra de dúvidas, o incremento do saldo devedor. Ou seja, após atravessar o bosque sombrio, a chapeuzinho vermelho certamente não encontrará a vovozinha em sua casa, mas o lobo mau do incremento de sua dívida, a partir de uma imposição maior de juros. Entender a engrenagem é de fundamental importância para que não haja a imersão em uma situação jurídica inexistente. De fato, nessa relação jurídica temos de um lado o fornecedor e do outro o consumidor, sendo este o ponto mais frágil do contrato. Além da hipossuficiência característica do trato consumerista, deve-se lembrar da peculiar situação vivenciada, decorrente da pandemia por covid-19. 5. A travessia da floresta depois do covid-19. Uma idosa carregava em seu corpo células cancerígenas. A doença estava reconhecida pelos médicos que indicavam uma recuperação plena dificultosa, mas a possibilidade de manutenção dos seus sinais vitais satisfatórios. Como qualquer pessoa que recebe esta informação, a busca por informações acerca de medicações passou a ser uma constante no seu quotidiano. Essa senhora estava assistindo programas populares em um canal de emissora nacional quando ouviu a propaganda de um produto que lhe parecia ser a resposta para os seus problemas. O anunciante discorria sobre as qualidades do fármaco natural e garantia a indicação do seu uso, inclusive, para o combate ao câncer. Encantada com tamanha qualidade e eficiência, a telespectadora adquiriu, por meio de uma ligação para o número indicado na transmissão, alguns exemplares do produto. A esperança para a solução dos problemas de saúde era grande e seguir as indicações do produto foi a estratégia adotada para alcançar o resultado prometido. Porém, ao contrário do que esperado, nada alterou a sua condição física, conforme constatação médica. Diante desta situação, a idosa ajuizou uma ação indenizatória junto ao Poder Judiciário paulista e alcançou êxito, inclusive, perante o STJ, que a qualificou como hipervulnerável11. Ao propor a possibilidade de prorrogação da quitação de determinadas parcelas, as instituições financeiras se vestem de vovozinha à espera da Chapeuzinho. Esta, porém chegará cansada e machucada da travessia pela densa e escura floresta da COVID-19. Certamente, a imagem de uma menina frágil será incrementada por tudo que passou no trajeto e, facilmente, será possível enquadrá-la na perspectiva da hipervulnerabilidade. Trata-se, sem dúvidas, de incremento à condição de hipossuficiência já existente nas relações entre bancos e clientes, apenas por ser consumerista. 6. A conclusão. Na história, não poderia faltar o caçador. O manejo claro e direito da publicidade direcionada é de fundamental importância. No valor gasto com o setor de marketing, não se pode descuidar da obrigação de fazer uma campanha esclarecedora. Ávido opor uma solução para a crise, o consumidor poderá ser conduzido facilmente ao erro quanto à interpretação das consequências decorrentes da proposta das instituições financeiras vinculadas à FEBRABAN. Os esclarecimentos para evidenciar que a opção ofertada não se trata de uma remissão é a peça chave para garantir a proteção necessária à boa-fé, ainda mais em épocas de exceção na qual se vivencia. O Poder Judiciário deve estar pronto para agir. A prorrogação das parcelas resultará, como consequência direta, no aumento do saldo devedor pela maior incidência dos juros. Com isso, aquele comportamento que parecia, num momento inicial, uma benevolência, na realidade, mostra-se como um movimento dos Bancos que acabará lhe beneficiando, na medida em que, ao final, o valor total a ser pago pelo consumidor será mais elevado do que aquele projetado inicialmente, quando da assinatura do contrato. O enterro da autonomia da vontade abre espaço para o surgimento da autonomia privada na sociedade e o ato de aceitar não pode mais ser deduzido a partir de uma liberdade e igualdade apregoada de forma quase que romântica pelos idealizadores revolucionários. O Estado, visto pós-revolução francesa como algo pernicioso, reforça a sua essência protetiva de medidas igualitárias quando permanece atento a comportamentos ofensivos aos deveres anexos do contrato. De fato, a questão torna-se bastante delicada na perspectiva prática quando se coloca em ponderação a ideia de permanecer inadimplente - e com isso experimentar os reflexos das multas contratuais e dos juros moratórios - ou suportar os encargos decorrentes da prorrogação. Será este um dos temas mais pulsantes na vida dos indivíduos que experimentam os reflexos do evento covid-19, pois, como se percebe pelos noticiários diários, o fantasma da crise se faz cada vez mais real. Não se quer negar o óbvio. O consumidor terá todo o direito de escolher qual a opção que mais lhe condiz à sua realidade - sendo a adimplência dentro do quanto contratado a mais adequada, enquanto a inadimplência total resta posicionada no ponto oposto. Porém, não se pode negar que esta possibilidade deve lhe ser concedida mediante a prestação de uma informação completa e que seja capaz de desenhar todos os contornos do ato de prorrogar, evitando confusão com a remissão. Mais uma vez, a ideia de cumprimento dos deveres anexos do contrato mostra sua força e sua missão de mecanismo de equilíbrio no trato das relações negociais. Manter o seu brilho é um dever inconteste das partes contratantes e um dever contínuo do Poder Judiciário, afinal, o lobo não poderá omitir sua condição de lobo se estava vestido de vovozinha para a chapeuzinho vermelho. Todo cuidado é pouco e, de fato, a solução para evitar que o caçador "mate" o lobo e retire a senhorinha do seu estômago, tal como no conto, está muito antes da celebração do contrato. Envolve, sem dúvidas, a perspectiva tão defendida pela doutrina segundo a qual a boa-fé alcança todas as fases contratuais, ou seja, desde a situação preliminar, ao pós-contrato, o que envolve o cumprimento irrestrito ao dever de informação. 7. Referências BANCO BRADESCO. Prorrogação de Empréstimos. Disponível aqui; acessado em 16 de abril de 2020. CORREIO BRAZILIENSE. BB começa a disponibilizar prorrogação de parcelas de dívidas de pequena empresa. Disponível aqui; acessado em 16 de abril de 2020. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 13 ed. rev. atual. amp. Salvador: Juspodivm, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 21 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2020. STJ. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em www.stj.jus.br; acessado em: 16 abril 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol 2. 15 ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Gen, 2020. TJ/DF. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. Disponível emwww.tjdf.jus.br; acessado em 16 de abril de 2020. TJ/SP. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em www.tjsp.jus.br; acessado em: 16 abril 2020. UOL ECONOMIA. 5 bancos prorrogam vencimento de dívidas de pessoas físicas e MPES. Acessado em 03.04.2020. Salomão Resedá é doutor em Direito Público, com ênfase em Processo Civil pela UFBA. Mestre em Direito Privado, com ênfase em Direito Civil pela UFBA (2008). Especialista em Direito Civil pela UFBA (2007). Professor Universitário da UNIFACS (Universidade Salvador), da UNIRUY WIDEN. (Universidade Ruy Barbosa) e da Faculdade ATAME. Professor convidado do Complexo de Ensino Renato Saraiva e da Escola de Magistrados do Estado da Bahia - EMAB. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual __________ 1 UOL ECONOMIA. 5 bancos prorrogam vencimento de dívidas de pessoas físicas e MPES ; acessado em 03.04.2020. 2 Súmula 297, STJ: o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras 3 Banco Bradesco. Prorrogação de Empréstimos. Disponível aqui, acessado em 16 de abril de 2020. 4 Na perspectiva tributária, destaca-se que "a remissão implica a exclusão do crédito tributário mediante o perdão da própria dívida e refere exclusivamente ao valor do crédito tributário" (REsp 1.492.246/RS,Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 2/6/2015, DJe 10/6/2015). 5 Art. 385, Código Civil: "A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro". 6 Dissertando sobre os requisitos da remissão, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona definem os requisitos subjetivos em dois pontos, a saber: "ânimo de perdoar: o ato de perdoar é uma manifestação volitiva. Assim, em regra, deve ser expressa, somente de admitindo excepcionalmente o perdão tácito, em função de presunções legais. Por se tratar de uma disposição de direitos, exige, portanto, não somente a capacidade jurídica, mas a legitimação para dispor do referido crédito, como requisito de validade de todo e qualquer negócio jurídico. b) aceitação do perdão. Segundo a doutrina alemã, seguida nesse ponto pelo Código Civil de 2002 (art. 385), a remissão não prescinde da concordância ado devedor, pois motivos vários, de natureza metajurídica (não desejar dever favor ao credor, respeitabilidade social em pagar suas dívidas), podem levar à recusa do perdão. Assim, ausente a anuência, pode o devedor consignar o valor devido, colocando-o à disposição do credor, não havendo que se falar em indébito. A exigibilidade da aceitação do perdão pelo devedor, todavia, a despeito de haver sido expressamente estabelecido no Novo Código Civil, sempre foi objeto de acirrados debates na doutrina. A doutrina italiana, por exemplo, negava o caráter bilateral da remissão, sustentando que seria ato de disposição patrimonial exclusivo do credor" (GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Obrigações. Vol 2. 21 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 280). 7 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol 2. 15 ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Gen, 2020, p. 203. 8 Em caso julgado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o Desembargador Esdras Neves afastou a possibilidade reconhecimento de remissão por envio de declaração de imposto de renda com valor zerado da dívida, por qualificar que a conduta representava apenas um erro sistêmico, não havendo, portanto, que se falar em remissão: "DIREITO CIVIL. APELAÇÃO. REMISSÃO TÁCITA DE DÍVIDA BANCÁRIA. ENVIO DE DEMONSTRATIVO DE IMPOSTO DE RENDA INFORMANDO O VALOR ZERADO DA DÍVIDA. ERRO PROCEDIMENTAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA INTENÇÃO DO CREDOR EM PERDOAR O DÉBITO. Não havendo nos autos evidências concretas de que o banco credor teria intenção de perdoar a dívida do devedor, inviável o acolhimento da tese de remissão tácita da dívida. (TJ-DF 20150110716087 0020923-53.2015.8.07.0001, Relator: ESDRAS NEVES, Data de Julgamento: 15/03/2017, 6ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 21/03/2017 . Pág.: 513/547). 9 Ação de cobrança. Réu que, na qualidade de gerente do estabelecimento da Autora, empresa que explora o ramo de supermercados, adquiria produtos alimentícios para pagamento futuro. Inadimplemento incontroverso. Pagamento não demonstrado. Valor da dívida não impugnado especificadamente. Recebimento de verbas referentes à rescisão do contrato de trabalho que não implica em remissão tácita da dívida relacionada à aquisição de mercadorias. Recurso desprovido. (TJ-SP - APL: 10104486020168260032 SP 1010448-60.2016.8.26.0032, Relator: Pedro Baccarat, Data de Julgamento: 30/10/2018, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/10/2018). 10 CORREIO BRAZILIENSE. BB começa a disponibilizar prorrogação de parcelas de dívidas de pequena empresas. Disponível aqui, acessado em 16 de abril de 2020. 11 RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PROPAGANDA ENGANOSA. COGUMELO DO SOL. CURA DO CÂNCER. ABUSO DE DIREITO. ART. 39, INCISO IV, DO CDC. HIPERVULNERABILIDADE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL COMPROVADO. 1. Cuida-se de ação por danos morais proposta por consumidor ludibriado por propaganda enganosa, em ofensa a direito subjetivo do consumidor de obter informações claras e precisas acerca de produto medicinal vendido pela recorrida e destinado à cura de doenças malignas, dentre outras funções. 2. O Código de Defesa do Consumidor assegura que a oferta e apresentação de produtos ou serviços propiciem informações corretas, claras, precisas e ostensivas a respeito de características, qualidades, garantia, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, além de vedar a publicidade enganosa e abusiva, que dispensa a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para sua configuração. 3. A propaganda enganosa, como atestado pelas instâncias ordinárias, tinha aptidão a induzir em erro o consumidor fragilizado, cuja conduta subsume-se à hipótese de estado de perigo (art. 156 do Código Civil). 4. A vulnerabilidade informacional agravada ou potencializada, denominada hipervulnerabilidade do consumidor, prevista no art. 39, IV, do CDC, deriva do manifesto desequilíbrio entre as partes. 5. O dano moral prescinde de prova e a responsabilidade de seu causador opera-se in re ipsa em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo consumidor. 6. Em virtude das especificidades fáticas da demanda, afigura-se razoável a fixação da verba indenizatória por danos morais no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). 7. Recurso especial provido. (REsp 1329556/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 09/12/2014).
Texto de autoria de Cristiano Sobral Pinto A pandemia mudou nossas perspectivas sobre a vida em curso e sobre o futuro. As incertezas são maiores, mas podemos delinear um norte a ser seguido diante dos impactos nas relações contratuais apresentando o adimplemento substancial como uma via promissora para a solução de litígios. Alguém do passado que pudesse prever nossa realidade atual diria com toda a certeza que se trataria de um cenário de filme de ficção científica. Mas, para todas as mentes mais criativas, superamos em pouco tempo as expectativas e por mais temeroso e triste que possa parecer, a pandemia chegou e com ela, nosso cotidiano sofreu impactos que alteraram nosso lidar com o mundo, em todas as instâncias micro e macro: nossas relações afetivas, nossos trabalhos, nosso ir e vir, a política, a economia, a saúde, a educação, de todos os países do globo foram impactados por um vírus. O inimigo em comum é chamado como novo coronavírus, cientificamente recebeu o codinome de COVID-19. Trata-se de um vírus da família Coronaviridae que causam uma variedade de doenças no homem e nos animais, especialmente no trato respiratório. O primeiro registro oficial de covid-19 refere-se a um paciente hospitalizado no dia 12 de dezembro de 2019 em Wuhan, China, mas estudos anteriores apontam um caso clínico com sintomas da doença em 1/12/19. Assim, em dezembro de 2019, iniciou-se um surto que atingiu cerca de 50 pessoas na cidade de Wuhan, na China1. E no mês de março de 2020, a doença já fazia casos em mais de 100 países, alcançando o status de uma pandemia2, de acordo com pronunciamento da OMS (Organização Mundial da Saúde). A doença pode apresentar-se como uma infecção branda, podendo também chegar a causar pneumonia, insuficiência respiratória e até a morte. A alta taxa de disseminação e a evolução dos sintomas para níveis mais graves da doença - estando seu maior percentual de letalidade entre pessoas com mais de 60 anos e com comorbidades anteriores, a exemplo, diabéticos, hipertensos e obesos -, e juntamente a isso, por tratar-se de um vírus novo, com poucos estudos sobre o seu desenvolvimento e tratamento, não existindo nem uma vacina nem drogas capazes de combatê-lo, foram tomadas medidas sanitárias que possuem caráter iminentemente preventivos, com o objetivo de diminuir o seu contágio e seus desdobramentos, evitando que os sistemas de saúde possam sofrer colapso, por falta de leitos, principalmente os de caráter intensivo, e de profissionais de saúde. Tais medidas dizem respeito não só aos hábitos de higiene pessoal e do ambiente como também, a diminuição do contato entre pessoas, sendo amplamente aconselhado o isolamento social horizontal como principal forma de evitar a doença. Diante de tal situação, vários países que foram atingidos pela pandemia tomaram medidas restritivas relativas ao funcionamento do comércio, escolas, e todos os ambientes que contem com grande fluxo e aglomeração de pessoas e, limitando, inclusive o direito ao deslocamento de seus cidadãos a fim de conter a disseminação da doença. Entre outros problemas surgidos com a pandemia, a economia mundial sofreu uma queda abrupta na maioria de seus setores e houve perdas significativas nos postos de empregos, ocasionando uma crise de larga escala. Como é possível observar, a pandemia repercute em nossas vidas de uma forma bastante ampla e profunda, e junto a ela e por sua consequência, surgem situações excepcionais, reivindicando novos olhares sobre essas questões, em especial, aquelas que tocam o âmbito do Direito Civil. Tema que passamos a nos ocupar, mais detidamente, no que diz respeito ao direito obrigacional e contratual. Surgem diversas questões de alta indagação acerca das relações contratuais durante a pandemia: sua continuidade, o seu adimplemento, hipóteses que ensejam revisão contratual, e as que podem incidir em sua resolução. Afinal, como ficam os contratos na pandemia? Trata-se de tema amplo e que devido à especificidade de cada relação contratual in concreto requer análise caso a caso, mas, em sentido mais generalizante, a pandemia, situação vivenciada por todos, é um evento que tem sido classificado como de força maior3. Tal hipótese encontra previsão no art. 393 do Código Civil com o seguinte teor: Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Devido à facilidade de sua disseminação e suas consequências, a pandemia é tida também como um fato extraordinário e imprevisível, sendo possível a resolução contratual decorrente da onerosidade excessiva para uma das partes contratantes, com base no disposto no art. 478, da lei civil: Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Outra consequência diz respeito à revisão contratual, tendo por fundamento legal a previsão do art. 317, do mesmo diploma: Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Como dito anteriormente, trata-se de uma visão generalista e que não constituindo o caminho a ser percorrido em toda e qualquer situação que ocorra durante a pandemia. Isso porque tratam-se de medidas excepcionais e de acordo com os ditames que regem todas as relações contratuais há de se priorizar a boa-fé objetiva e a continuidade e manutenção das avenças contratuais4. Não só tomando por pressuposto o teor do art. 422, do CC5, como também deverão ser observados seus deveres anexos, como o de cooperação e lealdade entre as partes contratantes. Assim, persiste a necessidade de se relativizar essa interpretação acerca da revisão e da resolução contratual com liberação da parte contratante devedora da obrigação porque ambas as alternativas só terão lugar se o inadimplemento tiver como causa exclusiva a pandemia de Covid-19, seja ela tida por força maior ou evento extraordinário ou imprevisível, ou acontecimentos dela decorrentes, como a hipótese de impossibilidade ou onerosidade por fato do príncipe, devido as medidas de restrições impostas pelos Estados para a prevenção e contenção da doença. Nessa toada, há de se observar, ainda o disposto nos arts. 421. parágrafo único e 421-A, inc. III, do Código Civil com redação dada pela recente lei 13.874/2019, Lei da Liberdade Econômica, dispondo que: Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: [...] III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. O art. 421-A do Código Civil dispõe, por sua vez, em seus incisos I e II que "as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução"; e "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Assim, havendo cláusula que preveja a força maior, estas deverão ser observadas pelas partes contratantes. E ainda que exista tal previsão, sobre a liberdade das partes em pactuar, a boa-fé deverá vigorar, conforme art. 113, da lei civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. Neste contexto de covid-19, os autores Flávio Jardim e André Silveira em artigo recentemente publicado apresentam duas teorias interessantes relativas à ideia de impraticabilidade e frustração do cumprimento contratual, observe: É de se imaginar, também, obrigações contratuais que não se tornaram literalmente impossíveis de serem cumpridas, mas que, em virtude da pandemia do novo coronavírus, ficaram extremamente onerosas, demoradas ou, para sintetizar, impraticáveis. Esse conceito de impraticabilidade é bem desenvolvido no direito americano. Se, após a celebração do contrato, a execução das obrigações contratuais, sem culpa da parte inadimplente, torna-se impraticável, em razão de um evento cuja não ocorrência era uma premissa fundamental da contratação, o dever da parte de cumprir a obrigação é liberado, salvo se o contrato dispuser em contrário ou as circunstâncias indicarem distintamente. [...] Para explicar situações abarcadas pela impraticabilidade, também são listados como exemplo casos de severa escassez de matéria prima ou de desabastecimento por força de circunstâncias como guerra, embargo, perda de colheita e falência não prevista de fornecedores de produtos que causa aumento substancial no custo ou impossibilita o vendedor de obter as mercadorias necessárias para o cumprimento da obrigação. Tem-se aí a ideia de onerosidade excessiva, já consagrada pela nossa jurisprudência como um elemento que relativiza o pacta sunt servanda. A pandemia do novo coronavírus também provoca inúmeras situações nas quais, a despeito de o adimplemento ser possível, pereceu o propósito pelo qual uma das partes celebrou o contrato. Essa ideia de frustração da intenção foi consagrada no direito inglês como uma das justificativas que permitem que a parte obrigada não cumpra o que pactuado. A doutrina da frustration acabou também consolidada nos Estados Unidos. No Restatement (2nd) of Contracts ela está assim descrita: "quando, após celebrado o contrato, a principal motivação for substancialmente frustrada sem culpa da parte, em virtude de um fato que ela não tinha razão para conhecer e cuja não ocorrência era uma premissa fundamental sobre a qual a contratação ocorreu, não haverá obrigação da parte de cumprir a avença, salvo se a linguagem do contrato ou as circunstâncias indicarem o contrário"6. Sobre a doutrina da frustration, Nelson Rosenvald enfatiza que: A doutrina da frustration está enraizada na common law e independe dos termos do contrato. Portanto, na ausência de uma cláusula de força maior, as partes devem considerar seu escopo. A doutrina é excepcional: ela não existe para permitir que as partes contratantes se furtem a uma bad bargain, pois dificuldades ou inconvenientes não são suficientes. A frustration atuará em circunstâncias muito limitadas, intervindo para eximir justificadamente a performance do contratante. A lei exige um evento superveniente que atinja a própria raiz do contrato - tornando-o física ou comercialmente impossível o seu cumprimento - para além do que foi contemplado pelas partes, sendo que nenhuma delas foi responsável pelo evento. Como o evento precisa ser imprevisto, se as partes tiverem aventado tal eventualidade, ele não mais será imprevisível7. Tema importante que surge diante das hipóteses referentes ao inadimplemento contratual, e que ganha proeminência no contexto de uma pandemia, é a possibilidade de aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial inspirada na teoria na Substancial Performance oriunda do Direito anglo-saxônico. Assunto este que foi objeto de abordagem em recente live realizada por este autor com o eminente jurista Pablo Stolze, em decorrência de uma pergunta realizada por um ouvinte quando da entrevista de Stolze para uma emissora do Estado da Bahia8. Essa teoria propõe que, em se tratando de um adimplemento tão próximo do resultado final que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização. Não sendo justo resolver o contrato no caso de inadimplemento mínimo, tendo em vista que estaríamos violando a função social e a boa-fé objetiva, devendo, portanto, ser rejeitada a resolução do vínculo obrigacional sempre que a desconformidade entre a conduta do devedor e a prestação estabelecida seja de pouca relevância9. Tal teoria vem ao encontro de diversas situações em que ocorrência do descumprimento ínfimo da obrigação por parte do devedor não deve ensejar a resolução do contrato causando prejuízo exacerbado para aquele que cumpriu a sua obrigação quase em sua integralidade, ainda que não de forma perfeita, por fatos alheios à sua vontade, como é o caso de uma situação relativa à pandemia. Principalmente em razão de uma série de fatores decorrentes desta crise que assola grande parte do planeta, como a perda de empregos, suspensão dos contratos de trabalho e, em certos casos, os acordos trabalhistas que, visando à manutenção do contrato de trabalho, diminuem a jornada laboral com a consequente diminuição do salário do empregado, comprometendo de forma inegável a vida do cidadão e suas finanças. A teoria do adimplemento substancial foi tema abordado nas Jornadas de Direito Civil figurando em dois enunciados, que passamos a mencionar: Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475 (Enunciado n. 361 da IV Jornada de Direito Civil). Art. 475 - Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil - CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos (Enunciado n. 586 da VII Jornada de Direito Civil). De acordo com o exposto, a aplicação da teoria do adimplemento tem por fim precípuo a preservação e continuidade das relações contratuais, fundamentada nos princípios da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, que são decorrência lógica deste principio. Assim, o dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer destes deveres anexos implica inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. Tratando-se de violação positiva do contrato. A jurisprudência pátria tem abordado o tema em seus julgados, como podemos observar os do Tribunal da Cidadania, Superior Tribunal da Justiça: Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Adimplemento substancial. Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36 prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios. Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, daí a expressão "adimplemento substancial", limita-se o direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004 (REsp n. 1.200.105-AM, rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. em 19.06.2012). (Inf. n. 500) Direito civil. Contrato de venda e compra de imóvel. OTN como indexador. Ausência de estipulação contratual quanto ao número de parcelas a serem adimplidas. Contrato de adesão. Interpretação mais favorável ao aderente. Exceção do contrato não cumprido. Afastada. Inadimplemento mínimo verificado. Adjudicação compulsória cabível. Aplicação da equidade com vistas à conservação negocial. Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Dissídio não demonstrado. 1. Demanda entre promitente vendedor e promitente comprador que se comprometeu a pagar o valor do imóvel em parcelas indexadas pela já extinta OTN. Na ocasião, as partes acordaram que o adquirente arcaria com um valor equivalente a certo número de OTNs estabelecido no contrato. No entanto, no instrumento particular de compra e venda não restou definida o número de prestações a serem pagas. 2. O Tribunal de origem sopesou o equilíbrio entre o direito do adquirente de ter o bem adjudicado, após pagamento de valor expressivo, e o direito do vendedor de cobrar eventuais resíduos. Nesse diapasão, não há que se falar em violação do dispositivo mencionado referente à equidade. O artigo 127 do Código de Processo Civil, apontado como violado, não constitui imperativo legal apto a desconstituir o fundamento declinado no acórdão recorrido no sentido de se admitir a ação do autor para garantir o domínio do imóvel próprio, reservando-se ao vendedor o direito de executar eventual saldo remanescente. 3. Aparente a incompatibilidade entre dois institutos, a exceção do contrato não cumprido e o adimplemento substancial, pois na verdade, tais institutos coexistem perfeitamente podendo ser identificados e incidirem conjuntamente sem ofensa à segurança jurídica oriunda da autonomia privada. 4. No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as consequências que, da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das consequências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida. 5. Recurso Especial improvido. (REsp n. 1215289/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, j. em 05.02.2013, DJe, 21.02.2013). Leasing. Adimplemento substancial. Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do ora recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing). A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, ou seja, foram pagas 31 das 36 prestações, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Consignou-se que a regra que permite tal reintegração em caso de mora do devedor e consequentemente, a resolução do contrato, no caso, deve sucumbir diante dos aludidos princípios. Observou-se que o meio de realização do crédito pelo qual optou a instituição financeira recorrente não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento nem com o CC/2002. Ressaltou-se, ainda, que o recorrido pode, certamente, valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, por exemplo, a execução do título. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 469.577-SC, DJ 5/5/2003, e REsp 914.087-RJ, DJ 29/10/2007.(REsp 1.051.270-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/8/2011). (Inf. n. 480) Sobre a adoção da teoria do adimplemento substancial pelo Superior Tribunal de Justiça essa não vem sendo admitida nas hipóteses de alienação fiduciária10, o que, acompanhando a posição do jurista Pablo Stolze, respeitosamente, divergimos deste entendimento. Assim, ainda que o inadimplemento seja mínimo, o STJ acolhe a resolução do contrato com perdimento do bem objeto de alienação, vejamos: Ação de busca e apreensão. Contrato de financiamento de veículo com alienação fiduciária em garantia regido pelo Decreto-Lei 911/69. Incontroverso inadimplemento das quatro últimas parcelas (de um total de 48). Aplicação da teoria do adimplemento substancial. Descabimento. Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69. A controvérsia posta no recurso especial reside em saber se a ação de busca e apreensão, motivada pelo inadimplemento de contrato de financiamento de automóvel, garantido por alienação fiduciária, deve ser extinta, por falta de interesse de agir, em razão da aplicação da teoria do adimplemento substancial. Inicialmente, releva acentuar que a teoria, sem previsão legal específica, desenvolvida como corolário dos princípios da boa-fé contratual e da função social dos contratos, preceitua a impossibilidade de o credor extinguir o contrato estabelecido entre as partes, em virtude de inadimplemento, do outro contratante/devedor, de parcela ínfima, em cotejo com a totalidade das obrigações assumidas e substancialmente quitadas. Para o desate da questão, afigura-se de suma relevância delimitar o tratamento legislativo conferido aos negócios fiduciários em geral, do que ressai evidenciado, que o Código Civil se limitou a tratar da propriedade fiduciária de bens móveis infungíveis (arts. 1.361 a 1.368-A), não se aplicando às demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária disciplinadas em lei especial, como é o caso da alienação fiduciária dada em garantia, regida pelo Decreto-Lei 911/1969, salvo se o regramento especial apresentar alguma lacuna e a solução ofertada pela "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela mencionada lei. No ponto, releva assinalar que o Decreto-lei 911/1969, já em sua redação original, previa a possibilidade de o credor fiduciário, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento - sendo, para esse fim, irrelevante qualquer consideração acerca da medida do inadimplemento - valer-se da medida judicial de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a ser concedida liminarmente. Além de o Decreto-Lei não tecer qualquer restrição à utilização da ação de busca e apreensão em razão da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, preconizou, expressamente, que a restituição do bem livre de ônus ao devedor fiduciante é condicionada ao pagamento da "integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial". Por oportuno, é de se destacar que, por ocasião do julgamento do REsp n. 1.418.593-MS, sob o rito dos repetitivos, em que se discutia a possibilidade de o devedor purgar a mora, diante da entrada em vigor da Lei n. 10.931/2004, que modificou a redação do art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei, a Segunda Seção do STJ bem especificou o que consistiria a expressão "dívida pendente", assim compreendida como as parcelas vencidas e não pagas, as parcelas vincendas e os encargos, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, cujo pagamento integral viabiliza a restituição do bem ao devedor, livre de ônus. Afigura-se, pois, de todo incongruente inviabilizar a utilização da ação de busca e apreensão na hipótese em que o inadimplemento revela-se incontroverso e quando a lei especial de regência expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar com o devedor fiduciário somente nos casos de pagamento da integralidade da dívida pendente. (REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, por maioria, julgado em 22/2/2017, DJe 16/3/2017) (Inf. n. 599). Assim, alçando às instâncias judiciais, em caso de inadimplemento por descumprimento ínfimo do contrato que, já tenha sido parcialmente cumprido, poderá a parte devedora alegar a teoria do adimplemento substancial em face do credor. Sendo plenamente viável a sua aplicabilidade, inclusive em decorrência de fatos ligados diretamente ou indiretamente à pandemia. A questão que nos surge a partir de então é: o STJ, antes da pandemia, não admitia a aplicação da teoria do adimplemento substancial em casos de contratos de alienação fiduciária, como bem observado na jurisprudência. Será que, após a pandemia, havendo inadimplemento considerado ínfimo, decorrente diretamente do novo estado de coisas gerado pela Covid-19, o STJ passará a admitir a aplicação da teoria do adimplemento substancial nas hipóteses de alienação fiduciária? Não sabemos qual será o posicionamento do STJ para essa hipótese, mas, de qualquer forma, acreditamos que seria um grande passo que o entendimento acerca do assunto fosse reavaliado pelo Tribunal da Cidadania, sendo oportuna a mudança com o objetivo de evitar maiores danos às partes contratantes. No entanto, nesse momento de excepcionalidade que vivenciamos, os impasses surgidos entre as partes contratantes devem, primordialmente, valer-se das técnicas de mediação e de autocomposição, abandonando, tanto quanto possível, a judicialização dos conflitos. Porque é certo que, somente os interessados poderão avaliar de forma mais apurada as suas necessidades, buscando o equilíbrio e a melhor solução para os problemas que possam surgir durante a execução do contrato, sempre tendo por objetivo alcançar o bem-estar das partes, fundamentando as avenças nos princípios da boa-fé objetiva e da lealdade e confiança. Sabendo que a negociação, espontânea e livre das partes contratantes sempre é um caminho a ser trilhado para alcançar soluções que sejam satisfatórias para todos os envolvidos. *Cristiano Sobral Pinto é doutor em Direito. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na FGV, Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Professor universitário, palestrante e autor de diversas obras jurídicas. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 2 Segundo a OMS, uma pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença, em geral, indica que uma epidemia se espalhou para dois ou mais continentes com transmissão de pessoa para pessoa. 3 O Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, tem dado ao fato o status de força maior. De acordo com divulgações até 3 de março, o referido Conselho já havia emitido mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais de 53 bilhões de dólares em prejuízos. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 4 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 5 Art. 422, do CC: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 6 O novo corona vírus e a relação contratual. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 7 Os impactos do coronavirus na responsabilidade contratual e aquiliana. Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020. 8 A pandemia e a teoria do adimplemento substancial. Realizada em 06 de abril de 2020. Disponível aqui. 9 Pinto, Cristiano Vieira Sobral. Direito civil sistematizado. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 402-403. 10 Impõe mencionar que o STJ também não admite a aplicação da teoria do adimplemento substancial no caso de descumprimento da obrigação alimentar.
Texto de autoria de Oksandro Gonçalves Racionalidade limitada e assimetria informacional É fato notório o estado de pandemia generalizada no Brasil, com vários decretos federais e estaduais regulando a matéria com maior ou menor vigor. Quase que concomitantemente ao estado de calamidade pública, levantou-se uma bandeira advogando a necessidade generalizada de revisar os contratos ou simplesmente propondo moratórias uniformes. A doutrina rapidamente se debruçou sobre essas ideias, demonstrando a sua precipitação, na medida em que vigora a regra de que os contratos devem ser cumpridos. Mesmo nas situações que deva ser exigida alguma temperança, é necessário que não seja realizada a partir de um modelo generalizado, mas, sim, a partir da particularidade de cada contrato1. Os artigos 3172, 3933, 4214, 421-A5, 4786, 4797 e 4808, do Código Civil são constantemente invocados para justificar teses favoráveis e contrárias a revisão contratual. Primeiramente, cumpre anotar que o comportamento social, em busca de justificar o descumprimento ou a revisão de contrato na pandemia, em parte é reflexo dos comportamentos dominantes no meio em que nos encontramos inseridos. Refiro-me à pressa com que também vários Estados da federação buscaram socorrer-se do Poder Judiciário para eles próprios suspenderem o cumprimento de suas obrigações com a União9. Utilizou-se o argumento de que a pandemia gerou a necessidade de novos esforços financeiros para atender as exigências de saúde. Entretanto, na prática, essa demonstração fica prejudicada ante a dificuldade em demonstrar que os valores que deveriam ser pagos foram efetivamente destinados àquela finalidade tão nobre. Essa conduta por certo sinaliza aos contratantes em geral que é preciso buscar abrigo no paternalismo contratual, típico do movimento que buscou relativizar a força obrigatória dos contratos. Os contratantes são tomados como verdadeiros ignorantes no momento em que celebram um contrato e depois julgam não ser necessário cumpri-lo. Trata-se de um ato condicionado pelo meio: revisar é preciso. Todavia, também não deixa de ser um ato calculado, com elevado nível de consciência e reflexão. Os contratantes, de modo geral, buscam obter uma vantagem no contrato, ainda que a posteriori e com uma justificativa fraca, como é o caso do covid-19. O segundo ponto reside na existência de uma regra de interpretação para os negócios jurídicos, prevista no artigo 113, inciso V, do Código Civil. Nesse dispositivo afirma-se que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a razoável negociação das partes sobre a questão discutida. E também deve ser inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração10. A racionalidade econômica é um dos pilares da economia e possui várias abordagens. Desde a clássica visão do homo economicus, aquele agente econômico perfeitamente racional e capaz de elaborar suas decisões a partir de cálculos complexos; ou então, na visão marginalista11, em que a utilidade advinda com a compra de mais uma unidade iguala o custo de sua obtenção. Entretanto, a realidade é muito diferente. E o que se pode ter é uma racionalidade limitada, que substitui o ótimo pelo suficiente e a maximização pela simples satisfação, eis que não é possível controlar todas as variáveis existentes para ter uma racionalidade pura e desprovida das interferências do meio. No plano contratual, a racionalidade limitada envolve informações de que não dispomos e que exigem custos de transação para obtê-las e processá-las. No caso dos contratos, os custos de transação surgem quando uma operação não consegue se realizar, o que pode ocorrer em razão da pandemia. Portanto, a própria pandemia pode ensejar a adoção de medidas que constituem custos de transação à execução do contrato, como é o caso das medidas restritivas de funcionamento de certas atividades empresariais. Diante dos efeitos dessas medidas, a tendência é que as partes contratantes atingidas disponham de informações que lhes são próprias. Estas, em especial quanto ao efetivo impacto, dimensão e extensão para saber se podem ou não cumprir o contratado tal como havia sido originalmente definido. Isso abre espaço para condutas oportunistas e a deslealdade contratual, o que fica evidenciado pela tentativa quase que generalizada de justificar o descumprimento de contratos a partir da pandemia12. A solução tradicional é custosa e ineficiente, além de imprevisível. Ao demandar em juízo em busca de uma revisão contratual ou da resolução sem ônus há uma demanda com custos de transação e o resultado dela é incerto. A segunda forma de solução é a edição de normas reguladoras da nova fase pandêmica, com o estabelecimento de novas regras para os contratos em vigor, chamadas regras transitórias. Toda norma tende a gerar incentivos que podem ser positivos ou negativos. Portanto, a criação de uma norma para regular uma situação excepcional tem o defeito de desconsiderar uma gama bem variada de contratos, que são mais complexas do que a moldura legislativa. Assim, a edição de normas transitórias desconsidera as condições de reciprocidade contratual que são estabelecidas pelos contratantes. Esquece-se que estes possuem melhores condições de realizar juízos de valor e ponderação a respeito dos custos e benefícios de cumprir o contrato e partilhar os ganhos, ainda que sobre novas bases que levem em consideração as mudanças que podem ser decorrentes da pandemia. Portanto, é preciso considerar em qualquer interferência sobre o contrato, a sua racionalidade econômica. Esta deve ser inferida a partir das informações disponíveis no momento da celebração em comparação com as novas informações. Natural, portanto, que exista entre os contratantes um nível de assimetria de informação típica da racionalidade limitada a que todos estão sujeitos. Todavia, a confiança depositada por elas no instrumento contratual será uma forte impulsionadora de ajustes privados eficientes. Para tanto, serão consideradas as particularidades do contrato, maximizando o nível de satisfação de cada uma das partes. Assim, o reajuste dos parâmetros contratuais não necessariamente será de igualdade absoluta, mas de reequilíbrio das condições contratadas segundo as informações disponíveis para cada um dos contratantes. Por exemplo, o deferimento de uma moratória generalizada causará um problema de seleção adversa. Lançará os contratantes, que estavam dispostos a renegociar as bases do contrato, na mesma situação daqueles que apenas aguardavam um momento para o exercício de condutas oportunistas e desleais. Então, aqueles que estavam tendentes a negociar abandonarão essa disposição, igualando-se aos que não estavam dispostos a qualquer negociação. Como salienta Fernando Araújo, "na presença de várias opções de ação igualmente disponíveis mas desigualmente eficientes, tenta-se racionalmente minimizar os custos ou maximizar os ganhos, ou ambos simultaneamente: tenta-se a máxima eficiência de custos, o maior benefício líquido (isto é, deduzidos os custos), procurando minimizar desperdícios na obtenção de quaisquer estados de satisfação"13. Assim sendo, é preciso explorar essas "zonas de transações", onde estão as "disposições negociais das partes"14, porque elas estão situadas na relação de confiança estabelecidas pelas partes no momento em que resolveram contratar. Por certo que a maioria dos contratos são cumpridos devidamente, tal como pactuado, e que apenas uma minoria acaba por ser levada à discussão judicial. Portanto, as regras disponíveis são regras de cumprimento, e por isso a dificuldade que se tem em enfrentar o descumprimento do contrato. Em tempos pandêmicos, é pouco provável que as partes tenham previsto possíveis alterações das circunstâncias negociais iniciais e mesmo as futuras, a curto e médio prazo. Por exemplo, é pouco crível que um contrato de locação em shopping center realizado em dezembro de 2019 tenha considerado a perspectiva vivenciada a partir de março de 2020. Assim, nem as circunstâncias iniciais indicavam um problema dessa magnitude, nem as circunstâncias mediatas, de curto e médio prazo, especialmente diante dos sinais de retomada do crescimento econômico brasileiro. Outro exemplo que podemos citar é de alguns contratos envolvendo as lojas dos aeroportos brasileiros, os quais sofreram com as restrições de voos e, por isso, tiveram uma queda estimada de 91% da circulação de pessoas, impactando sobre as lojas. O Poder Judiciário foi chamado a decidir e considerou o impacto para as duas partes do contrato. Ainda, levou em consideração o fato de a INFRAERO ter oferecido espontaneamente condições diferenciadas para o período de pandemia, as quais, todavia, não foram aceitas pela loja que judicializou o contrato15. Os exemplos acima visam destacar a importância do debate e as dificuldades no seu enfrentamento. A racionalidade econômica prevista no artigo 113, do Código Civil O legislador fornece alguns instrumentos para o enfrentamento dos problemas derivados das medidas administrativas para enfrentar a pandemia, notadamente o disposto no artigo 113 do Código Civil. Caso seja necessária a intervenção judicial, será preciso considerar a razoabilidade da negociação entre as partes, inferida a partir das (i) demais disposições do negócio jurídico e da (ii) racionalidade econômica das partes. Retornemos ao exemplo dos contratos de locação de shopping center, em que houve a paralisação total ou quase total das atividades. Considerando a sua natureza específica de empreendimento com um mix de lojas e demais atividades, a paralisação impactará sobre os resultados de todos os lojistas, com repercussões sobre (i) o valor do aluguel e (ii) o prazo de duração do contrato. Todavia, permanecem inalteradas as obrigações do shopping center em relação a segurança do local e a sua manutenção frequente para preservar justamente os bens dos lojistas. A rigor, não há culpa de nenhuma das partes do contrato, nem onerosidade excessiva porque uma das partes não está em extrema vantagem em relação a outra. A paralisação é fruto de um fato do príncipe, uma determinação da administração pública, que independe da vontade das partes. Assim, caso seja necessário promover a intervenção no contrato, deverá ser levada em conta uma interpretação que considere a racionalidade econômica, ou seja, pautada em deveres de colaboração recíprocos e estruturadas sob uma lógica de tempo e disponibilidade de espaço. Uma das propostas neste caso tem sido a redução do valor do aluguel, mas para se chegar a esse valor não há uma fórmula mágica, razão pela qual será preciso considerar os diversos fatores envolvidos (extensão das medidas administrativas tomadas, portfólio das lojas componentes do mix, o tempo do contrato, o tipo de cálculo dos alugueres, etc.). A solução mais eficiente, ressalte-se, não está na judicialização. O conflito surgiu em razão de os contratos serem geralmente incompletos, não sendo comum previsões envolvendo pandemias ou a decretação de estado de calamidade pública, associada a medidas de restrição de locomoção e reunião. O mais eficiente é a reabertura das negociações entre as partes, porque elas possuem informações que dificilmente o magistrado conseguirá levantar. Os custos de transação da negociação serão muito inferiores aos da judicialização, porque estão condicionados pelas informações que cada uma das partes possui acerca da extensão dos efeitos individuais e que podem ser repassados ao contrato. A racionalidade econômica, no caso do shopping center, envolve a redução proporcional do valor dos alugueres e uma possível prorrogação dos contratos. Enquanto ao locatário, compete oferecer o pagamento de uma parte dos alugueres para fazer frente às despesas de segurança e limpeza, que o beneficiam diretamente. Sendo o contrato é um ato de vontade das partes, somente a elas cabe, a partir do conjunto de informações que possuem acerca das possibilidades reais de se promover o cumprimento do contrato, realizar os ajustes necessários para viabiliza-lo. A negociação tem o condão de repartir de forma adequada o ônus dos riscos, permitindo que as partes cheguem a uma nova versão do contrato que seja mutuamente proveitosa. A intervenção estatal somente deve ocorrer quando o seu custo seja inferior às vantagens que do acordo entre as partes resultar. O desafio está em se determinar a racionalidade econômica do contrato, caso a questão seja judicializada. Wittman ofereceu uma solução afirmando que o objetivo do direito contratual é "minimizar o total dos custos de modelagem do contrato pelas partes, do de sua interpretação pelos tribunais e dos comportamentos ineficientes resultantes de contratos mal redigidos ou incompletos"16. Portanto, o primeiro ponto a ser verificado reside em como se deu a alocação de riscos no contrato pelas partes e seus respectivos ônus, conforme o modelo contratual. O segundo ponto reside em avaliar os arranjos escolhidos pelas partes para regular a relação e que não funcionaram, embora não fosse essa a intenção inicial. Finalmente, o terceiro ponto é o da intervenção judicial que deve refletir um custo inferior às economias que os arranjos privados entre as partes poderiam gerar. Mas como o juiz poderá se guiar neste caso? Primeiramente, o juiz deve compreender que ele está em desvantagem em relação às partes contratantes em razão da assimetria informacional, pois partindo de uma relação triangular comum certamente ele será o menos informado no momento de decidir, em comparação ao conjunto de informações detidas pelas partes contratantes17. Segundo, se o juiz for chamado a decidir deverá partir do modelo de contrato perfeito, ou seja, aquele contrato em que as partes teriam idealmente previsto absolutamente todas as variáveis possíveis. Embora saibamos que os contratos perfeitos não são factíveis, sendo a realidade formada majoritariamente por contratos incompletos, é a partir da noção de contrato perfeito que o juiz pode começar uma análise em "dégradé". O objetivo é o de modelar os direitos envolvidos e poder atribuir a respectiva vantagem a cada uma das partes, para minimizar o custo total de acidentes de percurso no contrato18. O objetivo primordial, nestes casos, é o de evitar o oportunismo que se dá por astúcia ou força. Citamos, como exemplo de astúcia, algumas tentativas de obter a colação de grau antecipada em Medicina, em razão da pandemia. Basicamente são hipóteses em que, acadêmicos de Medicina, buscaram o Poder Judiciário para obter seu título de bacharel antes do cumprimento integral da carga horária do curso na instituição de ensino respectiva, resolvendo os contratos de educação19. Outro exemplo de astúcia, é a indicação geral de que, em razão da pandemia, não será possível dar cumprimento ao contrato. Entretanto, é necessário que se prove de que forma efetivamente as determinações da administração pública impactaram sobre o contratante a ponto de impedir o cumprimento do contratado. Assim sendo, deve-se atentar para os casos de oportunismo contratual. Aqueles casos em que as partes pretendem evadir-se do contrato, sob a alegação genérica de que foram atingidos por algum dos efeitos dos atos administrativos editados em razão da pandemia. Se verificada uma hipótese de oportunismo, com deslealdade na execução do contrato, deve-se sancionar pesadamente no plano processual a tentativa de usar o processo para obter finalidade ilegal. Promovendo o incidente de forma infundada, alterando a verdade dos fatos, será aplicada a pena de litigante de má-fé20. Conclusão O objetivo do presente artigo foi demonstrar como a racionalidade econômica precisa ser considerada no processo de interpretação de eventuais litígios contratuais que tenham por fundamento, direto ou indireto, a pandemia. Se, de um lado adaptações e ajustes devem ser necessários em função desse novo e passageiro momento social, de outro essas adaptações aos imprevistos, fruto da racionalidade limitada própria dos contratantes, não podem dar azo a comportamentos oportunistas. Sugere-se, primeiramente, que os contratantes busquem ajustes cooperativos capazes de refletir a respeito das suas condições de reciprocidade próprias daquela relação contratual. Precisamos valorizar os custos e benefícios da lealdade contratual e dos ganhos que possam derivar desse ato, preferindo-se a tutela da confiança à tutela do interesse contratual positivo. Deve-se evitar, também, o paternalismo contratual, com a indevida invasão sobre a autonomia privada das partes na formação do contrato. Não é crível que todos os contratantes tenham, do dia para a noite, perdido completamente a sua força para promover ajustes nos contratos celebrados. Como houve um impacto generalizado, sendo difícil encontrar quem não tenha sofrido ou esteja sofrendo com a pandemia e suas consequências, a tendência geral é que todos sejam incentivados a cooperar e renegociar os termos inicialmente ajustados. *Oksandro Gonçalves é pós-doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela PUC/PR. Professor titular da Escola de Direito da PUC/PR. Advogado. __________ 1 Sobre o tema, destacam-se: RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da Covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito? In Migalhas Contratuais, quarta-feira, 8 de abril de 2020. KREMER, Bianca. Covid-1 e contratos comerciais: força maior como medida terminativa e revisional. Migalhas Contratuais, quarta-feira, 15 de abril de 2020. SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas Contratuais, segunda-feira, 23 de março de 2020. 2 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 3 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 4 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. 5 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. 6 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 7 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. 8 Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. 9 Até o dia 8/4/2020, ao todo 17 Estados haviam pedido e conseguido liminares junto ao Supremo Tribunal Federal suspendendo o pagamento de suas dívidas com a União. 10 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: ... V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º ... 11 "A Revolução Marginalista, tendo como centro o desenvolvimento da supracitada Teoria da Utilidade, compreendeu que o valor de um bem é definido não somente pelo trabalho (custo), mas também pela utilidade marginal que o indivíduo espera obter das escolhas realizadas". RIBEIRO, Márcia Carla; DOMINGUES, Victor Hugo. Economia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Revista Brasileira de Políticas Públicas (UNICEUB), volume 8, n. 2, agosto 2018, 12 Para não dizer que se trata de um fenômeno brasileiro, Carlos Eduardo Pianovski relata, em seu texto publicado no Migalhas Contratuais, que após a alteração da lei alemã sobre alugueis, para enfrentar a pandemia, muitas empresas simplesmente anunciaram que deixariam de honrar os contratos, o que somente foi revertido ante a repercussão negativa. PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A crise do Covid-19 entre boa-fé, abuso de direito e comportamentos oportunistas. Migalhas Contratuais, 16 de abril de 2020. 13 ARAÚJO, Fernando. Introdução à economia. 3ª ed., 4ª reimp. Almedina: Coimbra, 2005, p. 46. 14 ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato. Almedina: Coimbra, 2007, p. 51. 15 TRF4, AG 5014027-50.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA. 16 WITTMAN, Donald. Economic fundations of law and organization. Cambridge: Cambrigde University Press, 2006, p. 194. 17 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphanie. Análise econômica do direito. Tradução Raquel Sztajn, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 2015, p. 422. 18 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphanie. Análise econômica do direito. Tradução Raquel Sztajn, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 2015, p. 420. O autor ressalta que a completa especificação do contrato não vale o custo dos incômodos que seriam evitados e, por isso, são necessariamente incompletos (p. 421). 19 "Se, por um lado, é certo que a autonomia universitária - didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial (art. 207, caput, do CRFB) - comporta limitações constitucionais e infraconstitucionais (STF, ADI 4.406, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 18/10/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-238 DIVULG 30/10/2019 PUBLIC 04/11/2019); por outro, não se extrai da regulação estatal sub examine a obrigatoriedade do reconhecimento do direito dos acadêmicos de Medicina à colação de grau antecipada, pelo mero cumprimento de carga horária mínima (excepcional), estabelecida pelo Ministério da Educação. Ainda que a situação de emergência de saúde pública, vivenciada no Brasil e em outros países, justifique a implementação de medidas excepcionais, é indispensável cautela na flexibilização dos critérios pedagógicos preestabelecidos e na certificação - de modo genérico e coletivo - da aptidão profissional dos estudantes, porque a permissão ampla e irrestrita para a atuação direta na assistência à saúde da população (leia-se, sem a supervisão de um professor responsável), mediante a antecipação da conclusão do curso de graduação, pelo mero cumprimento de 75% (setenta e cinco por cento) da carga horária prevista para o período de internato médico, poderá acarretará danos maiores do que aqueles que se almeja evitar. Ante o exposto, indefiro o pedido de antecipação da tutela recursal. Intimem-se, sendo as agravadas para contrarrazões. Após, ao Ministério Público Federal". (TRF4, AG 5013056-65.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA). E ainda: TRF4, AG 5012819-31.2020.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relator CÂNDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR 20 Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Texto de autoria de Daniel Bucar Os acentuados reflexos econômicos ocasionados pela pandemia da covid-19 já são uma realidade. A retração na cadeia de circulação de bens e serviços já se impõe e, excetuados os denominados bens e serviços essenciais, os demais atores da economia sofrem, em variadas medidas, o revés da crise sanitário-econômica. Ante os acentuados problemas daí decorrentes, um em especial merece atenção: o endividamento crítico da pessoa humana. Primeiramente, uma advertência deve ser feita: o tratamento do grave endividamento patrimonial se distancia daquele destinado ao desequilíbrio do sinalagma de um certo e único contrato (uma locação, uma franquia ou uma prestação de serviço, por exemplo), para cuja problemática já é notável o debate promovido pela civilística, notadamente por meio desta coluna1, em torno das consequências daí originadas e de seus respectivos remédios. Não é para estas situações que se destinam estas notas. A reflexão aqui se dirige, portanto, à patologia do endividamento patrimonial crítico, cuja universalidade envolve, como sabido, todas as relações jurídicas dotadas de valor econômico (art. 91, CC). Portanto, vai-se além da análise de uma única relação jurídica. Para a desequilíbrio patrimonial da pessoa humana, o ordenamento jurídico prevê, a princípio, o impiedoso e desconhecido processo de insolvência, regulamentado pelos artigos 748 a 786-A do CPC/732. O expediente, positivado a partir de estudo teórico3, desconsiderou, contudo, que por trás dele haveria uma pessoa humana e viva. Note que a ideia é excutir a integralidade do patrimônio do devedor, a quem, ouvidos os credores, até pode ser destinada uma pensão por decisão judicial (art. 785, CPC/73). O anacronismo do procedimento é ainda demonstrado pela retirada da autonomia negocial do insolvente4 (senão um morto civil, o insolvente é considerado um incapaz - art. 752, CPC/73) e por um desajustado concurso de credores, que, disciplinado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 957, sequer previu uma atenção especial, por exemplo, a alimentos. Um apontamento positivo, contudo, merece ser destacado. Após penar por um procedimento torturante, o ordenamento prevê, ao menos, a extinção das obrigações não pagas pela alienação dos bens do devedor (art. 780, CPC/73), cuja excepcional forma de extinguir o vínculo passa geralmente despercebida pelos manuais de direito das obrigações. De toda forma, a bancarrota do próprio processo de insolvência é patente: são pouquíssimas pessoas que a ele se submetem - pois dele todos fogem - e, dado o seu caráter deliberadamente sancionatório, seu manejo acaba por ter como objetivo uma vendeta do credor, nas raras vezes em que o procedimento é encontrado. Por outro lado, diversamente de patrimônios destinados à atividade empresária, bem como a experiência estrangeira5, não há um processo coletivo expressamente previsto pela lei para renegociação de débitos da pessoa humana. Quando muito, resta-lhe a utilização de expedientes processuais para revisar, por vezes sem fundamento, determinadas dívidas e, desta forma, valer-se da morosidade do Poder Judiciário para "girar" o passivo (parcelar o pagamento ou prorrogá-lo até o momento em que haja ativos disponíveis para tanto). Esta omissão legal expressa estimulou a doutrina consumerista a buscar uma saída de emergência para o tratamento do que chamaram de consumidor superendividado. A proposta encontra-se em tramitação no Congresso Nacional6, mas, no entanto, as medidas projetadas mostram-se acanhadas, pois cuidam de tratar apenas endividamento decorrente de relação de consumo. É pouco. Basta pensar que duas relevantes preocupações da doutrina e do legislador em um período de pandemia simplesmente são ignoradas por esta solução parcial: os alimentos e a locação. O patrimônio é único, garantidor geral dos créditos (art. 391, CC), e não se pode, portanto, buscar tratamento parcial para salva-los de débito que simplesmente não possuem posição preferencial no ordenamento brasileiro. Em contrapartida, é alvissareiro o PL 1397/20, produzido em caráter emergencial para lidar com questões de recuperação judicial e falência no âmbito da crise sanitário-econômica. Em seu texto, pela primeira vez, prevê-se a aplicação de regras próprias de tratamento coletivo de débitos para pessoa natural que desempenhe "atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade"7. Ora, pessoa natural que exerça atividade econômica em nome próprio é qualquer pessoa que participe do processo econômico de uma sociedade, com seu patrimônio. São todas as pessoas naturais, portanto. No contexto do referido PL, também é bem-vindo o instituto da Negociação Preventiva. Por meio dele, faculta-se ao devedor, que tenha sofrido redução de 30% ou mais na sua receita (art. 5°, §2°), requerer a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária (art. 5°, caput). Em suma síntese, este se desenvolve a partir de rodadas de negociação com todos seus credores, durante o período máximo de sessenta dias (art. 5°, incisos II, III e IV), as quais podem contar com o auxílio de um negociador, ou não, a depender da escolha do requerente (art. 5°, inciso II). Contudo, até o Projeto de Lei (ou texto semelhante) ser aprovado, há que ser estimulado, por inúmeras razões (entre outras, boa-fé objetiva e limites da responsabilidade patrimonial), a renegociação extrajudicial e coletiva dos débitos que oneram o patrimônio do devedor, de sorte a lhe proporcionar reabilitação patrimonial. Tal renegociação deve ter como balizas o próprio patrimônio do devedor e as preferências de pagamento de cada débito. Mas se nem extrajudicialmente for possível alcançar a desejada recuperação, de uma leitura atenta do ordenamento jurídico, desprovida de timidez interpretativa (que se impõe superar em um período de exceção), é possível extrair instrumentos para o tratamento judicial do patrimônio da pessoa humana criticamente endividado. Com efeito, se o ordenamento brasileiro tem no valor da pessoa o seu fundamento (art. 1º, III, Constituição da República), uma leitura axiológica do artigo 52 do Código Civil ("Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade") permite aferir que é lícito e recomendável aplicar às pessoas humanas, no que couber, as proteções patrimoniais da pessoa jurídica. Assim, como inclusive já indicado por precedente do Superior Tribunal de Justiça8, há que se superar, enquanto inexistir previsão legal específica, o suposto abismo entre a reabilitação do patrimônio da pessoa humana e a recuperação do acervo destinado à atividade empresária, já disciplinada pela Lei 11.101/05. Considerando que o sistema recuperacional da referida lei está fundado no princípio da preservação da empresa, com maior razão o ordenamento deve emprestar ferramentas à preservação da pessoa humana, cujo excessivo endividamento lhe furta condições materiais para a manutenção mínima de um projeto de vida. Neste sentido e em linhas gerais9, levando-se em conta que o patrimônio garantidor de débitos é o limite de excussão dos credores, é imperioso viabilizar ao devedor o pleito de recuperação de seu acervo endividado, por meio de procedimento simplificado, aplicando-se, no que couber, lei 11.101.05), bem como, em situações mais críticas e com as devidas adequações, até mesmo o amplo procedimento da recuperação judicial com a possibilidade, inclusive, de aplicação do chamado cram down (espécie de imposição judicial do plano - art. 58, §1°, lei 11.101/05). Nestes termos, é notável a importância das ferramentas oferecidas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência no tratamento da insolvência da pessoa humana, sobretudo no atual cenário de crise sanitário-econômica. Não só os institutos da referida legislação, mas as orientações jurisprudenciais firmadas, ao menos em suas linhas gerais, são de utilização recomendável, no tratamento deste patrimônio em crise. Um ponto, contudo, parece ser certo. Em um ordenamento fundado no valor da pessoa humana, cujo protagonismo na atividade econômica deve ser reconhecido - não há economia sem pessoas e vice-versa, o princípio da solidariedade se impõe e a renegociação coletiva, abalizada nos conhecidos critérios concursais é medida que afasta interesses egoístas de credores sobre um patrimônio gravemente endividado. "Farinha é pouca, meu pirão primeiro", neste cenário, não pode ter vez. *Daniel Bucar é professor Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e mestre em Direito Civil (UERJ). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Procurador do município do Rio de Janeiro. Advogado. __________ 1 Entre os quais se destacam a aplicação i) dos feitos da força maior, ii) da revisão, iii) da resolução e iv) do dever de renegociar. Vide Anderson Schreiber, Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional; Eduardo Souza Nunes e Rodrigo da Guia Silva, Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus; Carlos Eduardo Pianovsky, A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus; Flávio Tartuce, O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade; Aline Miranda Valverde Terra, Covid-19 e os contratos de locação em shopping center; SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio; SCHULMAN, Gabriel. Covid-19: Os contratos, a incerteza os desafios para a manutenção das empresas e a exceção da ruína; RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito?; PIANOVSKY, Carlos Eduardo. A crise do covid-19 entre boa-fé, abuso do direito e comportamentos oportunistas; RAMOS, André Luiz Arnt; CATALAN, Marcos. Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise. 2 Única parte ainda em vigor do antigo Código de Processo Civil, conforme artigo 1052 do Diploma vigente. 3 A disciplina codificada reflete, em boa parte, a tese "Do concurso de credores no processo de execução", apresentada por Alfredo Buzaid, um dos principais elaboradores do CPC/73, para o concurso da Cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da PUC/SP. 4 Portanto, a própria renegociação. 5 Para notícia do fresh start norte americano e o padrão europeu, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 127/166. 6 O projeto de atualização do Código de Defesa do Consumidor, que cuida do superendividamento, já foi aprovado pelo Senado Federal e atualmente tramita perante a Câmara dos Deputados (PL 3515/215). 7 Art. 1º do PL 1397/20. 8 "A Lei de Falências há de ser aplicada analogicamente à execução de quantia certa contra devedor insolvente nos casos em que a lei processual civil se apresenta omissa, como sói ocorrer quanto à multa moratória e aos juros, porquanto ubi eadem ratio ubi eadem dispositivo" (STJ, 1. T., REsp 1108831/PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 23-11-2010, DJe 3-12-2010). 9 Para uma exposição mais detalhada, que não é viável neste espaço, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 180-200.
Texto de autoria de Luciana Pedroso Xavier e Adroaldo Agner Rosa Neto A trágica pandemia da covid-19 tem afetado a normalidade da vida cotidiana, de modo que o direito positivo, pensado em termos gerais e abstratos, precisa ser adaptado às especificidades do momento excepcional. Em razão disso, são alvissareiras as contribuições que a doutrina vem dando, quer seja auxiliando o Legislador na construção de regramento emergencial, notadamente o PL 1.179/20201; quer seja em seu papel típico, orientando a aplicação e interpretação do Direito. Neste último aspecto, digno de nota é o locus oferecido pelo Migalhas, que desponta como meio privilegiado de reflexões acerca dos impactos da covid-19 no mundo jurídico. No cenário que se desenha, o âmbito dos contratos certamente é um dos mais sensíveis. A íntima relação entre a atividade econômica e o direito contratual exige respostas deste último à desaceleração da primeira pelas medidas de isolamento social. Setores inteiros, como o varejo tradicional, serviços educacionais, entretenimento, turismo, moda, estão sofrendo quedas de faturamento superiores a 50% desde os dias iniciais da crise, segundo o Sebrae2. Ainda que não tenha sido totalmente paralisado, o setor da construção civil não escapa à regra. Assim, a temática dos contratos imobiliários mostra-se como terreno fértil às disputas entre os contratantes, mais uma vez. Sim, mais uma vez, pois é certo que esse já é um dado histórico entre nós. A importância social da questão habitacional3, para além do assento constitucional4, implicou na intervenção legislativa e judicial no ritmo dos influxos do mercado5. São exemplos as Leis de Incorporação Imobiliária (lei 4.591/1964), Parcelamento do Solo Urbano (lei 6.776/1979), Sistema Financeiro de Habitação (lei 8.004/1990) e o art. 1.225, inciso VII, do CC/02, que ordinariamente demandam a atuação dos Tribunais em larga escala, a ponto de ensejarem a utilização de técnicas de uniformização da jurisprudência. Lembrem-se, de um lado, da súmula 621 do Supremo Tribunal Federal6 (antes da alteração de competência implementada pela Constituição de 1988), impedindo embargos de terceiro fundado em promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis. E, de outro, as Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, como as de n.o 767, 848-9 (com orientação diametralmente oposta à do STF10), 23911, 30812 e 54313. Citem-se, ainda, os julgamentos do STJ pelo rito dos repetitivos. Ganharam destaque as teses firmadas (i) sobre os requisitos de validade da transferência ao promitente-comprador do pagamento de comissão de corretagem; (ii) sobre a impossibilidade de cobrança do serviço de assistência técnico-imobiliária (taxa SATI); (iii) sobre o prazo prescricional para exercício da pretensão de restituição de valores pagos a título de comissão de corretagem e taxa SATI (todos no Tema 938); (iv) sobre a legitimidade passiva da incorporadora para responder pela restituição da comissão de corretagem e da taxa SATI (Tema 939); (v) sobre a impossibilidade de cumulação entre a cláusula penal moratória e indenização por lucros cessantes (Tema 970); e (vi) sobre a inversão da cláusula penal (Tema 971). Episódio recente dessa série histórica é a chamada "Lei do Distrato" (lei 13.786/2018). Ainda que passível de críticas sob o ponto de vista técnico14, como a confusão no manejo dos conceitos e a criação de uma "mora à brasileira", na feliz expressão de Otavio Luiz Rodrigues Jr.15, trata-se de diploma extremamente relevante. Isso porque tem por intuito delimitar os efeitos da desistência do compromisso de compra e venda - que, apesar de irretratável nos termos da Lei de Incorporação Imobiliária (art. 32, §2º) é amplamente desfeito na prática -, o que acarretava ônus excessivo às construtoras e incorporadoras. Ao que parece, já no primeiro ano de vigência, a Lei do Distrato logrou êxito em seu objetivo, diminuindo em 30% o número de desistências em relação ao ano de sua promulgação16. Conforme o regramento ali estabelecido, nos contratos firmados sob sua égide, o adquirente que exerce o poder de desligamento está sujeito a um duplo regime de restituição. Caso a incorporação possua patrimônio de afetação, a restituição limitar-se-á a 50% dos valores pagos e poderá ser feita pelo incorporador em até trinta dias após a expedição do certificado de vistoria e de conclusão de obras, o "habite-se" (art. 67-A, §5º, lei 4.591/1964). Se não houver patrimônio de afetação, o pagamento do adquirente, deduzidas a pena convencional e as despesas, será feito em parcela única, em até cento e oitenta dias do desfazimento contratual (art. 67-A, §6º, lei 4.591/1964). Note-se que o primeiro regime não deixa o adquirente saber, ao certo, quando irá receber o montante a que faz jus, uma vez que a expedição do "habite-se" exige o término das obras, o que pode ser bastante demorado. O segundo, por sua vez, deixa o adquirente à mercê da solidez da incorporadora - algo delicado no atual panorama econômico -, ainda que possa receber a restituição em prazo certo. Importante frisar que a Lei prevê a possibilidade de desligamento do adquirente sem a retenção de qualquer valor. Isso poderá ocorrer caso o comprador-retirante encontrar adquirente substituto que o sub-rogue nos direitos e obrigações originalmente assumidos. É requisito da substituição a anuência do incorporador, a capacidade financeira e a aprovação dos cadastros do novo adquirente (art. 67-A, §9º, lei 4.591/1964). Todavia, tendo em vista as circunstâncias hodiernas, a tendência é que o permissivo tenha pouca aplicabilidade. Antes da lei 13.786/2018, os Tribunais arbitravam a retenção, prevista nas chamadas cláusulas de decaimento, entre 10% e 30% do montante pago pelo adquirente, restituído, geralmente, em uma única parcela17. A existência patrimônio de afetação não era aquilatada para o arbitramento do percentual a ser devolvido. Desse modo, é evidente a diferença de valores entre a práxis judiciária até então vista e a nova opção do legislador. Ocorre que, no contexto atual, a conjunção entre as incertezas econômicas, risco de desemprego e o regime mais gravoso de restituição que a Lei do Distrato instituiu - se comparado com experiência jurisprudencial anterior - pode reavivar os debates judiciais que o Legislador procurou pacificar, enquanto forem sentidos os impactos da pandemia. A completa liberação do adquirente da retenção prevista em Lei não parece tecnicamente possível, considerando tanto as possibilidades do CC/02 quanto do CDC. Como indicou José Fernando Simão neste mesmo espaço, apesar de grave, a pandemia é passageira e não configura caso fortuito/força maior (art. 393 do CC/02) em obrigações cujo objeto é prestação de dar, salvo raras hipóteses. A conclusão foi extraída das lições de Pontes de Miranda: "[s]e é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá [...]"18. Porém, a redução do montante a ser retido, especialmente nos contratos envolvendo empreendimentos com patrimônio de afetação, que chega a 50% do total pago, pode em tese ser acolhida pelo Judiciário. O fundamento para essa pretensão estaria na complementariedade entre os arts. 6º, inciso V, e 51, §1º, inciso III, do CDC e o art. 413 do CC/02. A interação entre o CDC e o CC/02 nos casos envolvendo compromissos de compra e venda é mecanismo já reconhecido pela doutrina. Em trabalho basilar sobre a matéria, Flávio Tartuce pondera que "[p]ara solucionar os problemas atuais existentes sobre o tema, é preciso conciliar as citadas normas especiais com os dispositivos do Código Civil [...] a utilização dessa premissa teórica ganha importância pelo fato de ser o compromisso de compra e venda, muitas vezes e até como regra, uma relação jurídica de consumo"19. Assim, verificados os elementos do suporte fático das normas citadas, notadamente (i) a excessiva onerosidade, tendo em vista a (ii) natureza e finalidade do negócio, em razão de (iii) fatos supervenientes, é possível reduzir-se o percentual a ser retido. É certo, igualmente, que essa análise deverá ser feita caso a caso e nem todos aqueles adquirentes que se desligarem dos compromissos de compra e venda no período em que vivemos logrará a redução. Daí a necessidade de zelo, tanto por parte do advogado que ajuíza a demanda, quanto por parte do juiz, que deverá apontar na fundamentação, discriminadamente, cada um dos requisitos na demanda em apreço caso decida revisar o valor da retenção. Por evidente, a intervenção judicial no contrato é muito pouco desejável. Mesmo no estado delicado em que nos encontramos, isso iria na contramão das mudanças recentes trazidas pela "Lei da Liberdade Econômica" (lei 13.874/2019) que, apesar de não isenta de críticas, reflete os anseios de nosso tempo no sentido de reforçar a obrigatoriedade contratual. A busca pela manutenção dos pactos deve sempre ser o norte de qualquer solução. Além disso, é preciso encontrar uma forma de equilibrar os interesses dos contratantes que atenda a excepcionalidade das circunstâncias e respeite a obrigatoriedade dos contratos. Qual seria esse meio termo? O caminho que se recomenda é que o consumidor adquirente e a incorporadora aproveitem a estipulação da própria Lei do Distrato e negociem os termos da resolução (art. 67-A, §13, lei 4.591/1964). A presença dos advogados das partes é absolutamente essencial para orientá-las. Em tempos de incerteza, é melhor um acordo bem assistido do que uma demanda cujo resultado é incerto. Em resposta à pergunta do título, a pandemia da covid-19, por ser passageira, não deve mudar radicalmente o quadro composto pela Lei do Distrato. Todavia, não se pode crer que os modelos de restituição por ela instituídos passem pela crise sem questionamentos. Daí a necessidade de diálogo entre os contratantes para que estabeleçam uma solução razoável para o desligamento contratual. *Luciana Pedroso Xavier é professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFPR. Mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Advogada. Sócia do PX Advogados. **Adroaldo Agner Rosa Neto é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. Sócio do PX Advogados. __________ 1 O Projeto contou com larga contribuição da doutrina. Dentre seus coordenadores técnicos está o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. Colaboraram, ainda, os Professores Rodrigo Xavier Leonardo, Fernando Campos Scaff, Paula Forgioni, Marcelo von Adamek, Francisco Satyro, José Manoel de Arruda Alvim Netto e Rafael Peteffi da Silva. Por fim, participaram também os advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias. 2 SEBRAE. Boletim de impactos da covid-19 nos pequenos negócios. 2ªed. S.l., 03 de abril de 2020, p. 03-09. 3 Gilberto Freyre resumiu o sonho da casa própria do brasileiro em trecho antológico de sua obra: "[t]er casa - casa própria - é ideal de quase todo brasileiro: mesmo que seja o que às vezes por modéstia se define como um mucambinho, visita bem acolhida: 'a casa é sua'." (FREYRE, Gilberto. Oh de casa! em torno da casa brasileira e de sua projeção sobre um tipo nacional de homem. Rio de Janeiro: Artenova, 1979, p. 26. Destacamos). 4 A CR/88 consagra um direito fundamental à moradia em seu art. 6º, caput. 5 A relação entre a legislação e os anseios do mercado na questão habitacional foi anotado pelo Prof. José Carlos Moreira Alves: MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do direito civil brasileiro: das origens aos dias atuais. In: Revista da Faculdade da USP, v. 88, a. 1993, p. 222. 6 Súmula 621 do STF. Não enseja embargos de terceiro à penhora, a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis. 7 Súmula 76 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 8 Súmula 84 do STJ. É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro. 9 A súmula 84 rompe definitivamente com o paradigma jurisprudencial anterior e sedimenta o caminho para o direito real de aquisição, peculiar à nossa realidade jurídica, consagrado pelo CC/02, art. 1.225, inciso VII. Digna de registro é a participação da Faculdade de Direito da UFPR nessa quadra histórica. Em primeiro lugar, pelo clássico texto do Professor José Francisco Ferreira Muniz, "Embargos de terceiro à penhora (a questão da posse do promitente comprador)", publicado em 1987 (in: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 24, 1987, p. 17-29). Em segundo lugar, pela atuação dos Professores Antônio Alves do Prado Filho e Joaquim Munhoz de Mello, como advogados do recorrente e do recorrido, respectivamente, no Recurso Especial 188 (REsp 188/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ Acórdão Ministro Bueno de Souza, Quarta Turma, julgado em 08/08/1989, DJ 31/10/1989, p. 16557) que fundamentou a Súmula 84. 10 O cotejo analítico entre essas Súmulas, feito pelo Prof. Arruda Alvim, aqui no Migalhas, revela a filosofia que as inspirava e demonstra a influência dos diversos momentos sociais na interpretação do tema pelos Pretórios. 11 Súmula 239 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 12 Súmula 308 do STJ. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. 13 Súmula 543 do STJ. Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. 14 Seja consentido remeter o leitor para XAVIER, Luciana Pedroso; ROSA NETO, Adroaldo Agner. Comentários ao art. 67-A, Parágrafos 5º e 6º da lei 13.786/2018. In: VITALE, Olivar (coord). Lei dos Distratos. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, 2019, p. 183 e ss. 15 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do direito civil. Disponível em: . Acesso em 19/04/2020. 16 Segundo pesquisas, no terceiro trimestre do ano de 2016 ocorreu "distrato" em 46% (quarenta e seis por cento) das vendas de imóveis na planta. Em 2019, já na vigência da lei 13.786/2018, esse número caiu em mais de 30% (trinta por cento). Acesso em 14/4/2020. 17 Vide a súmula 2 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para aquisição. 18 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Parte Especial. Direito das obrigações: extinção das dívidas e obrigações. Dação em soluto. Confusão. Remissão de dívidas. Novação. Transação. Outros modos de extinção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 158 [coleção tratado de direito privado; t.25]. 19 TARTUCE, Flávio. Do compromisso de compra e venda de imóvel. Questões polêmicas a partir da teoria do diálogo das fontes. In: Revista de Direito do Consumidor, n.º 93, mai./jun. 2014, p. 163-164.
Texto de autoria de Carla de Calvo Dantas e Marcelo Matos Amaro da Silveira Introdução A pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, que foi declarado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020 como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Mundial e, no dia 11 de março de 2020, como pandemia, vem impactando consideravelmente a atividade empresarial em todo o mundo, fato que é de conhecimento geral. A pandemia desencadeou uma intensa produção legislativa em variados países como resposta à contenção da doença e dos efeitos devastadores que dela podem decorrer, seja à nível sanitário, seja à nível econômico1. Essa realidade é vista tanto no Brasil quanto em Portugal, sendo possível notar em ambos os países desde medidas exepcionais voltadas a restringir a circulação de pessoas (à nível nacional e internacional), a limitar o exercício de atividades económicas e a interação entre pessoas; até medidas que impactam nos prazos de prescrição e decadência, na suspensão da produção de efeitos de algumas consequências jurídicas para os casos de incumprimento contratual, na flexibilização de regras trabalhistas, em incentivos governamentais às empresas. Em Portugal destaca-se o decreto 2-B/2020, de 2 de abril, a lei 1-A/2020, de 19 de março e o decreto-lei 10-A/2020, de 13 de março, que regulamentam diversas questões jurídicas relacionadas com a pandemia, inclusive de direito privado. Já no Brasil, destaca-se no campo do Direito Privado, o PL 1179/2020, que estabelece o Regime Jurídico Especial e Transitório, podendo também ser mencionadas as diversas medidas provisórias publicadas pelo Governo Federal. A leitura destas medidas legislativas à luz das relações contratuais denotam o esforço e a intenção estatal para viabilizar a manutenção dos contratos neste momento de crise e suspender a eficácia de algumas relações. Da mesma forma verificamos um movimento legislativo que busca mitigar o impacto econômico em setores específicos, como da aviação civil, da produção cultural e do turismo Entretanto, certo é que para além das exceções legisladas especificamente para este contexto, os sistemas jurídicos ora em análise dão corpo a institutos e categorias jurídicas que preveem a modificação (ou até mesmo a "exoneração") contratual para os casos de alteração das circunstâncias. No âmbito destes institutos que não deixam de ser soluções heterónomas para o problema, podemos vislumbrar o espectro do exercício da autonomia privada que nos cumpre a todos e a nossa responsabilidade social para viabilizar a continuidade dos mais diversos contratos. Sem olvidarmos dos variados contratos que podem restar desequilibrados neste contexto, por entendermos o papel das empresas como sendo de suma importância para viabilizar a continuidade do setor produtivo em geral, teremos especial atenção às implicações da alteração das circunstâncias nos contratos preliminares (promessa) no âmbito da prática societária do direito brasileiro e português (sistema lusófono), que se fará por meio de uma macro comparação. Para tanto pretendemos fazer uma breve análise teórica sobre o assunto para posteriormente focarmos em sugestões de comportamentos da parte à luz da alteração das circunstâncias. Alteração das circunstâncias e pandemia de covid-19 A ocorrência de um evento novo, extraordinário e imprevisível como responsável pela perturbação económica dos contratos (de execução continuada ou instantânea, contanto que diferida) assume especial relevância à eficácia da norma conhecida, frente ao direito brasileiro, por onerosidade excessiva superveniente (artigo 317 e 478 e ss do Código Civil)2, e frente ao direito português, por alteração das circunstâncias (artigo 437º e ss do Código Civil)3. Embora este requisito não seja o único a se observar e nem o mais relevante, pode ser tomado como ponto de partida. Ao final do ano de 2019 foi detectado em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China uma doença infecciosa causada pela SARS-CoV-2, forma mais recente de coronavírus, de elevado potencial de disseminação. Em decorrência da elevada transmissibilidade da doença que acontece por meio do contato humano ou pelo contato com superfícies infectadas, em pouco mais de dois meses ela já se fazia presente em diversos países ao redor do mundo e apresentava resultados devastadores, vide o caso de Itália em fevereiro de 2020 e o caso dos EUA a partir de março.Frente a esse contexto percebeu-se a imprescindibilidade do isolamento social, a decorrer em regra de forma domiciliar, como resposta a contenção da disseminação. Portanto, foi imposto o regime de trabalho remoto e/ou redução de jornadas a inúmeros setores de atividade, quando não a paralisação integral de setores de atividade, como é o caso dos shoppings centers em ambos os países. E, por consequência da pandemia, já se nota no contexto social geral (i) uma diminuição no ritmo de trabalho; (ii) a desaceleração no consumo de produtos e serviços não essenciais; (iii) a impossibilidade de efetivar determinadas práticas comerciais por conta da "impossibilidade" de contato; (iv) a previsão de uma crescente desvalorização do setor imobiliário e empresarial; (v) queda no fluxo de caixa de inúmeras empresas e por consequência de suas receitas; (vi) incumprimentos variados de obrigações. Por óbvio que o impacto da pandemia é geral e demasiadamente significativo, ainda mais considerando as relações contratuais, que vem sendo muitas vezes devastadas. A economia de diversos contratos que foram celebrados num contexto completamente diverso do atual contexto pandémico já se perfaz desequilibrada. Estamos em vias de ter, numa generalidade de contratos, a exigência do cumprimento do que foi acordado numa conjuntura completamente diversa, revelando-se como demasiadamente onerosa para uma das partes. Daí porque, exceto nos casos em que há mora culposa (principalmente advinda de comportamentos oportunistas que podem ocorrer), é imperioso revisitarmos a categoria jurídica medieva, cláusula 'rebus sic stantibus', a fim de reavermos o equilíbrio dos contratos de modo a tornarmos possível a continuidade das relações anteriormente existentes, valorizando a conservação do negócio jurídico e a renegociação de algumas condições, como foi muito bem defendido, nesse mesmo espaço, por José Fernando Simão4. A alteração das circunstâncias nos contratos preliminares (promessa) societários Por razões diversas há relações contratuais que se iniciam num formato preliminar e não definitivo. Dentro da tradicional separação da doutrina em relação às quatro fases de formação do contrato5, esse seria o terceiro passo, que é muitas vezes dispensável, mas é bastante utilizado em relações contratuais de direito imobiliário e societário. A complexidade das negociações dos contratos empresariais, como bem aponta a professora Paula Forgioni, faz com que diversos instrumentos contratuais sejam minutados e assinados6, sendo usual nessa realidade que contratos preliminares ou contratos-promessa sejam celebrados entre as partes7. Essa espécie de (pré)contrato tem bastante relevância no sistema lusófono sendo regulamentada tanto no Código Civil Brasileiro (arts. 462 a 466), quanto no Código Civil Português (arts. 410º a 413º e 830º). O seu objeto principal é a promessa de prestação de fato, qual seja, a celebração do contrato definitivo, estabelecendo uma obrigação de fazer bilateral8. Não obstante, o Contrato Preliminar ou Promessa tem também a função de fixação de conteúdo e vinculação, sendo certo que já nesta fase as partes difinem condições e obrigações (e.g. objeto, preço, pagamento do preço, arras/sinal, prazo, condições, obrigações e responsabilidades das partes, etc.). Neste sentido, fundamental destacar que as partes devem observar todos os requisitos essenciais relacionados com o contrato definitivo a ser celebrado, ficando ressalvada a liberdade quanto à forma eventualmente prescrita na lei, que somente deverá ser observada quando da celebração do contrato definitivo. É o que acontece, por exemplo, quando se está em causa um Memorando de Entendimento para a aquisição de participações societárias que antecede as alterações (e consequente registro) do Contrato Social, tido por contrato definitivo. Neste Memorando as partes irão estabelecer a obrigação de celebrar a alteração contratual, sendo também estipuladas cláusulas relacionadas ao preço, aos prazos, às condições, a condução dos negócios societários e administração da sociedade, entre outros pormenores. Fica pendente apenas o cumprimento das formalidades previstas na lei, que se dará através do registro do instrumento na Junta Comercial se estivermos no Brasil, ou na Conservatória do Registo Comercial se estivermos em Portugal. Sendo a celebração do contrato definitivo um dever decorrente do contrato preliminar a não celebração consubstanciar-se-á na não realização de uma prestação devida, ou seja, no inadimplemento. Diante dos contextos jurídicos brasileiro e português o incumprimento de um dever contratual viabilizará recurso ao remédio jurídico primeiro para estes casos que será a execução específica9, conforme estabelecem os artigos 463 do CCB e 830º do CCP10. Por meio deste poderá o credor forçar o devedor a prestar exatamente o que prometeu, que no caso em análise é a celebração do contrato definitivo. A noção de vinculatividade e obrigação são fundamentais na análise do Contrato Preliminar ou Promessa. Trata-se, como dissemos anteriormente, de um negócio jurídico que efetivamente obriga e vincula as partes, sendo o seu adimplemento o caminho natural para sua satisfação. Contudo o cumprimento pontual do que fora combinado poderá vir a sofrer influências nocivas do tempo, dando causa a relativização deste dever. Isto acontece nos casos em que os desequilíbrios supervenientes decorrentes da alteração das circunstâncias tornarem o cumprimento do contrato demasiadamente difícil. Considerando esse contexto, cabe analisar a possibilidade de incidência do instituto da alteração das circunstâncias para os contratos preliminares. Tal exerício deverá ser responsável, sempre em busca dos requisitos para a sua eficácia. Nesta medida, entendemos que no atual cenário deve-se verificar as situações em que o cumprimento do contrato ou de alguma das suas cláusulas se revela demasiadamente oneroso, e, em última ratio, se a sua exigência se faz contrária à boa-fé, subjacente aos sistemas de direito brasileiro e português. A importância da renegociação das condições "preliminares" face a alteração das circunstâncias As partes A e B firmaram, por meio de um Memorando de Entendimentos, a aquisição pela Parte B de 100% da participação societária de titularidade da Parte A na Sociedade C. Definiram, preliminarmente, (i) o dever de celebração do contrato definitivo (alteração contratual) decorridos doze meses da celebração do contrato preliminar; (ii) o preço devido pela Parte B para a aquisição da participação societária; (iii) os prazos para cumprimento da obrigação de pagar da Parte B e regularizações a serem efetivadas pela Parte A; (iv) a forma que se dará a organização formal e registral da sociedade, assim como as particularidades da celebração do contrato definitivo; (v) as regras de condução do negócio e administração; e (vi) obrigações acessórias que devem ser cumpridas pela Parte A. Para além de outros pormenores contratualmente negociados, tiveram atenção às circunstâncias objetivas as quais a contratação estava inserta (e.g. circunstâncias económicas, políticas, sanitárias, etc.11). Pese embora tenham vislumbrando que diante das circunstâncias objetivas suprarreferidas o contrato pudesse seguir o seu curso ordinário, foram surpreendidas pela pandemia de covid-19. Tendo em vista que este é um cenário que poderá se reproduzir em variadas relações contratuais, passaremos a tratar da eficácia do instituto da alteração das circunstâncias diante de duas hipóteses distintas no âmbito dos Contratos Preliminares ou Promessa no âmbito empresarial: a) Contratos Preliminares ou Promessa em Geral; b) Contratos Preliminares ou Promessa com Arras ou Sinal Penitencial. Para tanto, teremos sempre como premissas a valorização da boa-fé, da cooperação e até do bom senso - reiteradamente expressas pela doutrina e em especial nesse espaço12. Também devemos levar em conta que as partes já terão passado por longas rodadas de conversas para a estabelecimento das condições negociais, pela fase de punctuação com elaboração e celebração de outros documentos não vinculantes e eventual due diligence, que muitas vezes envolvem custos13. Ainda, consideraremos que as hipóteses a serem tratadas tem o potencial de sofrerem influência da situação pandémica, que pode trazer ao seio da relação contratual fatos que se caracterizam como um evento superveniente, externo a contratação em causa e (objetivamente) imprevisível (notadamente porque anormal, extraordinário e impróprio à álea normal do Contrato); que o fato é a causa que prevalece como responsável por ocasionar uma alteração tão significativa das circunstâncias daquele contrato (e de tantos outros da mesma natureza) a ponto de torná-las completamente diferentes das que fundaram a contratação (quebra da base do negócio), deixando evidente a perda de reciprocidade entre as prestações; e que por um lado cumprir as obrigações oriundas de um contrato alterado será capaz de onerar, demasiadamente, uma das partes e por outro, a exigência do cumprimento do contrato alterado será contrário a boa-fé14. a) Contratos Preliminares ou Promessa em Geral No âmbito do Contrato Preliminar que tenha sido celebrado pelas partes de forma natural, sendo vinculativo por natureza, para além dos pormenores gerais exemplificados, vislumbra-se que em razão da pandemia as obrigações assumidas pela Parte A de no prazo máximo de seis meses da celebração do contrato, obter uma certidão ambiental específica; ou de integralizar certos imóveis no capital social da sociedade D, que é subsidiária integral da Sociedade C; tornem-se extremamente onerosas. Por outro lado, pode ser imaginar que a obrigação assumida pela Parte B, relativamente a responsabilidade pelo registro da alteração contratual no prazo de doze meses, restará extremamente difícil de se concretizar designadamente porque irá se encerrar durante a pandemia, momento em que os serviços de registro comercial podem estar limitados ou mesmo encerrados. Num caso como este, o inadimplemento de alguma destas obrigações, sobretudo num contexto de normalidade, poderão levar a rescisão contratual ou a aplicação de penas convencionais severas. Contudo, diante de uma conjuntura de fatos externos que alteram as circunstâncias convém as partes terem sempre em consideração que soluções naturais poderão não ter a aplicabilidade habitual. Daí porque ser a negociação a melhor alternativa: é desta forma que poderão os contratantes, dentro de uma razoabilidade que deve levar em conta o momento, encontrar as melhores soluções à manutenção e continuidade dos seus contratos alterados, de forma a atender não só aos seus interesses particulares, como o interesse económico geral. No mais, ao agindo desta forma poderão evitar se submeterem a morosidade do judiciário e aos elevados custos que podem desencadear os litígios judiciais. Todavia, caso não consigam chegar a um ponto de interesse comum, poderá a parte prejudicada procurar pela eficácia do instituto da alteração das circunstâncias nos dois sistemas jurídicos sob análise, que admitem como consequência a readaptação ou resolução contratual a ser operada pelos tribunais15. Em suma, o ajustamento contratual a ser operado pelos tribunais deverá se dar fundado na equidade e de forma a que o seu novo plano seja harmonioso com os princípios da boa-fé. A readaptação somente terá lugar no caso de ser possível discernir a equação económica do contrato, o sentido que constitui a sua justiça interna. Isto porque o objetivo da modificação é para que haja o restabelecimento da equivalência entre as prestações, com a recuperação do sinalagma contratual originário16. Não sendo possível reaver o equilíbrio contratual, seja por iniciativa das partes já no âmbito do processo judicial, seja porque o tribunal não vislumbra a possibilidade de reequilibrar a económica do contrato, a resolução será a medida a se impor. E tal situação acaba sendo a mais comum nos contratos preliminares ou promessa, que por não serem definitivos muitas vezes acabam sendo resolvidos ao invés de serem revisados pelo judiciário. A despeito desta possibilidade judicial, cabe mais uma vez reforçar que contar com esta via como sendo a primeira ou a única é ineficiente ao sistema. Isto principalmente porque o que se pretende com a eficácia do instituto da alteração das circunstâncias é a individualização da justiça do caso concreto17, que poderá não ser alcançada pelos tribunais. Em momentos de instabilidade como o atual o melhor "julgador" para o contrato é aquele que se encontra no seu cerne, aquele que sabe como foram construídas as sua condições e qual o racional econômico por detrás dele. As partes, portanto, serão muito mais capacitadas para ajustar o contrato para uma nova situação de equilíbrio do que um terceiro adjudicador, sendo altamente recomendável que elas busquem a renegociação do contrato e das suas condições e obrigações. As soluções que forem buscadas pelos próprios contrantes certamente serão as mais eficazes, já que é permitido a esses, por meio do princípio da autonomia privada, soluções criativas e que podem não ser alcançadas pelo judiciário. Como exemplo, podemos citar a possibilidade de exoneração de multas contratuais, a prorrogação dos prazos para celebração do contrato definitivo, a suspenção da eficácia de certas cláusulas, entre vários outros "remédios" adivindos da renegociação. b) Contratos Preliminares ou Promessa com Arras ou Sinal Penitencial Noutra senda, poderá estar em causa um Contrato "Promessa" em que há possibilidade de arrependimento, usualmente inserida através da entrega de um bem ou valor pecuniário a título de arras ou sinal penitencial (art. 420 do CCB e arts. 442º, 2 e 830º, 2 do CCP). No que toca a este ponto cumpre analisar superficialmente o regime da espécie penitencial frente a cada um dos ordenamentos ora em escrutínio dado as suas distinções. No direito brasileiro as arras penitenciais não podem ser presumidas, devendo ser expressamente estipulada sua natureza ou a possibilidade de arrependimento18 para que elas sejam constituídas. Por outro lado, no direito português o sinal penitencial é aquele presumido para os contratos-promessa em geral19, bastando a sua constituição para que o direito de arrependimento seja previsto. Tal diferenciação de regimes, contudo, não altera a natureza das arras ou sinal penitencial, que é de enfraquecimento do vínculo contratual, estabelecendo um preço de arrependimento, ou de desfazimento do contrato20. Neste sentido, imaginemos que o nosso Memorando de Entendimentos dessa vez contenha a estipulação de arras ou sinal penitencial. Com isso abre-se aos contratantes a possibilidade de arrependimento do contrato, mediante perda ou devolução em dobro do valor dado a título de sinal. Dentro da situação de dificuldade vivida atualmente imaginamos, assim, que na primeira oportunidade alguma das partes poderá acabar desistindo do contrato, sendo esse um comportamento natural e esperável. A despeito da possibilidade de arrependimento ser contratual prevista e exercida dentro dos limites da autonomia privada, não se pode olvidar que num cenário de alteração das circunstâncias há um desequilíbrio económico entre a prestação e a contraprestação de forma a originar uma perda de reciprocidade entre ambas. Uma vez que há a quebra da base negocial que comporta as circunstâncias causais da contratação, utilizar-se do mecanismo do arrependimento pode ser considerado abusivo, conforme já defendemos em artigo publicado recentemente21. Agir desta forma sem considerar o circunstancialismo seria ignorar o fato de que o instituto da alteração das circunstâncias, num caso como este por afetar o negócio como um todo, poderia vir a ser invocado pela outra parte, que numa primeira leitura desatenta, poderia não estar em condições de fazê-lo. Daí porque dizer que o arrependimento puro e simples poderá ficar obstado, já que o momento exige prudência na condução dos negócios, sendo absolutamente temerário o desfazimento unilateral e injustificado dos contratos, mesmo que contendo cláusula de arrependimento. Segundo aponta JUDITH MARTINS-COSTA, os parâmetros da boa-fé também devem ser verificados quando haja pedido de resolução (lato sensu) do contrato22. Ainda que não se considere a extinção da obrigação quando haja arrependimento, não se constituindo um caso de resolução do ponto de vista técnico, tal acepção da autora vale também para o exercício das arras ou sinal penitencial. A alteração das circunstâncias e a boa-fé, em sua função corretora, devem ser utilizadas como parâmetro de controle da desvinculação exercida pelas partes por meio do arrependimento. Desta forma, também vislumbramos aqui ser altamente recomendável a renegociação das condições contratuais de arrependimento pelas partes, como forma de se evitar uma posterior busca ao judiciário por aquele que se sentir lesado. Nesse contexto, vislumbramos também a aplicação de soluções criativas e que podem não ser alcançadas no judiciário, como a suspensão da contagem do prazo de arrependimento durante a pandemia, a supressão da cláusula de arrependimento, ou mesmo a redução do valor das arras ou sinal que seja construída pelas próprias partes. Notas conclusivas A modificação contratual é um dos efeitos resultantes da incidência judicial das normas que trazem a alteração das circunstâncias no sistema lusófono. Ainda que não seja o único caminho que daí decorra, sendo possível pensar na revisão judicial ou resolução dos contratos, é aquele que se revela mais adequado para viabilizar a continuidade das relações contratuais23. Contudo, a readaptação contratual somente se operará quando (e se), com base no critério da equidade, for possível reaver o equilíbrio do contrato e desde que haja concordância do demandado. E, caso não o seja, a resolução do contrato acabará por se impor. Outrossim, podemos perceber que embora existam outros mecanismos (derivado, no âmbito do artigo, do direito de arrependimento) que numa altura de normalidade poderiam as partes, sem maiores prejuízos, se valer, num contexto de alteração das circunstâncias fazê-lo poderia figurar-se como desleal, desarrazoado, desonesto e abusivo. E tal conduta, ainda que a parte prejudicada não fizesse uso do instituto da alteração das circunstâncias para vir a ter o contrato modificado ou resolvido, não poderia se perpetrar nestes sistemas de direito sobretudo porque a eles está subjacente princípios como a boa-fé. Sendo assim fica evidente, especialmente no presente momento, que a valorização do princípio da conservação do negócio jurídico como forma de minimizar o impacto da pandemia no sistema económico-financeiro deve ser premissa para todos os contratantes. Daí porque ser prudente as partes se emprenharem na renegociação, decorrente do exercício da sua autonomia privada, quando o cumprimento do contrato se tornar demasiadamente difícil dado a alteração das circunstâncias, evitando levarem os casos para terceiros adjudicadores. É no âmbito das soluções negociais que os interessados (contratantes) terão as melhores condições de encontrar soluções eficazes aos seus negócios de modo a dar continuidade as suas relações. As relações contratuais, sobretudo empresariais, não mais se apresentam como um vínculo de antítese entre as partes. São estas relações de cooperação, dinâmicas e que devem se apresentar de forma equilibrada pelo tempo que durarem. É necessário considerar que para ter equilíbrio muitas vezes terá também de haver disponibilidade para deixar existir um "não-lucro". Somente assim conseguiremos, por meio de um conjunto de atos coordenados, viabilizar a existência de uma relação de "ganha-ganha", necessária a continuidade dos negócios e consequente adimplemento24. Carla de Calvo Dantas é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Civil pela mesma Faculdade. Pós-graduada em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacelar/PR. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba/PR. Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil e de Portugal, sócia do escritório CMDS Sociedade de Advogados, em Lisboa (Portugal). Marcelo Matos Amaro da Silveira é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Arbitragem pela mesma Faculdade. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, em Belo Horizonte. __________ 1 OMS. Folha informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Acesso em 12.04.2020. 2 Sobre o instituto da onerosidade excessiva superveniente, no Brasil, por todos ver AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide Editora. Rio de Janeiro, 2004. 3 Sobre o instituto da alteração das circunstâncias, em Portugal, por todos ver ASCENSÃO, José de Oliveira. Onerosidade excessiva por "alteração de circunstâncias". In: Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques. Coimbra: Almedina, 2007. 4 "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio (José Fernando Simão) publicado no Migalhas Contratuais. 5 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, v. 3, 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 155. 6 FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: teoria e aplicação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 7 BANDEIRA, Paula Greco; KONDER, Carlos Nelson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 98. 8 SILVA, João Calvão da. Sinal e Contrato Promessa, 14a Edição. Coimbra: Almedina, 2017, p. 13. 9 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol II. Almedina: Coimbra, 2017, p. 276-282; 10 Não obstante existam outros remédios o inadimplemento do contratos preliminares como destaca, por exemplo, TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie, p. 165-166. 11 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos Internacionais: negociação e renegociação. São Paulo: Ícone. 1993p. 78 e ss. 12 Em especial destacamos os textos: "O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade" (Flávio Tartuce) e Devagar com o andor: coronavirus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional (Anderson Schreiber) ambos publicados no Migalhas Contratuais. 13 BANDEIRA, Paula Greco; KONDER, Carlos Nelson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Contratos, p. 88. 14 KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei nº 8.666/93. São Paulo: Atlas, 2006, p. 52. 14 VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol II., p. 235 e ss. 14 ASCENSÃO, José de Oliveira. Onerosidade excessiva por "alteração de circunstâncias", p. 516. 15 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 12ª ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 340. 16 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil. v. 6. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 936-937. 17 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 348-349; 18 SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 296. 19 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil, v. II. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 667. 20 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 171. 21 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. As Arras Penitenciais e o Exercício do Direito de Arrependimento. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, vol. 2, p. 50 e ss. Porto Alegre: Lex Magister, 2020. 22 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 677. 23 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Negociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 252. 24 TIMM, Luciano Benetti. A manutenção da relação contratual empresarial internacional de longa duração: o caso da hardship, in: Revista trimestral de direito civil: RTDC. v.VII, n.º 27, pp. 235-245, (jul/set 2006), Rio de Janeiro: Padma, p. 3.
Texto de autoria de Ana Luiza Maia Nevares O Direito brasileiro não admite os pactos sucessórios, conforme se depreende da leitura do disposto no artigo 426 do Código Civil. Poder-se-ia supor, assim, que o único negócio jurídico de relevância no fenômeno sucessório seria o testamento, bem como que apenas ele seria instrumento capaz de, ao lado da lei, ser fonte da transmissão causa mortis, na esteira do previsto no artigo 1.786 do Código Civil. Ocorre que assim não o é e o que se percebe é justamente o inverso, uma vez que o que se verifica é um incremento pela procura de negócios jurídicos diversos do testamento para regular a sucessão hereditária ou para efetivamente transmitir determinados bens de uma pessoa para outra por ocasião da morte da primeira. Com efeito, muitos fatores têm contribuído para uma crescente preocupação com o planejamento sucessório: a maior longevidade, o fenômeno cada vez mais frequente das famílias recompostas e, ainda, a modificação da riqueza, que outrora se traduzia na propriedade imobiliária e, agora, está concentrada em valores mobiliários. O testamento, portanto, não tem dado conta de ser a única fonte de regulação do fenômeno sucessório. Mais: o testamento tem sido ineficiente em conciliar tantos interesses não convergentes na sucessão hereditária, como aqueles do cônjuge do falecido e de seus filhos exclusivos, os interesses de sócios do falecido e de seus familiares diante da continuidade da empresa, em especial quando se trata de sucessão em empresa familiar, bem como a necessidade de celeridade na transmissão hereditária. Realmente, diante de sua unilateralidade e sua revogabilidade, o testamento deixa muito a desejar na harmonização de todos esses interesses. Nessa direção, portanto, é cada vez mais frequente a procura por instrumentos contratuais para atuarem principalmente em complemento ao testamento na regulação do fenômeno sucessório. Denominados pela doutrina estrangeira de will-substitutes, ditos instrumentos podem ser divididos entre aqueles através dos quais a pessoa efetivamente dispõe de bens para depois de sua morte e aqueles que estruturam ou organizam a sucessão em determinado aspecto ou modo. Nessa categoria estão, por exemplo, os seguros de vida, os planos de previdência privada, as cláusulas inseridas em contratos sociais quanto à continuidade da empresa diante do falecimento de um sócio, acordos de cotistas e de acionistas, as holdings familiares, a partilha em vida, bem como o direito de acrescer entre cônjuges na doação, este último previsto no art. 551 do Código Civil. Os motivos que levam à procura pelos will-substitutes variam, podendo ser de natureza financeira ou não. Exemplos de tais razões são a manutenção do negócio familiar e a proteção de sucessores incapazes. Em virtude de não serem instrumentos sucessórios propriamente ditos, não raras vezes são disciplinados por leis que não se harmonizam com a normativa sucessória e atuando em complemento à lei e ao testamento na transmissão hereditária, conflitos e dúvidas surgem em relação ao seu papel e interpretação na sucessão causa mortis como um todo. Exemplo do ora exposto é o que vem ocorrendo com investimentos que integram o sistema de previdência privada (VGBL e PGBL)1. Os capitais gerados por conta de tais estipulações são pagos independentemente do inventário e, assim, franqueiam aos sucessores recursos financeiros necessários para pagar as despesas derivadas da morte do titular do patrimônio, como aquelas com o processo de inventário e com os impostos incidentes sobre os bens deixados. Em relação a tais capitais, surgem questionamentos no âmbito sucessório em virtude da desigualdade em relação à legítima dos herdeiros necessários, uma vez que, através do VGBL ou PGBL, o pai pode destinar mais recursos a determinado filho em detrimento do outro, bem como em relação ao não pagamento do imposto de transmissão causa mortis. O Código Civil assegura, em seu artigo 794, que os seguros de vida ou de acidentes pessoais não são considerados herança e, por essa razão, uma vez ocorrido o sinistro, o capital segurado é pago independentemente de inventário. Dessa forma, o valor do seguro não está sujeito à colação. No entanto, o herdeiro contemplado com o seguro de vida deve colacionar as prestações pagas pelo ascendente para a contratação do seguro, uma vez que estas saíram efetivamente do patrimônio do de cujus ao contrário do capital segurado2. Já em relação ao VGBL e ao PGBL, há muitos debates sobre a dinâmica de tais investimentos na sucessão hereditária. De fato, tanto o VGBL quanto o PGBL possuem caráter securitário e são regulados pela SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), o que justificaria, em tese, a sua exclusão do monte a ser inventariado e tributado. No entanto, a questão não é tão simples, porque tais investimentos, em especial o VGBL, são muitas vezes utilizados para fins não securitários, havendo, assim, desvio da sua finalidade. Dito diversamente, constituem uma aplicação financeira como outra qualquer. Atentos a esta realidade, alguns Estados buscam o pagamento do imposto de transmissão causa mortis sobre tais recursos, como ocorreu com o Estado do Rio de Janeiro, onde há lei estadual que expressamente instituiu a incidência do referido imposto (Lei Estadual do Rio de Janeiro, nº 7174/15, art. 23). A referida previsão legal foi declarada inconstitucional pelo Órgão Especial do Estado do Rio de Janeiro quanto à cobrança de imposto sobre o VGBL, mantendo o tributo sobre o PGBL (TJRJ, Ação Direta de Inconstitucionalidade 0008135-40.2016.8.19.0000, julgado em 10/6/2019). Quanto à inclusão de ditos investimentos no monte a ser partilhado, encontram-se na jurisprudência posições divergentes. De fato, se restar comprovado que tais investimentos foram utilizados para fins não securitários, constituindo, em realidade, meras aplicações financeiras do de cujus, a inclusão de ditos ativos no monte a ser partilhado se coaduna com a sistemática sucessória brasileira, sob pena de grave e evidente violação à legítima dos herdeiros necessários. Outra questão que merece ser mencionada é aquela relativa às previsões nos contratos sociais de sociedades quanto às quotas do sócio falecido. Isso porque o artigo 1.028 do Código Civil determina que, em caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo se o contrato dispuser diferentemente. Realmente, sendo a sociedade de pessoas, quando o affectio societatis impera, a morte do sócio, em regra, acarretará a liquidação das suas quotas com o pagamento dos respectivos haveres correspondentes aos seus herdeiros. O contrato social, no entanto, pode prever sobre a forma e o tempo do pagamento, bem como dispor sobre o ingresso ou não de determinados herdeiros na sociedade. Em que pese haver controvérsias sobre o tema, ao argumento de que tais previsões constituiriam verdadeiros pactos sucessórios, vedados pelo já citado artigo 426 do Código Civil, é preciso analisar a questão com cautela. Isso porque o artigo 426 do Código Civil constitui uma regra geral, sendo certo que, em diversas hipóteses, o legislador elege a morte como elemento do negócio jurídico3, instituindo exceções ao princípio geral. É o que ocorre, portanto, com o disposto no artigo 1.028 do Código Civil, que autoriza a previsão nos contratos sociais de estipulações quanto às quotas do sócio falecido. Nessa direção, a liberdade deve ser o norte, no sentido de previsões em relação à forma do pagamento dos haveres, se em pecúnia ou em bens da sociedade, quanto à possibilidade ou não de ingresso de determinados herdeiros na sociedade, sendo os demais devidamente indenizados, bem como em relação ao prazo de pagamento, se à vista ou diferido no tempo. De fato, a preservação da empresa e sua evidente função social autorizam que a autonomia seja a regra no exame de tais contratos sociais. No entanto, a autonomia dos sócios encontra limite na ordem pública sucessória, na medida em que as previsões estipuladas consoante o disposto no artigo 1.028 do Código Civil não podem ter como consequência a diminuição do patrimônio do sócio falecido. Em outras palavras, o contrato social não pode conter estipulações quanto à morte do sócio que ao fim e ao cabo levem a uma redução de seu patrimônio, devendo ser respeitado o valor das quotas, sob pena de as aludidas estipulações societárias configurarem verdadeiro enriquecimento sem causa em favor dos sócios remanescentes ou de alguns dos herdeiros. Dessa forma, será sempre preciso garantir uma apuração justa do valor das quotas, bem como de forma de pagamento que garanta a devida correspondência das quotas anteriormente existentes no patrimônio deixado pelo sócio falecido, inclusive para fins de igualdade da legítima dos herdeiros necessários, na hipótese de certos herdeiros virem a integrar a sociedade e outros não. Sem dúvida, o equilíbrio nesse caso é plenamente possível com os instrumentos existentes na ordem jurídica e financeira. A liberdade dos sócios encontra, ainda, limites na autonomia dos próprios sucessores, quando restar estipulado que eles ou algum deles podem ingressar na sociedade, uma vez que ninguém pode ser obrigado a associar-se ou a permanecer associado (CR, art. 5º, XX). Dessa forma, ainda que esteja previsto no contrato social que aos herdeiros do sócio falecido devem caber as suas quotas, se aqueles não tiverem interesse em integrar a sociedade, poderão pleitear o pagamento dos haveres correspondentes às quotas, a despeito da previsão contratual em sentido contrário. Ainda no âmbito empresarial, é preciso referir sociedades criadas para administrar o patrimônio familiar, que se conjugam em regra pela vontade do titular do patrimônio e, também, pela vontade de determinados sucessores, que passam a integrar o quadro societário. Usualmente, para tal finalidade, constitui-se o que se denomina de Holding Familiar, sociedade que detém o patrimônio da família, quer este seja constituído por bens móveis ou imóveis individualmente considerados, quer seja constituído por participações em outras sociedades, que por sua vez também são detentoras do patrimônio da família. Dessa forma, transmitem-se para os sucessores as quotas ou ações da Holding em caso de falecimento de sócio, havendo a transmissão dos bens familiares coletivamente considerados, representados pelas participações societárias transmitidas causa mortis. A reunião dos familiares como sócios ou acionistas de empresas familiares tem a vantagem de manter o controle societário e já vincular os sucessores às normas de gestão da sociedade, através do contrato social e de demais instrumentos parassociais (acordos de quotistas e de acionistas), o que permite maior tranquilidade para o detentor do patrimônio que pretende planejar a sua sucessão e para sócios ou acionistas que não integram a família, uma vez que, a partir de tais ajustes, pode-se assegurar a continuidade do negócio. Como se vê, o fenômeno sucessório não se limita à lei e ao testamento, podendo, também, ser definido por previsões contratuais. Em alguns casos, a sua complementariedade ao sistema sucessório resta definida na lei, como ocorre com os contratos de doação, em relação aos quais são previstos limites expressos na legislação quando o doador tem herdeiros necessários, restando, ainda, prevista a necessidade de colação nas hipóteses em que a doação configura adiantamento de legítima. Em outros casos, demanda-se uma atuação minuciosa do intérprete, que ao analisar a disposição contratual, deve conjugá-la à normativa hereditária, sob pena de se poder burlar normas imperativas sucessória. *Ana Luiza Maia Nevares é professora de Direito Civil da PUC-Rio. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Membro do IBDFAM, do IBDCivil e do IAB. Advogada. __________ 1 VGBL (Vida Gerador de Benefícios Livres) e PGBL (Plano Gerador de Benefícios Livres) são planos por sobrevivência (de seguro de pessoas e de previdência complementar aberta, respectivamente) que, após um período de acumulação de recursos (período de diferimento), proporcionam aos investidores (segurados e participantes) uma renda mensal - que poderá ser vitalícia ou por período determinado - ou um pagamento único. O primeiro (VGBL) é classificado como seguro de pessoa, enquanto o segundo (PGBL) é um plano de previdência complementar. A principal diferença entre os dois reside no tratamento tributário dispensado a um e outro. Em ambos os casos, o imposto de renda incide apenas no momento do resgate ou recebimento da renda. Entretanto, enquanto no VGBL o imposto de renda incide apenas sobre os rendimentos, no PGBL o imposto incide sobre o valor total a ser resgatado ou recebido sob a forma de renda. No caso do PGBL, os participantes que utilizam o modelo completo de declaração de ajuste anual do I.R.P.F podem deduzir as contribuições do respectivo exercício, no limite máximo de 12% de sua renda bruta anual. Os prêmios/contribuições pagos a planos VGBL não podem ser deduzidos na declaração de ajuste anual do I.R.P.F e, portanto, este tipo de plano seria mais adequado aos consumidores que utilizam o modelo simplificado de declaração de ajuste anual do I.R.P.F ou aos que já ultrapassaram o limite de 12% da renda bruta anual para efeito de dedução dos prêmios e ainda desejam contratar um plano de acumulação para complementação de renda. Acesso em 12/11/2016. 2 Ver entre outros Carlos Maximiliano. Direito das Sucessões, vol. 2. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1937, p. 745. 3 Rafael Cândido da Silva. Pactos Sucessórios e Contratos de Herança: estudo sobre a autonomia privada na sucessão causa mortis. Salvador: Editora Jus PODIVM, 2019, pp. 82/110.
Texto de autoria de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Paulo Nalin e Fernando Carvalho Dantas 1. Conteúdo e fundamentos dos Projetos de Lei n.º 1.079/2020 e 1.080/2020 O contexto de excepcionalidade1 instaurado pela emergência de saúde pública referida à pandemia do COVID19 ensejou nas últimas semanas uma profunda reflexão acerca do alcance e da suficiência da legislação infraconstitucional postas para regular as relações jurídicas privadas. Iniciativas legislativas foram tomadas no âmbito dos três entes da Federação orientadas a dotar o ordenamento jurídico de regras legais vocacionadas a regular as situações jurídicas alcançadas pelos efeitos econômicos da crise de saúde pública que se abateu sobre empresas, famílias e governos. Nesse passo, chama a atenção o teor dos projetos de lei 1.079/2020 e 1.080/2020 aprovados pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), no último dia 14 de abril de 2020, que propõem, dentre outros aspectos, a constituição de Câmaras de Conciliação para avaliação das condições econômicas de famílias do corpo discente matriculados em instituições privadas de ensino particulares e a definição de parâmetros para a concessão do que denomina flexibilização de pagamentos de mensalidades enquanto perdurar o plano de contingência epidemiológico instituído pelo Poder Executivo do Distrito Federal, como extrai do texto abaixo a ser enviado ainda no mês de abril de 2020 ao Governador do Distrito Federal para veto ou sanção: Art. 1º As instituições privadas de ensino do Distrito Federal deverão instituir Câmaras de Conciliação para avaliar a condição individual de cada unidade familiar, a fim de conceder a flexibilização de pagamentos das mensalidades previsto no artigo 2º desta Lei. § 1º Os critérios de definição para concessão de flexibilização de pagamentos das mensalidades previstos nesta Lei deverão ser amplamente informados pela instituição de ensino, sopesando a quantidade de alunos por unidade familiar, e vinculados mediante à comprovação de eventual perda de renda bruta familiar, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração, entre outros fatores, durante o período de isolamento social decorrente do novo Coronavírus. § 2º Os estabelecimentos particulares de ensino flexibilizarão o pagamento das mensalidades recebendo todas as demandas oriundas dos tomadores de serviços que necessitarem abrir negociação para fins de pagamento da semestralidade ou anuidade. Art. 2º Ficam as instituições de ensino fundamental, médio e superior da rede privada e cursos preparatórios e de idiomas do Distrito Federal obrigados a conceder flexibilização de pagamentos das mensalidades de no mínimo 30% (trinta por cento) e de no máximo de 50% (cinquenta por cento), durante o período que durar o plano de contingência do novo Coronavírus, instituído pelo Governo do Distrito Federal, exceto as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte sujeitas ao Simples Nacional, previsto na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, que poderão pactuar livremente a flexibilização de pagamentos das mensalidades. § 1º As instituições de ensino e os tomadores de serviços deverão negociar, sem cobrança de juros e correção monetária, a forma, a quantidade e a data de vencimento das parcelas, objeto da flexibilização das mensalidades. A primeira parcela deste acordo, somente poderá ser cobrada após o terceiro mês em que encerrar o Plano de Contingência do novo coronavírus. § 2º A flexibilização de pagamentos incidirá sobre os valores das mensalidades considerando os descontos porventura concedidos pelas instituições de ensino. § 3º Ficam excluídos da obrigatoriedade a flexibilização de pagamentos das mensalidades os benefícios de programas de bolsa de estudo governamentais e incluídos os beneficiários de financiamento estudantil. Art. 3º As Instituições de Ensino fundamental e médio e superior e cursos preparatórios e de idiomas da rede privada do Distrito Federal deverão realizar a reposição total do conteúdo programático não ministrado e das horas contratadas não ministradas durante o período de suspensão das atividades, conforme orientação da oferta de conteúdo e reposição de horas aulas definidas pelo Conselho Distrital de Educação. Parágrafo Único. Caso não seja realizada a efetiva reposição das horas aulas contratadas, os tomadores de serviço poderão requerer a devolução parcial e proporcional dos valores pagos, o que se dará mediante a efetiva devolução do numerário devido ou mediante a concessão de bolsas de descontos para o semestre ou ano posterior. Art. 4º O plano de ensino, a metodologia e o quantitativo de horas das aulas ministradas à distância durante o período de suspensão das aulas presenciais em decorrência do Plano de Contingência do novo Coronavírus instituído pelo Governo do Distrito Federal, deverão ser encaminhadas à Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, em até 20 (vinte) dias úteis da entrada em vigor da lei, exceto pelas instituições que já encaminharam para o seu respectivo órgão competente. Art. 5º É vedado às instituições de ensino registrarem dívidas em aberto nos órgãos de proteção ao crédito relativas ao período de suspensão das aulas presenciais. Art. 6º A flexibilização de pagamentos das mensalidades de que trata a presente Lei serão automaticamente cancelados com o fim do Plano de Contingência do novo Coronavírus instituído pelo Governo do Distrito Federal e a liberação para o retorno das aulas. Art. 7º As instituições de ensino devem garantir aos consumidores o direito à informação, que deve ser clara, adequada, precisa, atualizada e de fácil compreensão, especialmente no que se refere ao contexto da emergência gerada pelo novo Coronavírus. Art. 8º O descumprimento ao disposto na presente Lei ensejará a aplicação de multas nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pelos órgãos responsáveis pela fiscalização, em especial, Autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor do Distrito Federal (PROCONDF)2. As justificativas dos dois PLS foram: PLS 1.079/20 Uma das medidas adotadas para que a proliferação do vírus seja controlada foi a suspensão das aulas presenciais para reduzir o risco de uma infecção em larga escala proveniente de estudantes e professores se reunindo em locais fechados por longos períodos. Considerando que as instituições de ensino estão com as despesas reduzidas com itens como a manutenção do espaço, água, energia e alimentação de seus funcionários e alunos (que estudavam em período integral) por estarem suspensas as atividades presenciais, é justo que os estudantes e/ou seus responsáveis financeiros, que também tiveram seus rendimentos afetados, tenham a sua mensalidade reduzida. A paralisação e a quarentena causam uma crise econômica que afeta a todos. Esta medida é uma tentativa de equilibrar e ajustar o sistema de maneira a não propiciar que as instituições de ensino privadas tenham um enriquecimento durante este período e, ao mesmo tempo, possibilite que as mesmas continuem funcionando, pagando seus funcionários e as despesas que não se alteram mesmo com a suspensão das aulas. Diante da gravidade do atual cenário, é de grande importância a aprovação deste Projeto. Assim, e na certeza de que há urgência na aprovação do pleito em questão, é que se submete o presente Projeto de Lei ao crivo dos nobres pares, rogando-se por sua aprovação. PLS 1.080/2020 A presente Emenda tem como objetivo unificar a redação dos Projetos de Lei nº 1.079/2020, de autoria do deputado Rafael Prudente, e nº 1.080/2020, de autoria do deputado Daniel Donizet, tendo em vista que as duas proposições buscam, guardadas suas peculiaridades, a redução proporcional das mensalidades da rede privada de ensino durante o Plano de Contingência do novo coronavírus. O tema da competência legislativa foi abordado, com a deputada Júlia Lucy (Novo) e Agaciel Maia (PL) entendendo ser competência privativa da União, pois é matéria de direito civil (Constituição Federal de 1988 (CF/88), art. 22, I), todavia outros parlamentares, como o Dep. Fábio Félix (PSOL), argumentaram "haver jurisprudência recente respaldando a regulação da prestação de serviços educacionais"3. Após esta síntese trataremos de dois pontos neste artigo: (i) natureza da competência para legislar sobre a matéria e justificativas dos PLS; (ii); análise da correção (ou não) dos fundamentos dos PLS de acordo com o princípio social do contrato da equivalência material. 2. Competência legislativa sobre o tema. Sobre a competência legislativa para temas de direito à educação e ao direito do consumidor foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que construiu dois entendimentos opostos: 1ª Corrente. A relação entre a instituição de ensino e quem seja responsável financeiro(a) pelo pagamento das mensalidades do(a) aluno(a) matriculado(a) em uma das instituições de ensino particulares no Distrito Federal é contratual civil, cabendo à União legislar privativamente (CF/88, art. 22, I). Afastamento expresso da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) - STF, na ADI 1007. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. DJ de 24.02.2006 e ADI 1042. Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches. DJ de 29.04.1996. 2ª Corrente. A referida relação é de competência privativa e concorrente: "A Constituição Federal dispõe que compete privativamente à União legislar sobre direito do trabalho (artigo 22, I) e estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional (artigo 22, XXIV), ao passo que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação (artigo 24, IX)"- ADI 5752. Pleno. Rel. Min. Luiz Fux. DJ-e de 30/10/20194; ADI 5462. Pleno. Rel. Min. Alexandre de Moraes. DJe de 26/10/20185. Além do mais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgInt no Recurso Especial n.º 1.815.281. 2ª T. Rel. Min. Francisco Falcão. DJ-e de 10.03.2020, entendeu ser relação de consumo entre "as instituições de ensino - prestadoras de serviço - e os discentes formandos - consumidores -, pelo que justificou que as despesas pela expedição de diploma simples já estariam incluídas nos preços das mensalidades pagas pelos serviços educacionais prestados"6. Nessa linha, a "prestação de serviços educacionais caracteriza-se como relação de consumo, motivo pelo qual devem incidir as regras destinadas à proteção do consumidor, o qual, por ser a parte mais vulnerável, merece especial atenção quando da interpretação das leis que, de alguma forma, incidem sobre as relações consumeristas"7, até porque a lei 9.870/99, que dispõe "sobre o valor total das anuidades escolares e dá outras providências", trata especificadamente nos arts. 4º e 7º sobre a incidência do CDC em tal relação. Por isso, concluímos que: (i) os Estados e o DF podem legislar concorrentemente com a União sobre consumo, responsabilidade por dano ao consumidor e sobre educação (CF/88, art. 24, V, VIII e IX), com a União estabelecendo enunciados normativos gerais, sem excluir os Estados e o DF de legislarem de forma suplementar (CF/88, art. 24, § 1º e § 2º); (ii) há relação de consumo entre as instituições de ensino - prestadoras de serviço - e os(as) discentes - consumidores(as), na linha do que vem sendo decidido pelo STF e STJ; (iii) o DF, portanto, pode legislar concorrentemente com a União sobre o tema das mensalidades, na forma dos arts. 16, VI, 17, VIII, IX, 58, V. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Pablo Malheiros da Cunha Frota é professor de Direito Civil e de Processo Civil da UFG. Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado. **Paulo Nalin é professor Associado de Direito Civil da UFPR. Doutor em Direito Civil pela UFPR. Pós-doutor pela Universidade da Basiléia (UniBasel - Suíça). Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado e árbitro. ***Fernando Carvalho Dantas é economista (UnB), bacharel em Direito (UNICEUB), especialista em Processo Civil (UNICEUB) e mestrando em Direito (UniCEUB), membro da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), membro do Grupo de Pesquisa em Direito Público e Política Urbana. Advogado. __________ 1 Seja a excepcionalidade classificada como caso fortuito ou de força maior ou como quebra ou alteração da base objetiva do negócio ou como lesão, etc., é indiscutível que a COVID19 se classifica como um fato jurídico excepcional que pode afetar as relações contratuais. Sobre as diversas perspectivas dos efeitos da COVID tem se destacado, entre outras, a Coluna Migalhas Contratuais com excelentes textos sobre o tema. Acesso em 15abr.2020. 2 Disponível aqui. Acesso em 15/4/2020. 3 Disponível aqui. Acesso em 15/4/2020. 4 Na ADI 5752 ficou assentado: "(...) Consectariamente, antes de ter como inconstitucionais normas que, aparentemente, se insiram no bojo de competências normativas de outros entes, deve-se proceder a uma leitura sistemática e teleológica da Constituição, máxime porque não se pode perder de mira que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos o pluralismo político (artigo 1º, V, da Constituição Federal). Propõe-se, assim, que a regra geral deva ser a liberdade para que cada ente federativo faça suas escolhas institucionais e normativas (as quais já se encontram bastante limitadas por outras normas constitucionais materiais que restringem seu espaço de autonomia), priorizando-se o espaço criativo dos Estados, Distrito Federal e Municípios para o desenvolvimento das próprias políticas públicas e soluções regulatórias, em substituição à visão uniformizante e centralizadora outrora adotada. Destarte, devem ser prestigiadas as iniciativas regionais e locais nos casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa - a menos que haja ofensa a norma expressa e inequívoca da Constituição. Essa diretriz parece ser a que melhor se acomoda à noção de federalismo como sistema que visa promover o pluralismo nas formas de organização política. (...) À luz dessas considerações, rejeito a alegada inconstitucionalidade formal do dispositivo impugnado, por não constatar infringência do Estado-membro sobre as competências privativas da União para regular as relações de trabalho". 5 Na ADI 5462 ficou decidido: "CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI ESTADUAL 7.202/2016 DO RIO DE JANEIRO. RESTRIÇÃO À COBRANÇA DE TAXAS POR INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE ENSINO SUPERIOR. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. FORTALECIMENTO DO FEDERALISMO CENTRÍFUGO. EXERCÍCIO DE COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR EM MATÉRIA DE DIREITO DO CONSUMIDOR. CONSTITUCIONALIDADE DA LEGISLAÇÃO ESTADUAL. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse. 2. A própria Constituição Federal, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos, União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. Cabe ao intérprete priorizar o fortalecimento das autonomias regionais e locais e o respeito às suas diversidades como pontos caracterizadores e asseguradores do convívio no Estado Federal, que garantam o imprescindível equilíbrio federativo. 4. A Constituição Federal, no tocante à proteção e à defesa do consumidor, estabelece competência concorrente entre a União, os Estados-Membros e o Distrito Federal. Cabe àquela editar normas gerais, e, a estes, legislar de forma supletiva ou complementar (art. 24, §§ 1º e 2º, da CF). 5. A Lei 7.202/2016 do Estado do Rio de Janeiro não substitui a disciplina do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), mas a complementa, com o objetivo de ampliar a proteção dos consumidores fluminenses em aspectos peculiares a exigências locais, conforme faculta a Constituição Federal. 6. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente". 6 No mesmo sentido quanto à relação de consumo entre as instituições de ensino - prestadoras de serviço - e os discentes formandos - consumidores, inclusive para fins de responsabilidade por publicidade enganosa: STJ - REsp 1342571. 4ª T. Rel. Min. Marco Buzzi. DJ-e de 16/2/2017. 7 STJ - REsp 1583798. 2ª T. Rel. Min. Herman Benjamin. DJ-e de 7/10/2016.
Texto de autoria de Marco Aurélio Bezerra de Melo É de conhecimento geral que a doença covid-19 (CID 10) causada pelo vírus coronavirus pode causar sintomas típicos de uma gripe como evoluir para um grave quadro de infecção respiratória com necessidade de utilização de respirador hospitalar e que pode levar ao óbito por falta do aparelho ou pela própria evolução da patologia. Os números são assustadores e enquanto parte do planeta se preocupava com a proteção das fronteiras do país, o inimigo invisível a desrespeitou e está presente em todos os continentes do planeta, fato que levou a que a Organização Mundial de Saúde decretasse a existência de uma pandemia e compreendesse que a melhor maneira de lidar com esse problema é evitar a sua ocorrência por várias pessoas ao mesmo tempo a fim de que o sistema de saúde de cada país tenha condições de dar conta ao atendimento de seus pacientes. Assim, a par da recomendação da utilização de máscaras e a tomada de cuidados importantes como o de lavar corretamente as mãos e se isto não for possível, usar álcool em gel, em razão da facilidade de contágio por qualquer grupo humano que se reúna e um dos elementos esteja infectado, o isolamento social é a medida recomendada e adotada por quase todas as nações do mundo e aquelas que de alguma forma não perceberam a severidade desse fato se arrependem e estão vivenciando momentos de muito sofrimento como temos tido notícia. O isolamento social, conquanto necessário, apresenta-se como uma ruína súbita para a economia e os contratos que moldam as operações econômicas com vistas à segurança jurídica sofrem esse baque e podem eventualmente exigir uma releitura ou, em dizeres mais apropriados, uma leitura em consonância com as circunstâncias atuais imprevisíveis no momento da celebração do pacto que para cumprir seu papel fundamental na sociedade deve persistir no caminho sadio do equilíbrio presente na sua gênese. Essa imprevisibilidade é de tal dimensão que no contrato de seguro de vida é comum constar cláusula na qual, à presença de uma pandemia, a seguradora não estará obrigada a indenizar o beneficiário que, por conseguinte, receberá apenas o capital segurado, mas essa questão, por si só, merece um tratamento mais acurado e é dita aqui apenas para trazer à baila o nível de imprevisibilidade da situação ora enfrentada. Na imensa maioria dos casos, a saúde do acerto contratual depende da vida de relação da mesma forma que a disseminação do vírus. A aglomeração humana adoece a humanidade que a evita. Evitando-nos, maiores as chances de estarmos a salvo, tanto quanto tornarmos doentia diversas relações contratuais que se protraem no tempo. Por exemplo, foi dito1 recentemente com inegável apuro técnico que na locação de shopping center a ausência da posse direta por parte do lojista, abala sobremaneira o dever de pagar aluguel, pois a causa do contrato fica suspensa em razão de uma causa superveniente e imprevisível. O artigo 576 do Código Civil fala em deterioração da coisa alugada. No âmbito do modelo contratual acima, há quem defenda2 a possibilidade da utilização de mecanismos como a própria exceção de contrato não cumprido, resilição unilateral do contrato sem a necessidade de pagamento da multa penitencial prevista no artigo 4º da lei do Inquilinato ou a revisão contratual em suas variadas perspectivas em razão de a atividade empresarial inerente ao shopping center recair sobre os ombros do empreendedor pela clara alocação de risco que se percebe por diversas cláusulas contratuais válidas (art. 54, da lei 8245/91), mas que de certo são excêntricas se comparadas aos contratos de locação em geral como, por exemplo, a obrigatoriedade do pagamento de um aluguel mínimo e outro calculado sobre a lucratividade percebida pelo lojista locatário, o que, de fato, parece bem apropriado3 e se encontra prevista no inciso II do artigo 421-A (redação dada pela LLE), o qual prevê que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada". Enfim, a pandemia e as medidas sanitárias decorrentes deteriorou a vida de relação e, por conseguinte, a utilização da coisa pelo lojista durante o fechamento do shopping center para ficarmos apenas nesse exemplo, perdeu a função. Por ser uma situação temporária, não há que se falar em frustração do fim do contrato a ensejar a resolução contratual por tal fundamento, mas imperioso se mostra que as partes rediscutam a relação contratual, tocando como premissa o equilíbrio contratual. A despeito de aderirmos ao pensamento do professor José Fernando Simão4 que seguindo seguras lições de Pontes de Miranda, aponta que o foco de atuação dos operadores do direito deve ser o estudo casuístico da base do negócio jurídico e não propriamente o caso fortuito posto, parece não haver dúvidas de que a situação atual surgida a partir do coronavírus pode possibilitar a modificação (arts. 317, 478, 479 e 480, CC) e até mesmo a extinção do contrato (art. 393, CC) por quaisquer das teorias ou linhas doutrinárias hermenêuticas mais restritivas ou ampliativas que se queira adotar, observada a vedação aos efeitos retroativos. Trata-se de fato já referendado pelo Senado Federal que aprovou recentemente o PL 1179/20205 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid- 19), ora submetido à Câmara dos Deputados. Para o adequado enfrentamento desse desafio, importa o respeito às diversas categorias jurídicas postas à disposição dos interessados e, nesse ângulo de visada, recomenda-se recente texto de Flávio Tartuce6, no qual o festejado doutrinador trata didática e pragmaticamente dessa questão. No campo da efetividade da justiça comutativa contratual, a sociedade contemporânea conta com vários métodos adequados de solução de conflitos como a mediação, posta, por exemplo, como requisito prévio à análise da concessão da liminar possessória em uma ação possessória coletiva (art. 565, caput, CPC). Agrada-nos, sobremaneira, a definição de mediação contida no parágrafo único do artigo 1º da lei 13.140/15 que a considera como uma "atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia". A Dra Fernanda Guerra, especialista no Brasil na confecção dos denominados contratos conscientes que seriam pactos baseados em valores morais que fortalecem os vínculos relacionais objeto da avença, sustenta em obra ainda no prelo que um conflito não deve ser uma ruptura, e sim uma espiral de evolução, se cuidado com humanidade e abertura. Ora, essa humanidade e abertura tão importante a qual se refere a indigitada advogada e que vai encontrar fundamento constitucional no princípio da solidariedade (art. 3º, I, CF), deve partir primeiramente dos próprios interessados e se não se chegar a bom termo que entre, obviamente, a atividade subsidiária do Estado-juiz. Anderson Schreiber7, em tese que premiou o autor com a titularidade em direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujas premissas e conclusões não cabem nesse modesto texto, demonstra com muita argúcia que o "dever de renegociar" exsurge da interpretação e aplicação do artigo 422 do Código Civil, o qual, como sabido, impõe, juridicamente falando, que a boa fé objetiva seja observada em todas as etapas do contrato, aqui, muito particularmente, na fase pós-contratual. Dessume-se ainda do trabalho a perspectiva de que a recusa da renegociação diante do desequilíbrio contratual que eventualmente venha a favorecer economicamente uma das partes, poderia render ensejo à possível pleito indenizatório em favor do prejudicado, posto que não renegociar, quando as circunstâncias concretas, assim determinarem, enseja uma espécie de ato ilícito. Tal ilícito funcional pode ter uma função preventiva da futura responsabilidade civil e o Estado tem interesse em evitar a excessiva judicialização das ações de revisão contratual, assim como das eventuais ações de resolução e/ou indenizatórias. Se for admitida a premissa de que a recusa indevida de renegociar o contrato diante de desequilíbrio contratual configura ato ilícito, é possível existir uma lei que determine tal comportamento antes da demanda judicial. Além dos requisitos processuais do artigo 330, §§ 2º e 3º, do CPC para as ações revisionais de obrigação, deveria ser demonstrada ao julgador a existência de uma prévia tentativa de renegociação e que esta restou frustrada, pois o réu a quem se imputa, no âmbito da teoria da asserção, a vantagem excessiva, se recusou a rediscutir o contrato que se protrai no tempo e foi alvejado pela pandemia. Em breve interlocução acadêmica com o professor de direito civil da Universidade Federal do Espírito Santo, Dr. Rodrigo Mazzei, tivemos a ocasião de refletir na inovadora releitura feita pela atual codificação processual civil acerca da Produção Antecipada de Provas, tendo em vista que de modo franco e direto os incisos II e III do artigo 381 do CPC estabelecem que a referida medida judicial pode viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução do conflito e, ainda, que o prévio conhecimento dos fatos tem a potencialidade de justificar ou evitar o ajuizamento de ação. Não se trata de malferir o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal que preconiza o princípio da inafastabilidade da jurisdição como poderia, a princípio, se entender, mas a proposta de uma regular determinação legal de requisito prévio ou uma condição de procedibilidade. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em repercussão geral, no Recurso Extraordinário 631.240, Relator o Ministro Roberto Barroso, em 10/11/2014, que, em regra, o prévio requerimento ao INSS de algum benefício previdenciário, configurava requisito para a postulação judicial mesmo inexistindo lei federal que imponha tal condição. Obviamente, que no caso, há uma autarquia federal com essa função e, nesse passo, mais confortável ao Poder Judiciário se mostra a prova de que o requerimento prévio não foi suficiente para atender ao direito material do cidadão. De acordo com as peculiaridades do caso concreto, é adequada a concepção indenizatória em desfavor daquele que não observa o dever de renegociar e recolhe abusivo proveito econômico diante da pandemia ou mesmo sufoca a contraparte sem restaurar o propósito contratual inaugural, mas não tem o condão de evitar perniciosa judicialização excessiva com os riscos inerentes, fato que pode inviabilizar ou tornar mais árdua e custosa uma saudável perspectiva sanatória do contrato adoecido de modo a preservá-lo e, com ele, como cediço, garantir a circulação de riquezas com a possibilidade de salvar empregos, recolhimento de tributos, entrega de produtos e serviços importantes ou mesmo essenciais para a sociedade, dentre outros, em desencontro com a função social do contrato (art. 421 e 421-A, CC) e, porque, não dizer, da solidariedade constitucional (art. 3º, I, CF). Trata-se apenas de uma semente a ser plantada que poderá render frutos em atenção à boa fé objetiva e à função social dos contratos, assim como evitar inoportuna judicialização excessiva de ações de revisão e resolução contratual que pode colocar em risco o importante programa contratual. No caso do dever de renegociação diante da pandemia, é possível que se mostre oportuno e conveniente nesses tempos de covid-19 a existência de uma lei federal de natureza excepcional e, portanto, temporária que imponha um dever colaborativo em nível de direito material (arts. 113, 187, e 422, CC) e processual civil (art. 5º, CPC), situação jurídica que importa ser debatida com fundamentos e propostas bem mais sólidas e eficazes do que estas franciscanas e iniciais reflexões. *Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ, professor titular de Direito Civil do IBMEC/RJ. Mestre e doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. __________ 1 TERRA. Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas de Peso. Acesso em: 14 de abril de 2020. 2 AZEVEDO, Fábio. Sem shopping, sem aluguel: covid-19 e alocação de risco. Acesso em 14 de abril de 2020. 3 Enunciado 443, da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ (2012) - O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida. 4 SIMÃO, José Fernando. O Contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Acesso em 18 de abril de 2020. 5 Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos. Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. §1° As regras sobre revisão contratual previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo. § 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários. 6 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa fé, bom senso e solidariedade. Acesso em 17 de abril de 2020. 7 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e o Dever de Renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018.
Texto de autoria de José Fernando Simão "Em situações emergenciais ou condições de evidente desequilíbrio, a legislação pode ser a única arma que temos".Roger Scruton, Como ser um conservador. "A lucidez que devia produzir o seu tormento consome, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo".Albert Camus, Mito de Sísifo. Sumário. I - Introdução. II - O tipo contratual locação: "dou para que dês". A atipicidade da locação em Shopping Centers. III - Problemas de uma pandemia na locação em geral. 1. Locação residencial. 2. Locação não residencial. IV - Problemas da pandemia na locação em Shopping Centers. 1. Aluguel mínimo. 2. Fundo de promoção. 3. Despesas condominiais ou rateáveis. V - Garantias locatícias: fiança, seguro-fiança e caução. VI - Notas conclusivas. I - Introdução1. É verdade que o confinamento dá forças a um grupo de "palpiteiros", que nada escrevem, falam sobre tudo com a profundidade de uma folha seca à deriva no mar revolto. Esse grupo barulhento e óbvio assume o protagonismo nas redes sociais. Não, o seu tormento não produz lucidez. Depois de um mês de confinamento, quase duas dezenas de lives, intensos debates em grupos de WhatsApp, e inúmeras perguntas recebidas por meios virtuais, é hora de debater de maneira concentrada apenas o contrato de locação em tempos de pandemia. Dois artigos2 produzidos que, de maneira científica e brilhante, trazem luzes sobre o tema e merecem destaque. O primeiro de Aline de Miranda Valverde Terra chamado "Covid-19 e os contratos de locação em shopping center"3 e o segundo é de Fabio Azevedo denominado "Sem shopping, sem aluguel: covid-19 e a alocação de riscos"4 . Como a locação vai além dos contratos de locação comercial (tecnicamente, de locação não residencial), primeiro cuido da questão da locação em geral e, depois, em diálogo com os autores, tratarei da locação em shopping center. Interessam, nesse momento, as locações regidas pela lei 8.245/01 e não aquelas regidas pelo Código Civil (locação de bens móveis, locação em apart-hotéis etc.), pois são elas que tem sido objeto de grandes debates e decisões judiciais. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Advogado e parecerista. __________ 1 Agradeço aos Drs. Luciana Ismael e Marcelo Barbaresco pelo franco debate e saudável troca de ideias que muito enriqueceram essas linhas. 2 Há outros igualmente brilhantes, mas escolhi esses dois por ter vínculo pessoal com os autores, admiração acadêmica e, ainda, ter tido enorme prazer na leitura. 3 Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Acesso em 20/4/2020. 4 Sem shopping, sem aluguel: covid-19 e alocação de risco. Acesso em 20/4/2020.
Texto de autoria de Bruna Duarte Leite "Mediante essas regras, consegue o homem diminuir, de muito, o arbitrário da vida social, a desordem dos interesses, o tumultuário dos movimentos humanos à cata do que deseja, ou do que lhe satisfaz algum apetite" (Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 13). Resumo: o objetivo do presente artigo é discriminar as consequências da alteração e do cancelamento de passagens aéreas, tanto pelo consumidor quanto pelo transportador, em face da legislação aplicável ao contrato de transporte aéreo de pessoas, considerando-se, nesse particular, a MPV 925/2020, que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19. Sumário: 1 - Introdução. 2 - As regras jurídicas aplicáveis ao transporte aéreo de pessoas. 3 - As consequências do coronavírus para o transporte aéreo de pessoas. 3.1 - A alteração de passagens aéreas adquiridas até 31/12/2020. A. Alteração pelo consumidor. B. Alteração pelo transportador. 3.2. O cancelamento de passagens aéreas adquiridas até 31/12/2020. A. Cancelamento pelo consumidor (resilição). B. Cancelamento pelo transportador (resolução culposa). 4 - Conclusão. 5 - Bibliografia. 1 - Introdução Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente a pandemia de Covid-191. A doença tem se alastrado de forma rápida e sido implacável aos sistemas de saúde de diversos países, até mesmo daqueles tradicionalmente considerados desenvolvidos, como Estados Unidos da América e Itália2. Sua gravidade, contudo, torna natural que as consequências do coronavírus não se limitem ao âmbito da saúde. A sociedade já começa a sentir a intensidade dos impactos econômicos da pandemia3. Dentre os setores bastante afetados, destaca-se o setor de transporte aéreo de pessoas. O risco de contágio, o fechamento de museus e parques, o cancelamento de eventos e a quarentena obrigatória imposta em diversos países são fatores que levam as pessoas a não mais viajarem, bem como tornam desvantajoso às companhias aéreas operar voos com pouquíssimos ou até mesmo sem passageiros. Diante disso, sobe o número de alterações e cancelamentos de passagens aéreas, seja por passageiros, seja pelas próprias companhias, gerando dúvidas sobre o direito dos consumidores e das companhias aéreas, que, notadamente, sofrem de imediato e sofrerão no futuro enormes perdas em razão da pandemia. O Poder Executivo, por sua vez, tentando minimizar os impactos da covid-19 em relação aos contratos de transporte aéreo de pessoas e ciente da importância estratégica da aviação civil, editou a Medida Provisória 925 em março de 2020 (MPV 925/2020), porém com esclarecimentos insuficientes e que precisam ser considerados juntamente a todas as outras regras jurídicas sobre o transporte aéreo de pessoas4. Assim, apesar de os problemas apontados merecerem respostas céleres, é evidente que elas não podem ser precipitadas. Embora o momento seja de medo e tumulto, o direito deve dar soluções lógicas a partir de regras pré-determinadas. Em tempos de caos, as regras jurídicas tornam possível diminuir o arbitrário da vida social, o tumultuário dos movimentos humanos e dos interesses particulares5, mostrando a importância, para a ordem social, de se viver em um Estado de Direito. Nesse sentido, o presente texto se propõe a discriminar e analisar as consequências jurídicas da alteração e do cancelamento de passagens aéreas no Brasil, no cenário de pandemia, à luz das regras jurídicas em vigor sobre o tema. Para isso, o estudo tomará em consideração, em primeiro lugar, as regras jurídicas cabíveis (Item 2 - "As regras jurídicas aplicáveis ao transporte aéreo de pessoas"). Em seguida, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o presente texto irá avaliar qual é o impacto do coronavírus em relação aos contratos de transporte aéreo de pessoas (Item 3 - "As consequências do coronavírus para o transporte aéreo de pessoas"). A partir de tais ponderações, será possível apontar quais as consequências jurídicas cabíveis para as hipóteses de alteração e cancelamento de passagens aéreas adquiridas até 31/12/2020 (3.1 - Alteração de passagem. A. Alteração pelo consumidor. B. Alteração pelo transportador e 3.2 - Cancelamento de passagem. A. Cancelamento pelo consumidor (resilição). B. Cancelamento pelo transportador (resolução culposa). Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Bruna Duarte Leite é graduada em Direito e mestranda em Direito Civil pela USP. Advogada. __________ 1 OMS declara pandemia de coronavírus. Acesso em 11/4/2020. 2 Em 11/04/2020, os EUA é o país com mais mortes por coronavírus no mundo. A Itália, por sua vez, teve uma expansão extremamente rápida do número de casos, o que também colocou em xeque seu sistema de saúde e teve como resultado um número expressivo de mortes por coronavírus. Fonte. Acesso em 11/4/2020. 3 A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - o "clube dos países ricos") afirmou em que a economia global levará anos até se recuperar do impacto da Covid-19. Fonte. Acesso em 11/4/2020. 4 Importa esclarecer que a medida provisória, embora tenha força de lei, é ato do Presidente da República, cuja eficácia legal, caso não seja ratificada pelo Congresso Nacional, é de apenas 120 (cento e vinte) dias (art. 62 da Constituição da República). Assim, a medida provisória não tem o condão de revogar leis, mas somente de suspender sua eficácia, justamente por ser editada em caso de urgência. 5 Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 13.
Texto de autoria de Andre Luiz Arnt Ramos e Marcos Catalan Uma tempestade, evento de grau 10 na Escala de Beaufort, tem, como efeitos esperados, arrancamento de árvores e danos estruturais a construções. Neil Peart, falecido baterista e letrista do power-trio Rush, nela buscou inspiração para escrever a célebre Force Ten. A canção começa com o entoar de verso que bem se amolda às respostas que começam a se desenhar frente aos destrutivos impactos da Pandemia de COVID-19 nas relações contratuais: "Though times demand tought talk, demand tough songs, demand tough hearts". Tempos como os que vivemos ensejam prognósticos pouco animadores acerca do futuro próximo. É quase improvável que alguém não perceba que quase todos os cenários delineados no porvir, em especial, diante de medidas tão drásticas quanto necessárias visando a preservação do maior número possível de vidas humanas, sugerem um mundo no qual as pessoas caminham com os olhos vendados à beira de precipícios descomunais. É, pois, necessário firmeza, como vaticina Peart. Mas esses tempos também clamam por solidariedade e pela cunhagem de soluções consensuadas para as tragédias dos contratos, das relações contratuais e dos contratantes. Tal qual se passa nas célebres telas de Edvard Munch, o desespero atado ao desemprego, à bancarrota ou, simplesmente, à constitucionalmente questionável redução dos salários dos trabalhadores brasileiros ecoa assustadora e silenciosamente estimulando a dogmática jurídica a antecipar quadros retratando imagens que às vezes oscilam entre o atraso e a mora e em outras transitam entre a impossibilidade absoluta e o inadimplemento obrigacional. Nos últimos casos, aliás, ligando tais situações jurídicas à possibilidade de resolução dos contratos e, eventualmente, a sua cumulada com a pretensão a perdas de dados, a depender do suporte fático concreto. As limitações e privações impostas pelo Poder Público ao lado da mudança radical da conjuntura na qual incomensuráveis negócios foram desenhados, por sua vez, são teorizadas como hipótese que hão de dar vazão a número semelhante de contratos clamando por revisão. É preciso vislumbrar, entretanto, que Judiciário hodiernamente se encontra sobrecarregado1 e, ainda, que muito provavelmente, em um mundo bastante mais pobre, sentenças e acórdãos não serão transformadas no capital necessário ao cumprimento das obrigações. E, nesse esteira, como deixar o planeta não parece ecoar enquanto alternativa factível, talvez, sensibilidade, solidariedade e esforços sem precedentes na história da humanidade possam auxiliar a todos a compreendermos a importância de revisitar práticas reproduzidas mecanicamente de forma a - na iminência de conflitos - buscarmos todos nós estimular sua prevenção e soluções dialógicas. A abertura para desenlaces a serem obtidos sem a necessidade de sujeição à violência estatal, aliás, parece ser tanto (a) a mais adequada postura econômico-pragmática a ser assumida nesse instante (b) como o melhor remédio para a angústia depositada no turbilhão de incertezas que colore e seguirá a colorir, por algum tempo, o porvir de cada um dos brasileiros. Daí que, para muito além das respostas dogmáticas antevistas linhas atrás e os remédios por ela ofertados - (a) a revisão que trata e garante alguma sobrevida aos pacientes, mas não necessariamente faz mais que isso, (b) a resolução contratual que mata aquele que a procura, mormente, em tempos de escassez ou, ainda, (c) medidas excepcionais de interferência em sua eficácia - parece que vivemos um tempo no qual é preciso pensar fora da caixa, eleger outros caminhos e, com isso, evitar que a crise do Sistema de Saúde que avança sobre a Economia se espraie, também, pelo combalido Sistema de Justiça. Em tal contexto uma das vias que devem ser percorridas foi traçada por Anderson Schreiber e pavimentada com aspectos afetos ao Soft Law e a experiências estrangeiras. Trata-se do dever de renegociar2, a incumbência de envidar esforços, sob o pálio da colaboração e da lealdade decorrentes da boa-fé objetiva, para redimensionar o contrato e a relação contratual, rompendo o jugo de pactos fáusticos3. Mas, cabe perguntar: sabemos negociar? Operadores do Direito são forjados para o conflito. Aprendemos, na vida e nos bancos universitários, que: (a) a responsabilidade é uma resposta do Direito ao mau uso da liberdade, um castigo para aqueles cuja conduta possa ser qualificada como um pecado normativo, (b) a Ursprung, a partícula originária e fundamental do Processo é a lide, pensada nos termos que foram delineados por Chiovenda, (c) credor e devedor têm interesses antagônicos e, ainda, (d) a sentença judicial resolve o mérito e pacifica o conflito, embora seja ela mesma, nada menos que um relampejar da violência institucionalizada. Negociar e renegociar, postular e ceder, ofertar e pedir, direta ou mediatamente, são verbos que exigem inconteste esforço de ruptura com todo esse arcabouço e, em alguma medida, com aquilo que somos. Caso contrário, pode-se incorrer no erro de pensar o giro aqui proposto como mais uma forma de desafogar uma Instituição que há algum tempo não pode respirar. Mais que isso e, ao contrário do que se pensa, negociar não é uma habilidade inata ao ser humano. Ela se parece mais com a paternidade: embora seja algo que sempre houve e sempre haverá, necessariamente, ela envolve e exige, pede e impõe enorme esforço de aprendizado. O medo do desconhecido não pode impedir a revisitação de muitas das certezas que temos sobre o que é certo e errado, bom ou ruim. Negociar, especialmente em tempos de crise - ou, para tempos de crise, eis que, como a Dorothy do Mágico Oz, fomos tragados por eles em nossa infância e jamais vivenciaremos o momento em que viermos a ser expelidos -, impõe estudar. Demanda, também, muita, mas muita, paciência. Propomo-nos, então, a delimitar quatro singelos pontos que consideramos importantes na formação de operadores do Direito capacitados para atuar em negociações de sucesso: 1. Ouça com atenção e de forma proativa. E com muito respeito pela condição pessoal da outra parte. O negociador, ao entabular ou revisitar um contrato, precisa ouvir para distinguir, em si e no outro, posições e interesses. 2. Saiba e entenda o que quer (posição) e por que quer (interesse). Às vezes, abrir mão de uma dada posição pode significar oportunidade para realização em maior medida do interesse que guia a negociação. Noutras, na verdade, quase sempre, os interlocutores têm posições aparentemente opostas, mas interesses comuns. A segunda lição, portanto, é saber distinguir posições de interesses. 3. Além disso, o negociador deve refletir sobre seus interesses e posições e ouvir atentamente à narrativa e aos porquês de seu interlocutor para identificar o BATNA de cada um. BATNA é um acrônimo muito utilizado no estudo das negociações. Significa "melhor alternativa a um acordo negociado" Quer dizer: onde e como estão ou ficam as partes se não sentarem à mesa para negociar com seriedade. Tanto maior o poder de negociação de uma parte quanto mais forte for seu BATNA. Em tempos de crise e de inviabilidade real de cumprimento de prestações, é difícil visualizar bons BATNAs. Há, pois, mais espaço para barganha. Entender o seu BATNA e saber investigar o do outro é, então, a terceira lição. 4. Finalmente, o negociador precisa ter alguma familiaridade com estudos de processos cognitivos (e.g.: os conduzidos pela Economia Comportamental). É preciso conhecer um pouco sobre como decidimos (e compreender que fazemos más escolhas), bem assim que sempre haverá alguma medida de assimetria informacional. É preciso lembrar sempre da importância do priming (estímulo X interfere na percepção ou no processamento do estímulo Y) e do anchoring (a primeira informação de uma séria influencia a percepção ou o processamento de todo o restante dela), bem assim de outros vieses cognitivos. Mais ainda: é preciso cuidado com os gêmeos malignos da microeconomia (seleção adversa e risco moral), pois sempre estarão à espreita dos negociadores. E um agente mais sabido ou ardiloso pode (vai!) se valer deles para incrementar seus resultados. A quarta e última lição, destarte, é ler e estudar sobre comportamento humano e tomada de decisões, pois não somos assim tão perfeitamente racionais. Esses conhecimentos e habilidades contribuem sobremaneira para o desenho de soluções originais e satisfatórias a conflitos presentes ou futuros. Eles podem ser muito úteis não só no processo negocial, como também na redação dos instrumentos contratuais e no enfrentamento de eventuais desajustes supervenientes. Claro, não dispensam que estejamos, também, prontos para o embate - o que exige amplo domínio das categorias e instrumentos mais usuais no Direito. Mas são, sem dúvidas, um importantíssimo recurso para evitá-lo. Afinal, o advogado é o primeiro artífice da solução do caso, boa ou má, por qualquer caminho que venha a ser eleito. *Andre Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor da Universidade Positivo. Advogado. **Marcos Catalan é doutor summa cum laude em Direito pela Faculdade do Largo do São Francisco, USP. Mestre em Direito pela UEL. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Unilasalle. Professor no curso de Direito da Unisinos. Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho da Universidade da República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidade de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidade de Córdoba na Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista. __________ 1 Relatório Justiça em Números 2018. 2 SCHREIBER, A. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 2ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 2018. 3 O tema impõe a leitura de: OST, François. Tempo e contrato: crítica ao pacto fáustico, Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 6, n. 1, 93-115, maio 2018.
Texto de autoria de Rodrigo da Guia Silva Armadilhas no estudo da vedação ao enriquecimento sem causa A1 preocupação da sociedade civil com a difusão da covid-19 (causada pelo novo coronavírus, variante SARS-CoV-2) foi prontamente acompanhada dos esforços da comunidade acadêmica para a compreensão dos efeitos da pandemia sobre as relações disciplinas pelos mais variados ramos do direito. Diante da difusão exponencial dos desafios e dos litígios, empenha-se a comunidade acadêmica na busca por aparatos ofertados pelo ordenamento jurídico para a solução dos inúmeros problemas suscitados pela atual crise. No que tange especificamente ao tratamento das relações privadas patrimoniais, não raramente uma das primeiras ideias que assomam ao operador do direito é o recurso à vedação ao enriquecimento sem causa, no afã de se reprimirem atribuições patrimoniais injustificadas. Embora essa constante recordação não chegue a surpreender - por seguir uma antiga espécie de tendência quando o assunto é enriquecimento injustificado -, há de se ter em mente que o intérprete se vê diante de (ao menos) duas perigosas armadilhas no cenário atual. De uma parte, coloca-se a invocação indiscriminada de um (suposto) princípio de vedação ao enriquecimento sem causa como panaceia de todos os problemas, sem maior esforço de depuração do conteúdo de tal princípio e sem atenção detida às potencialidades do instituto da vedação ao enriquecimento sem causa2. De outra parte, identifica-se a crença de que a disciplina do enriquecimento injustificado poderia, por conta própria, fornecer os parâmetros para a avaliação de diversas situações no cotidiano. Essas duas armadilhas, conquanto agravadas no contexto atual, não traduzem autêntica peculiaridade do cenário extraordinário da pandemia da COVID-19. Em realidade, essas duas armadilhas correspondem a dois equívocos técnicos intimamente inter-relacionados e largamente difundidos na doutrina e na prática forense em matéria de enriquecimento sem causa. Por um lado, tem-se a invocação (no mais das vezes, puramente retórica) de um princípio de vedação ao enriquecimento sem causa, sem se empreenderem os devidos esforços seja para a demonstração do seu fundamento normativo, seja para a concretização do conteúdo de tal princípio, seja, enfim, para a compreensão das potencialidades do instituto (não já do suposto princípio) da vedação ao enriquecimento sem causa3. Por outro lado, nota-se a recorrente invocação da disciplina do enriquecimento sem causa como parâmetro para a valoração das atribuições patrimoniais - o que parece se relacionar com a encontradiça menção a um princípio de vedação ao enriquecimento sem causa, já que sem o reconhecimento de um princípio sequer faria sentido cogitar-se da consideração da vedação ao enriquecimento injustificado no processo ponderativo. Diante da apressada admissão da existência de tal princípio, o intérprete vê-se induzido a invocar a vedação ao enriquecimento sem causa como possível fundamento para a definição da legitimidade ou não das atribuições patrimoniais. Afloram, nesse sentido, proposições a indicar a necessidade de desfazimento (por pronúncia de invalidade, resolução etc.) de certo contrato sob pena de enriquecimento sem causa. Trata-se, contudo, de grave equívoco conceitual, apesar de sutil e usualmente sequer percebido. A origem desse equívoco parece remontar a um ímpeto de maximização das supostas potencialidades suscitadas pela abertura da noção de "sem justa causa" - um dos requisitos para a atuação do art. 884 do Código Civil -, como se com tal expressão o legislador houvesse pretendido conferir ao intérprete-aplicador do direito uma carta em branco para a livre apreciação da justiça das atribuições patrimoniais. Com vistas à elucidação e à superação desse equívoco conceitual, afigura-se fundamental a advertência no sentido de que a disciplina da vedação ao enriquecimento sem causa não tem por vocação definir abstrata e previamente as causas legítimas de atribuição patrimonial4. A esse mister destinam-se setores e comandos normativos os mais diversos no ordenamento jurídico, aos quais o direito restitutório certamente não tem pretensão de se sobrepor. Não incumbe ao regramento do enriquecimento sem causa, por exemplo, definir a ocorrência da frustração do programa contratual por culpa do devedor inadimplente, tampouco a abusividade de cláusulas insertas em contratos de consumo, mas sim disciplinar os efeitos da ausência superveniente da causa de atribuição patrimonial (in casu, por força da resolução do contrato ou da pronúncia judicial da invalidade das suas cláusulas, exemplos de que se cogitará na sequência deste estudo). Em realidade, é justamente a partir da consideração das diretrizes valorativas fornecidas pelo ordenamento jurídico que o intérprete pode concluir, no exame de cada caso concreto, pela presença ou ausência de justa causa do enriquecimento (noção tradicionalmente associada à presença ou ausência de justo título)5 - ou, em renovada formulação à luz da metodologia civil-constitucional, pela justiça ou injustiça do enriquecimento6. Vista a questão sob outro ângulo, pode-se afirmar que a vedação ao enriquecimento sem causa fornece não o critério valorativo da atribuição patrimonial, mas sim o remédio - restitutório - destinado a solucionar os casos de atribuição patrimonial injustificada. Com base em tais premissas, passa-se a investigar algumas autênticas potencialidades do instituto da vedação ao enriquecimento sem causa para o equacionamento de litígios deflagrados sob a repercussão da pandemia da covid-19. Deflagração do dever de restituição como consequência da pronúncia de invalidade ou da resolução contratual A relevância assumida pelo instituto da vedação ao enriquecimento sem causa pode ser percebida, inicialmente, no que diz respeito à fundamentação e à qualificação das obrigações restitutórias deflagradas pela pronúncia de invalidade e pela resolução contratual, hipóteses particularmente recorrentes durante a crise causada pela pandemia. A consideração de algumas situações fáticas bastante frequentes pode auxiliar na compreensão do presente raciocínio. Pense-se, inicialmente, nas hipóteses em que o consumidor, premido da necessidade de adquirir produtos destinados à prevenção do contágio pelo novo coronavírus, celebra contrato por força do qual vem a adquirir certa quantidade de álcool em gel mediante o pagamento de preço absolutamente elevado e de todo incompatível com as práticas normais do mercado. Caso o adquirente já tenha utilizado o produto e, ainda assim, venha a se concluir pela invalidade do contrato assim celebrado - seja pela configuração da lesão (art. 157 do Código Civil), seja pelo reconhecimento da abusividade da cláusula inserta no contrato de fornecimento de produto ao consumidor (art. 51, IV e XV, do Código de Defesa do Consumidor) -, não se tardará a perceber que o adquirente fará jus à devolução da diferença entre o valor por ele efetivamente pago e o valor considerado razoável. Pense-se, ainda, nas hipóteses fáticas em que o contrato vem a se resolver, sem culpa de qualquer das partes, por força da repercussão da pandemia sobre a relação concretamente estabelecida pelos contratantes. Assim pode ocorrer, por exemplo, em situações de impossibilidade jurídica superveniente da prestação (e.g., diante da proibição estatal acerca da realização de determinado evento artístico), de frustração do fim do contrato (e.g., diante do completo esvaziamento da utilidade de certo pacote turístico durante o período da pandemia) ou de onerosidade excessiva (caso o contratante logre demonstrar os requisitos previstos em lei para a configuração de desequilíbrio superveniente legitimador da resolução contratual)7. A indicação dessas hipóteses fáticas permite observar que, qualquer que seja o fundamento a justificar, no caso concreto, a resolução contratual, deflagrar-se-á o direito de uma das partes à devolução dos valores efetivamente pagos no bojo do contrato que ora se desfaz por força da resolução8. A conclusão acerca da deflagração da obrigação restitutória em ambas as searas - invalidade e resolução -, muito ao revés de revelar aleatória coincidência, traduz a convergência das hipóteses relatadas em torno da noção de ausência superveniente de causa e da sua aptidão à configuração de enriquecimento sem causa9. Em realidade, o surgimento da obrigação de restituir consiste em consequência que não se restringe às hipóteses nas quais a atribuição patrimonial (obtida à custa de patrimônio alheio) já nasce desacompanhada de uma causa justificadora. Com efeito, a constatação da ausência de justa causa e a subsequente imposição da obrigação restitutória ocorrem "(...) não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir", como bem elucida o artigo 885 do Código Civil em integração da disciplina da cláusula geral contida no art. 884 do referido diploma. A adequada compreensão do art. 885 do Código Civil se revela especialmente relevante para a compreensão do denominado efeito restitutório na seara da resolução dos contratos. Isso porque, diversamente do que se verifica na experiência de outros sistemas jurídicos10, a positivação expressa do denominado efeito restitutório (por vezes referido simplesmente por efeito retroativo) da resolução não foi o caminho trilhado pela legislação brasileira para a regência das relações paritárias11. Com efeito, embora o Código de Defesa do Consumidor preveja a restituição ao disciplinar a responsabilidade por vício do produto (art. 18, § 1º, II, e art. 19, IV) e do serviço (art. 20, II), o Código Civil parece não conter uma previsão genérica acerca da aptidão da resolução contratual para deflagrar as obrigações restitutórias a cargo de ambos os contratantes. Tais obrigações de restituição, então, parecem se vincular, no quadro geral de fontes das obrigações no direito brasileiro, à vedação ao enriquecimento sem causa, remontando diretamente à hipótese de ausência superveniente de causa de que trata o artigo 885 do Código Civil. De fato, ao desfazer o vínculo contratual, a resolução suprime a fonte que justificava as transferências patrimoniais, as quais deverão, em regra, ser integralmente restituídas a fim de se reprimir a configuração de enriquecimento sem causa. O reconhecimento do efeito restitutório à míngua de previsão legal específica parece traduzir, em suma, decorrência direta da cláusula geral do dever de restituir contida no art. 884 do Código Civil, na feição própria de ausência superveniente de causa (art. 885). De todo modo, mesmo na seara da invalidade negocial (em que o art. 182 do Código Civil atua como fundamento direto do dever de restituir)12 e nas demais hipóteses em que houver previsão legal específica acerca da deflagração do dever de restituir por ausência superveniente de causa - sem que se cogite, portanto, de aplicação direta da cláusula geral do dever de restituir -, dever-se-á reconhecer a qualificação da pretensão restitutória à luz da fonte obrigacional da vedação ao enriquecimento sem causa. Isso porque a pronúncia da invalidade - tal como a resolução contratual - funciona no sentido de extinguir a justa causa que, até então, tinha aptidão a justificar a percepção de vantagem patrimonial à custa do patrimônio alheio. Uma vez prolatada decisão reconhecendo a inaptidão do negócio à produção de efeitos legítimos, deixa de subsistir título jurídico idôneo a justificar a manutenção das prestações recebidas por cada parte. Nesse contexto, a obrigação restitutória deflagrada pela pronúncia da invalidade (assim como aquela deflagrada pela resolução contratual) ostenta nítida função restitutória, destinada à remoção do enriquecimento - ora reputado injustificado, em razão do desfazimento superveniente do negócio que lhe servia de fundamento13. Prazo prescricional das pretensões restitutórias A partir do reconhecimento da identidade funcional entre as variadas obrigações que tenham em comum o escopo de remoção do enriquecimento sem causa, pode-se investigar o prazo prescricional apto a reger as correlatas pretensões restitutórias. O questionamento central na matéria costuma ser o seguinte: qual é o prazo prescricional das pretensões restitutórias que não decorram diretamente da cláusula geral do dever de restituir contida no art. 884 do Código Civil? Deve ser aplicado o prazo geral de dez anos (art. 205) ou o prazo trienal específico da "pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa" (art. 206, § 3º, IV)14? A assunção da premissa metodológica atinente à tripartição funcional das obrigações15 presta valioso auxílio nesta matéria, ao menos por duas (complementares) ordens de razão. A uma, porque o reconhecimento de um específico perfil funcional - in casu, o restitutório - inviabiliza a invocação de normas destinadas à regência de outros perfis funcionais, como acontece, por exemplo, com a previsão de prazos prescricionais preocupados com a regulação de pretensões de perfil reparatório ou indenizatório (caso do art. 206, § 3º, do Código Civil e do art. 27 do Código de Defesa do Consumidor). Trata-se simplesmente de reconhecer que as normas referentes a pretensões reparatórias não são idôneas à regulação do prazo prescricional de pretensões restitutórias, e vice-versa. A duas, porque o fato de variadas obrigações guardarem em comum um mesmo perfil funcional aconselha a incidência de uma disciplina jurídica unitária. Não se trata de proclamar uma homogeneidade absoluta, mas tão somente um tratamento comum naquilo que disser respeito à função característica das obrigações do mesmo grupo. Tal percepção não deve implicar, todavia, que a ausência de tal opção expressa seja entendida, ipso facto, como uma decisão em prol do afastamento de certa obrigação em relação ao regime geral do seu próprio perfil funcional. No que mais importa à presente discussão, tem-se que a eventual omissão (deliberada ou casual) do legislador na previsão de prazos prescricionais distintos para pretensões de idêntico perfil funcional não deve acarretar a incidência do prazo prescricional geral para as pretensões não expressamente reguladas (estabelecido pelo art. 205 do Código Civil) caso possam elas ser englobadas por uma previsão genérica que sintetize o perfil funcional em questão. Justifica-se, à luz dessas considerações, a interpretação da noção de "ressarcimento de enriquecimento sem causa" (art. 206, § 3º, IV, do Código Civil) de modo a traduzir o inteiro perfil funcional restitutório. Voltando-se a atenção aos exemplos supramencionados, nota-se que as presentes considerações conduzem à conclusão de que tanto as pretensões restitutórias deflagradas pela pronúncia de invalidade quanto aquelas deflagradas pela resolução contratual se submetem ao prazo prescricional trienal estabelecido pelo art. 206, § 3º, IV, do Código Civil16. À guisa de conclusão A urgência dos dilemas constatados no cenário atual não permite ao intérprete-aplicador do direito confortar-se com a invocação genérica (e usualmente apenas retórica) de princípios de duvidosa juridicidade para a solução dos novos desafios. Tal advertência, que se afigura válida para a generalidade das construções teóricas que porventura venham a se formular, assume contornos ainda mais acentuados em matéria de enriquecimento sem causa. Como visto, a gravidade da crise provocada pela pandemia da covid-19 revigora armadilhas que tradicionalmente já se colocam no estudo do fenômeno restitutório. Espera-se, então, que o presente estudo possa contribuir para a superação dos riscos de um tratamento atécnico e assistemático da vedação ao enriquecimento sem causa, bem como para a elucidação de algumas autênticas potencialidades de atuação do referido instituto no ordenamento jurídico brasileiro. Oxalá possa essa empreitada, ao final, auxiliar na sedimentação de alguns passos para o desenvolvimento das prementes reflexões a cargo da comunidade jurídica. *Rodrigo da Guia Silva é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Professor de cursos de pós-graduação lato sensu da UERJ, da PUC-Rio, da EMERJ e da PGE-RJ. Advogado. __________ 1 O autor agradece ao acadêmico Matheus Mendes de Moura, civilista vocacionado, pela revisão crítica do original. 2 A esclarecer a distinção entre os sentidos com os quais se emprega o enriquecimento sem causa (princípio e instituto), v. MICHELON JR., Cláudio. Direito restituitório: enriquecimento sem causa, pagamento indevido, gestão de negócios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 176. 3 Diversamente do que sucede com o suposto princípio, o instituto da vedação ao enriquecimento sem causa foi inequivocamente acolhido pelo direito brasileiro, manifestando-se tanto na cláusula geral do art. 884 do Código Civil quanto nas previsões específicas de obrigações com perfil funcional restitutório. Ao propósito, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 135 e ss. 4 Assim esclarece GOMES, Júlio Manuel Vieira. O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1998, p. 469-471. 5 Usualmente se associa a noção de justa causa à ideia de justo título, no sentido de título jurídico idôneo, em tese, à transmissão da vantagem patrimonial. Nesse sentido, v., entre outros, NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 268; e BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1931, p. 115-116. 6 Para o desenvolvimento da defesa de um giro conceitual do enriquecimento sem causa ao enriquecimento injusto, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa, cit., item 2.3.3. 7 A enunciação de tais grupos de hipóteses fáticas e dos seus respectivos enquadramentos dogmáticos remonta a SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus. Migalhas, 25/3/2020. Ao propósito da investigação das perspectivas de incidência da resolução contratual diante da difusão da pandemia da COVID-19, v., ainda, por todos, TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas, 27/3/2020; SIMÃO, José Fernando. "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, 3/4/2020; e PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Migalhas, 26/3/2020. 8 A configuração do direito de apenas uma das partes à restituição pressupõe, por certo, que a parte tenha efetuado o pagamento que lhe incumbia sem ter recebido a devida contraprestação. Advirta-se, ainda, que as peculiaridades de alguns contratos (notadamente, aqueles com obrigações de trato sucessivo) podem justificar a modulação do denominado efeito restitutório, em especial na seara da resolução contratual. Ao propósito, v. GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Atual. Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo De Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 210. 9 A menção ao caráter superveniente da ausência de causa não pretende afastar o caráter originário da invalidade negocial, mas tão somente ressaltar que também nessa seara a inaptidão da causa justificativa da atribuição patrimonial é reconhecida por um ato superveniente - in casu, pela pronúncia judicial da invalidade. A demonstrar a impossibilidade de existirem causas supervenientes de nulidade, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017, p. 64. 10 Para um relato das experiências italiana, portuguesa e francesa, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa, cit., p. 280 e ss. 11 Tal omissão se verificava já no Projeto de Código Civil, conforme ressaltado por AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: as obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais, a. 89, vol. 775, mai./2000, p. 27. 12 Ao propósito, v., por todos, SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria geral das invalidades do negócio jurídico, cit., p. 343 e ss. 13 Assim conclui, ao tratar dos efeitos da pronúncia judicial da invalidade negocial, LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Tomo I. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 401. 14 A ilustrar a proposta de aplicação do prazo prescricional geral, v. MARTINS-COSTA, Judith. Direito restitutório. Pagamento indevido e enriquecimento sem causa. Erro invalidade e erro elemento do pagamento indevido. Prescrição. Interrupção e dies a quo. Revista dos Tribunais, a. 104, vol. 956, jun./2015, p. 278. 15 A tripartição funcional das obrigações remonta à lição de NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 439. Ao propósito, seja consentido remeter, ainda, a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa, cit., item 1.2. 16 Assim também se sustenta, no que tange ao prazo prescricional da pretensão restitutória deflagrada pela resolução contratual, em SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Uma aplicação da disciplina do enriquecimento sem causa às hipóteses de extinção contratual: o prazo prescricional da pretensão restitutória. No prelo.
Texto de autoria de Marília Pedroso Xavier e William Soares Pugliese É inequívoco que os tempos atuais parecem marcados pela tendência de polarização dos debates. No contexto pragmático jurídico, a polêmica atual gira em torno da manutenção da suspensão de prazos processuais ou de sua imediata retomada. Ocorre que, com pandemia provocada pelo covid-19, instalou-se um período indeterminado de quarentena e de isolamento social. Com isso, a orientação passada pela Ordem dos Advogados do Brasil aos seus membros foi no sentido de aderir ao modelo de home office para mitigar riscos de propagação dessa enfermidade. A postura da OAB não poderia ser diferente, já que, por um acaso do destino, acabou sendo de certa forma protagonista nos capítulos iniciais das cenas de tragédia produzidas pelo coronavírus. Nos dias 5 e 6 de março do corrente ano, durante a realização da III Conferência Nacional da Mulher Advogada, houve contágio e propagação do referido vírus entre participantes da conferência. O evento reuniu três mil pessoas e várias advogadas adoeceram após a sua realização. O fato foi amplamente divulgado por tradicionais veículos de comunicação1 e a instituição chegou até mesmo a emitir um comunicado para alertar os congressistas2. Com o início do alastramento do vírus no país e as primeiras notícias de internamentos de pacientes em unidades de tratamento intensivo e, até mesmo, a confirmação de lamentáveis falecimentos, os tribunais brasileiros começaram a se pronunciar sobre a continuidade, regular ou não, de suas atividades. Como era de se esperar, diante de um cenário caótico de regras diferentes (e até mesmo divergentes) para cada órgão disciplinando o mesmo tema, coube ao Conselho Nacional de Justiça uniformizar o regramento em termos nacionais. Sendo assim, em 19 de março de 2020, o CNJ editou a resolução nº 313, a qual estabelece o regime de Plantão Extraordinário no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Com essa normativa, ocorreu a desejada uniformização do funcionamento dos serviços judiciários, bem como a garantia de acesso à justiça durante o período emergencial3. A resolução ainda esclarece que tem como objetivo prevenir o contágio pelo COVID-19 e que o Plantão Extraordinário funcionará no mesmo horário do expediente forense regular, suspendendo o trabalho presencial dos servidores e assegurando a manutenção dos serviços tidos como essenciais. Há, no artigo 4º, a indicação expressa de quais matérias devem ser apreciadas durante o período. No artigo 5º, temos a previsão de que "Ficam suspensos os prazos processuais a contar da publicação desta Resolução, até o dia 30 de abril de 2020". No dia 13 de abril, o CNJ editou nova portaria, de n. 77/2020, prorrogando indeterminadamente o regime de teletrabalho para os servidores e colaboradores da justiça. A advocacia defendeu, em um primeiro momento, a suspensão dos prazos. Afinal, a migração para o home office exigiria adequações por parte dos profissionais, inclusive para se adaptar a uma rotina diferente. Os longos meses de março e abril, porém, mostraram outra consequência dos prazos suspensos: sem prazos sendo cumpridos, os processos deixaram de ter movimentação e as decisões, especialmente as definitivas, como sentenças e acórdãos, não podem ser proferidas. Com isso, a advocacia que antes defendeu a suspensão dos prazos agora questiona quando serão retomadas as atividades como "eram antes". Aqui, tem-se talvez uma visão ingênua, pois como tem sido dito e repetido, nada será como antes. A resolução nº 313 parece ter inaugurado a polêmica indicada nas primeiras linhas desse texto. Assim, pode-se dizer que a suma divisio jurídica contemporânea coloca em tensão a retomada integral das atividades forenses e a manutenção da suspensão dos prazos. Prova disso é a pesquisa realizada pela OAB Nacional entre os dias 03 e 04 de abril sobre o tema. O resultado final para a pergunta "Você é a favor do retorno dos prazos processuais nos processos eletrônicos?" foi de 52,04% a favor4. O tema ganha contornos ainda mais sensíveis pelo fato de que existem argumentos extremamente persuasivos para os dois lados. Há quem diga que a pesquisa acima citada já tinha perguntas prontas e que poderiam ser tendenciosas, que o número de respostas (55.084) estaria muito longe de contemplar contingente significativo de advogados inscritos, que o momento seria vocacionado para a proteção das minorias e não das maiorias. Há também quem lance luz para a realidade de colegas que dependem das salas e serviços da OAB (inoperantes no momento) e para colegas que estão extremamente sobrecarregados com as atividades domésticas e escolares dos filhos5. Por outro lado, emerge com cada vez mais força o clamor para um olhar atento aos colegas que recebem seus honorários por cumprimento de atos processuais e que tendem a experimentar situação de extrema penúria caso os prazos não voltem a fluir. Aqui, sem dúvidas, temos um hard case. Nesse contexto, a doutrina é chamada para desempenhar seu importante papel criativo em busca de soluções adequadas e equilibradas para os dilemas experimentados pela sociedade. É disso que o presente texto pretende se ocupar. O primeiro ponto a ser enfrentado é conceitual e de grande repercussão prática: são os prazos processuais que estão suspensos ou os processos judiciais? A resposta é clara: apenas os prazos processuais. É perfeitamente possível aforar novas demandas que serão integralmente examinadas e decididas quando integrarem o rol do artigo 4º da Resolução nº 313/20. Da mesma forma, os procuradores estão livres para peticionarem e cumprirem prazos caso possam e assim desejem. Ainda, e talvez o mais importante, é perfeitamente possível e lícito que sejam praticados quaisquer atos processuais, seja pelas partes, seja pelos magistrados. Não se aplica, portanto, o art. 314, do Código de Processo Civil, que impede a prática de qualquer ato processual na suspensão do processo. O que se encontra suspenso, em última ratio, é o curso dos prazos preclusivos para as partes. Isto permite prosseguir para o segundo ponto, o qual tem relação, justamente, com a razão de ser da existência de prazos no direito processual. Os prazos têm, como objetivo, delimitar o tempo dentro do qual determinado ato processual deve ser praticado. O direito processual adota os prazos para permitir que o processo realize sua função essencial, que é alcançar um determinado fim, com ordem e segurança. Ao se utilizar a suspensão dos prazos para interromper o curso de um processo restringe-se o próprio exercício da função jurisdicional. Por outro lado, a opção por não cumprir os prazos é apenas das partes. A questão que se pretende destacar, portanto, é a voluntariedade das partes em cumprir os prazos e decidir sobre o andamento de seus processos. Ou seja, se partes e advogados tiverem interesse em movimentar seus processos e não identificarem qualquer impedimento gerado pelo período de quarentena, é perfeitamente possível que se convencione a respeito da retomada do curso normal dos prazos. E, sobre este ponto, ganha destaque um instituto específico do Código de Processo Civil. Trata-se do negócio jurídico processual. O art. 190 do CPC/15 prevê que quando a demanda versar sobre direitos que admitam autocomposição, "é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo". Caberá ao magistrado, de ofício ou a requerimento, a importante missão de controlar a validade das convenções entabuladas pelas partes. Uma das espécies de negócio jurídico processual que está plenamente em consonância com as demandas do momento atual é o chamado calendário processual. Disciplinado pelo artigo 191, do CPC/15, dispõe que, de comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais sur mesure. Assim, o calendário processual parece oferecer vantagens significativas, quais sejam: i) previsibilidade, ii) segurança jurídica, iii) mitigação de alegações de nulidade; iv) possibilidade das partes e advogados convencionarem sobre o andamento processual para alcançar o resultado pretendido em tempo razoável. Para além disso, é uma solução equilibrada porque permite, em tese, contemplar interesses de início contrapostos. Explica-se: por meio da ideia de cooperação, as partes podem estabelecer prazos que sejam factíveis de serem cumpridos. Assim, caso um dos procuradores ventile sua extrema dificuldade em ter produtividade diante dos desafios pessoais e familiares vividos neste período, poderá fixar seus prazos em dobro (ou qualquer outro período que entenda razoável). Evidentemente, caberá ao magistrado avaliar as condições de execução do calendário. Há atos que dependem da presença física das partes, tais como perícias e audiências, os quais podem ser inviabilizados diante das circunstâncias contemporâneas e que não admitem composição. No entanto, cabe considerar que algumas soluções que empregam a tecnologia em favor dos processos têm sido desenvolvidas, como audiências de conciliação e mediação virtuais. É improvável que diante de um tempo que desafia a sociedade de forma sem precedentes um comando normativo seja capaz de agradar gregos e troianos. É preciso admitir, sem tabus, que qualquer opção do legislador acabará por desagradar parcela significativa da advocacia. O consenso talvez esteja muito mais propenso a ser alcançado dentro do lócus privilegiado de uma determinada relação jurídica processual. E isso pode e deve ser operado por meio do calendário processual. Cabe o alerta para que os advogados estabeleçam regra de transição para o momento em que a quarentena e a suspensão de prazos acabar, o que também depende da colaboração entre as partes. Em última análise, o calendário processual é uma saída perspicaz, factível e lícita para contornar o verdadeiro maniqueísmo instaurado no tocante aos rumos da marcha processual no país. Parece notadamente vantajoso trocar o cenário incerto acerca dos prazos por uma convenção previsível, idônea e de plena concordância de todos. *Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da po's-graduac¸a~o strictu sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora de Direito Privado da Escola Superior de Advocacia do Paraná. Membro da Diretoria Paranaense do Instituto Brasileiro de Direito de Família e da Diretoria Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Advogada. Mediadora. **William Soares Pugliese é pós-doutor em Direito pela UFRGS. Mestre e doutor em Direito pela UFPR. Professor do Programa de pós-graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil - mestrado e doutorado (Unibrasil). Coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIBDP). Advogado. __________ 1 PRADA, Pedro. Novo coronavírus pega advogada. O Estado de São Paulo. Acesso em 16 de abr. de 2020. 2 MIGALHAS. OAB emite comunicado após participante de evento testar positivo para coronavírus. Informativo Migalhas. Acesso em 16 abr. 2020. 3 Disponível aqui. Acesso em 16 de abr. de 2020. 4 OAB. Pesquisa sobre suspensão dos prazos em processos eletrônicos. Acesso em 16 abr. 2020. 5 FACHIN, Melina. Mulheres em tempo de pandemia: 5 razões que nos demandam incorporar viés de gênero na preparação e avaliação das intervenções. Jota. Acesso em 16 abr. 2020.
Texto de autoria de Carlos Eduardo Pianovski Introdução O presente artigo se propõe à reflexão sobre o papel da boa-fé e da causa concreta dos contratos como ferramentas relevantes para a compreensão dos efeitos gerados pela pandemia da COVID-19 sobre os contratos. Se a força obrigatória dos contratos pode e deve se manter hígida na maioria dos casos - sempre com prestígio ao papel criativo da autonomia privada, nas prováveis renegociações -, haverá, é certo, no grave tempo de exceção em que vivemos, espaço para, em alguns casos, à luz do ordenamento vigente, o emprego das medidas excepcionais da resolução e da revisão contratuais, bem como da força maior, ainda que transitória, a afastar a mora em alguns contratos. O tempo de crise dá azo, porém, à emergência de comportamentos oportunistas dos agentes econômicos, sejam eles credores ou devedores. O que se propõe neste texto é um exame, ainda que preliminar, do enquadramento conceitual e de algumas respostas que a ordem jurídica pode oferecer contra esses comportamentos oportunistas. Para esse escopo, algumas precisões conceituais devem ser feitas, para que se possa compreender, à luz do arcabouço normativo que constitui a expressão jurídica do fenômeno contrato, mediante quais instrumentos o direito posto rechaça tais comportamentos. Boa-fé, processo obrigacional e liberdade econômica O processo obrigacional, como descreve Couto e Silva em sua consagrada tese1, desenvolve-se de modo dinâmico, em várias fases, que parte do momento pré-contratual, passa pela celebração da avença, segue em sua fase de execução e, mesmo após o fim desta, pode gerar eficácia pós-contratual. Como efeito, como na expressão de Luiz Edson Fachin, o contrato não principia apenas com sua celebração, e, da mesma forma, "o contrato não acaba quando termina"2. Essa obrigação vista como processo é dirigida a um fim, que opera como um vetor a definir o itinerário do fenômeno contratual - e que, permitimo-nos dizer, é tese que se valida pela estreita e realista conjugação que apresenta com o contrato como operação econômica. O fim do contrato é o bom adimplemento. É necessário, pois, refletir sobre em que consiste esse "bom adimplemento" no Direito contratual contemporâneo, no qual "quem contrata não contrata só o que contrata", para empregar, novamente, a feliz expressão de Luiz Edson Fachin. O bom adimplemento importa não apenas a realização da prestação como originalmente pactuada, em uma fotografia estática, mas, também, o atendimento dos deveres laterais inerentes à boa-fé, que emergem da sua função hermenêutico-integrativa, conforme ensina Judith Martins-Costa3. Esses mesmo deveres, em interessante dialética, são o móvel que impulsiona as condutas das partes ao longo do processo obrigacional. Todavia, não é só isso. Pode-se afirmar que não há bom adimplemento quando há a frustração da causa concreta do contrato. Causa concreta, diversamente da causa abstrata, definida, entre outros, por Emilio Betti, consiste, na lição de Junqueira de Azevedo, no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico (não se confundindo, pois, com os motivos), sendo estes, pois, um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico4. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta não é estranha ao exercício da liberdade econômica. É certo que a dimensão funcional dos contratos não se restringe a essa causa concreta, de caráter econômico, a ela podendo ser agregada a função social de caráter normativo (nos contratos que a têm), e a função como liberdade (que pode se realizar, inclusive, como liberdade substancial dos indivíduos5). A análise desses conceitos, porém, demanda reflexão específica, que excede o escopo do presente artigo. Poderíamos dizer, pois, em uma leitura sistemática da expressão normativa contemporânea desse fenômeno econômico espontâneo a que chamamos contrato, que é a própria liberdade econômica dos contratantes que informa o itinerário do processo obrigacional, uma vez que é ela que define essa expressão funcional que constitui a causa concreta do contrato. A liberdade econômica não define apenas o retrato estático das prestações no momento da celebração do contrato (definido no exercício da autonomia privada, como uma das expressões dessa liberdade), mas se projeta para as finalidades econômicas concretas a que se dirige o processo obrigacional. Se a liberdade econômica é o que pauta o ponto de partida do processo obrigacional (desde a fase de tratativas) e projeta os seus fins concretos, a boa-fé é o princípio que, mediante a função hermenêutico-integrativa, impulsiona as condutas das partes para esse bom adimplemento. Os deveres derivados da boa-fé, embora avolitivos, não são alheios à liberdade econômica. Ao contrário, são a ela instrumentais, na medida em que conduzem à causa concreta definida por meio do exercício dessa mesma liberdade. O papel da boa-fé não se esgota, entretanto, na função hermenêutico-integrativa. É ela, também, integrada pela função de controle do exercício abusivo de direitos. Este é um campo fértil para o exame do enquadramento jurídico das condutas oportunistas, conforme será possível constatar no curso deste artigo. Comportamento oportunista e violação da boa-fé A doutrina da Law and Economics se ocupa, desde as origens, dos comportamentos oportunistas. Wlliamson, por exemplo, qualifica o oportunismo como "busca de interesse próprio com dolo"6. No âmbito dos contratos, a definição de Fernando Araújo é exemplar, consistindo no "facto de uma das partes, ou até ambas reciprocamente, poderem fazer degenerar a prometida conduta de cooperação numa conduta de apropriação de ganhos à custa dos interesses e expectativas da contraparte"7. Sem acolher as pretensões de construção de uma nova teoria do contrato8, à luz dos pressupostos da economia, é inegável que o diálogo entre os saberes é fundamental, notadamente porque, no plano lógico, antes de ser um instituto jurídico, o contrato é uma operação econômica espontânea. Nessa senda, evidencia-se uma conjugação entre a pretensão econômica de evitar comportamento oportunistas (para evitar elevação de custos de transação) e a pretensão jurídica de respeito aos ditames da boa-fé (atendendo a valores relevantes para o Direito). O comportamento leal, em contemplação à confiança legítima pautada na causa concreta do contrato, é a antítese do comportamento oportunista. A busca pelo benefício próprio é inerente às relações econômicas, e é o móvel da própria livre iniciativa - cujo valor social intrínseco deriva de suas reconhecidas externalidade positivas. O que não é desejável, nem para a Economia, nem para o Direito, é a conduta que, em busca desse benefício próprio, sejam empregados meios desleais9. Momentos de crise, nos quais as necessidades econômicas se agravam, podem ser férteis ao incremento indesejável desses comportamentos. Mais que isso: a depender da resposta do Direito à crise - especialmente, por meio da atuação do Poder Judiciário -, pode ela se converter em incentivo a comportamentos oportunistas. Cabe, destarte, o cuidadoso manejo do instrumental técnico-normativo para coibir esses comportamentos, sendo o princípio da boa-fé, em sua adequada aplicação, um relevante meio para essa finalidade. O comportamento oportunista do devedor A força obrigatória dos contratos é a regra mesmo em momento de grave crise, de modo que uma moratória universal não encontra respaldo no ordenamento jurídico - que, reitere-se, já contém normas para as situações excepcionais. Há, é certo, o espaço para a inexigibilidade de certas obrigações, com afastamento da mora quando a impossibilidade objetiva deriva dos efeitos advindos da pandemia, com inimputabilidade à esfera do devedor, bem como para a resolução e, mesmo, para a revisão de dados contratos, à luz de hermenêutica sistemática das regras vigentes. Daí porque, em regra, não há espaço no ordenamento jurídico, mesmo no âmbito da grave crise gerada pelo COVID-19, para pretensões de afastamento da mora apenas pela dificuldade subjetiva de prestar decorrente de redução de fluxo de caixa ou, ainda menos, pelo intento de não ter que recorrer a reservas financeiras ou, mesmo, obtenção de crédito. A recente norma de emergência alemã, de 27 de março de 2020 é um exemplo candente de como iniciativas legislativas que modifiquem as "regras do jogo" quanto aos critérios de definição da mora ou de seu afastamento podem gerar, como externalidades indesejadas, comportamento oportunistas. A regra, que no parágrafo 2º do seu artigo 5º versa especificamente sobre contratos de locação, residenciais ou não, dispõe que "o proprietário não pode resolver um contrato de locação de imóveis apenas apenas pelo fato de o inquilino não pagar o aluguel no período de 1 de abril de 2020 a 30 de junho, a despeito da data de vencimento". Isso foi o bastante para que grandes empresas declarassem que suspenderiam os pagamentos dos alugueres. Foi somente após a repercussão pública, inclusive governamental, que ao menos uma delas retrocedeu10. Não apenas o legislador, porém, pode oferecer incentivos que gerem comportamentos oportunistas como indesejadas externalidades, mas, também - e, quiçá, sobretudo - a atuação jurisdicional. A ausência de critérios para suspender a mora ou seus efeitos, ou para efetuar a revisão contratual, pode não apenas estimular comportamento oportunistas no âmbito de uma incontida judicialização das relações contratuais, mas, também, inibir o atendimento do dever de negociação derivado da boa-fé, e que se desenvolve sob o pálio da racionalidade própria da autonomia privada. A certeza, ou, ao menos, a forte perspectiva de uma tutela paternalista da jurisdição, mesmo em casos nos quais não se configure impossibilidade objetiva (para fins de afastamento da mora) ou efeitos graves sobre o atendimento da causa concreta do contrato, que excedam a alocação normal dos riscos entre as partes, pode ser elemento que venha a estimular o incumprimento por parte de quem tem não apenas o dever, mas as condições econômico-financeiras para o adimplemento das obrigações. A atuação jurisdicional na concessão das tutelas de exceção deve ser pautada pela ratio de maximização da boa-fé objetiva, rechaçando pretensões marcadas pelo traço da deslealdade e do abuso do direito, que pode se expressar no desvio de finalidade dos instrumentos revisionais ou de afastamento da mora. À guisa de conclusão: O comportamento oportunista do credor e o abuso do direito Se, de um lado, é necessário rechaçar eventuais comportamentos oportunistas do devedor, não se pode olvidar que, em casos nos quais os efeitos extraordinários da pandemia efetivamente repercutem sobre o vínculo contratual, a boa-fé exige do credor comportamentos de cooperação11, que, se não levados a efeito, também se caracterizarão como comportamentos oportunistas vedados pelo ordenamento. A inviabilização do programa obrigacional, pela aniquilação da sua função econômica, pode implicar a inexigibilidade de prestações como originalmente pactuadas. Isso se deve ao fato de que essa inviabilização do programa obrigacional também se refere à sua causa concreta, haja vista que a noção de "bom adimplemento" que define o fim contratual é por esta também integrado (assim como pela função social e pela função como liberdade, que, todavia, não o são objeto deste texto). Essa frustração da causa concreta pode demandar resolução ou excepcional revisão - caráter de que pode se revestir a situação de exceção decorrente da pandemia -, desde que não imputável, por evidente, à conduta do próprio devedor ou à esfera de riscos razoáveis a ele alocados. A exceção, como se sabe, já tem previsão no sistema, e, quando se materializa, justifica o emprego do remédio previamente definido nas "regras do jogo" que balizam a própria liberdade econômica (art. 421, parágrafo único). Isso em nada conflita, cabe reforçar, com a ratio da liberdade econômica contemplada pela lei e pela Constituição (Artigos 1º, inciso IV, e 170), uma vez que a intervenção mínima é aquela que se admite, reitere-se, apenas em situação de exceção - que é como se podem qualificar muitas das repercussões da pandemia sobre os vínculos contratuais. Essa intervenção corretiva, que pode implicar revisão contratual, é congruente com a liberdade econômica que perpassa o contrato como figura dinâmica, que não se esgota no momento genésico da escolha levada a efeito por meio da autonomia privada, mas se dirige, como visto, a uma causa concreta, integrada por fins econômicos - à qual pode se agregar, conforme a natureza do contrato, uma função social. Exigir a prestação tal como pactuada, recusando-se a negociar de boa-fé e, assim, contribuir para a frustração da causa concreta, pode ser, ainda que em casos obviamente excepcionais, um comportamento oportunista do credor, violador dos deveres de cooperação inerentes à boa-fé, os quais, reitere-se, vivificam o sentido de autorresponsabilidade inerente à liberdade econômica. Se a boa-fé, em regra, sob o pálio da confiança legítima, é fundamento para a força obrigatória dos contratos (ao lado do valor jurídico da promessa), ela pode, em situações de exceção, nas quais o programa obrigacional é gravemente afetado, com ofensa à função econômica concreta do contrato, caracterizar hipótese de mitigação dessa força obrigatória. É por isso que, excepcionalmente (e em apenas aparente paradoxo), exigir uma prestação tal como originalmente pactuada pode ser uma conduta oportunista, quando se der diante da alteração superveniente de circunstâncias com efeitos imprevisíveis e extraordinários sobre o programa obrigacional e que enseje a frustração da função econômica concreta da própria obrigação, com recusa à renegociação imposta pela boa-fé. Nesses casos, a conduta do credor pode se subsumir à figura do abuso do direito, nos termos do artigo 187 do Código Civil. Embora, abstraído o abuso do direito, a revisão e a resolução possam se fazer possíveis atendidos aos critérios sistemáticos dos artigos 317, 478 e 421, parágrafo único - em conjugação com os ditames do Regime Jurídico Emergencial e Transitório -, eventual não atendimento do requisito da "extrema vantagem" para uma das partes pode ser suprido pela incidência, em face do credor, da regra que veda o abuso do direito. Trata-se de inibir o comportamento oportunista e incentivar o comportamento cooperativo, inerente aos deveres da boa-fé. Em tais situações, remarque-se, excepcionais - mas que, por certo, virão à tona no âmbito dos também excepcionais efeitos econômicos da pandemia -, o remédio revisional poderá ser aplicado, sem que isso importe em violação à liberdade econômica, e em consonância com os ditames da Ordem Econômica constitucional. *Carlos Eduardo Pianovski é professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito pela UFPR. Membro-fundador do IBDCont. Advogado. Árbitro. __________ 1 COUTO E SILVA, Clovis do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 2 FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: Sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro, Renovar, 2015, p. 106. 3 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. Critérios para sua aplicação. São Paulo: Saraiva, 2018. 4 AZVEDO, Antonio Junqueira. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002. 5 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s). Rio de Janeiro, GZ, 2011. 6 WILLIAMSON, Oliver. 'Transaction-cost economics: the governance of contractual relations', Journal of Law and Economics, 22, 233-261. 7 ARAÚJO, Fernando. Uma análise económica dos contratos - a abordagem económica, a responsabilidade e a tutela dos interesses contratuais. Direito & Economia. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 115. 8 Nesse sentido, pois, válida a crítica de Paulo da Mota Pinto, em PINTO, Paulo Mota. Sobre a alegada "superação" do Direito pela análise económica: ilustrada com a análise das medidas de indenização contratual. In: NUNES, Antônio José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coords.). O Direito e o Futuro: o Futuro do Direito. Coimbra: Almedina, 2008. 9 A correlação entre a inibição de comportamentos oportunistas e o inventivo de comportamento cooperativos por meio da boa-fé não é estranha aos autores da Law and Economics, como se identifica no pensamento de Luciano Timm, que afirma: "No mesmo diapasão, o reconhecimento da boa-fé no âmbito do direito comercial é um acerto uma vez que a ética e a confiança são importantes para o desenvolvimento de uma economia de mercado (eis o "capital social" de PUTNAM e a economia da desonestidade de ACKERLOF). O fato dos agentes econômicos agirem racional e auto interessadamente não significa comportamento oportunista. O oportunismo é uma das principais falhas de mercado (WILLIAMSON, 1992). A boa-fé contratual cria incentivos ao comportamento cooperativo, que enseja o chamado "excedente da barganha", o qual reflete aumento de bem-estar social". TIMM, Luciano. Precisamos de um Novo Código Comercial. In: COELHO, Fabio Ulhôa; LIMA, Tiago Asfor Rocha; NUNES, Marcelo Guedes. Reflexões sobre o Projeto de Código Comercial. São Paulo: Saraiva, 2013. 10 FRITZ, Karina. Lei alemã para amenização dos efeitos do coronavírus altera temporariamente o direito de locação. German Report. Migalhas. 31 de março de 2020. 11 Sobre o dever de cooperação, no âmbito do processo obrigacional, TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie, vol 3. Rio de Janeiro: Forense, 2018. No mesmo sentido, EHRHARDT JUNIOR, Marcos. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé, Belo Horizonte: Fórum, 2017.
Texto de autoria de Bianca Kremer O aumento vertiginoso do número de casos de coronavírus em todo o mundo (Sars-Cov-2), levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a decretá-lo uma pandemia global. Esse anúncio resultou em medidas de contenção em todos os países por meio de um pacote de diretrizes, e na adoção de mecanismos emergenciais para controle da doença infecciosa covid-19. As medidas geraram consequências no fluxo de circulação de pessoas, afetando o consumo e gerando tanto a redução da atividade econômica, quanto incertezas em relação ao tempo de duração e a intensidade com que seriam adotadas1. Diversos setores da economia encontraram dificuldades em cumprir contratos em razão dos impactos das medidas de polícia administrativa (restrições de funcionamento, suspensão temporária de atividades, etc.). Empresas têm se mobilizado no sentido de adotar medidas de notificação das suas impossibilidades a fornecedores e parceiros, com fundamento no instituto da força maior. Afinal, pessoas físicas ou jurídicas poderão descontinuar contratos já firmados com base em força maior? Como interpretar esse instituto na circunstância das imposições estatais às iniciativas privadas para contenção ao covid-19? O instituto da força maior é apresentado no código civil, no capítulo destinado ao inadimplemento das obrigações. É estabelecido no art. 393 que o devedor não responde por prejuízos resultantes de caso fortuito e força maior, se não houver por eles se responsabilizado expressamente. Além disso, aduz que força maior e caso fortuito são verificados a partir da impossibilidade de evitar ou impedir os efeitos de um fato necessário. Em termos gerais, a força maior representa uma excludente de responsabilidade contratual, e sua arguição afasta a configuração de inadimplemento. Tanto a força maior quanto o caso fortuito excluem o nexo causal, que figura entre um dos quatro pressupostos da responsabilidade contratual2. A prova de sua incidência incumbe ao devedor, de modo que são duas as potenciais consequências: (i) a primeira é a resolução3 do contrato, gerando a isenção de responsabilidade pelo devedor; (ii) a segunda é o retardamento do cumprimento da obrigação. Para que qualquer uma delas seja plausível, é fundamental que o evento em questão seja imprevisível ou irresistível. O "fato do príncipe" é uma modalidade de força maior que decorre de imposição estatal imprevista e irresistível, que onera substancialmente o funcionamento de um empreendimento ou a execução de um contrato4. Quando o Estado impõe uma conduta que causa um dano, positiva ou negativa, o STJ entende que ocorrem dois fenômenos: (i) a viabilidade de responsabilização do Estado pelo evento danoso; (ii) o rompimento do liame necessário entre o evento danoso e a conduta dos particulares, de modo a configurar em disputas privadas a nítida hipótese de força maior5. Com o "fato do príncipe", o cumprimento da obrigação fica impedido em razão de um fato não controlável pelo agente, portanto imprevisível e irresistível, o que exclui também sua responsabilidade por tornar o cumprimento da prestação impossível. O surto do coronavírus permitiria às partes do contrato adiar o seu desempenho, não o executar, ou renegociar os seus termos com base no instituto da força maior? A princípio, sim. Mas é recomendável atenção para que simples dificuldades não sejam utilizadas com o argumento de impossibilidade para fins de extinção da obrigação ou inexigibilidade de seu cumprimento. O fechamento obrigatório de divisas estaduais, instituições de ensino públicas e privadas e do comércio, à exceção de serviços essenciais, são fatos relevantes para configurá-lo. Mas é primordial, para tanto, aferir a impossibilidade do cumprimento de uma obrigação nos contratos em virtude da pandemia. Para Sergio Cavalieri Filho, a impossibilidade tem conteúdo jurídico indeterminado, e deve ser precisada pelo intérprete no momento da aplicação da norma "com base nas regras de experiência, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece"6, e sustenta que a noção de impossibilidade merece flexibilização para abranger tanto a impossibilidade absoluta quanto a relativa, pois em diversos contratos a possibilidade material de cumprimento de uma prestação principal pode subsistir. Alguns autores têm se posicionado no sentido de que contratos que perderam sua utilidade antes do vencimento, ou cujo objeto se tornou impossível, têm na pandemia do coronavírus substrato para quebra antecipada não culposa de um contrato7. Carlos Elias de Oliveira designa nessas situações o teste da vontade presumível em que, se determinada situação fosse previsível, as partes gostariam de uma cláusula envolvendo tal hipótese em seu contrato. Considerando que não é possível supor todos os potenciais incidentes que trariam prejuízo a um contrato, nem inserir todas as excepcionalidades de maneira explícita na forma de cláusulas, a regra da vontade presumível permite que situações absolutamente imprevisíveis sejam passíveis de solução à luz da razoabilidade. O Art. 393 do código civil expressa que, não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre em mora. Para Cavalieri Filho, apenas caracterizam impossibilidade casos que, embora não configurem impossibilidade absoluta, produzem para o devedor dificuldade que equivale ao impossível. Ao contrair uma obrigação por meio de uma diligência, ao devedor se impõe a obrigação de suportar mais ônus do que o esperado em algumas situações pontuais, pois a lei o obriga a certo grau de diligência e previdência, sem lhe impor onerosidade excessiva para cumpri-la a todo e qualquer custo. Há certa dificuldade em determinar os limites entre suportar um ônus adicional e adquirir prejuízos extravagantes. Essa questão, por ser matéria de fato e não de direito, fica sujeita ao arbítrio judicial8. Um acontecimento extraordinário ou imprevisível só faz sentido juridicamente dentro da aferição específica de onerosidade excessiva para o cumprimento de um contrato9. Acontecimentos não podem ser classificados de forma teórica e genérica como "força maior" para, a partir da pandemia do coronavírus e seus efeitos, todos os contratos a ele relativos serem extintos ou revistos. Antes de tudo, é necessário verificar cada contrato individualmente e o que ocorreu em cada relação contratual para, então, se buscar a causa do inadimplemento. Nessa linha, Anderson Schreiber entende que existe um erro metodológico grave em qualificar acontecimentos em teoria na esfera contratual. Somente à luz da impossibilidade da prestação específica de um contrato é que será tecnicamente plausível cogitar a hipótese de caso fortuito ou força maior para liberação do devedor10. Para Nelson Rosenvald, qualquer pessoa que não possa cumprir suas obrigações contratuais por razões extraordinárias como guerras, revoluções, explosões, greves, bloqueios de portos, ações do governo ou desastres naturais pode declarar força maior11. Ao se posicionar sobre a emissão dos chamados "FM Certificates" pela China como medida de aplicação contratual do instituto da força maior12, Rosenvald sustenta que, a despeito das diferenças entre a cultura e o sistema jurídico chinês e brasileiro, o referido selo estatal é demasiado genérico para eximir o contratante de cumprir o que fora pactuado. Além disso, não é suficiente para encobrir eventual pedido de indenização pela contraparte. Para a elaboração de uma cláusula de força maior específica, tudo dependerá do conteúdo da gestão de riscos levada a efeito de forma prévia pelas partes. A partir dos posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, afinal, o surto do coronavírus pode ou não ser enquadrado como acontecimento imprevisível ou extraordinário para justificar medidas terminativas ou revisionais em contratos? A despeito de o direito contratual contemporâneo ser lido, aplicado e interpretado à luz das normas e princípios constitucionais, o contrato permanece vocacionado ao cumprimento para o credor em um primeiro momento. O princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) preconiza que o que as partes estipularem na avença tem força de lei, o que constrange os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico13. À luz dos princípios constitucionais, o pacta sunt servanda não é apenas relativizado pelos princípios da função social do contrato e das boa-fé objetiva. Ele também adquire força coercitiva com base nos mesmos princípios, à luz de cada caso concreto. E isso não pode deixar de ser observado, sob pena de violação à segurança jurídica e esvaziamento da própria função social do contrato, que tem dupla eficácia: interna (entre as partes) e externa (para além das partes). Analisar a incidência de força maior em cada modalidade contratual, individualmente, coíbe as intituladas cláusulas antissociais ou abusivas, as quais enunciam ilicitude, excesso contratual e desrespeito à finalidade social14. Mesmo nos casos concretos em que houver impossibilidade ou excessiva onerosidade, não será necessariamente a pandemia per si o evento que afetará o contrato e ocasionará o inadimplemento. Existe uma diferença entre o impacto nos contratos gerados pelos efeitos da pandemia, e os impactos nos contratos gerados por restrições adotadas pela Administração Pública como resposta para contenção à pandemia. O que se deve estar no epicentro da discussão é o impacto econômico direto sobre as prestações do contrato especificamente, e o seu fato causador. Apenas a partir daí será possível vislumbrar o fundamento jurídico que possibilite medidas terminativas ou revisionais em um contrato. O princípio da função social do contrato abrange a preservação das relações sociais e seus efeitos econômicos (eficácia externa), e isso não deve ser desconsiderado. A perspectiva metodológica civil-constitucional tem eficácia direta nas relações interprivadas e também disciplina conteúdo exclusivamente patrimonial. No entanto, sua aplicação não se traduz em soluções abstratas para o descumprimento de contratos no modo Deus ex machina, ainda que em cenários de crise. Antes de qualquer pleito revisional, é importante não subestimar a atenção à probidade e boa-fé trazidas pelo Art. 422 do Código, ainda mais considerando o funcionamento restrito do Poder Judiciário no momento atual para atender situações emergenciais. O Direito Civil preserva suas fundações na cooperação mútua e dever de lealdade negocial, independente das circunstâncias fáticas. Isso deve não deve ser esquecido quando em pauta eventual continuidade, ou não, de determinados contratos ou cláusulas contratuais, ainda que motivadas por uma pandemia global. Portanto, contratos que não detém cláusula resolutiva expressa nesse sentido, e não operem de pleno direito, deverão ser analisados individualmente e dependem de interpelação judicial para terem seus argumentos de nulidade/ anulabilidade parcial ou total admitidos. O afastamento de eventuais perdas e danos e demais incidências moratórias dependerá da análise de cada caso concreto. Caso sejam plausíveis as impossibilidades de cumprimento das prestações, ou a excessiva onerosidade, devem ser averiguados com cautela os vínculos diretos entre o fato causador e o inadimplemento. Isto porque, a depender dos desdobramentos, serão produzidos efeitos diferentes na cadeia de responsabilidade civil por parte dos agentes envolvidos. *Bianca Kremer é advogada, professora e pesquisadora. Doutoranda em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito Constitucional pela UFF. Bacharel em Direito pela UFRJ. Professora no Departamento de Direito Privado da UFF. Coordenadora acadêmica no Instituto Dannemann Siemsen (IDS). Referências bibliográficas AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I e II. ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 4 ed. São Paulo: Saraiva. BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 Ed. São Paulo? Atlas, 2019, p. 389. FABRO, Roni Edson. RECKZIEGEL, Janaína. Autonomia da vontade e autonomia privada no direito brasileiro. UILS Autumn. v.3. n. 1. 2014. MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais Online, V. 1015.2020, Mai 2020, DTR/2020/3972. MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil. Revista Brasileira de Direito Comparado, 1999. OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Migalhas. 16 mar 20. Disponível em: www.migalhas.com.br/arquivos/2020/3/3904C2C4DAEF07_Coronaequebraantecipadadocontr.pdf PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: volume 3: contratos. Rev. e atual. Caitlin Mulholland. 23ª Ed, Rio de Janeiro: Forense, 2019. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro. Ed. Renovar, 1997. ROSENVALD, Nelson. Os impactos do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana. Blog Nelson Rosenvald. 06 mar 20. Disponível em: < https://www.nelsonrosenvald.info/single-post/2020/03/06/OS-IMPACTOS-DO-CORONAVIRUS-NA-RESPONSABILIDADE-CONTRATUAL-E-AQUILIANA>. SCHREIBER, Anderson et al. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas. 23 mar 20. Disponível em: < https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional>. SCHREIBER, Anderson., Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e ss. STJ, REsp 1.073.595/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.03.2011 - Informativo n. 467 do STJ. REsp 1280218-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellize, 3ª T., j. 21-6-2016, DJe 12-8-2016. TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil: volume único. 8ª ed. Rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana. In:______. Temas de Direito Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais Online, V. 1015.2020, Mai 2020, DTR/2020/3972. 2 Dentre os pressupostos da responsabilidade contratual constam: (i) a existência de um contrato válido; (ii) a inexecução do contrato; (iii) o dano; e (iv) o nexo causal. Cf. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I e II. 3 A expectativa das partes quando da celebração de um contrato é que ele produza efeitos desde a sua celebração até sua extinção natural, quando o contrato se perfaz por meio do cumprimento do pactuado. Caso uma das partes descumpra sua obrigação nos termos do contrato é configurado seu inadimplemento, de modo que o devedor estará em mora para com o credor e poderá responder por eventuais perdas e danos. O código civil prevê três hipóteses de desfazimento do contrato sem o cumprimento do pactuado: (i) resolução: dissolução do contrato por inadimplemento. Nessa hipótese, se houver uma cláusula resolutiva no contrato, a parte lesada pelo inadimplemento (o credor) pode pedir a resolução do contrato sem necessidade de interpelação judicial, sem prejuízo de indenização por perdas e danos. (ii) rescisão: invalidação do contrato por nulidade ou anulabilidade. Não basta dizer que uma cláusula é inválida, é importante saber se essa invalidade tornaria nulo o contrato todo, ou apenas a cláusula (nulidade absoluta), ou se essa invalidade os tornaria anuláveis (nulidade relativa). (iii) resilição: simples desfazimento do contrato por manifestação de vontade da parte: um direito potestativo. A resilição se dá por meio de um ato jurídico denominado denúncia. Pode ser bilateral ou unilateral, sempre com efeitos ex nunc, i.e., seus efeitos não retroagem e valem a partir da data da tomada de decisão. Enquanto a resolução bilateral (distrato) deve obedecer às mesmas formalidades impostas pela lei à celebração do contrato, a resilição unilateral só é permitida quando autorizada por lei e mediante prévia comunicação da parte (ex personae). 4 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 Ed. São Paulo? Atlas, 2019, p. 389. 5 REsp 1280218-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellize, 3ª T., j. 21-6-2016, DJe 12-8-2016. 6 CAVALIERI FILHO, Sergio. Op cit. p. 390. 7 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Migalhas. 16 mar 20. Acesso em 20 mar 20. 8 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 4 ed. São Paulo: Saraiva, p. 313. 9 SCHREIBER, Anderson., Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e ss. 10 SCHREIBER, Anderson et al. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas. 23 mar 20. Acesso em 23 mar. 20. 11 ROSENVALD, Nelson. Os impactos do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana. Blog Nelson Rosenvald. 06 mar 20. Acesso em 20 mar 20. 12 Diversas empresas passaram a declarar força maior em resposta às dificuldades enfrentadas pelo novo vírus. Em uma tentativa de blindar empresas perante pretensões de inadimplemento, o governo chinês passou a emitir os chamados "FM Certificates". 13 TARTUCE, Flavio. Op. cit. p. 666. 14 STJ, REsp 1.073.595/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.03.2011 - Informativo n. 467 do STJ.
Texto de autoria de Marcos Ehrhardt Jr. O cenário nos tradicionais pontos de venda de unidades imobiliárias em nosso país encontra-se bem diferente do que a rotina de semanas anteriores: estandes de venda vazios, imobiliárias fechadas, canteiros de obras desmobilizados... Em algumas regiões do país, não é exagero destacar que novas contratações envolvendo imóveis ficaram praticamente paralisadas. Não é difícil imaginar as dificuldades que os profissionais do setor enfrentam, desde aqueles que atuam na construção civil, passando pelos corretores de imóveis e advogados especializados, até os empreendedores e empresários do setor. Contudo, esse não é um quadro exclusivo do setor imobiliário. Ingressamos num período de distanciamento social e não sabemos exatamente que mudanças serão transitórias e quais delas apresentarão tintas de definitividade quando as medidas sociais de contenção à epidemia sanitária forem flexibilizadas. Não é fácil a tarefa de analisar as consequências de um evento de grande impacto social enquanto estamos vivenciando a própria situação a ser examinada. Falta-nos o distanciamento necessário quando novas informações, projetos de lei e medidas provisórias surgem a todo o momento. Importante ressaltar que não temos um único problema, mas sim uma origem comum (pandemia) para questões e litígios de várias ordens e graus de complexidade. Inviável apegar-se à falsa esperança de que é possível encontrar uma única saída, vale dizer, uma solução padrão para todos os desafios que estamos a encarar. Como já tive oportunidade de consignar em texto anterior, são inúmeras as situações em que obrigações contratuais se tornaram inúteis ao credor, ou hipóteses em que o cumprimento da avença se tornou impossível ou extremamente oneroso. Diante da escolha entre revisar, resilir ou resolver, resta aos operadores jurídicos lidar com esses problemas utilizando as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento1. De início, há que se estabelecer uma premissa essencial: não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos massificados de consumo. Para os fins deste artigo, por exemplo, não há como considerar idêntica a situação de quem adquiriu imóvel na planta, com o caso de quem subcontratou parte da construção ou delegou a terceiros a execução do projeto hidráulico ou de segurança, com o incorporador de determinado empreendimento. Contratos de parceria e/ou constituição de sociedades de propósito específico entre empresas de engenharia devem ser disciplinados à luz do que dispõe o Código Civil e a legislação específica, sem amparo, em princípio, nas disposições do CDC, pois se presume a liberdade das partes, em condições de igualdade negocial, no momento da contratação. De qualquer modo, para a proteção dos interesses do adquirente, do parceiro ou do incorporador, o caminho para a construção de soluções negociais passa pela análise do caso concreto, sendo indispensável a verificação do que ocorreu em cada relação contratual visando à constatação da causa (ou das causas) de tal ocorrência. Vale dizer, a pandemia do coronavírus não atingiu todos os contratos de modo uniforme, e não se pode confundir a excepcionalidade da situação com os efeitos concretos em cada relação negocial2. O novo cenário introduzido pela ocorrência da pandemia e pelas medidas de combate à Covid-19 estabelecidas pelo Poder Público surge meses após a aprovação da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Aqui ocorre uma guinada de 180 graus no percurso que estávamos trilhando: partimos de uma lei liberal, não intervencionista, que reafirma a autonomia privada e a força obrigatória dos contratos, para um clamor geral por medidas intervencionistas destinadas a nos "salvar" da crise e do consequente agravamento da recessão que já estávamos enfrentando. Este texto está sendo redigido durante a votação do Projeto de Lei do Senado de nº 1.179/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia e relatado pela senadora Simone Tebet, que tem por objetivo criar em nosso país um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). É possível destacar alguns aspectos desta proposta que são relevantes para os contratos imobiliários: a) Existe um termo inicial para adoção do RJET, considerando-se o dia 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19); b) A proposta do RJET estabelece um regime transitório. Por essa razão, a suspensão da aplicação de normas nele previstas não implica sua revogação ou alteração; c) Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência do RJET até 30 de outubro de 2020. Apesar das graves consequências da pandemia, enquanto não aprovado o projeto, inexiste fundamento legal para impedir ou suspender a atual fluência dos prazos prescricionais3; d) A proposta do RJET estabelece o dia 30 de outubro de 2020 como termo resolutivo para a situação emergencial que vivenciamos e determina que as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários. Se ainda estamos a aguardar a conclusão do processo legislativo e a sanção presidencial como efetiva possibilidade de alterações no texto e ocorrência de vetos à proposta aprovada pelo Senado, não podemos perder de vista que a Lei nº 13.874/19 introduziu importante alteração no art. 421 do Código Civil, que passou a conter um parágrafo único com a seguinte redação: "nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Sobre este ponto, já tive oportunidade de anotar que A exigência de intervenção mínima do Estado e de se considerar a excepcionalidade da pretensão de revisão contratual deve ser aplicada aos contratos civis e empresariais, que por força do disposto no art. 421-A "presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção". Diante desse quadro, a "alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada", sendo a revisão medida "excepcional e limitada". A leitura dos dispositivos citados acima permite extrair a conclusão da impossibilidade de soluções genéricas, apontando para a revisão contratual de modo indistinto e uniforme a diversas espécies contratuais sem análise das peculiaridades do caso concreto, o que demandará bastante do Poder Judiciário nos próximos meses4. Deve-se, portanto, no cenário dos contratos regidos pelo CC/02, partir da premissa da conservação dos negócios jurídicos e considerar a revisão contratual de modo excepcional, cuja necessidade deve ser demonstrada pela parte prejudicada no caso concreto5. Nesse diapasão, há quem enquadre a pandemia do coronavírus como uma questão de força maior, portanto, um evento natural, e, como tal, "externo, inevitável e alheio às ações de uma das partes", que tem por consequência eliminar ou limitar a responsabilidade por danos ou outras perdas resultantes de tais eventos. Importante destacar que existem pretensões diversas ao se avaliar os efeitos da pandemia: ou se está buscando preservar o vínculo negocial, ressaltando-se a necessidade de revisão em face da alteração das circunstâncias, mormente a base objetiva no negócio, vale dizer, o seu equilíbrio econômico, ou se está procurando circunstância exonerativa do dever de indenizar pelo inadimplemento contratual. Contudo, a mera alegação de força maior não é suficiente para a eficácia exoneratória pretendida. Como esclarece Nelson Rosenvald: (...) a parte afetada terá de demonstrar que o evento de força maior escapa ao seu controle, tenha impedido, dificultado ou atrasado a execução do contrato, apesar de o contratante ter seguido todos os reasonable steps para evitar ou mitigar as consequências do evento, o Duty to mitigate the loss. Um contratante não será eximido de sua própria negligência6. Conforme já anotei anteriormente7, a gravidade da situação não permite tolerar comportamentos oportunistas de quem buscará eximir-se de obrigações negociais válidas e eficazes sem demonstração de que a pandemia da covid-19 alterou a performance contratual. O ônus de demonstrar tal situação compete à parte que alega e não pode ser presumido sem que se ignorem as circunstâncias do caso concreto. Para o julgador que deverá decidir pela intervenção ou não na avença negocial, é importante levar em consideração se a pandemia da covid-19 foi a causa exclusiva do inadimplemento contratual. Para tanto, poderá investigar se outros contratos congêneres também deixaram de ser cumpridos no mesmo período. Assume relevância, no momento de surgimento da pandemia, a análise do comportamento posterior de ambos os contratantes, para se perquirir se medidas necessárias e indispensáveis à mitigação dos danos ao objeto contratual foram adotadas. Imaginando um cenário diferente, de contratação anterior ao início da pandemia do coronavírus, tendo por objeto a aquisição de imóvel na planta, mediante promessa de compra e venda de unidade imobiliária futura, típica relação de consumo, celebrada entre o fornecedor-incorporador e o consumidor-adquirente da unidade, pessoa natural, em busca de sua casa própria, deve-se inicialmente analisar se existe no contrato celebrado entre as partes, cláusula que defina alocação de riscos em circunstâncias de eventos de força maior. Diferentemente do que ocorre em outros setores, no âmbito dos contratos imobiliários, especialmente aqueles destinados à aquisição de unidades para moradia, que costumam ter longa duração, a existência desta cláusula é bem corriqueira. Refiro-me as denominadas "cláusulas de tolerância". Inicialmente introduzidas negocialmente nos instrumentos contratuais, as cláusulas de tolerância, que estabelecem a prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias, passaram a ser admitidas no Judiciário8, até serem consagradas no texto da Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 20189. Seria a pandemia do coronavírus circunstância que pudesse ser enquadrada nas hipóteses de incidência da cláusula de tolerância? A resposta é afirmativa, pela impossibilidade de cumprimento do cronograma de diversos empreendimentos, quer seja por conta de fato do príncipe (v. g.: proibições estatais de funcionamento dos canteiros de obra para garantia do distanciamento social, limitações ao transporte de funcionários, dificuldades do recebimento de insumos oriundos de outras localidades, entre outros), quer seja pela interrupção abrupta e não prevista no fluxo financeiro para o empreendimento. Como não existe um modelo previsto em lei para tal cláusula, prevalece aqui a liberdade das partes na sua contratação. Qual o suporte fático para a incidência dos efeitos pretendidos por esta cláusula? Só a análise do caso concreto, vale dizer, da verificação da disposição contratual específica permitirá responder a tal indagação. Mas uma premissa pode ser desde logo estabelecida: essa cláusula não pode subordinar totalmente a data de entrega ao interesse único do fornecedor sem algum tipo de explicação e/ou justificativa aferível objetivamente pelo consumidor. Se considerarmos, por exemplo, o que ocorre no âmbito dos contratos imobiliários em nosso país, não é raro que a alegação de "evento de força maior" seja mencionada pela primeira vez numa contestação de uma ação que busca a resolução contratual e indenização por perdas e danos. Quem procede dessa forma costuma atribuir uma extensão e intensidade à alegação de evento de força maior como se este funcionasse feito um verdadeiro cheque em branco, vale dizer, uma licença plena e irrestrita, para justificar qualquer forma de inadimplemento. É preciso que o Judiciário esteja vigilante para reprimir tal tipo de abuso, pois meras dificuldades e inconvenientes integram o risco da atividade e não são suficientes para gerar esse tipo de eficácia10. Já tive oportunidade de sustentar que o prazo inicial de entrega da unidade comercializada costuma ser fixado unilateralmente pelo construtor, sendo, infelizmente, comum se constatar a abusiva prática de fixar o prazo de entrega já contando com o período de tolerância, como se ele fosse aplicável como regra geral, algo corriqueiro que pudesse ser empregado sem algum tipo de justificativa11. O período de tolerância precisa ser analisado de modo excepcional, com interpretação restritiva, sendo inapropriado entender que poderia ser aplicado automaticamente, pelo período integral de 180 dias, sem algum tipo de dosimetria e a apreciação das circunstâncias que motivaram o atraso inicial. Há que se exigir do construtor e/ou incorporador a demonstração da ocorrência de circunstâncias imprevisíveis que justifiquem a eficácia da cláusula de tolerância, sendo dele o ônus de comprovar a ocorrência dos fatos que, por disposição expressa do art. 6º do CDC, devem ser informados aos adquirentes tão logo ocorram, com o envio de novo cronograma de entrega, como forma de mitigar os danos a eles infligidos. E mais: deve-se interpretar pela impossibilidade de utilização dessa cláusula como "mera faculdade" do fornecedor12. Teremos situações em que os efeitos concretos da pandemia da covid-19 interferirão no cronograma das obras dos empreendimentos em construção, mas em que o período previsto na cláusula de tolerância será mais do que suficiente e adequado à conclusão da relação negocial nos moldes do que foi pactuado. Destaque-se, por oportuno, o art. 6º do já referido PL 1.179/2020, que propõe que as consequências decorrentes da pandemia da covid-19 nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil (prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior), não terão efeitos jurídicos retroativos. Além disso, a proposição legislativa preconiza que não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário. Identificar a origem do impedimento fático à conclusão do contrato (se anterior ou posterior ao dia 20 de março de 2020, por exemplo) e o momento de superação deste impedimento será tarefa essencial para análise do programa contratual13. Neste sentido, Carlos Eduardo Pianovski adverte: Não é possível, pois, ceder à tentação de afirmar que a crise - mesmo com a indisfarçável gravidade como a, hoje, gerada pelo COVID-19 - terá repercussões sobre a eficácia de todos os contratos. Tampouco se pode afirmar que, sobre os contratos que demandam os remédios que mitigam sua força obrigatória, os instrumentos serão os mesmos, ou terão a mesma extensão eficacial14. Outras situações demandarão a provável intervenção do Poder Judiciário, com a alegação formulada pelo fornecedor de que apesar da existência do período de prorrogação excepcional previsto contratualmente, este não seria suficiente para assegurar o cumprimento do negócio nas bases pactuadas pelas partes. A solução da controvérsia passa pela observância do dever de informar, dada a exigência de transparência e cooperação, que encontra fundamento no dever geral de boa-fé objetiva, previsto no art. 422, aplicável às relações de consumo numa interpretação prospectiva que priorize o diálogo das fontes15. Fazer uma análise objetiva ajudará bastante nessa tarefa, o que pode ser demonstrado com algumas indagações essenciais: a) Será que foi adotado pelo contratante algum plano de contingência? b) Seria efetivamente e/ou economicamente possível a adoção de alguma medida de tal natureza? c) A outra parte foi ao menos notificada das dificuldades e das medidas adotadas? d) Tais medidas foram adotadas em tempo hábil? e) Qual o impacto da intervenção do Poder Público na liberdade de agir dos figurantes do negócio? Como já tive oportunidade de destacar noutro momento: Compete a quem alega a excludente demonstrar: (a) que estava em dia com suas obrigações no momento da ocorrência da situação excepcional; (b) explicar como ocorreu o impacto no contrato; (c) qual o período de atraso provocado; (d) quanto tempo será necessário para retomar o cronograma; (e) os custos necessários à concretização das medidas de mitigação, desde que, como medida inicial e indispensável, tenha comunicado ao outro contratante a mudança das circunstâncias assim que possível16. A disciplina legal do Código de Defesa do Consumidor, se considerada isoladamente, parece insuficiente para lidar com todas as possibilidades de questões atinentes à pandemia da Covid-19, sendo importante não confundir as hipóteses de recusa ao cumprimento da oferta, descritas no art. 3517, com a impossibilidade superveniente do objeto, desde que adequadamente demonstrada no caso concreto. Analisando o outro polo da relação negocial, especificamente no que concerne à imputabilidade do incumprimento e à descaracterização da mora, vale dizer, a situação dos adquirentes de unidades imobiliárias que se obrigaram ao pagamento em contratos de longa duração, é possível, guardadas as particularidades das relações de consumo, aplicar raciocínio formulado pelo já citado Carlos Eduardo Pianovski: Uma questão imediata que vem à tona diante do cenário de pandemia é o cumprimento pontual das obrigações em curso. Apesar da repercussão generalizada dos efeitos da COVID-19 sobre a vida das pessoas, não é possível afirmar, genericamente, que a exigibilidade das prestações contratuais está suspensa, com a cessação dos efeitos da mora. Examinar mora é avaliar imputabilidade objetiva. Há obrigações que permanecem exigíveis, diante da ausência de repercussão efetiva de força maior ou fato do príncipe que afaste a possibilidade razoável de cumprimento tempestivo. A impossibilidade de adimplemento é aferível não pelo fato externo em si, mas pela repercussão deste na esfera jurídica do devedor, sempre forte nos baldrames de alocação de riscos definidos pelo contrato. Nessa linha, pode-se concluir que, ao menos neste momento, boa parte das obrigações pecuniárias se enquadra nesse âmbito em que a exigibilidade se mantém, sempre a depender, obviamente, da aferição concreta sobre a esfera jurídica do devedor, com especial atenção, nos contratos empresariais, nas repercussões objetivas ensejadas pela pandemia em sua atividade econômica18. Dito de outro modo: se não é possível presumir que os efeitos da pandemia da Covid-19 interferiram no cronograma das obras, sendo necessário fazer uso do período integral estabelecido como "prazo de tolerância", sem demonstração das peculiaridades do caso concreto, tampouco é possível presumir, de modo absoluto, a impossibilidade da manutenção do pagamento das prestações contratuais acordadas entre as partes, que igualmente exige do devedor a comprovação de um "impedimento transitório de fato", alheio à sua vontade, conforme entendimento de Cláudia Lima Marques, Káren Bertoncello e Clarissa Costa de Lima: (...) considerada a pandemia de covid-19 como "impedimento transitório de fato" para a configuração da mora, por força maior, parece impositiva a verificação da qualidade de exceção dilatória desempenhada pelo inadimplemento decorrente da pandemia, porquanto assegurada a existência da obrigação para cumprimento futuro, mas sem a incidência dos encargos da mora. Em outras palavras, a pandemia e o estado de emergência, que isolam pessoas doentes, idosos e consumidores em geral, é uma força maior que impede a mora. Como ensina Cristiano Zanetti, a mora é uma espécie de inadimplemento parcial, no modo e no tempo devido. Consideramos, porém, que a força maior impede que a mudança no "tempo e no modo devido" seja considerada injusta ou mesmo seja definida como mora. (...) A força maior não significa o fim da obrigação de remuneração, mas somente sua dilação, razoável até o final da crise e restabelecimento da normalidade, e deve ser considerada para todos os consumidores, o caso da pandemia covid-19. (...) Logo, o advento da exceção dilatória (Pandemia do Coronavírus), afastando a mora do devedor, indica que a solução equilibrada à proteção do consumidor vulnerável seja o reconhecimento do "dever geral de renegociação nos contratos de longa duração", pela doutrina europeia atual, sedimentado nos deveres de cooperação, da boa-fé e na antiga exceção de ruína19. As técnicas de hermenêutica contratual passam a ocupar posição fundamental, sobretudo diante da nova redação do art. 113 do Código Civil, introduzida pela já citada lei 13.874/19. Merece destaque o teor do inciso V do referido dispositivo, a preconizar que a interpretação deve corresponder "a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração". Diante de um quadro no qual o ritmo das decisões judiciais costuma estar em descompasso com os interesses e as necessidades dos figurantes do contrato, alternativas para a composição extrajudicial de tais conflitos devem ser priorizadas em prol da conservação dos negócios jurídicos20, o que configura um momento importante para o emprego de técnicas de mediação inspiradas pelo dever geral de boa-fé objetiva, com o intuito de renegociação das bases contratuais para se alcançar o melhor adimplemento possível para todos os figurantes da relação negocial21. *Marcos Ehrhardt Jr. é advogado. Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Associado do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. __________ 1 Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível. Acesso em 7 abr. 2020. 2 Sobre o tema, ver recente artigo de Anderson Schreiber, denominado "Devagar com o andor: coronavírus e contratos ? Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional", publicado na Coluna Migalhas Contratuais, sob a curadoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). 3 Importante anotar que mesmo se o texto atual do projeto para o RJTE seja aprovado sem alterações e se torne lei, sua disciplina para a suspensão e ou impedimento de prazos prescricionais somente será aplicada na inexistência de hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional, sendo, neste aspecto, norma subsidiária. Além disso, a suspensão e/ou impedimento aqui analisados, nos termos da proposta para o RJTE também se aplicam às hipóteses de decadência. 4 Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19. Acesso em: 7 abr. 2020. 5 Sobre esse ponto, tratando especificamente de contratos de locação em shopping centers, Aline de Miranda Valverde Terra assevera: "(...) Nada impede, todavia, que, no exercício legítimo da autonomia privada, as partes tenham gerido referido risco contratualmente, alocando-o a uma delas". Nesse caso, como já se observou em outra sede, "atribui-se ao contratante a responsabilidade pelas consequências deflagradas pelo implemento de determinado fato superveniente previsível, cuja ocorrência, no momento da contratação, era incerta (rectius, risco). A verificação do risco repercutirá, assim, na esfera jurídica dos contratantes, desencadeando as responsabilidades definidas no contrato, com impacto na relação contratual e na economia das partes". Significa dizer que, caso o contrato tenha, expressa e especificamente, imputado ao locatário, por exemplo, os riscos decorrentes de pandemia seguida de suspensão das atividades por fato do príncipe, nada lhe restará senão assumir as consequências econômicas negativas do evento e continuar a adimplir sua prestação consoante contratualmente ajustado, vale dizer, pagar o aluguel nos termos pactuados. Na hipótese, todavia, de as partes não haverem procedido à alocação positiva do risco, seguem-se as regras supletivas previstas pelo legislador, cuja aplicação pressupõe a qualificação do efeito produzido pelo evento necessário e irresistível no contrato. Vide artigo "Covid-19 e os contratos de locação em shopping center". Acesso em: 7 abr. 2020. 6 Para maiores reflexões sobre o tema, ver artigo de Nelson Rosenvald, denominado "Os impactos do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana". Basta imaginar uma situação concreta de um contrato celebrado entre dois empresários, cuja data de vencimento de determinada obrigação já estivesse expirada, configurando inadimplemento de um dos contratantes. Não será possível, após a configuração da mora, a alegação de evento de força maior para se eximir da incidência da cláusula penal, nos termos do art. 399 do Código Civil. 7 Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19. Acesso em: 7 abr. 2020. 8 Para citar um caso bem ilustrativo do modo como o Superior Tribunal de Justiça compreende esse tipo de cláusula negocial, vale transcrever: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. ATRASO DA OBRA. ENTREGA APÓS O PRAZO ESTIMADO. CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA. VALIDADE. PREVISÃO LEGAL. PECULIARIDADES DA CONSTRUÇÃO CIVIL. ATENUAÇÃO DE RISCOS. BENEFÍCIO AOS CONTRATANTES. CDC. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. OBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAR. PRAZO DE PRORROGAÇÃO. RAZOABILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é abusiva a cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção, a qual permite a prorrogação do prazo inicial para a entrega da obra. (...) 3. No contrato de promessa de compra e venda de imóvel em construção, além do período previsto para o término do empreendimento, há, comumente, cláusula de prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, que varia entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias: a cláusula de tolerância. (...) 5. Não pode ser reputada abusiva a cláusula de tolerância no compromisso de compra e venda de imóvel em construção desde que contratada com prazo determinado e razoável, já que possui amparo não só nos usos e costumes do setor, mas também em lei especial (art. 48, § 2º, da Lei nº 4.591/1964), constituindo previsão que atenua os fatores de imprevisibilidade que afetam negativamente a construção civil, a onerar excessivamente seus atores, tais como intempéries, chuvas, escassez de insumos, greves, falta de mão de obra, crise no setor, entre outros contratempos. 6. A cláusula de tolerância, para fins de mora contratual, não constitui desvantagem exagerada em desfavor do consumidor, o que comprometeria o princípio da equivalência das prestações estabelecidas. Tal disposição contratual concorre para a diminuição do preço final da unidade habitacional a ser suportada pelo adquirente, pois ameniza o risco da atividade advindo da dificuldade de se fixar data certa para o término de obra de grande magnitude sujeita a diversos obstáculos e situações imprevisíveis. (...) 8. Mesmo sendo válida a cláusula de tolerância para o atraso na entrega da unidade habitacional em construção com prazo determinado de até 180 (cento e oitenta) dias, o incorporador deve observar o dever de informar e os demais princípios da legislação consumerista, cientificando claramente o adquirente, inclusive em ofertas, informes e peças publicitárias, do prazo de prorrogação, cujo descumprimento implicará responsabilidade civil. (...) (REsp 1582318/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/9/2017, DJe 21/9/2017). 9 Vide o art. 43-A da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964: "A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador". 10 Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19. Acesso em: 7 abr. 2020. 11 EHRHARDT JR., Marcos. Por que não dá para ser tolerante com a "cláusula de tolerância?". Acesso em: 7 abr. 2020. 12 Anote-se ainda que o fato de existir previsão legal para a referida cláusula não afasta a necessidade de interpretação dela de modo sistemático, especialmente com as disposições que consagram a proteção contratual dos consumidores, destacando-se em especial o disposto no art. 30 (vinculação à oferta) e art. 31 do CDC (informação clara, precisa e ostensiva sobre prazos). Aplicável ainda o inciso III do § 1º do art. 51 do mesmo diploma legal, pois, no caso concreto, a utilização integral do prazo de 180 (cento e oitenta) dias pode se mostrar excessivamente onerosa, em comparação com os eventos que justificariam sua incidência. 13 No que concerne ao delicado aspecto das relações locatícias, o projeto do RJET determina que não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020 (art. 9º). Atentar para o fato de que o dispositivo somente se aplica às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. 14 Pianovski, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Acesso em: 7 abr. 2020. 15 Pode-se ainda extrair da proposta de Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) a possibilidade de se utilizar, por analogia, a regra de seu art. 12, que trata da possibilidade de realização de assembleias por meios virtuais, para a comunicação entre incorporadores e adquirentes de unidades de empreendimentos em construção, para que o fornecedor possa cumprir com seu dever de informar, esclarecendo as circunstâncias do impacto específico da pandemia no planejamento e/ou cronograma de execução das obras. 16 Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19. Acesso em: 7 abr. 2020. 17 Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos. 18 Pianovski, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Acesso em: 7 abr. 2020. 19 MARQUES, Cláudia Lima; BERTONCELLO, Káren; LIMA, Clarissa Costa de. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de Covid-19: pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, vol. 129/2020, Maio-Jun./2020. 20 Neste sentido, Flávio Tartuce sustenta que "(...) todos os contratos merecem uma análise pontual, dentro do esperado bom senso, como consequência imediata do princípio da boa-fé objetiva. As partes devem, assim, procurar soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade e pela boa razão. Os contratos relacionais ou cativos de longa duração, concretizados no tempo e com grande possibilidade de continuarem a se perpetuar no futuro, merecem prioridade de cumprimento, além daqueles negócios que envolvem conteúdo existencial, além do patrimônio, caso dos contratos de plano de saúde". (TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos ? Extinção, revisão e conservação ? Boa-fé, bom senso e solidariedade. Acesso em: 7 abr. 2020) 21 Para aprofundamento do tema, sugere-se a leitura do livro Responsabilidade Civil pelo inadimplemento da boa-fé, editado pela editora Fórum. Maiores informações aqui.
Texto de autoria de Paulo Roberto Nalin Desde que a pandemia do covid-19 desembarcou no Brasil, todos os esforços têm se voltado a que o país e a sociedade brasileira sigam caminhando para mantermos a normalidade, na medida do possível. Nessa toada, recentemente observamos a união de esforços do STF e do Senado Federal na criação e aprovação do PL 1.179/2020, o qual busca ajustar, de modo transitório e parcial, regras de Direito Privado, almejando estabilizar alguns setores sensíveis das relações interprivadas: assembleias em sociedades empresárias, compras pela internet, despejos, usucapião, resilição, revisão e resolução de contratos, pensão alimentícia etc., foram alguns dos temas cirurgicamente tratados pelo projeto de lei, que ainda carece de aprovação pela Câmara dos Deputados. Entretanto, não obstante a elogiável iniciativa, não se pode suspender e alterar, ainda que transitoriamente, todo o macro sistema jurídico que compõe o Direito Privado (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, CLT, Lei das S/A, só para citar algumas fontes), mesmo porque não se sabe o que significa transitoriedade em tempos de pandemia. Com efeito, este mesmo macro sistema, democraticamente aprovado em tempos de normalidade, segue válido e eficaz. Cabe aos juristas nacionais a emissão de opiniões doutrinárias técnicas e desinteressadas, no sentido de interpretar as fontes do Direito Privado, excepcionalmente analisadas em tempos de crise, trazendo à luz significados e ressignificados dos institutos centrais do direito. De vários e excelentes trabalhos publicados, chamam a atenção os textos dos professores Flávio Tartuce (O coronavirus e os contratos - extinção, revisão e conservação - boa-fé, bom senso e solidariedade, Migalhas Contratuais, 27/3/2020) e Anderson Schreiber (Devagar com o andor: coronavirus e contratos - importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional, Migalhas Contratuais, 23/3/2020). Respectivamente, na ótica do bom senso negocial e do dever de renegociação, ambos contemplam a ideia comum do diálogo negocial que se impõe em tempos de crise. Nada mais acertado. Já se sabe o que fazer, ao passo que este breve texto aborda como fazer o uso do bom senso e o dever de renegociação. Mas voltando um passou atrás, cabe lembrar que todos que se formaram em Direito no Século XX e mesmo na largada do atual século tiveram uma formação centrada no Direito Privado e no culto ao litígio. As faculdades de direito formaram (e muitas ainda seguem nesta vala) profissionais do litígio. A primeira e inesquecível aula de Processo Civil é sobre o conceito de lide de Carnelluti (um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida). Durante anos, ensinou-se como ir para a guerra e quais armas usar, almejando-se uma vitória acachapante contra o adversário, sem que se apresentasse ao acadêmico uma alternativa de autocomposição de interesses. Por tal motivo, os doutrinadores, neste momento de crise pandêmica, estão preocupados e laborando incansavelmente, mediante diálogos acadêmicos, para trazer luz ao Poder Judiciário, no sentido de que ao final da lide se declare quem é vencedor e quem é vencido, mediante excepcionais interpretações, caso não prevaleça o bom senso e o dever de renegociação, no quadrante da ética contratual. A despeito de teorias que possam ser adotadas na defesa de pontos de vista acadêmicos, o que se almeja é que o sistema não entre em colapso, por meio de uma jurisprudencial fragmentada que possa trazer ainda mais insegurança jurídica às relações negociais privadas. É como já foi apontado pelos Profs. Pablo Malheiros da Cunha Fronta e Ramiro F. de Alencar Barros (Impactos nos compromissos de compra e venda em incorporação imobiliária, Consultor Jurídico, 24/3/2020), a propósito do dinâmico mercado das promessas de compras e vendas imobiliárias: "[...] a beligerância negocial e judicativa não são as melhores alternativas para enfrentar a crise que se apresenta. Os efeitos deletérios da pandemia Covid-19 não apenas permitem como tornam exigíveis a revisão paritária da relação contratual pelas partes contratantes, constituindo-se como mandamento ético, inclusive, na preservação da atividade econômica em um contexto excepcional". Os riscos de uma lide podem ser afastados ou minimizados por meio da solução construída conjuntamente pelas partes, daí sendo necessário lembrar que para aqueles conflitos em ebulição ou já levados à apreciação do Poder Judiciário, a mediação é a melhor forma de composição de conflitos. Cumpre àqueles advogados, formados na base do litígio, baixar armas e erguer a bandeira da pacificação, providenciando, caso o bom senso e renegociação fracassem, a instauração de procedimento de mediação extrajudicial do conflito. Isso porque, não obstante os valorosos esforços da doutrina e dos poderes públicos em manter a unidade do sistema, avizinha-se uma pandemia de ações judiciais sem precedentes, cujos resultados serão incertos e desencontrados. Pouco conhecida e prestigiada nos meios jurídicos nacionais, mas de larga tradição no exterior, a mediação foi instituída pela lei 13.140/2015 que "Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública"; e se mostra o caminho mais razoável e rápido para a solução de um conflito contratual. Quanto antes as partes reestabelecerem as bases do negócio ou decidirem pelo seu distrato, acolhidas concessões bilateralmente negociadas, melhor para todos. Em um cenário de solução alternativa de conflitos, mas no plano dos contratos públicos, os dispute boards (comitês de solução de disputas), "técnicas não adversariais criadas para permitir a execução de obras de alta complexidade", conforme explica o prof. Egon Bockman Moreira, já são uma realidade. Agora, o professor propõe a evolução para os crisis dispute boards (Crisis Dispute Boards, Gazeta do Povo, 3/4/2020), com uma sistemática mais dinâmica em relação à usual, próprias para tempos de crise. Voltando à mediação propriamente dita, caso as partes não tenham previsto uma cláusula de mediação (art. 20, Lei de Mediação - LM - 13.140/2015) ou arbitral (art. 4 da Lei de Arbitragem - LA - 9.307/1996) ao estilo de cláusula compromissória escalonada, que contemple a mediação, possível, impulsionar o procedimento por meio de convite para se iniciar o procedimento (art. 21, LM) O escopo da mediação é a obtenção negociada de um "termo final", com o auxílio de um mediador, eleito pelas partes, que vem a ser o resultado do acordo, o qual terá a força de título executivo extrajudicial ou, quando homologado em juízo, de título executivo judicial. O mediador extrajudicial será remunerado, quando o litígio decorrer de contratos comerciais ou societários e as partes aceitarem o procedimento, a não ser que forma diversa de remuneração tenha sido pactuada previamente pelas partes. Essa configuração da mediação, com mediador escolhido pelas partes desde logo em cláusula contratual ou após a aceitação do convite para o procedimento, é denominada de mediação não institucional. Nada obstante, a experiência tem demonstrado que tanto para a arbitragem quanto para a mediação, na hipótese de não terem as partes contratado um procedimento de mediação e/ou arbitragem institucional, melhor é a escolha de uma Câmara de Mediação e Arbitragem que possa administrar o procedimento, conferindo-lhe maior segurança e transparência, tanto do procedimento em si quanto dos seus custos. Nesse sentido, o convite para a mediação não seria somente para o notificado aderir ao procedimento, tanto quanto para aceitar o Regulamento da Câmara apontada na notificação. Caso as partes tenham eleito determinada Câmara de Mediação e Arbitragem e nela tenham logrado chegar a um acordo pela mediação, terão economizado um preciso tempo, recursos financeiros indispensáveis e poderão seguir com seus interesses. Do contrário, a própria Câmara poderá se encarregar de estabelecer o procedimento arbitral para a solução definitiva do conflito, agora vertida em lide, entretanto, arbitral. Mesmo no cenário da falta de autocomposição, redobra-se a importância do emprego da arbitragem na solução de conflitos, sendo ainda mais destacadas as suas conhecidas vantagens, sobretudo em disputas envolvendo valores de alguma expressão econômica: a escolha da Câmara, a escolha dos árbitros, a especificidade técnica dos árbitros, a rapidez na solução do conflito e a confidencialidade. No quadro atual, a se confirmar uma pandemia de ações judiciais, o fator duração do processo tem que ser avaliado paralelamente ao custo econômico da manutenção da lide, no sentido de que os processos judiciais tendem a ser mais longos, a despeito dos esforços do Poder Judiciário em modernizar-se, mediante o emprego de novas tecnologias. A ponderação entre estes dois fatores (tempo versus custo) derruba o mito de que o processo arbitral é custo, pois não existe custo maior do que o tempo longo e incerto de um processo judicial. Em geral, as mais prestigiadas Câmaras instaladas no Brasil estão funcionando com normalidade, ressalvadas, caso a caso, novas regras de protocolamento de petições físicas, audiências presenciais, reuniões com peritos e assistentes, fatores para os quais há muito as Câmaras de Mediação e Arbitragem já vinham se adaptando às novas tecnologias assim denominadas não presenciais. Os advogados devem aos seus clientes a reinvenção de seus conhecimentos "litigiosos", obtidos dos bancos das faculdades de Direito, e debater a solução pacífica dos conflitos, a partir do bom senso e da renegociação dos contratos. Na impossibilidade disso acontecer, o convite à mediação é necessário e a arbitragem a solução final. Pois, nada será como antes. Todos devem ter a consciência disso! *Paulo Roberto Nalin é professor de Direito Civil da UFPR. Doutor em Direito Civil pela UFPR. Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Advogado e árbitro.