COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, Angelica Carlini, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O Ano II da pandemia e o direito contratual

O ano II da pandemia, assim foi 2021. Um ano que começou muito duro - em meio à já esperada e anunciada segunda onda da pandemia de Covid-19 -, com muitas perdas e sofrimentos. Como não poderia ser diferente, as consequências jurídicas da pandemia continuaram sendo o tema central do Direito Contratual neste ano que se encerra. Seguiram os pedidos de revisão de contratos, de extinção de vínculos, de alteração de índices de correção - diante da explosão do IGMP -, e de suspensão de despejos. Sobre o último tema, que já havia sido tratado pela lei 14.010/20 (RJET), surgiu uma nova norma, a lei 14.216, de 7 de outubro de 2021, e estabelecendo "medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2". Anote-se que o STF já havia decidido, em decisão publicada em 7 de junho de 2021, nos autos da medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) número 828, originária do Distrito Federal e com relatoria do ministro Roberto Barroso, pela impossibilidade de se efetivar os despejos até o fim de 2021. Restou decidido o seguinte: "i) com relação a ocupações anteriores à pandemia: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo 6/20); ii) com relação a ocupações posteriores à pandemia: com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; e iii) com relação ao despejo liminar: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da lei 8.425/91), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório". Os despejos foram, portanto, suspensos até 31 de dezembro de 2021, estando em trâmite, no mesmo Tribunal Superior, pedido de renovação desse afastamento das medidas, até 31 de março de 2022; e sobre a qual já há maioria para o deferimento. Em sentido muito próximo, conforme o art. 4º da lei 14.216/21, "em virtude da Espin decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2, não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo a que se referem os incisos I, II, V, VII, VIII e IX do § 1º do art. 59 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 31 de dezembro de 2021, desde que o locatário demonstre a ocorrência de alteração da situação econômico-financeira decorrente de medida de enfrentamento da pandemia que resulte em incapacidade de pagamento do aluguel e dos demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar". Como se percebe, retomou-se a suspensão dos despejos liminares até o fim de 2021, como previa a RJET, com a inclusão da ressalva pela necessidade de o locatário demonstrasse dificuldades econômicas. Além disso, essa suspensão da nova lei limitou-se a determinados contratos prevendo o parágrafo único do art. 4º da lei 14.216 que o comando somente se aplica aos contratos cujo valor mensal do aluguel não seja superior a: a) R$ 600,00 (seiscentos reais), em caso de locação de imóvel residencial e b) R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais), em caso de locação de imóvel não residencial. Como outra regra que foi incluída, dando direito ao locatário de resilir ou denunciar o contrato, sem a necessidade de motivação (denúncia vazia), o art. 5º da lei 14.216/21 estabeleceu que "frustrada tentativa de acordo entre locador e locatário para desconto, suspensão ou adiamento, total ou parcial, do pagamento de aluguel devido desde a vigência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, até 1 (um) ano após o seu término, relativo a contrato findado em razão de alteração econômico-financeira decorrente de demissão, de redução de carga horária ou de diminuição de remuneração que resulte em incapacidade de pagamento do aluguel e dos demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar, será admitida a denúncia da locação pelo locatário residencial até 31 de dezembro de 2021". Como consequência, o diploma prevê que nos contratos por prazo determinado, o locatário está dispensado do pagamento da multa convencionada para o caso dessa denúncia antecipada do vínculo locatício. Por outra via, nos contratos por prazo indeterminado, não há necessidade de cumprimento de do aviso prévio de desocupação, mais uma vez dispensado o pagamento da multa indenizatória. Seguindo com o estudo da lei 14.216/21, o seu art. 5º, § 1º enuncia que essa denúncia da locação aplica-se somente à locação de imóvel não residencial urbano no qual se desenvolva atividade que tenha sofrido a interrupção contínua em razão da imposição de medidas de isolamento ou de quarentena, por prazo igual ou superior a trinta dias, se frustrada tentativa de acordo entre locador e locatário para desconto, suspensão ou adiamento, total ou parcial, do pagamento de aluguel devido desde março de 2020 até dezembro de 2021. Porém, levando-se em conta também a posição do locador, está previsto que a denúncia não deve incidir quando o imóvel objeto da locação for o único de propriedade do locador, excluído o utilizado para sua residência, desde que os aluguéis consistam na totalidade de sua renda (art. 5º, § 2º, da lei 14.216/2021). Como última previsão a ser destacada, com o fim de facilitar a composição entre as partes, estabeleceu-se que as tentativas de acordo para desconto, suspensão ou adiamento de pagamento de aluguel, ou que estabeleçam condições para garantir o reequilíbrio contratual dos contratos de locação de imóveis durante a Espin, poderiam ser realizadas por meio de correspondências eletrônicas ou de aplicativos de mensagens, caso do whatsapp. Além disso, o conteúdo deles extraído teria o valor de aditivo contratual, com efeito de título executivo extrajudicial, bem como provaria a não celebração do acordo, para fins da denúncia vazia prevista na norma (art. 6º da lei 14.126/21). Como se pode perceber, portanto, o tema da locação ainda não encontrou a devida estabilização, diante das dificuldades e da profunda crise geradas pela pandemia. Nesse contexto de afirmação, penso que a tendência é que novas leis e decisões judiciais tragam previsões e conclusões no mesmo sentido, a fim de facilitar a renegociação contratual e até a afastar o despejo, especialmente se tivermos novas ondas pandêmicas.  A segunda norma a ser destacada, emergente em 2021, é a que trata do superendividamento (lei 14.181/21), com origem em projeto elaborado por juristas que compõem o BRASILCON, sob a liderança da Professora Claudia Lima Marques. Com o novo diploma, o art. 6º do Código de Defesa do Consumidor passou a estabelecer, por força dessa norma emergente e no seu inciso XI, que é direito básico dos consumidores "a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas". E mais, assegura-se "a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito" (inc. XII). Em tom específico sobre a tutela da informação, o seu inciso XIII prevê como outro direito fundamental "a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso". Além dessas alterações - já profundas e impactantes, do ponto de vista principiológico -, foram modificados os arts. 4º, 5º e 51 do CDC e introduzido um capítulo a respeito "da prevenção e do tratamento do superendividamento" (arts. 54-A e 54-G da Lei n. 8.078/1990). Ademais, a Norma Consumerista passou a tratar da conciliação no superendividamento, com regras procedimentais a respeito da repactuação de dívidas (arts. 104-A a 104-C). A lei emergente foi investigada pelo Professor Bruno Miragem, em texto publicado no Migalhas Contratuais, de julho de 2021. Como última norma ser destacada, sem prejuízo de outras, a lei 14.195/2021 tratou da facilitação da abertura de empresas no Brasil, entre outros assuntos, de forma atécnica e sem qualquer correlação, o que é objeto de muitas críticas.  Em relação a esse diploma, houve atuação efetiva do IBDCONT (Instituto Brasileiro de Direito Contratual), para a manutenção da sociedade simples, o que acabou ocorrendo. O texto de Mario Luiz Delgado, igualmente veiculado pelo Migalhas Contratuais em julho de 2021, foi citado pelo Senador Irajá Silvestre, em sua relatoria para a manutenção da categoria, o que acabou ocorrendo por veto presidencial. Sobre a EIRELI, a confusa elaboração da lei e o veto presidencial ainda despertam dúvidas quanto à possibilidade ou não de suas novas constituições, apesar de estar a figura esvaziada na prática. Além das alterações legislativas, muitas foram as decisões judiciais prolatadas a respeito do Direito Contratual no ano de 2021. Entre tantas, destaco o entendimento que se formou, tanto na Terceira quanto na 4ª turma do STJ a respeito da locação por aplicativos em condomínios. Em outubro de 2019, o tema começou a ser debatido no âmbito da 4ª turma do STJ, concluindo o primeiro julgador a votar que, pelas peculiaridades do caso concreto, não seria possível vedar a utilização do imóvel para locação em aplicativo digital (Recurso Especial 1.819.075/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão). De início, foi afastada a caracterização da atividade de locação como hospedagem comercial e, com isso, a alteração da destinação do imóvel. Como constou do voto do ministro relator, "a alegação de alta rotatividade de pessoas no imóvel, de ausência de vínculo entre os ocupantes e do suposto incremento patrimonial dos proprietários - no caso em exame, não demonstradas por provas adequadas -, mesmo assim não servem, a meu sentir, à configuração de atividade de exploração comercial dos imóveis, sob pena de desvirtuar a própria classificação legal da atividade, pressupondo a atividade de empresário". Entendeu-se, desse modo, haver uma figura próxima à locação por temporada, não sendo possível uma proibição genérica para essa destinação do imóvel. Além disso, de forma correta no meu entender, julgou o ministro Salomão que a lei não estabelece qualquer limitação a esse exercício do direito de gozo do bem e, sendo assim, não é possível juridicamente, pelo menos a priori, limitá-lo. Novamente de acordo com o seu voto prevalecente, "a jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a solução deve partir da análise do caráter da norma restritiva, passando pelos critérios de legalidade, razoabilidade, legitimidade e proporcionalidade da medida de restrição frente ao direito de propriedade" (Recurso Especial 1.819.075/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 17.10.2019). Assim, julgou que, "de modo a analisar o caso em julgamento, não se propõe uma análise sobre a questão fática principal examinada nos julgados invocados, mas sim a tese jurídica que se pode transplantar para o deslinde desta questão, qual seja, o afastamento de desarrazoada proibição de uso e gozo da propriedade por convenção de condomínio". E considerou-se, ao final, como "ilícita a prática de privar o condômino do regular exercício do direito de propriedade, em sua vertente de exploração econômica. Como é sabido, por uma questão de hermenêutica jurídica, as normas que limitam direitos devem ser interpretadas restritivamente, não comportando exegese ampliativa" (Recurso Especial 1.819.075/RS, DJe 21.10.2019). Esclareça-se que o voto não fechava totalmente a possibilidade de a convenção estabelecer limitações ao uso de tais aplicativos, que devem ser confrontadas com a utilização abusiva posterior da unidade e sua destinação natural, bem como o emprego de outras medidas, como o cadastramento dos hóspedes na portaria. Em abril de 2021, a 4ª turma do STJ encerrou esse julgamento e, por maioria, concluiu que "é vedado o uso de unidade condominial?com destinação residencial?para fins de hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de aposentos existentes nos apartamentos, a diferentes pessoas, por curta temporada". Conforme se retira da sua publicação, "tem-se um contrato atípico de hospedagem, que expressa uma nova modalidade, singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas. Assim, esse contrato atípico de hospedagem configura atividade aparentemente lícita, desde que não contrarie a Lei de regência do contrato de hospedagem típico, regulado pela Lei n. 11.771/2008, como autoriza a norma do art. 425 do Código Civil" (STJ, REsp. 1.819.075/RS, Rel. p/ acórdão Min. Raul Araújo, julgado em 20/04/2021). Em suma, prevaleceram as regras específicas do contrato de hospedagem sobre a análise das restrições condominiais. Com o devido respeito, apesar de ter sido citado no voto do Ministro Raul Araújo, fico com as afirmações do Ministro Salomão, apesar da realidade do caso concreto, tendo havido a locação de vários cômodos do imóvel para a hospedagem. No final do mesmo ano de 2021, no mês de novembro, a 3ª turma concluiu do mesmo modo. Consoante o voto do ministro relator, Ricardo Villas Bôas Cueva, "o estado de ânimo daqueles que utilizam seus imóveis para fins residenciais não é o mesmo de quem se vale de um espaço para aproveitar suas férias, valendo lembrar que as residências são cada vez mais utilizadas para trabalho em regime de home office, para o qual se exige maior respeito ao silêncio, inclusive no período diurno". Além disso, de acordo com ele, há lacuna normativa a respeito do tema e "o legislador não deve se ater apenas às questões econômicas, tributarias e administrativas. Deve considerar, acima de tudo, interesses dos usuários e das pessoas que moram próximas aos imóveis passiveis de exploração econômicas. Justamente por serem novas, essas práticas ainda escondem inúmeras deficiências, a exemplo da falta de segurança dos próprios usuários" (STJ, REsp. 1.884.483/PR, Terceira Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 23 de novembro de 2021). Com o devido respeito, reafirmo que não concordo com essa forma de julgar, sendo possível tais rígidas restrições ao direito de gozo somente por previsão legal.  De toda forma, a questão é muito polêmica e desperta intensos debates, com bons argumentos dos dois lados. O Professor Rodrigo Toscano de Brito tem uma visão diferente, como está em seu texto do Migalhas Contratuais, de agosto de 2021. O último ano também foi de grandes perdas para o Direito Privado, em meio à segunda onda da pandemia. Em março, perdemos o grande Mestre Zeno Veloso e o Professor Carlos Alexandre de Moraes, ambos fundadores do IBDCONT. Também perdemos o Professor Arruda Alvim, grande jurista e formador de uma das mais importantes escolas do Direito Brasileiro. Os legados de seus escritos, sem dúvidas, ficarão entre nós e este texto é dedicado a eles. No segundo semestre de 2021 a ampla vacinação nos trouxe esperanças, sendo certo que encerramos o ano com um quadro bem melhor do que vivemos em outros momentos. Todavia, não me parece que a questão esteja toda resolvida, como já se anuncia em outros Países. Teremos que apreender a conviver com mais um vírus, com uma rotina diferente, com um cotidiano que não conhecíamos, tentando superar antigas "utopias", como escreveu Edgar Morin. Seguimos com o maior desafio imposto à nossa geração. Do ponto de vista dos contratos, segue forte o argumento de que a pandemias e seus efeitos não podem ser utilizados, por si só, para a resolução ou mesmo para a revisão dos contratos, devendo ser demonstradas repercussões diretas para os negócios firmados. Ademais, tornou-se muito mais forte o argumento de que a extinção do contrato é a última medida a ser tomada, devendo ser sempre incentivada a renegociação, tema tratado pela necessária Lei do Superendividamento e constante em debates acadêmicos e em decisões judiciais ou arbitrais. Entre os eventos jurídicos promovidos no último ano, destaco o I Congresso Brasileiro de Direito Contratual, do IBDCONT, em conjunto com a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Com cerca de trezentos participantes, foram debatidos temas afeitos à Lei da Liberdade Econômica, a pandemia, o mercado e a pessoa; em um equilíbrio difícil de ser encontrado. Na ocasião, os Professores Giselda Hironaka, Maria Helena Diniz e Carlos Roberto Gonçalves foram os primeiros agraciados com a medalha Ruy Rosado de Aguiar Jr. Também destaco a II Jornada de Solução Extrajudicial de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, promovida pela Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação geral dos ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino. Com quatro comissões temáticas - sobre arbitragem, mediação, desjudicialização e novas tecnologias -, surgiram novos enunciados doutrinários sobre temas de extrajudicialização, muitos deles atinentes aos contratos, servindo de orientação para as decisões judiciais.  Para 2022, há previsão da IX Jornada de Direito Civil, no mês de maio. O IBDCONT também editou novas edições da sua Revista Brasileira de Direito Contratual, pela Editora Lex, atualmente no seu nono volume. No Migalhas Contratuais tivemos a publicação de doze colunas, além desta, tratando de temas como contratos de plano de saúde, contrato de namoro, honorários advocatícios, novas tecnologias, arrendamento rural, o congresso do IBDCONT e os seus dois anos de existência - além da sua expansão estadual em 2021 -, o contrato de hospedagem por plataforma digital, a Lei do Superendividamento, a tentativa de extinção da sociedade simples, a cláusula penal em tempos de pandemia, as cláusulas de apuração e pagamentos de haveres insertas em contratos sociais, o NFT (non-fungible token) e o open insurance para o setor de seguros privados. Nossos agradecimentos aos juristas que desenvolveram os textos, Professores Angelica Carlini, Everilda Brandão, Maurício Bunazar, Marília Pedroso Xavier, Mario Luiz Delgado, Bruno Miragem, Marcelo Matos Amaro da Silveira, Rodrigo Toscano de Brito, Bruno Casagrande, Eroulths Cortiano Junior e Paulo Mayerle Queiroz. Esperamos que em 2022 possamos seguir com o oferecimento de informação de qualidade para o Direito Brasileiro. No mais, espero que tenhamos um 2022 muito melhor do que foram os dois últimos anos. E que possamos superar essa fase tão complicada que ainda enfrentamos. Sigamos em frente, com força, resiliência e tenacidade. A última palavra foi dita pela Professora Maria Helena Diniz no Congresso do IBDCONT e marcou aquele evento.  Um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo a todos os leitores do Migalhas Contratuais.                                                        
Introdução O setor de seguros privados no Brasil vive importantes mudanças que precisam ser conhecidas e estudadas porque o setor tem se mostrado cada vez mais relevante para a sociedade. O setor de seguros privados como todos os setores que administram recursos de terceiros, sempre foi cauteloso em relação a mudanças ou inovações, mas, nos últimos anos, a força das novas tecnologias em todas as áreas e, mais recentemente, a intensa digitalização da vida que a pandemia provocou, estimularam os órgãos reguladores e fiscalizadores do setor de seguros a ampliar as possibilidades de atuação, com o objetivo de tornar a atividade de seguros mais diversificada e, em consequência, capaz de incluir maior número de contratantes. Seguro é um instrumento de equilíbrio social. Quando os riscos se materializam e geram danos é muito melhor que pessoas naturais ou jurídicas tenham cobertura de seguro por meio da qual possam diminuir o impacto econômico, refazer seus negócios, retomar suas vidas. Basta pensarmos em seguros de incêndio, de vida, de saúde, acidentes pessoais e, facilmente, poderemos compreender a relevância social desse instrumento. A inclusão de maior número de pessoas que possam contratar seguros é recomendável para todas as sociedades e, é o que acontece nos países de economia central. Se as mudanças regulatórias forem efetivas para a inclusão de maior número de pessoas - naturais e jurídicas - entre os contratantes de seguro e, principalmente, se essas mudanças propiciarem produtos de seguro mais flexíveis, com maior concorrência, menor preço final ao contratante e, maior facilidade para a compreensão dos instrumentos de contratação, a regulação terá atingido um estado bastante avançado, em condições de colocar o país entre aqueles em que os seguros respondem por um percentual expressivo no Produto Interno Bruto - PIB. De 2019 para cá várias mudanças regulatórias importantes ocorreram no setor de seguros privados, entre elas duas que merecem especial destaque: o modelo regulatório sandbox que permitiu o ingresso no mercado de empresas de menor porte, as insurtechs, que são as startups de seguro; e, mais recentemente, as regras para implantação do sistema de open insurance. O open insurance é o tema de nossas reflexões neste trabalho. 1.Open Finance, Open Banking e Open Insurance  Open finance é a denominação que vem sendo aplicada ao sistema que reúne open banking e open insurance. As bases legais desse sistema estão na Lei de Liberdade Econômica e na regulação do Banco Central e, para o open insurance, especificamente, nas regras do Conselho Nacional de Seguros Privados e da Superintendência de Seguros Privados. Há integração entre os objetivos dos reguladores de bancos e seguros para estimular a concorrência entre os agentes econômicos, ampliar as possibilidades de acesso ao mercado às pessoas conhecidas como desbancarizadas e, tornar os contratantes mais livres para contratar com quem lhes ofereça as melhores perspectivas. Em outras palavras, o objetivo é atribuir maior poder aos contratantes para que façam escolhas e com isso estimular a concorrência na criação de produtos customizados às necessidades específicas dos contratantes. O que tornou possível o sistema open finance foi a popularização de smartphones, telefones celulares com cada vez maior capacidade computacional. O aumento de velocidade da rede mundial de computadores e a viabilidade de transmissão de maior quantidade de dados em tempo real, também contribuíram significativamente para que os telefones celulares pudessem incluir inúmeras outras funções além da original, em especial por meio de programas chamados de aplicativos e que podem realizar infindáveis tarefas. O Brasil ainda possui quantidade expressiva da população totalmente desbancarizada, sem acesso formal a instituições bancárias ou financeiras, porém, tem uma quantidade significativa da população que possui telefones celulares. Em junho de 2020, pesquisa realizada pela FGV1 apontou que o Brasil tem 424 milhões de dispositivos digitais em uso, sendo 234 milhões de telefones celulares inteligentes (smartphones). A média é de 1,6 dispositivos portáteis por habitante e a população brasileira em 2020 estava estimada em 212,6 milhões de pessoas segundo dados do Banco Mundial.2 Outro aspecto importante da realidade brasileira é que os dados bancários de uma pessoa pertencem ao banco e não a ela própria, o que dificulta muito a migração de uma instituição para outra. O open banking se torna, então, uma medida para colocar o usuário no centro do poder de decisão, permitindo que ele partilhe seus dados como quiser e com quem quiser, de forma a obter em troca melhores condições de negociação nos diferentes produtos bancários e de seguro. O Banco Central afirma que o objetivo do open finance é incentivar inovações no setor financeiro, promover aumento da concorrência e também da eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Entre os resultados esperados está alocada a educação financeira ou, cidadania financeira, que consiste na ampliação da compreensão dos usuários sobre os diferentes produtos bancários e de seguro, de forma a facilitar escolhas mais adequadas às diferentes necessidades. 2. Open Insurance Em agosto, o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP aprovou a Resolução 415, de 2021, que define open insurance como compartilhamento padronizado de dados e serviços por meio de abertura e integração de sistemas no âmbito dos mercados de seguros, previdência complementar aberta e capitalização. Também aprovou a Circular 635, de 2021, que dispõe sobre a regulamentação das diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP para implementação do Sistema de Seguros Aberto (Open Insurance). Alguns conceitos importantes são definidos pela regulação: a)   Sociedade supervisionada: a sociedade seguradora, incluindo aquela participante exclusivamente de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), a entidade aberta de previdência complementar ou a sociedade de capitalização; b)   Sociedade transmissora de dados: sociedade supervisionada, participante do Open Insurance, ou sociedade iniciadora de serviço de seguro que compartilha com a sociedade receptora os dados de que trata esta Resolução; c)    Sociedade receptora de dados: sociedade supervisionada, participante do Open Insurance, ou sociedade iniciadora de serviço de seguro que apresenta solicitação de compartilhamento à sociedade transmissora para recepção dos dados de que trata esta Resolução; d)   Sociedade iniciadora de serviço de seguro: sociedade anônima, credenciada pela Susep como participante do Open Insurance, que provê serviço de agregação de dados, painéis de informação e controle (dashboards) ou, como representante do cliente, com consentimento dado por ele, presta serviços de iniciação de movimentação, sem deter em momento algum os recursos pagos pelo cliente, à exceção de eventual remuneração pelo serviço, ou por ele recebidos. A sociedade iniciadora de serviço de seguro é a novidade mais marcante do novo sistema, porque não existe na atual estrutura de serviços de seguro em que a intermediação é realizada por corretores, agentes ou representantes de seguro. Os primeiros mais longevos e tradicionais na história da intermediação de seguros no Brasil; os agentes, diretamente ligados às seguradoras para as quais atuam; e, os representantes vinculados a varejistas e autorizados a distribuir apenas algumas modalidades de seguros. As sociedades iniciadoras de serviços de seguro parecem se constituir em novo intermediário autorizado pela regulação para atuar especificamente na área de open insurance, com a função de orientar os clientes na organização e apresentação de dados para serem disponibilizados em ambiente seguro, na busca das melhores oportunidades de contratação para necessidades específicas. Os objetivos do open insurance são definidos na regulação como: a)       ter o cliente como seu principal beneficiado; b)      tornar seguro, ágil, preciso e conveniente para os clientes o compartilhamento padronizado de dados, previsto na Lei Geral de Proteção de Dados e demais legislações que tratam do sigilo de operações financeiras, e serviços; c)       incentivar a inovação; d)      promover a cidadania financeira; e)      aumentar a eficiência dos mercados de seguros privados, de previdência complementar aberta e de capitalização; f)        promover a concorrência; e g)       ser interoperável com o Open Banking. A regulação do Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, definiu, ainda, os princípios do open insurance, que são: a)       transparência; b)      segurança e privacidade de dados e de informações compartilhados no âmbito do Open Insurance; c)       livres iniciativa e concorrência; d)      qualidade dos dados; e)      tratamento não discriminatório; f)        reciprocidade; g)       interoperabilidade; e h)      integração com o open banking. Muitas perguntas estão sendo feitas entre os operadores de seguros privados em todo o país, tanto na área jurídica como nas áreas de distribuição de produtos (comercial), técnica-atuarial, financeira e de sistemas computacionais. A primeira pergunta, sem dúvida, é: em quais outros países do mundo já se opera com open insurance no setor de seguros? A União Europeia está discutindo o assunto, mas ainda não implantou o sistema. E países como México, Austrália, Índia e Nova Zelândia já iniciaram operações semelhantes a esta aprovada no Brasil. Quais os benefícios esperados para o cliente? A SUSEP explica em reiteradas manifestações na mídia e em redes sociais que a expectativa é a melhoria de qualidade dos serviços prestados aos clientes, principalmente para que seja possível precificar de forma mais adequada às necessidades de cada um, além de oferecer produtos diferenciados, mais adequados à diversidade da sociedade brasileira. Em poucas palavras, o compartilhamento autorizado de dados poderá oferecer maior acessibilidade a produtos de seguro, em especial para a parcela da população que ainda não contrata. O corretor de seguros deixará de ser o principal intermediário na contratação de seguros? Não há resposta única para essa indagação, mas, em princípio, parece que o ingresso de novos contratantes de seguro possa representar oportunidade para os corretores, porque os preços, produtos e formas de contratação poderão ser facilitados, mas a correta compreensão da operação de seguros, dos direitos e deveres dos contratantes e dos seguradoras, dos riscos aos quais o contratante está efetivamente sujeito, tudo isso segue com alta carga de complexidade porque, realmente, compreender formação e administração de fundos mutuais a partir de riscos homogêneos nem sempre é tarefa das mais simples. Nesse aspecto, ou seja, como consultor e orientador dos contratantes os corretores de seguro continuarão a ter papel relevante, mas terão que se adaptar ao trabalho no mundo digital, em área de market place, que é o que se acredita que o open insurance será efetivamente na prática. Em princípio, o open insurance parece estar destinado a seguros massificados, em especial os nichos que começaram a ser explorados pelas insurtechs, aprovadas para operar no modelo sandbox e que já são duas dezenas aprovadas em dois editais e em funcionamento. Não há impedimento para a atuação de seguradoras em área de não massificados, ou seja, os seguros de grandes riscos, mas o sistema parece estar mais adequado a seguros massificados e específicos, que serão a porta de entrada de novos contratantes. Conclusão As inovações tecnológicas atingiram todas as áreas econômicas e sociais. No setor de seguros privados não poderia ser diferente e as mudanças são muito bem-vindas, em especial se atingirem os objetivos desejados: maior flexibilidade na oferta de produtos pelos seguradores, com melhores preços e, principalmente, com a inclusão de novos contratantes. Tudo isso deverá ser concretizado com absoluto respeito à proteção de dados dos consumidores, que só poderão ser partilhados com prévio e expresso consentimento e para a finalidade estritamente necessária, conforme prescrito pela Lei Geral de Proteção de Dados. Nesse sentido, as novas sociedades iniciadoras de serviços de seguro deverão ser fortemente acompanhadas pelo regulador de seguros e pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD, para que seu trabalho não coloque em risco a proteção de dados dos consumidores. Para os corretores de seguro há perspectivas positivas mas, como muitas outras categorias profissionais, inclusive os advogados, há necessidade de conhecer melhor e estudar de forma sistemática o ambiente digital, os negócios no mundo do compartilhamento digital e as especificidades que esse ambiente propõe. A realidade é que a inserção de novos contratantes, em especial entre as camadas de baixa renda da população brasileira é uma necessidade, concretiza a sociedade mais justa pretendida pela Constituição Federal e, confere maior equilíbrio social para socorro em situações de danos que podem ser bastante negativas para aqueles que não possuem recursos econômicos para se defender. A pandemia da COVID-19 nos ensinou que a mudança é a única certeza da sociedade em que vivemos. Que desta vez estejamos às voltas com boas mudanças, que tragam resultados positivos para a sociedade brasileira. ______________ 1 Estudo da FGV EASP. Disponível emhttps://portal.fgv.br/noticias/brasil-tem-424-milhoes-dispositivos-digitais-uso-revela-31a-pesquisa-anual-fgvcia. Acesso em 06 de novembro de 2021. 2 Indicadores de Desenvolvimento Mundial. Disponível em: https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/. Acesso em 06 de novembro de 2021.
A virada do milênio nos surpreendeu com uma nova percepção de mundo trazida por uma geração que se mostra preocupada com o equilíbrio ecológico, a redução do consumo e a origem de sua comida e suas roupas. Desse ponto foi um pulo para a ressignificação da apropriação de bens nos moldes clássicos praticados e legitimados pelo Código Civil. Morar em uma casa gigantesca onde um ou poucos usufruem de um espaço territorial que abarcaria várias famílias com conforto se mostrou inadequado e até egoísta. Trabalhar em escritórios enormes onde um único profissional ocupa o espaço de uma dezena de pessoas também pareceu ultrapassado. Essa geração ressignifica a cada dia o acúmulo de bens, a propriedade privada e ausência de solidarismo, num total descumprimento da função social. Com isso, cresceu a importância dos bens do espírito, como os bens comuns, e dos bens que geram negócios de acesso múltiplo a única coisa, como o coworking e o coliving. As empresas revisitaram os modelos de negócios e o compartilhamento se tornou a premissa básica das novas fortunas, como facebook, ifood, uber, airbnb. A tecnologia veio arrematar esse novo cenário se mostrando como meio possível para a realização dessa nova forma de experienciar o mundo. E a vida passou a ser vivida em grande medida por meio digital. É na "rede" que encontramos alimento, trabalho, amigos, romance, entretenimento. É natural que nela também encontremos um lugar apropriado para experienciar nossa relação com a propriedade, incluindo sua movimentação através dos contratos. A troca da propriedade pela experiência do uso traz um impacto significativo na titularidade de bens, transformando uma sociedade de proprietários em uma sociedade de usuários. Como consequência, a posse ganha um protagonismo que nunca teve, abrindo espaço para o direito de acesso que nele encontra similaridade, mas que já se mostra autônomo em seus efeitos. Tudo isso faz nascer a pergunta: é o fim da propriedade exclusiva? Deixaremos definitivamente a propriedade em sua estrutura clássica da exclusividade? Em um futuro próximo teremos poucos proprietários e muitos usuários? Para essa última pergunta, Jeremy Rifkin afirma que sim. Ao escrever sobre a era do acesso, assegura que a propriedade exclusiva se restringirá a quem tem interesse negocial, ou seja, sou dono de algo para gerar dinheiro. Na minha vida privada prefiro não ser titular exclusivo de bens, me apoiando nos serviços gerados pelo direito de acesso. Mas a primeira pergunta parecia também ser afirmativa, pois a partir do bens digitais, tudo parece solto, sem proprietários ostensivos. Os bens se mostram voláteis, de fácil uso, cancelamento e transferência. Não há burocracias, órgãos públicos intermediadores de negócios. E por fim, nada tem registro. Mas o registro, marca suprema da titularidade exclusiva de bens, tal qual conhecemos no direito civil, é algo a ser superado ? Precisamos falar sobre isso.  Proposta de discussão para o registro dos bens digitais Em artigo recente1, tive a honra de publicar um artigo ao lado do Prof. Dr. Marcos Ehrhardt, onde lançamos as primeiras reflexões sobre a necessidade de registro dos bens digitais. Ali perguntamos se esse novo modelo de pertencimento dispensa os instrumentos clássicos de segurança jurídica. Será que a natureza obrigacional trará mais soluções que a de direito real? Esta coluna procura trazer as primeiras possibilidades de resposta, abrindo o debate para a doutrina. O fato é que o surgimento de bens digitais e seu amplo uso nos mais variados setores da vida privada parecia desafiar as fundações da propriedade, como a exclusividade, o não acesso aos não proprietários e o registro. A linguagem que mais identifica a internet é o compartilhamento e o acesso livre. "Curte e compartilha" traz uma mensagem de que o mundo é fluido, somos todos iguais e temos acesso às coisas mais importantes da vida, as quais estão ali, a um clique de distância. Mas para a surpresa de todos começa a surgir um movimento inusitado no meio do virtual, o registro em NFT (non-fungible token). E ele está se multiplicando com a velocidade que se espera para esse ambiente. O NFT é um registro virtual, uma espécie de selo em um bem digital que o torna único no mundo, garantindo todos os direitos de propriedade ao seu titular, tal qual o fazemos com os bens corpóreos. E mesmo diante da fluidez do mundo virtual e da facilidade de se produzir cópias, o registro permite ao proprietário identificar essas réplicas e requisitar os lucros e indenizações pelo uso não autorizado do seu bem virtual. Os mais variados setores da economia estão experimentando esse novo tipo de registro. O museu russo Hermitage, um dos mais conhecidos e importantes do mundo, criou uma série de NFTs replicando alguns dos mais de 3 milhões de ítens do seu acervo.2 A coleção inclui obras de Leonardo da Vinci, Van Gogh, Kandinsky e Monet, entre muitos outros. Cada obra tokenizada se transformou em dois NFTs: um ficará com o próprio museu, e outro será leiloado na plataforma de tokens não fungíveis da corretora de criptoativos Binance. Além de uma versão digital da obra original, os NFTs do Hermitage também possuem uma certificação do museu com assinatura, data, hora e local - o próprio museu - que ficarão salvos nos metadados do token, imutáveis no blockchain.  No mercado da moda, é possível comprar vestidos e sapatos que só existem virtualmente, com titularidade garantida por NFT. A chamada "cripto fashion" é encontrada na plataforma de realidade virtual Decentraland, mas também tem atraído iniciativas de empresa como Louis Vuitton, Burberry e Gucci. "Seu avatar representa você", afirma o modelo Imani McEwan, que vive em Miami e é entusiasta do NFT. "Basicamente, o que você está vestindo é o que o torna quem você é."3 Um ponto curioso com o NFT é que ele permite algo inédito, que mexe com nossas estruturas mentais em relação à exclusividade de um bem. É o que acontece quando se tem um bem físico, como uma pintura de Salvador Dalí e seu proprietário produz uma versão digital, única e exclusiva, registrada com NFT. Essa versão é uma cópia ou um bem tão único quanto o original? A versão digital das pinturas pelo museu de Berlim é a prova disso. Como posso eu me sentir titular de um obra rara se existe outra igual, pertencente a outrem? Posso considerar que existe um bem único em duas versões da vida? Uma corpórea e outra incorpórea? É o que nos propõe o NFT. É como a sua fotografia. Ao mesmo tempo é você, e não é. Acompanhamos uma tendência das pessoas em produzirem suas versões digitais, criando seus avatares para interagir em outra dimensão, a virtual. Isso faz com que queiram fazer o mesmo com os bens. Tudo que existe no corpóreo pode ter uma versão digital, única em relação à primeira. E até o exagero é possível, como destruir a coisa corpórea para que ela só exista na sua versão digital. Foi o que fez um coletivo de artistas nos Estados Unidos, que queimaram um quadro de Pablo Picasso para que sua versão digital fosse única, registrada por NFT. Segundo eles "O Picasso Queimado vive para sempre no blockchain".4 E para garantir que o quadro foi realmente foi queimado, foi tudo feito com transmissão ao vivo pela internet. Não deixa de ser curioso notar que o conceito mais rejeitado no início destas relações do mundo virtual, o da propriedade exclusiva e egoísta, agora renasce. O compartilhamento agora tem um custo. Se no mundo corpóreo o acesso é mais importante que a titularidade, no mundo virtual há uma tendência de retorno à propriedade exclusiva. A propriedade clássica sempre nos fortaleceu a certeza de que só existe um bem para cada titular.  E se os bens móveis permitem a cópia, esses sempre terão sua existência conectada à titularidade original, que a permite pelo direito de uso ou fruição, por exemplo, mas que nunca lhe dará a chancela de original. No entanto, sempre se considera o bem original como único, em termos de titularidade. Mesmo o condomínio civil deixa clara a ideia de que cada titular é dono da inteireza do seu percentual no bem, nascendo daí a exclusividade sobre o que é comum. É por isso que o registro por NFT é tão disruptivo. Ele atualiza nossas concepções de exclusividade e originalidade, ao mesmo tempo que faz renascer a segurança jurídica trazida pelo registro da exclusividade. O mais importante é perceber que esse registro é concedido por entidades privadas, ao contrário dos clássicos registros estatais, como temos no Brasil o registro imobiliário em cartório, o registro do Detran, ANAC, Capitania dos Portos. À medida que o Estado impôs o controle das titularidades, através de entidades específicas, estabeleceu a base de negócios sobre os bens, oferecendo a certeza da existência de bens e sua penhorabilidade. O Código Civil, que permanece com sua inércia imperial em relação a tudo que é múltiplo, compartilhado e digital, está abrindo mão do controle estatal sobre o registro de bens. Historicamente o registro sempre trouxe a segurança jurídica de titularidade para o particular, e a possibilidade de rastreio pelo Estado quando da necessidade de identificação destes bens. Com o NFT não há um órgão central para buscas de informações. Se o interessado em um processo de execução, por exemplo, não souber que o executado tem esse tipo de bens, não conseguirá usá-los para satisfação do seu crédito. E estamos falando de bens que costumam ter um alto valor. O NFT está retirando do Estado o poder da informação, o que já foi feito pelas criptomoedas, como o bitcoin. Parte considerável dos bens digitais ainda não se enquadra na clássica propriedade regulada pelos direitos reais e não encontraram nenhuma forma segura de registro. E por não possui-lo, ainda não resguardam a segurança jurídica trazida por ele. Um perfil digital, por exemplo, não é do usuário. A titularidade é da plataforma e quando esta decide cancelar a conta, já conhecemos os transtornos causados para sua retomada. NFT e segurança contratual para negócios que envolvem bens digitais As relações contratuais se encontram em um momento delicado desde que os bens digitais começaram a se multiplicar, a ponto de alguns deles serem muito mais valiosos que os bens corpóreos rotineiramente objeto dos contratos. Onde está a propriedade está um potencial de negócio. E é o contrato a ponte entre eles. É por isso que o registro sempre foi uma garantia de segurança jurídica para os contratantes. Nos bens corpóreos, de um lado sabe-se quem é o legítimo titular de um bem, e de outro, tem-se uma garantia legal que pode ser utilizada para dar maior segurança ao negócio. Negociar com quem é titular de bens é mais seguro. Uma garantia real é sempre uma segurança para um dos contratantes. E se ela não estiver presente, e o inadimplemento for o fato, há bens a penhorar. O registro dirá onde buscar bens. Com os bens digitais tal segurança é infinitamente menor. Se um perfil digital ou um canal em uma plataforma é objeto de compra e venda, na verdade não há uma troca de titularidade, pois os "termos e condições de uso" estão lá para dizer que somos meros usuários e uma empresa é a verdadeira titular do bem. Além disso, nos perfis e canais onde não há uma identificação pessoal de um titular, como os perfis comerciais e acadêmicos, por exemplo, o que haverá a troca de uma senha de acesso, mas sem segurança de que aquele que cedeu é o verdadeiro titular. Se uma pessoa só possui bens digitais como a parte significativa de seu patrimônio, mas não há registro sobre eles, o risco do contrato é maior. O fato é que, uma vez desprovidos de um registro oficial, legitimado pelo Estado, existe uma fragilidade nas operações contratuais que envolvem bens digitais. Por isso o NFT é uma novidade que traz mais segurança aos contratantes. Sendo de valor importante para o titular, certamente cuidará ele de declarar no imposto de renda, o que facilitá o acesso do contratante que busca a satisfação de seu crédito em ações de execução. Sabendo que existe um registro do bem, que embora não venha do Estado, é reconhecido pelo mercado, o contratante tem maior segurança em conseguir um domínio legítimo sobre ele. E o mais importante, há um lugar para procurar a informação, o que não acontece com as criptomoedas. Tome-se por exemplo os "domínios de sites". Embora não possuam um registro oficial do Estado, são objeto de compra e venda sem maiores riscos, pois há uma empresa que controla as titularidades. As expressões de ordem dos contratos sempre foram segurança e menor risco. Com o NFT os bens digitais passam a ter um registro e um valor de mercado mais transparente, o que traz muito mais segurança aos contratos onde sejam objeto. Já vivemos na era digital, e o modelo de apropriação de bens precisa ser repensado. Ele é um pilar importante para a segurança dos contratos. O NFT ainda está em seu início, e já mostra sua força. O futuro dirá como será o modelo mais adequado. E como tudo é acelerado nesse meio virtual, essa resposta pode já estar pairando na rede  nesse momento, sem que possamos nos dar conta. Referências Guilhermino, Everilda Brandão; Ehrhardt Jr, Marcos Augusto. Breves Notas sobre a (In)Suficiência da Teoria Clássica da Propriedade para Disciplinar a Titularidade dos Bens Digitais. O Caos no Dicurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne. Thoth Editora, Londrina, 2001. Fonte: NFTs invadem um dos maiores museus do mundo e famosa feira de arte dos EUA. Fonte: Moda Em Nft: Por que as Pessoas Pagam Dinheiro Real por Roupas Virtuais. Fonte: Grupo queima obra de Picasso e faz NFT: 'Vivo para sempre no blockchain'. *Everilda Brandão Guilhermino é advogada, mestre e doutora em Direito Civil (UFPE). Professora de Dirieito Civil. Membro fundadora do IBDCont. __________ 1 Guilhermino, Everilda Brandão; Ehrhardt Jr, Marcos Augusto. Breves Notas sobre a (In)Suficiência da Teoria Clássica da Propriedade para Disciplinar a Titularidade dos Bens Digitais. O Caos no Dicurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne. Thoth Editora, Londrina, 2001. 2 Fonte: NFTs invadem um dos maiores museus do mundo e famosa feira de arte dos EUA.  3 Fonte: Moda Em Nft: Por que as Pessoas Pagam Dinheiro Real por Roupas Virtuais. 4 Fonte: Grupo queima obra de Picasso e faz NFT: 'Vivo para sempre no blockchain'.
Introdução  Na legislação que disciplina o direito societário brasileiro, a expressão haveres aparece nos artigos: 1.107 do Código Civil1, 72 da lei 5.764/712, 215 da lei 6.404/763 e ao longo de todo o Capítulo V do Título III do Código de Processo Civil, o qual disciplina o procedimento de dissolução parcial de sociedade. Em monografia clássica sobre o tema, Hernani Estrella conceitua haveres como "o conjunto de valores, composto pela contribuição de capital, pelo quinhão nos fundos e reservas, pela quota-parte nos lucros e, ainda, por quaisquer outros créditos em conta disponível. Todos estes componentes vêm a dar, afinal, a resultante que representará a soma total a reembolsar ao sócio".4 Sempre se admitiu que os sócios previssem no estatuto ou contrato social o modo de avaliar os haveres e, além disso, o modo de os pagar; o n. 6o do artigo 302 do Código Comercial chegava mesmo a arrolar entre os requisitos do contrato social a previsão do modo de liquidação da sociedade e partilha dos resultados. O direito dos sócios de, por ato de autonomia privada, estabelecer o modo de avaliar os haveres e o modo de os pagar é, ainda, inequívoco no direito positivo vigente; concede-o os artigos 1.031 caput e § 2o5, 1.1026 do Código Civil e os artigos 604, II, 606 e 609 do Código de Processo Civil7. No entanto, a jurisprudência e a nova disciplina constante do Código de Processo Civil têm mitigado a força obrigatória da cláusula que estabelece o modo de apuração dos haveres. Ademais, até a entrada em vigor do Código de Processo Civil, a pretensão aos haveres era privativa do sócio e condicionada à liquidação da sociedade, ainda que parcial. O Código Civil, em seu artigo 1.027, preceitua que os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade. Não obstante, os incisos I e II e o parágrafo único do artigo 600 do Código de Processo Civil deram à matéria disciplina radicalmente diversa. Com efeito, passaram a ter legitimidade para requerer a apuração de haveres o espólio e, após ultimada a partilha, os herdeiros do sócio falecido e, ainda, legitimidade para pleitear a liquidação parcial da sociedade e a apuração de haveres o cônjuge ou companheiro do sócio, quando da extinção do casamento ou união estável. Concedida, todavia, legitimidade ao cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento ou união estável se desfez, coloca-se a questão da eficácia dessas previsões perante eles, terceiros na relação sócio-sociedade. A efetividade da cláusula de apuração de haveres e a vinculação do ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio são questões às quais se pretende oferecer alguma contribuição, ainda que muitíssimo singela. Uma cláusula que não é levada a sério  A eficácia da cláusula de apuração de haveres é a de preestabelecer o modo de avaliar e quantificar o crédito do sócio; por efetividade, no entanto, quer-se significar a sua aplicação autônoma e heterônoma, é dizer, pelos sócios e pelo adjudicador (juiz ou árbitro). Embora óbvio, parece útil e até mesmo necessário reafirmar a natureza jurídica da cláusula: trata-se de disposição contratual que tem por fonte a autonomia privada e, que, portanto, desde que existente e válida, deve produzir todos os seus efeitos. A cláusula de apuração de haveres é dotada da obrigatoriedade inerente a qualquer disposição contratual e seu afastamento somente pode se dar quando presentes requisitos preestabelecidos pelo legislador, como os determinantes dos vícios de invalidade e os autorizadores da revisão. Todavia, a jurisprudência e, agora, a própria lei tratam a cláusula de apuração de haveres como mera "obrigação" moral, despida de efetividade. Embora o espaço dessa coluna não permita a análise detida da jurisprudência, principalmente a do Superior Tribunal de Justiça, pode-se afirmar que a tendência é que, quanto à cláusula de apuração dos haveres, ela só prevaleça se a unanimidade dos sócios estiver de acordo com os resultados a que os critérios livremente eleitos conduziram.   Em julgado considerado paradigmático, o acórdão restou ementado assim: DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido. RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.619 - SP (2011/0266256-3), julgado em 3/3/2015. A decisão, sempre com todas as vênias, conduz a uma conclusão absurda: a cláusula contratual só tem eficácia quando ela não é necessária, isto é, quando todos estão de acordo. Ora, é escusado dizer que a função principal dos contratos de duração é antecipar soluções para as eventuais divergências futuras. Em questões patrimoniais disponíveis, é óbvio que as partes, sendo capazes, podem acordar de modo diametralmente oposto ao originalmente previsto no contrato. A utilidade do contrato é servir como norma autônoma e, como toda norma, ser vinculante8. No entanto, como sinalizado, também a lei parece enfraquecer a força vinculante da cláusula de apuração de haveres. O artigo 607 do Código de Processo Civil estabelece que a data da resolução e o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia9. Quanto à questão da revisão da data-base da resolução, remetemos o leitor à obra de Valladão e Adamek; quanto à previsão de revisibilidade do critério de apuração, sugere-se seja dado ao dispositivo interpretação restritiva. Embora a lei pareça facultar à parte amplo direito de pleitear a revisão do critério de apuração, deve-se, a partir de uma análise sistemática do conjunto normativo, concluir que o pedido de revisão deve se fundamentar em alguma das hipóteses legais que admitem a revisão dos contratos, designadamente os artigos 317 e 478/479 do Código Civil -cabendo fazer notar, quanto a estes últimos dispositivos, que o devedor é a sociedade-, mesmo quando, em razão da omissão das partes (o que também deve ser qualificado como fruto da autonomia privada), o critério de apuração seja aquele previsto no artigo 606 do Código de Processo Civil. O respeito à autonomia privada, valor estruturante do Direito Privado, foi reafirmado pela chamada Lei da Liberdade Econômica, que, entre outras disposições, incluiu no Código Civil o parágrafo único do artigo 421 e o artigo 421-A10, os quais consagram as regras da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão dos acordos. A eficácia da cláusula de haveres perante terceiros  O fato de o contrato ser produto da autonomia privada implica, como corolário lógico, sua obrigatoriedade e a relatividade de seus efeitos; se o contrato é eficácia do exercício da autonomia privada, somente pode estar vinculado contratualmente quem exerceu autonomia privada. A partir dessa premissa simples, põe-se a questão sobre a vinculação, ou não, do ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio à cláusula de haveres (expressão genérica que abrange a cláusula de determinação do modo de apuração e do modo de pagamento dos haveres), afinal inequivocamente são qualificados como terceiros na relação sócio-sociedade. Trata-se, na verdade, de pseudoquestão. A imunidade de terceiros contra os efeitos do contrato refere-se, fundamentalmente, aos direitos subjetivos do terceiro11 que não derivem direta ou indiretamente do contrato. Sempre que a situação jurídica do terceiro derivar do contrato, ela se submeterá ao regime jurídico contratual. Assim, o cônjuge ou companheiro do sócio não tem propriamente direito contra a sociedade; seu direito é contra o sócio- é direito sobre o direito [rectius: crédito] do sócio- e, portanto, submete-se ao regime jurídico a que está submetido o sócio. Não faria sentido, por exemplo, que o contrato estabelecesse como critério de apuração o do valor dos bens tangíveis a preço de saída e o pagamento em trinta e seis parcelas e o ex-cônjuge exigisse o critério do fluxo de caixa descontado e o pagamento em noventa dias. A velha máxima segundo a qual nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet tem, pois, integral aplicação à hipótese. Cabe, ademais, apontar uma lacuna importante no regime jurídico disposto pelo Código de Processo Civil ao procedimento de dissolução parcial de sociedade. Embora o parágrafo único do artigo 606 confira legitimidade ativa ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, não estabelece a data-base para efeitos do disposto artigo 60812.  Considerando-se que o direito do ex-cônjuge ou ex-companheiro deriva do regime de bens que regia a relação patrimonial entre ele e o sócio, a melhor interpretação parece ser a de estabelecer como data-base o momento em que tem fim a sociedade conjugal, o que se dá com a mera separação de fato e, a partir da entrada em vigor da emenda constitucional n 66/2010, independentemente do tempo da separação.  Conclusões  As cláusulas contratuais de apuração e pagamento de haveres são produto legítimo do exercício da autonomia privada dos sócios; ninguém melhor do que os sócios há para predeterminar como deve ser avaliado o patrimônio da sociedade e como deve ser pago o crédito do sócio cujo vínculo com a sociedade se desfez. As intervenções heterônomas em questões como estas, puramente patrimoniais e disponíveis, para além de estimularem comportamentos oportunistas e desleais, colocam em risco a própria atividade econômica. Decisões como a citada a cima, que substituiu o critério de apuração de haveres eleito livremente pelos sócios pelo critério chamado fluxo de caixa descontado são desastrosas para a segurança do tráfego negocial. Não fosse suficientemente grave desprezar um critério de apuração de haveres livremente pactuado, acolher a pretensão do sócio retirante de ver a sociedade avaliada por um critério cuja função principal é a de fornecer balizas para precificação de negócios jurídicos de compra e venda de participação societária é quase que prestigiar o enriquecimento sem causa. Ora, mensurar quanto um sócio tem de crédito hoje a partir da perspectiva de lucro eventual que a sociedade possa ter amanhã é solução leonina, já que o sócio retirante não correrá o risco das perdas futuras; cláusula contratual que dispusesse que certo sócio terá direito a antecipação de predeterminados lucros futuros hipotéticos, mas não responderá por riscos futuros certamente esbarraria no artigo. 1.108 do Código Civil13. Finalmente, de lege ferenda, melhor seria que o parágrafo único do artigo 600 do Código de Processo Civil fosse revogado e fosse expressamente repristinada a vigência do 1.027 do Código Civil, impedindo-se que vicissitudes pessoais afetassem a sociedade e os demais sócios; de lege lata, é importante assentar que o ex-cônjuge/ex-companheiro vincula-se tanto à cláusula de apuração de haveres como à de seu pagamento, bem como que a data-base para efeitos de quantificação do crédito é o fim da sociedade conjugal, desde a separação de fato. *Maurício Bunazar é mestre em Direito Civil pela USP. Doutor em Direito Civil pela USP. Pós-doutorando em Direito Civil pela USP. Professor do IBMEC-SP e do Damásio Educacional. Fundador e diretor executivo do Instituto Brasileiro de Direito Contratual-IBDCONT. Advogado.  __________ 1 Art. 1.107. Os sócios podem resolver, por maioria de votos, antes de ultimada a liquidação, mas depois de pagos os credores, que o liquidante faça rateios por antecipação da partilha, à medida em que se apurem os haveres sociais. 2 Art. 72. A Assembléia Geral poderá resolver, antes de ultimada a liquidação, mas depois de pagos os credores, que o liquidante faça rateios por antecipação da partilha, à medida em que se apurem os haveres sociais. 3 Art. 215. A assembléia-geral pode deliberar que antes de ultimada a liquidação, e depois de pagos todos os credores, se façam rateios entre os acionistas, à proporção que se forem apurando os haveres sociais. 4 ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. José Konfino editor. Rio de Janeiro, 1960, p. 182. 5 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. (omissis). §2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário. 6 Art. 1.102. Dissolvida a sociedade e nomeado o liquidante na forma do disposto neste Livro, procede-se à sua liquidação, de conformidade com os preceitos deste Capítulo, ressalvado o disposto no ato constitutivo ou no instrumento da dissolução. 7 Art. 604. Para apuração dos haveres, o juiz: (omissis); II - definirá o critério de apuração dos haveres à vista do disposto no contrato social.  Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma; Art. 609. Uma vez apurados, os haveres do sócio retirante serão pagos conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do § 2º do art. 1.031 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).  8 O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, infelizmente vencido, sintetizou com precisão os problemas da decisão: a um só tempo se legitima o desrespeito ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, e viola-se a lei na medida em que ela determina que o critério a ser observado deve ser o eleito pelas partes.  9 Esse artigo mereceu crítica tão dura quanto justa dos juristas Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira von Adamek, os quais colocam em dúvida até mesmo a constitucionalidade da norma. Direito Processual Societário. Comentários breves ao CPC/2015, 2a edição, 2021, Malheiros e Juspodium, p. 92-93. 10 Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela lei 13.874, de 2019) Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela lei 13.874, de 2019); Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019) I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019) III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) 11 Utilizar-se-á a definição de direito subjetivo proposta por A. TOMASETTI Jr., para quem "trata-se de uma posição jurídica subjetiva ativa complexa, unitária e unificante de posições jurídicas subjetivas ativas elementares, ou seja, implica um conjunto de faculdades, pretensões, poderes formativos e imunidades, os quais se acham em estado de coligação normal e constante, sob a titularidade de um sujeito determinado, relativamente a certo objeto". Cf. Comentário, in RT 723 (1996), pp. 208-223. 12 Art. 608. Até a data da resolução, integram o valor devido ao ex-sócio, ao espólio ou aos sucessores a participação nos lucros ou os juros sobre o capital próprio declarados pela sociedade e, se for o caso, a remuneração como administrador. 13 Art. 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.
Dias atrás, em 31 de julho, o Instituto Brasileiro de Direito Contratual completou dois anos de sua fundação. A data foi muito comemorada pelos seus membros fundadores e associados e serviu de convite para a fazer uma espécie de balanço do caminho trilhado pelo ainda jovem Instituto. Já no seu primeiro mês de atividade, o IBDCONT colecionava feitos extraordinários: estreava uma coluna mensal no Migalhas, alicerçava as bases para o lançamento da primeira revista jurídica dedicada especificamente ao tema dos contratos e alcançava organicamente mais de cinco mil seguidores nas redes sociais. Os meses seguintes foram igualmente pujantes e o ano de 2020 já se iniciava com uma série de projetos rascunhados, dentre os quais se destacava a realização no mês de junho do maior evento dedicado especificamente a Contratos já feito em nosso país: o I Congresso de Direito Contratual. Eis que o fatídico março de 2020 chegou e trouxe consigo desafios de todas as ordens, nunca experimentados pela sociedade e que colocaram em xeque a continuidade da vida do ainda incipiente Instituto. Na contramão do que o senso comum poderia imaginar, o IBDCONT cresceu em todos os sentidos nesse período e não renunciou a sua importante missão institucional de disseminar o conhecimento e promover o aprimoramento da disciplina contratual. Sem dúvida, a crise sem precedentes vivida em nosso país e no mundo desaguava em grande medida em dilemas jurídicos diretamente ligados a temas obrigacionais. E foi assim que o IBDCONT passou a ter uma coluna de periodicidade semanal no Migalhas, enfrentando as perturbações do programa contratual sob os mais variados pontos de vista. Ao todo foram publicados sessenta e dois artigos de articulistas de membros do Instituto. Outra importante frente de atuação do IBDCONT foi a parlamentar. Com base na intensa e profunda manifestação doutrinária acima mencionada, o IBDCONT foi nominalmente citado no parecer da Senadora Simone Tebet sobre o projeto de lei 1.179/2020, acerca do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Assentado sob a premissa de ser um grupo de juristas democrático e plural, o Instituto apoiou publicamente a aprovação do PL 3.515/2015, sobre o Superendividamento após votação interna entre seus integrantes. Do mesmo modo, mediante votação, o IBDCONT se manifestou contra a extinção da sociedade simples e da EIRELI proposta pelo PL 15/2021, de conversão da Medida Provisória 1.040. Para júbilo de todos, o posicionamento do IBDCONT foi citado expressamente e acolhido no parecer do Senador Irajá Silvestre Filho sobre o tema. No campo acadêmico, o Instituto semeou uma frutífera parceria com a Associação dos Advogados de São Paulo - AASP e lançou o seu primeiro curso. Intitulado de "Teoria Geral do Direito dos Seguros" e gravado em formato EAD para contemplar a demanda do distanciamento social, o curso possui dez aulas e, ao todo, doze horas de conteúdo dedicado a um dos mais tipos contratuais mais demandados na atualidade.   O cenário jurisprudencial também se mostrou campo fecundo ao IBDCONT. O conteúdo e as reflexões produzidas na coluna do Instituto e em sua Revista ganharam destaque em inúmeras decisões judiciais, fazendo com que a doutrina se transmutasse em fonte de Direito. Cabe mencionar que o IBDCONT também pleiteou a sua participação na qualidade de amicus curiae na ADI 6.396/DF, ação que discute a constitucionalidade da resolução 380/2020, do Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP. Registrados todos esses feitos, cabe questionar: e o I Congresso de Direito Contratual? Pois bem, a ideia inicial de evento presencial e em junho de 2020 evidentemente precisou ser modificada. Colocando à prova a resiliência do Instituto, o evento foi inteiro redesenhado para o formato virtual ao vivo e alocado em nova data. Foi assim que entre os dias 17 e 19 de junho do corrente ano mais de duzentos inscritos de todo o país puderam acompanhar quinze painéis com debates de altíssimo nível versando sobre "Contrato, Pessoa, Liberdade Econômica e Pandemia".   De forma coerente com o seu ideal de pluralismo e democracia, cada painel foi cuidadosamente montado de forma a respeitar ao máximo a paridade de gênero e congregar juristas de escol que externavam posicionamentos por vezes bastante divergentes e antagônicos em nome da promoção de um debate de excelência. Ao todo, foram vinte horas de evento que prenderam a atenção dos participantes do começo ao fim. O prestigiado evento também serviu de palco para a entrega da Medalha Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. a três grandes nomes do Direito Contratual pátrio: Giselda Hironaka, Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz. Os atos solenes de entrega da honraria foram muito emocionantes e significaram o justo reconhecimento e a gratidão aos preciosos ensinamentos que estes mestres transmitiram e seguirão transmitindo às novas gerações de juristas.  Pois bem, chegado agosto de 2021 e realizada a sua terceira Assembleia Geral, o Instituto novamente se depara com inúmeros motivos para celebrar e que merecem ampla divulgação. O IBDCONT encontra-se em franca expansão, expandindo sua atuação no território nacional a partir da criação de Diretorias Estaduais, sendo que tomaram posse nesse mês os seguintes Estados: Bahia, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Sergipe. Também, já está divulgado o edital para a publicação do oitavo exemplar da Revista Brasileira de Direito Contratual em parceria com a Editora Lex Magister. Dado o sucesso editorial, em breve o Instituto contará com um novo periódico dedicado ao Direito Empresarial e do Consumidor. Nos próximos meses já estão programados novos cursos e eventos nacionais e internacionais. A razão de tantos êxitos do Instituto em tão pouco tempo se deve, inegavelmente, à tríade união, densidade científica e trabalho com afinco de todos os seus membros, sempre comprometidos em contribuir para o aperfeiçoamento constante dos contratos em nosso país. Tudo isso nos convida a dizer em coro: Vida longa ao IBDCONT! *Marília Pedroso Xavier é professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil pela UFPR. Fundadora e Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada. 
O Código Civil de 2002 criou nova sistemática de classificação das sociedades, fazendo desaparecer as antigas sociedades civis, substituídas pelas chamadas sociedades simples, ao tempo que as sociedades comerciais passaram a se denominar sociedades empresárias. A sociedade civil era aquela destinada a objeto civil, constituindo o contraponto da sociedade mercantil, e estava submetida à disciplina dos arts. 1.363 a 1.409 do Código Civil de 19161, "que são as normas gerais a que se subordina o contrato de sociedade, o seu direito comum, que abrange as sociedades em geral"2. A cooperação dos indivíduos da sociedade civil, ensinava a doutrina, "pode ser destituída de qualquer economicidade. É que ela pode se dirigir a fins não econômicos, como acontece quando tem intuitos religiosos, culturais, etc. Mas, para a sua formação, podem os sócios contribuir com dinheiro ou com outros recursos apreciáveis economicamente. Isso sucede, em regra, quando são lucrativos os fins que ela procura atingir. Porque, por esse fato, a sociedade não deixa de ser civil"3. As sociedades civis também poderiam se revestir de uma das formas de sociedade comercial, salvo a anônima. E nessa hipótese deveriam obedecer "aos preceitos legais que dão disciplinação a essa modalidade societária. Mas só naquilo que não contrariar o Código Civil (art. 1.364). Assim é exatamente porque não se transforma em sociedade comercial. Continua, pelo contrário, com sua índole especial, ou própria. E prosseguirá obedecendo às regras do direito civil"4. Esse tipo societário era utilizado especialmente  para a prática de atos não enquadráveis no conceito de "atos de comércio", como acontecia  com as  sociedades constituídas apenas para o exercício da profissão, notadamente no caso das pessoas jurídicas uniprofissionais, de que é exemplo a sociedade de advogados, que é formada justamente para "permitir ou facilitar a 'colaboração recíproca' entre si dos sócios-advogados e demais advogados a ela vinculados, 'para a disciplina do expediente e dos resultados patrimoniais auferidos na prestação dos serviços' por eles individualmente realizados para seus clientes, como enunciava o art. 77, caput, da lei 4.215, de 1963"5.  Sua única finalidade é "possibilitar que os advogados nela reunidos (como sócios, associados ou empregados), possam exercê-la (a advocacia) de modo mais racional e organizado do que o fariam isoladamente"6. Tendo em vista as grandes transformações no exercício profissional autônomo, os profissionais liberais em geral, não apenas os advogados, não conseguem mais desempenhar sua atividade laboral de forma isolada. Dificilmente conseguem exercer o seu ofício em caráter personalíssimo ou exclusivamente artesanal. É por meio da sociedade que a pessoa natural do profissional liberal exerce o seu labor e garante a sua subsistência.  Até mesmo porque o desempenho da profissão é prerrogativa exclusiva do ser humano, enquanto humano. Pessoa jurídica não exerce a profissão, razão pela qual, nas sociedades de profissionais liberais, a sociedade só existe em razão da atuação personalíssima de seus sócios. Com a entrada em vigor do Código Civil atual, as sociedades civis tornaram-se sociedades simples, em oposição às sociedades empresárias. Estas são as pessoas coletivas que exercem a "empresa", nos termos descritos no caput do art. 966 do CC, dispositivo que traz os elementos conceituais, tanto do empresário individual (pessoa natural), como do empresário coletivo (sociedade empresária). Empresa é uma atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços, exercida pelo empresário, que é o sujeito responsável pela organização dos fatores da produção, organização esta que assume prevalência sobre a laboração pessoal do sujeito. Nas sociedades empresárias, o atuar individual dos sócios é suplantado pela organização dos fatores da produção, que se torna mais importante do que a sua atividade pessoal. Enquanto simples, por outro lado, são as sociedades cujo objeto social  consiste no exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, caracterizadas pela preponderância da atuação pessoal dos sócios na consecução do objeto social. Uma distinção importante entre ambas é o sistema de registro dual, um para a sociedade simples e outro para as sociedades empresárias. A sociedade empresária procede ao registro de seus atos no Registro Público de Empresas Mercantis (RPEM), a cargo das Juntas Comerciais, e tem o privilégio de requerer falência e recuperação; ao passo que a sociedade simples, tanto quanto as antigas sociedades civis, registra-se no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (RCPJ) e não se submete à legislação falimentar. Excetuam-se as sociedades cooperativas, que são sociedades simples sujeitas à inscrição nas juntas comerciais. As sociedades profissionais, exatamente porque não exercem a "empresa", não devem se submeter, compulsoriamente, ao regime jurídico mercantil, necessitando de um tipo societário próprio, regido pelo direito comum. O profissional liberal, nas grandes metrópoles, há muito tempo é compelido à socialização dos seus serviços, deixando de prestá-los na pessoa natural e passando fazê-lo nas sociedades prestadoras de serviços, associado a outros colegas de profissão. Trata-se de uma tendência irrefreável que atinge, não apenas médicos ou advogados, mas contadores, engenheiros, publicitários, arquitetos e todos os que exercem profissão intelectual. Esses profissionais não se tornam "empresários" somente porque decidiram unir os seus esforços por meio de uma pessoa jurídica. Importante destacar que não desfigura a sociedade simples, como também não descaracterizava a sociedade civil, o fato de o respectivo contrato social prever distribuição de lucros, rateio de despesas e concurso de auxiliares. Apesar da grande utilidade desse tipo societário, especialmente para o ofício dos profissionais liberais,  a  Câmara dos Deputados acabou de aprovar o projeto de conversão da MP 1.040/21 (Projeto de Lei 15/21), originalmente editada para a facilitação da abertura de empresas e  proteção de acionistas minoritários, com a inclusão de diversos "jabutis"7 , entre os quais uma desconcertante e desestruturante alteração do Código Civil,  para extinguir a sociedade simples, acabando com a distinção em relação à sociedade empresária e determinando que todas as sociedades ficariam sujeitas às normas empresariais, incluindo o registro em Junta Comercial, independentemente de seu objeto8.  Essas mudanças não constavam da redação original da MP, cujo objetivo era "a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na Lei nº 10.406". Ou seja, se aprovado o projeto de conversão (PL 15/21), tal como remetido ao Senado, todas as sociedades no Brasil serão empresárias. O parecer aprovado na Câmara, e ora submetido à apreciação do Senado, desnaturou o intuito da MP, fazendo nascer um mar de dúvidas e incertezas no que tange ao exercício de determinadas atividades econômicas. Além de alterar o art. 983 e revogar os arts. 982 e 1.000, alusivos à sociedade simples, também extingue a EIRELI, revogando o inciso VI do art. 44 e o art. 980-A, todos do Código Civil9. No aludido parecer, as modificações no Código Civil são justificadas com concisão simplória e inversamente proporcional à magnitude das mudanças e ao impacto de suas consequências: Alterações ao Código Civil: com intuito de trazer maior racionalidade à definição de sociedade e à diferenciação entre os tipos de sociedade existentes em lei e ao seu local de registro, promovemos alterações pontuais ao Código Civil. Com isso, pomos fim à figura da sociedade simples e, no Capítulo em que elas estavam previstas, inserimos regras gerais de sociedades, a serem observadas por todas as sociedades empresárias. Aproveitamos a oportunidade para tornar definitiva a substituição da figura das Eirelis pela sociedade limitada unipessoal, avanço incialmente promovido pela Medida Provisória da Liberdade Econômica e que aperfeiçoamos no PLV.  A par de despir aquele que exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, portanto atividade não empresarial nos termos do parágrafo único do art. 966 do CC/2002,  de um tipo societário próprio, obrigando-o, caso queira organizar-se como pessoa jurídica,  à submissão ao regime jurídico empresarial, contrariando o próprio parágrafo único do art. 966, o projeto de conversão da MP 1.040 promove nefasta modificação no inciso V do art. 997 e no art. 1007 do CC, para restringir as hipóteses de contribuição do sócio ao capital social com serviços, uma das marcas das antigas sociedades civis e das atuais sociedades simples, apenas para as sociedades em nome coletivo e em conta de participação. Na disciplina atual, o chamado "sócio de serviço" só é admitido nas sociedades simples, precisamente o tipo societário utilizado para o exercício das profissões liberais. Na redação proposta, a contribuição social exclusivamente com serviços, vale dizer com o mister do profissional, só será possível nas sociedades em nome coletivo e em conta de participação. Ora, como a SCP é uma sociedade despersonalizada, a única forma de um profissional liberal se organizar coletivamente para o exercício da profissão, valendo-se do próprio trabalho como contribuição ao capital social, se fará por meio de uma sociedade em nome coletivo, que é um tipo de sociedade empresária. A situação torna-se especialmente problemática para as sociedades de advogados, nas quais a admissão de sócios de serviço é frequente, mas que estão proibidas de adotar quaisquer das formas de sociedade empresária, por força dos arts. 15 e 16 da lei 8.906/9410. Por isso, ensina Alfredo Assis Gonçalves Neto, "o seu enquadramento, no sistema normativo do Código Civil, deve dar-se no campo das sociedades personalizadas, como tipo especial de sociedade simples, por força do que estabelecem os arts. 982 e 966, parágrafo único, do mesmo Código, sujeita às regras especiais previstas no estatuto da Advocacia, em seu Regulamento Geral e nos Provimentos do Conselho Federal da OAB, bem como às demais disposições do Código Civil relativas à sociedade simples, naquilo que não contrariem as normas especiais (CC, art. 983, parágrafo único)"11. A sociedade de advogados, prossegue o autor, "não pode apresentar forma ou característica mercantis (empresariais), a teor do art. 16, caput, do Estatuto da OAB, o que significa que não é possível constituí-la como uma sociedade limitada, anônima, em nome coletivo ou ainda, em comandita simples ou por ações ou, ainda, cooperativa"12. Ora, extinta a sociedade simples, tal como proposto no projeto de conversão, as sociedades de advogados estarão no limbo, excluídas do regime geral, à fata de tipo societário próprio, e impossibilitadas de se enquadrarem na tipologia das sociedades empresárias. Como fica a situação dos sócios de serviço, já que não estão tratados na legislação especial (Lei 8.906/94)?  A distribuição de resultados a essa categoria será reconhecida pelo Fisco, para fins de tributação? E quanto aos regimes tributários especiais, como é o caso daquele previsto no decreto-lei 406/1968, que instituiu tributação diferenciada de ISS para sociedades de profissionais?13 As sociedades já constituídas, com sócios de serviço, ainda que possam se abrigar sob o manto do ato jurídico perfeito, poderão admitir novos sócios de serviço? A Administração Tributária reconhecerá o direito adquirido das sociedades constituídas anteriormente ou valerá a máxima pretoriana de que "não existe direito adquirido a regime jurídico"? O projeto de conversão vai nessa linha, de desrespeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, impondo, v.g., que as sociedades simples existentes, ao promoverem qualquer mudança em seus contratos sociais, "deverão se adaptar às disposições desta Lei" e migrar do Registro Civil de Pessoas Jurídicas para o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (art. 41, §§ 1º e 2º). E inobstante "não tenham a necessidade de promover alterações em seus contratos sociais, deverão se adaptar às disposições desta Lei dentro do prazo de 5 anos, contados a partir da data da publicação desta Lei" (art. 41, § 3º). E se não o fizerem, mantendo o registro dos seus atos no RCPJ? Tornam-se sociedades irregulares? Já tivemos essa discussão quando da entrada em vigor do CC/02, com a imposição de adaptação dos contratos sociais anteriores, prevista no art. 2.03114.  Vamos repristinar, agora, essa celeuma? É essa a "desburocratização societária" a que alude o art. 1º do projeto de conversão?15 As reformas propostas, ao contrário, do que se poderia esperar de uma iniciativa legislativa que visava facilitar a abertura de empresas, com o consequente incentivo à atividade econômica, dificulta sobremaneira o exercício das profissões liberais, com grave oneração de sua carga tributária, além de promover um perigoso desajuste no sistema do Código Civil. Isso porque, se por um lado extingue a sociedade simples, por outro mantém a distinção entre operações empresariais (caput do art. 966) e não empresariais (parágrafo único do art. 966), levando ao paradoxo, ou de se admitir atividades econômicas que não podem ser desempenhadas por sociedades, ou, do contrário, admitir que sociedades empresárias tenham por objetivo social atividades não empresariais (intelectuais, científicas, literárias ou artísticas). Torna-se, assim, premente que o Senado Federal rejeite o Projeto de Lei de Conversão da MP 1.040 ou, ao menos, promova mudanças no texto, excluindo os verdadeiros desajustes do Código Civil, veiculados no art. 44 e no inciso XXXI do art. 57, evitando, desse modo, abalo à segurança jurídica, com novos entraves à liberdade econômica e à livre iniciativa, sem falar no ressurgimento de velhas controvérsias já superadas pela doutrina e pela jurisprudência. O Código Civil é um referencial legislativo, um instrumento de coordenação e integração do direito privado, não podendo ficar à mercê da sanha revogadora do legislador.   ______________ 1 Cf. MARCONDES, Sylvio. Problemas de direito mercantil. São Paulo: Max Limonad, 1970, p. 168. 2 CARVALHO SANTOS, J.M. Código Civil Brasileiro interpretado. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, p. 14. 3 Enciclopédia Saraiva do Direito. Coord. Rubens Limongi França. Vol. 70. São Paulo: Saraiva, 1977, pp.1-2. 4 Idem. 5 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade de advogados. 6ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Lex Editora, 2015, p. 37. 6 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 40. 7 No processo legislativo brasileiro, jabuti designa a inserção de norma alheia ao tema principal em um projeto de lei ou medida provisória enviada ao Legislativo pelo Executivo. Este termo surgiu por analogia ao ditado popular "jabuti não sobe em árvore" usado para expressar fatos que não acontecem de forma natural. Fonte: clique aqui) 8 Art. 39. O Capítulo I do Subtítulo II do Título II do Livro II da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a denominar-se "Das Normas Gerais das Sociedades". Art. 40. A partir da entrada em vigor desta Lei, fica proibida a constituição de sociedade simples. Parágrafo único. Será registrada na Junta Comercial a sociedade simples contratada antes da entrada em vigor desta Lei que ainda não tiver sido registrada. Art. 41. As sociedades simples que se encontram registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas na entrada em vigor desta Lei podem migrar, a qualquer tempo, por deliberação da maioria societária, para o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins. 9 Não se compreende em que medida facilitaria a abertura de novas empresas, a extinção pura e simples de uma modalidade de pessoa jurídica que tenderia a cair em desuso, como ocorreu com as sociedades em comandita. A EIRELI seria paulatinamente substituída pela sociedade limitada unipessoal, sem necessidade de revogação completa do tipo legal, com impacto direto em milhares de EIRELI's já constituídas e em operação. 10 Art. 15.  Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral (...) . Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar. 11 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedade de advogados. 6ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Lex Editora, 2015, p. 45. 12 Op. cit., p. 41. 13 É corriqueira, no Poder Judiciário,  a discussão em torno do regime especial de tributação do ISS previsto no  Decreto-Lei nº 406/1968, já apreciada, inclusive, pelo STF, resultando na aprovação do Tema 918: "Inconstitucionalidade de lei municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa ou per capita em bases anuais na forma estabelecida pelo Decreto-Lei n. 406/1968 (recepcionado pela Constituição da República de 1988 com status de lei complementar nacional)". Sobre a exclusão do regime especial das sociedades simples que se constituíram   sob a forma limitada, assim vem decidindo o STJ: "TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECOLHIMENTO DO ISSQN PELA ALÍQUOTA FIXA. REGIME DO ARTIGO 9º, § 3º, DO DECRETO-LEI Nº 406/1968. SERVIÇO PRESTADO EM CARÁTER PESSOAL. SOCIEDADE CONSTITUÍDA NA FORMA LIMITADA. 1. O direito à tributação privilegiada do ISSQN, nos termos do art. 9º, § 3º, do Decreto-Lei n. 406/68, demanda a análise da atividade efetivamente exercida pela sociedade, assim como a verificação de que os fatores de produção, de circulação e de organização empresarial não se sobreponham à atuação profissional dos sócios, sendo irrelevante o fato de a pessoa jurídica ser constituída na forma de sociedade limitada"(AgInt-REsp 1.854.652; Proc. 2019/0313431-0; RS; Primeira Turma; Rel. Min. Sérgio Kukina; DJE 01/07/2021). 14 Para se ter uma ideia da controvérsia que grassa em torno dessa questão, foram aprovados dois enunciados durante a IV Jornada de Direito Civil do CJF, flexibilizando a obrigatoriedade de adaptação dos atos constitutivos das sociedades de que tratava o art. 2.031. O Enunciado n. 394 deixa claro que, "ainda que não promovida a adequação do contrato social no prazo previsto no art. 2.031 do Código Civil, as sociedades não perdem a personalidade jurídica adquirida antes de seu advento". Já o Enunciado n. 395 dispõe que "a sociedade registrada antes da vigência do Código Civil não está obrigada a adaptar seu nome às novas disposições". 15 O mesmo problema, de desrespeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido ocorre com a EIRELI, pois o projeto determina a sua transformação automática "em sociedades limitadas unipessoais independente de qualquer alteração em seu ato constitutivo" (art. 42).
A sanção da lei 14.181, de 1º de julho de 2021, representa a conclusão de um longo iter histórico, de quase duas décadas, no qual o direito brasileiro incorporou um neologismo já presente em outros sistemas jurídicos1 para identificar uma nova realidade do mercado de consumo, o superendividamento. Afinal, a noção de dívida ou endividamento não exige maiores digressões para sua adequada compreensão comum ou técnica. O prefixo super denota algo superior, acima do comum ou próprio da normalidade das relações jurídicas e econômicas.  O endividamento é uma característica da sociedade de consumo contemporânea, baseada no crédito facilitado aos consumidores, sem a exigência de garantias tradicionais, vinculadas ao patrimônio, sobretudo para viabilizar a aquisição de produtos e serviços pelo contingente de pessoas que não disponha de recursos para adquiri-los à vista. O Código de Defesa do Consumidor, em sua redação original, já previa expressamente, no seu art. 52, deveres específicos aos fornecedores, no caso do "fornecimento de produtos ou serviços que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor." Reconhecia aí a existência de dois contratos vinculados entre si, o de compra e venda do produto ou de prestação de serviço, e o de outorga de crédito, espécie de mútuo ou financiamento para viabilizar o primeiro.  Ocorre que a regra prevista pelo legislador do CDC, em 1990, tornou-se insuficiente frente ao avanço da oferta de crédito e crescimento dos meios de acesso a estes serviços, não apenas em agências bancárias, mas junto a grandes lojas, agências de correios ou lotéricas, supermercados, dentre outros canais. Também a oferta de crédito por telefone, com ênfase em idosos e aposentados, as modalidades de crédito consignado, com reserva de parte dos salários ou proventos para pagamento da dívida, sem interferência do devedor, e a popularização de garantias fiduciárias para o consumo (e.g. alienação fiduciária), contribuíram para a popularização do crédito. Segundo dados de 2017, cerca de 85,5% da população brasileira com idade superior a 15 anos mantinha algum relacionamento bancário,2 sendo que delas, 61,8% tendo contratado com mais de uma instituição financeira.3 Do total de transações financeiras, ainda em dados de quatro anos atrás, 66% eram realizadas por meios remotos.  A inclusão financeira e o acesso ao crédito são decisivos para o desenvolvimento. Porém, destaca-se que sua oferta e concessão devem se dar de forma responsável, observando os deveres de informação e esclarecimento dos tomadores de crédito, assim como a previsão de meios que favoreçam o efetivo adimplemento das dívidas. A própria Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) emitiu, em 2019, uma Recomendac¸a~o sobre Protec¸a~o do Consumidor em Cre´dito de Consumo4, alertando para os efeitos nocivos do endividamento excessivo, tomando em conta tanto suas repercussões pessoais para o próprio consumidor, quanto para o sistema econômico como um todo (daí a noção de "endividamento de risco" adotada pela regulação bancária).5  É neste contexto que o superendividamento de consumidores é assumido como uma característica estrutural da sociedade de consumo contemporânea, tendo sua disciplina legislativa originalmente se estabelecido em países com alto grau de desenvolvimento, embora os efeitos da proteção ao superendividado sejam socialmente potencializados em países com maior grau de pobreza, por razões evidentes.  No Brasil, a lei 14.181/21 tem sua origem primária na sugestão de um anteprojeto elaborado por Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Danilevicz Bertoncello, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.6 Incorporado aos debates sobre o direito do consumidor a partir de então, quando da instituição, no Senado Federal, da Comissão de Juristas para atualização do Código de Defesa do Consumidor, deu lugar ao Projeto de Lei 281/12, proposto pelo então Presidente da Casa, Senador José Sarney. Após longa tramitação legislativa, que mobilizou os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e juristas de diferentes origens,7 o projeto foi aprovado, sucessivamente, no próprio Senado Federal, por unanimidade, em 2015, partindo para a Câmara dos Deputados, onde, após intensa negociação foi aprovado com modificações, em 2021. Retornando ao Senado Federal, em pouco menos de um mês foi novamente aprovado por unanimidade, e encaminhado à sanção presidencial.  A lei 14.181/21, ao disciplinar a prevenção e o superendividamento de consumidores, implica alterações em diversas disposições do CDC. Inicialmente, inclui novos princípios à Política Nacional das Relações de Consumo (art. 4º, IX e X), instrumentos para sua execução (art. 5º, VI e VII) e direitos básicos ao consumidor (art. 6º, XI a XIII). Adiante, especifica novas cláusulas abusivas no rol do art. 51 do CDC (incisos XVII e XVIII), e inclui um novo e amplo capítulo ao Código, intitulado "Da prevenção e do tratamento do superendividamento (Capítulo VI-A), com os artigos 54-A a 54-G. Por fim, inclui ao final do Título III do Código ("Da Defesa do Consumidor em Juízo"), um novo capítulo intitulado "Da conciliação no superendividamento (Capítulo V), que a rigor trata do procedimento judicial de repactuação de dívidas, iniciada com a conciliação (art. 104-A), que também poderá ser promovida, administrativamente, pelos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 104-C). Todavia, sendo inexitosa a conciliação, conferindo ao juiz o poder de instaurar, a pedido do consumidor, processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório (art. 104-B).  Houve, por outro lado, alguns vetos por parte do Presidente da República (art. 51, XIX, art. 54-C, I e parágrafo único, art. 54-E, que seriam incluídos no CDC, e art. 4º da própria lei 14.181/21, dispondo sobre sua vigência), cuja apreciação será feita pelo Congresso Nacional.  Mais representativos são os que se dirigiram aos contratos de outorga de crédito com liquidação mediante consignação em folha de pagamento do devedor. Neste caso, foi vetado integralmente o art. 54-G, que previa limite de margem consignável (30% com extensão de mais 5% para o caso de cartão de crédito) e procedimentos para a contratação (inclusive assegurando o direito de arrependimento), visando disciplinar uma das modalidades de crédito que, na experiência brasileira, caracteriza-se pelo desrespeito e flexibilidade da margem consignável fixada em regulamento, bem como dos obstáculos impostos ao consumidor para resolver o contrato ou suspender o pagamento. Preservou-se apenas a exigência de que a formalização do contrato se dê após a consulta pelo fornecedor junto à fonte pagadora, sobre a existência de margem consignável (art. 54-G, §1º), sem, contudo, contar com sanção por descumprimento, objeto das disposições vetadas. Resta a expectativa que o Congresso Nacional possa corrigir este notável erro de avaliação do Presidente da República, ao deixar sem disciplina legal um dos principais meios de endividamento dos consumidores que, sem limites precisos, pode retirar-lhe diretamente os recursos de subsistência decorrentes da sua remuneração pelo trabalho.  Examinamos, a seguir, algumas das principais disposições da nova lei.  Novos princípios, instrumentos e direitos básicos do consumidor relativos à prevenção e tratamento do superendividamento  Uma das bases da disciplina legal do superendividamento e suas consequências parte do princípio de que a concessão do crédito responsável e a definição de um regime de insolvência de pessoas físicas atende a diferentes objetivos, desde o auxílio a devedores honestos, mas desafortunados, como também aos próprios credores, que podem reembolsar-se em condições de relativa igualdade, ao menos em parte do que pagaram, com redução de custos de cobrança, e depreciação do patrimônio do devedor, a redução de prejuízos decorrentes de uma avaliação de risco imprecisa, bem como de outros custos sociais decorrentes do inadimplemento (com efeitos na saúde pessoal dos consumidores, aumento da criminalidade, instabilidade familiar, desemprego, dentre outros fatores).8  Em razão disso é que o art. 4º do CDC passa a contar com dois novos princípios: o "fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores" (inciso IX) e a "prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor" (inciso X).  A educação financeira do consumidor é objetivo a ser alcançado em comum pelo Estado, pela sociedade e pelos próprios fornecedores. Registre-se: não se trata de reconhecer a culpa dos consumidores pelo próprio superendividamento (ou de que os pobres são responsáveis pela própria pobreza);9 mas a constatação de que o atendimento ao direito básico do consumidor à informação adequada e clara, em relação aos serviços financeiros, supõe a formação de sua capacidade de bem compreender suas características e as consequências da decisão de contratá-los.  Já o segundo princípio dá conta da dimensão social da lei, e da máxima projeção dos direitos fundamentais sobre a relação de consumo: o objetivo da prevenção e tratamento do superendividamento é o de evitar a exclusão social do consumidor, permitindo-lhe um "novo começo".10 Trata-se de identificar no superendividamento, sobretudo dos mais pobres,11 que contam exclusivamente com o acesso ao crédito financeiro para satisfazer necessidades urgentes ou complementar eventualmente a renda, um fator de restrição a bens essenciais à vida, afetando-lhes interesses existenciais, e não apenas econômicos.  Esta compreensão vincula-se então com a própria preservação do mínimo existencial tanto na repactuação das dívidas, quanto na concessão de crédito, o que passa a ser previsto como novo direito básico do consumidor, ainda que seu conteúdo preciso deva ser definido por norma regulamentar (novo art. 6º, XII, do CDC).12 Em essência, trata-se de proteger-se a parcela dos rendimentos do consumidor necessárias à satisfação das suas necessidades básicas e as de sua família.  Da mesma forma, dentre os instrumentos para execução da Política Nacional das Relações de Consumo, foram incluídos no art. 5º do CDC dois incisos prevendo a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural (inciso VI), e de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (inciso VII). Neste caso, trata-se de um dos desafios para efetividade da norma, que é a sua implementação na estrutura dos diversos órgãos do Poder Judiciário, da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de arranjos que promovam, especialmente, a mediação e negociação entre o consumidor superendividado e seus credores. Não se descarta, inclusive, que conte com a participação dos próprios fornecedores (assim o novo art. 104-C), estimulando e facilitando tais práticas quando se identifique nelas um meio eficiente para recuperação, no todo ou em parte, dos respectivos créditos, e a própria preservação e fidelização do consumidor.  Registre-se, ainda, a definição de novos direitos básicos do consumidor no art. 6º do CDC. Ao lado do já mencionado direito à preservação do mínimo existencial (novo inciso XII), também se reconhece a "garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;" (novo inciso XI). Por esta nova regra é reconhecido um direito subjetivo do consumidor a: a) garantia de práticas de crédito responsável; b) educação financeira; c) prevenção e tratamento do superendividamento; d) revisão e repactuação de dívidas pelo consumidor em situação de superendividamento. No tocante a esta última hipótese, há consequências práticas precisas, assegurando ao consumidor superendividado os direitos, exceções, pretensões e ações inerentes. Assim, por exemplo, nada impede, no caso de execução da dívida, que o consumidor apresente exceção visando o reconhecimento da situação de superendividamento e a conciliação, ou que, proposta a ação de superendividamento, o juízo atraia as demais que versem sobre dívidas passíveis de revisão ou repactuação.  Aproveitou, o legislador, também para especializar o direito à informação sobre preços, exigindo que seja prestada segundo unidade de medida, "tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso." É norma que acrescenta ao já disposto no art. 6º, III, do CDC, ainda que sem maior destaque.  Novas cláusulas e práticas abusivas  A Lei 14.181/2021 inclui, no rol do art. 51 do CDC, novos tipos de cláusulas abusivas. Notadamente duas: a) as que condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário (inciso XVII); e b) as que estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores (inciso XVIII). No primeiro caso, trata-se de clara reação do legislador a uma das tendências equívocas da desjudicialização de conflitos, em voga entre nós, que vem condicionando, sem previsão legal, a proposição de ações pelos consumidores, ao prévio registro da pretensão perante serviços governamentais ou não, de reclamações, e a respectiva negativa do fornecedor. Resulta da confusão entre iniciativas louváveis e de grande importância, como os próprios esforços de desjudicialização e bons serviços de mediação e solução de conflitos (como p.ex. o portal 'Consumidor.gov', da Secretaria Nacional do Consumidor), e a imposição de um obstáculo ao exercício do direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da Constituição).  A outra hipótese, do inciso XVIII, visa impedir que o consumidor que venha a purgar a mora ou recorrer à conciliação no caso de superendividamento, sofra prejuízo em relação aos serviços que tenha contratado, os quais deverão ser reestabelecidos imediatamente, em sua integralidade.  O inciso XIX, previsto no projeto de lei aprovado, foi objeto de veto pelo Presidente da República. Definia como abusivas as cláusulas que previssem "a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código ao consumidor domiciliado no Brasil." As razões do veto limitam-se a apontar eventual contrariedade ao interesse público e, em termos genéricos, indicar a restrição à competividade e aumento da produtividade, limitando opções aos consumidores brasileiros em relação a empresas domiciliadas no exterior, indicando que seria "impraticável que empresas no exterior conheçam e se adequem às normas consumeristas nacionais." A rigor, a regra em questão especializa a própria noção de ordem pública de que se reveste o Código de Defesa do Consumidor (art. 1º), de modo que sua previsão teria caráter pedagógico. Mantido o veto, remanesce o efeito do próprio art. 1º do CDC; se afastado pelo Congresso Nacional, reforça o caráter de ordem pública de que se reveste o Código. Sua interpretação, naturalmente, não se realiza sem as demais normas de conexão próprias do direito internacional privado, em especial a que define a lei aplicável às obrigações (art. 9ºda Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).  Em relação às práticas abusivas, a inserção do art. 54-G prevê, "sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código", novas condutas vedadas ao fornecedor de crédito. Envolvem a cobrança ou débito em conta de compra realizada com cartão de crédito, e que seja objeto de contestação (inciso I); a recusa da entrega ao consumidor e demais coobrigados da minuta do contrato em papel ou suporte duradouro, antes da sua celebração, e após, de cópia do contrato celebrado (inciso II); e a imposição de impedimento ou dificuldade, no caso de uso fraudulento do cartão de crédito ou similar de que o consumidor seja vítima, para que peça anulação ou bloqueio do pagamento, bem com a restituição dos valores recebidos indevidamente (inciso III).  Novas regras para oferta de crédito e prevenção ao superendividamento  A introdução de um novo capítulo (VI-A) ao Título I do CDC, intitulado "Da prevenção e do tratamento do superendividamento", já no início, em seu art. 54-A, §1º, consigna a definição legal de superendividamento como "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação." A definição compreende diferentes elementos. Um primeiro, elemento subjetivo: o consumidor superendividado, titular dos direitos, pretensões, ações e exceções previstos na lei, é pessoa natural e de boa-fé. Exclui-se da definição legal, portanto, tanto os consumidores pessoa jurídica, quanto os que tenham contraído dívidas mediante fraude ou má-fé, o que inclui o comportamento daquele que as contrata já com o propósito de não adimplir.13 Um segundo, elemento objetivo: as dívidas sobre as quais incidem as normas do CDC, inclusive as relativas à conciliação, revisão ou repactuação são aquelas decorrentes de relações de consumo (dívidas de consumo),14 não abrangendo, portanto, as que tenham outra natureza, como é o caso, por exemplo, de dívidas tributárias, decorrentes de relações familiares (ex. obrigações alimentares decorrentes de parentesco), dentre outras. Ainda, para fins didáticos, permita-se identificar um terceiro aspecto, que se denomina aqui, elemento teleológico: a impossibilidade de pagamento se dá em vista do comprometimento do mínimo existencial do consumidor; logo, não será qualquer situação de endividamento abrangida pela lei, senão aquela que, comprovadamente, possa comprometer a subsistência do consumidor. Aí, inclusive, a exclusão das dívidas contraídas para aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor (art. 54, §3º, in fine).  Na oferta do crédito, acrescenta-se às informações já previstas no art. 52 do CDC, um rol de novas informações específicas, visando o esclarecimento do consumidor, inclusive no tocante à onerosidade do crédito e todos os valores cobrados, ao prazo da oferta, que deve ser no mínimo de 2 dias, permitindo a reflexão, e sobre o direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito. Da mesma forma, define-se um standard mínimo de informação comum à oferta de crédito, na venda a prazo ou na fatura mensal - em referência provável ao cartão de crédito -, exigindo que conste nelas o custo efetivo total, a identificação do agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento (novo art. 54-B).  Ainda em relação à oferta de crédito, publicitária ou não, inclui-se no Código a vedação para que, expressa ou implicitamente: a) se indique que a operação de crédito será concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor (art. 54-C, II); b) oculte ou dificulte a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo (art. 54-C, III); c) seja realizado mediante assédio ou pressão ao consumidor para contratar, principalmente quando se trate de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada, ou se a contratação envolver prêmio (art. 54-C, IV); e d) condicione o atendimento de pretensões do consumidor, ou início das tratativas, à renúncia ou desistência de demandas judiciais, pagamento de honorários advocatícios ou depósitos judiciais (art. 54-C, V).  Trata-se de promover, já na fase prévia à formação do contrato, o crédito responsável, tomando como critério a avaliação da capacidade de pagamento do consumidor que contrai a dívida, bem como a compreensão sobre as consequências da sua decisão. Igualmente, consagra a proibição do assédio de consumo - inspirado na legislação europeia (art. 9º da Diretiva 2005/29/CE, sobre pra´ticas comerciais desleais),15 com especial proteção aos consumidores com vulnerabilidade agravada. Neste particular, são notórias na experiência brasileira atual, as práticas maliciosas na oferta de crédito a idosos, mediante telefonemas sucessivos e prestação de informações confusas ou em velocidade e conteúdo ordenados de tal modo a impedir sua adequada compreensão. A menção especial aos analfabetos igualmente merece destaque, considerando a realidade brasileira em que, segundo os últimos dados disponíveis, 6,8% das pessoas com mais de 15 anos de idade ostentam esta condição, concentrando-se um índice significativo entre os maiores de 60 anos (18,6% do total). Relevante o registro, ainda, para traçar os efeitos do assédio de consumo, de que o equivalente a 51,2% da população brasileira com idade igual ou superior a 25 anos não completaram a educação escolar básica.16 Já o inciso V, do art. 54-C, ao proibir que se condicione o atendimento de pretensões do consumidor ou início de tratativas a renúncia ou desistência de demandas judiciais, pagamento de honorários advocatícios ou depósitos judiciais, é regra que se relaciona a oferta de crédito feita, geralmente, no contexto de uma renegociação de dívida existente, inclusive para permitir seu adimplemento; situação que pode dar causa a uma sucessão de contratos de crédito, de modo a favorecer o superendividamento. Visa-se impedir, neste caso, o abuso do credor na restrição ao exercício regular de direitos pelo consumidor.  Houve dois vetos do Presidente da República a disposições do art. 54-C. O primeiro relativo ao seu inciso I, que proibia, na oferta do contrato, "fazer referência a crédito 'sem juros', 'gratuito', 'sem acréscimo' ou com 'taxa zero' ou a expressão de sentido ou entendimento semelhante". A justificativa para o veto é de que, de fato, há fornecedores que oferecem crédito a consumidores, "incorporando os juros em sua margem sem necessariamente os estar cobrando implicitamente", ou mesmo empresas capazes de ofertar crédito sem juros. O que a justificativa para o veto ignora é o fato de que, na oferta de consumo, a utilização das expressões vazadas em caráter exemplificativo pela lei se dá, precisamente, para ocultar do consumidor a existência de juros ou acréscimos, impedindo seu esclarecimento sobre a própria existência do crédito, comum, especialmente, no varejo popular. Confunde, igualmente, o fato de que a norma em questão não proíbe a oferta do crédito nos termos em que livremente disponha o fornecedor (não afeta a liberdade negocial do fornecedor), mas apenas que faça referência às condições reais do negócio a ser celebrado, em caráter exemplificativo, para que não resulte indução do consumidor em erro. Espera-se, neste particular, a rejeição do veto pelo Congresso Nacional, valorizando-se a útil e prática disposição aprovada. O parágrafo único do art. 54-C, por mencionar que que o inciso I não se aplicava à oferta para pagamento por meio de cartão de crédito, acabou sendo vetado por arrastamento.  Volta-se a lei, igualmente, às condutas exigidas do fornecedor no caso da concessão de crédito, tanto em relação ao dever de informação e esclarecimento do consumidor (novo art. 54-D, I), assegurando-lhe, inclusive, conhecimento sobre a identidade do fornecedor do crédito (novo art. 54-D, III), e o dever deste em proceder a avaliação das condições subjetivas do consumidor e sua capacidade de endividamento (novo art. 54-D, II). Novidade relevante diz respeito às sanções previstas no caso de descumprimento destes deveres: poderão incluir a redução de juros e encargos da dívida ou de qualquer acréscimo ao valor principal, e a dilação do prazo de pagamento, mediante decisão judicial, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos que venham a causar para o consumidor.  Merece atenção ainda, o reconhecimento legal da vinculação entre fornecimento de produto ou serviço e o contrato de concessão de crédito que viabilize o pagamento do primeiro. Neste ponto, o novo art. 54-F procurou exaurir as possibilidades de classificação. Dispõe: "São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito: I - recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito; II - oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado." A rigor, a conexidade contratual aqui se dá em razão da dependência entre os contratos. A existência de um justifica-se pela do outro, daí a coligação. A referência a contrato principal e acessório não é a mais precisa, embora vise reforçar a noção de interdependência. O crédito se outorga para pagar o preço, podendo ser dito, igualmente, que só há a compra e venda de consumo ou a prestação de serviços, porque o contrato de crédito viabilizou os recursos para pagamento pelo consumidor. Em termos conceituais a regra explicita o que já era afirmado por doutrina e jurisprudência.  Os critérios para reconhecimento da conexidade devem ser destacados. Resultam do fato de o próprio fornecedor do produto ou serviço participar da oferta do crédito, na preparação ou conclusão do contrato, ou ainda quando a oferta se realize no "local da atividade empresarial" do fornecedor do produto ou serviço, ou onde o contrato principal for celebrado. Abrange, naturalmente, os contratos celebrados pela internet. Sua utilidade, resulta, especialmente, da vinculação de ambos os contratos quanto ao seu destino: o exercício do direito de arrependimento em relação a um implica também na resolução do outro; a resolução por inadimplemento do contrato de fornecimento do produto ou serviço, gera a pretensão do consumidor para resolver o relativo a outorga do crédito; assim também a invalidade ou ineficácia do contrato de fornecimento do produto ou serviço afeta o de outorga de crédito, hipótese em que é assegurado ao fornecedor deste último o direito à restituição dos valores entregues ao consumidor, inclusive dos tributos incidentes (art. 54-F, §4º).  O procedimento de conciliação e tratamento do superendividamento  Dos vários aspectos da nova legislação, deve contar com sensível repercussão, em termos práticos, a disciplina do procedimento de repactuação de dívidas, por intermédio de conciliação entre o superendividado e seus credores, ou sendo inexitosa, o procedimento de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Concebido sob influência do direito comparado, mas também a partir da experiência de mais de uma década do Poder Judiciário em diversos estados brasileiros,17 o novo capítulo VI-A, introduzido no CDC, organiza um procedimento com tendência a substituir, com méritos, a declaração judicial de insolvência, regulada pelo art. 748 e seguintes do CPC de 1973, cuja vigência foi preservada pelo art. 1.052 do CPC de 2015 - porém em notório desuso.  A primeira fase, da conciliação, poderá ser feita judicialmente, quando o consumidor requeira ao juiz a instauração do processo de repactuação de dívidas (novo art. 104-A), ou extrajudicialmente, pelos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor - os Procons (novo art. 104-C). Sendo instaurado processo judicial, prevê-se a realização de audiência de conciliação, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado pelo juízo, com a presença dos credores. Nela o consumidor poderá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo para satisfação da dívida de 5 anos, "preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e formas de pagamento originalmente pactuadas". Admite-se, portanto, no plano, sobretudo a dilação do prazo, preservando-se as demais características da dívida.  A conciliação extrajudicial tanto pode decorrer de reclamações individuais nos órgãos de defesa do consumidor, mediante a promoção de audiência global de conciliação, chamando todos os demais credores, quanto da atuação destes órgãos, em convênio com instituições credoras e suas associações representativas. Os acordos que resultem da conciliação administrativa, de sua vez, devem incluir a data a partir da qual será providenciada a exclusão do devedor dos bancos de dados de inadimplentes, e o compromisso do consumidor de não agravar sua situação de superendividamento, contraindo novas dívidas.  No caso da conciliação judicial, o não comparecimento injustificado dos credores ou de seus representantes, com poderes para transigir, na audiência de conciliação, importará suspensão de exigibilidade do crédito e interrupção dos encargos da mora, bem como sua preterição para o final na ordem de credores a receberem seus créditos de acordo com o plano de pagamento. Trata-se, sem dúvida, de forte incentivo a sua participação.  Havendo conciliação com qualquer credor, deverá ser homologada pelo juiz, em decisão na qual conste a descrição do plano de pagamento da dívida, tendo "eficácia de título executivo e força de coisa julgada" (art. 104-A, §3º). Isso quer dizer que os termos da dívida, tal qual previstos no acordo homologado, não deve ser revisado, podendo seus efeitos serem resolvidos apenas no caso de descumprimento, pelo consumidor, das obrigações que assume, de abster-se do agravamento da sua situação (art. 104-A, §4º, IV).  Por outro lado, de modo a evitar o recurso reiterado ao procedimento por parte do consumidor do processo de repactuação de dívidas, há duas distinções relevantes expressas na lei: a) o pedido de repactuação não importará na declaração de insolvência civil; e b) novo pedido somente poderá ser feito após o prazo de 2 anos contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, ainda que se admita, conforme o caso, a possibilidade de eventual repactuação (art. 104-A, §5º).  A lei, ao dispor sobre o plano de pagamento das dívidas que resulta da conciliação, define que nele constarão medidas de dilação de prazo, redução de encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor (p.ex. juros), entre outras destinadas a facilitar o adimplemento. Igualmente, deverá dispor sobre a suspensão ou extinção das ações judiciais em curso que digam respeito às dívidas, o que notadamente visa abranger as pretensões do credor, assim como a data de exclusão dos bancos de dados restritivos de crédito, e a as obrigações que o consumidor assume visando não agravar sua situação (art. 104-A, §4º). Em relação ao plano judicial compulsório que terá lugar se frustrada a conciliação, não há previsão específica, nada impedindo que se sirva dos mesmos elementos.  A ausência de conciliação com um ou mais credores dá causa a que o consumidor possa requerer ao juiz a instauração de processo de revisão das dívidas cujo objeto abrange a revisão, integração e repactuação das dívidas remanescentes (que não tenham sido objeto de acordo na fase anterior), Para tanto, citará os credores cujos créditos não tenham sido objeto de acordo. Após a citação, os credores terão o prazo de 15 dias para recusar aderir ao plano ou renegociar, apresentando documentos (p.ex. poderão contestar as informações prestadas pelo consumidor sobre a dívida).  A imposição do plano compulsório de pagamento tanto poderá ser feita pelo juiz diretamente, quanto por administrador que nomeie, sem ônus para as partes - hipótese que remete à dúvida sobre o perfil e origem do administrador e sua eventual remuneração. Se nomeado administrador, este terá 30 dias, após cumpridas as diligências necessárias, para apresentar o respectivo plano. Este deverá assegurar, no mínimo, o valor principal da dívida, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, com o pagamento da primeira parcela em no máximo 180 dias contados da sua homologação, e a quitação em até 5 anos (art. 104-B, §4º). É precisamente desta providência, que viabiliza o recebimento de, ao menos, parte substancial da dívida pelos credores, de onde resulta a identificação de uma cultura de pagamento da dívida pela nova lei, ao invés de sua prorrogação indefinida no tempo.  Uma nova cultura do crédito responsável.  Para finalizar, cabem dois registros pessoais, com a segura distância do tempo. O primeiro de um almoço, há muitos anos, no intervalo de um seminário promovido na sede do Banco Central do Brasil. Na ocasião, quando o tema do superendividamento e o modo como diferentes países o enfrentavam veio à mesa, um importante jurista pouco familiarizado com o tema sentenciou: "trata-se do direito dos caloteiros!" O segundo, da mesma época, dá conta da reação de um brilhante executivo do sistema financeiro sobre a incipiente tramitação do projeto de lei que ora veio a ser sancionado: "O princípio é de que quem deve tem que pagar, esta lei jamais será aprovada!"  Em ambos, a síntese da evolução, que antes de uma simples alteração legislativa, é cultural. A Lei do Crédito Responsável e as alterações que promove no CDC representam a renovação da cultura do crédito. É uma nova visão sobre o crédito e seu lugar na sociedade de consumo contemporânea: a "cultura do crédito responsável" e a "cultura do pagamento das obrigações". Dois desafios se impõem. O primeiro diz respeito ao convencimento do Congresso Nacional para que não acolha os vetos do Presidente da República às disposições da lei que tratam de temas relevantes, caso da informação na oferta de crédito e a disciplina do crédito consignado. O segundo é o da efetiva implementação da lei, que em relação, especialmente, ao novo procedimento de conciliação e tratamento do superendividamento, depende da sensibilidade e atuação do Poder Judiciário e demais instituições do sistema de justiça, assim como dos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Não exclui, igualmente, fornecedores de crédito responsável que compreendam o caráter estrutural da crise de pagamentos que conduz ao superendividamento e tenham presente a dimensão social de sua atuação. É indisfarçável, por fim, o papel que os juristas, de um modo geral, exercerão a partir de agora, na divulgação e interpretação das novas normas do CDC, desenvolvendo seu sentido e alcance, em face das exigências de sua aplicação prática.  ___________ 1 Assim a utilização com o mesmo sentido, das expressões surrendement na língua francesa, sobrendeudamiento, em espanhol, ou overindebtness em língua inglesa, cujo prefixo sur, sobre ou over, indicam uma situação superior, para além do comum. 2 Assim o Relatório de cidadania financeira 2018, acessado em: https://www.bcb.gov.br/Nor/relcidfin/index.html. 3 Segundo o mesmo dado, são 513 milhões de cartões de pagamento em circulação no país. Conforme: https://noomis.febraban.org.br/especialista/noomisblog/multibancarizacao-cresce-mais-no-brasil. Acesso em 5 de julho de 2021. 4 Recommendation of the Council Concerning Consumer Protection in the Field of Consumer Credit (OCDE, 2019). Disponi´vel em https:// legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0453. 5 Para o Banco Central do Brasil, considera-se endividamento de risco a situação em que o tomador do crédito atenda ao menos dois dos seguintes critérios: I. inadimplemento de parcelas de cre´dito, isto e´, atrasos superiores a 90 dias no cumprimento das obrigac¸o~es creditícias;  II. comprometimento da renda mensal com o pagamento do servic¸o das di´vidas acima de 50%; III. exposic¸a~o simulta^nea a`s seguintes modalidades de cre´dito: cheque especial, cre´dito pessoal sem consignac¸a~o e cre´dito rotativo (multimodalidades); e IV. Renda disponi´vel (apo´s o pagamento do servic¸o das di´vidas) mensal abaixo da linha de pobreza. Conforme: https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/serie_cidadania/serie_cidadania_financeira_6_endividamento_risco.pdf. Acesso em 5 de julho de 2021. 6 MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Ka´ren R. D. Anteprojeto de Lei dispondo sobre a prevenc¸a~o e o tratamento das situac¸o~es de superendividamento de consumidores pessoas fi´sicas de boa-fe´. Revista de direito do consumidor, v. 73. São Paulo: RT, 2010, p. 345-367. No mesmo sentido: MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de direito do consumidor, v. 55. São Paulo: RT, jul.-set./2005, p. 11-52. 7 Registra-se, além das entidades de defesa do consumidor (IDEC, ProconsBrasil, Instituto de Defesa Coletiva, Fórum das Entidades Civis de Defesa do Consumidor), e do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), o apoio formal do Conselho Federal da OAB, Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação do Ministério Público do Consumidor (MPCon), Ordem dos Economistas do Brasil, bem como da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon), dentre outros. 8 Assim as conclusões, dentre outros, do Relatório do Banco Mundial Report on the Treatment of the Insolvency of Natural Persons, de 2012, disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/668381468331807627/pdf/771700wp0wb0in00box377289b00public0.pdf. Acesso em 5 de julho de 2021. Sobre os efeitos, especificamente nas relações famíliares, seja consentido remeter a; MIRAGEM, Bruno; LIMA, Clarissa Costa de. Patrimônio, contrato e proteção constitucional da família. Estudo sobre as repercussões do superendividamento nas relações familiares. Revista de direito do consumidor, v. 90. São Paulo: RT, nov.-dez./2013, p. 91-115. 9 LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento: uma problemática geral. Revista de direito do consumidor, v. 17. São Paulo: RT, jan.-mar./1996, p. 57-64. 10 Não por acaso, a ideia de um "novo começo" ("fresh start") é ínsita à legislação que disciplina o superendividamento em distintos sistemas jurídico, conforme ensina: LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: RT, 2014. 11 Segundo dados disponíveis do IBGE, relativos a 2019, e portanto anteriores aos efeitos da pandemia de Covid-19, 11,8% da populac¸a~o brasileira viviam com ate´ o valor de um quarto de sala´rio mi´nimo per capita mensal (cerca de R$ 250), e quase 30% com ate´ meio sala´rio mi´nimo per capita (R$ 499). Da mesma forma, a concentração de renda se destaca ao considerar que 10% da população com menores rendimentos detinham 0,8% do rendimento domiciliar per capita total, e os 10% seguintes com apenas 2,1%, em contraste com os 10% dos mais ricos que detinham 42,9% do total do rendimento domiciliar. Os dados constam da publicação do IBGE: Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira 2020, disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf.  Os efeitos da pandemia em curso sobre o endividamento das famílias ainda são objeto de estudo, como anotam: VIAL, Sophia Martini; LIMA, Clarissa Costa de. A relação entre o coronavoucher e o superendividamento das famílias. Disponível em: https://www.oconsumerista.com.br/2020/05/coronavoucher-superendividamento-familias. Acesso em 5 de julho de 2021. 12 A remessa da definição do mínimo existencial ao regulamento certamente é solução que apresenta dificuldades, mas foi a que alcançou a possibilidade de maioria, em vista das vicissitudes da negociação política que envolveu a aprovação do projeto de lei. Por outro lado, é reconhecido seu caráter mutável no tempo, o que se revela essencial à vida digna em determinada quadra histórica poderá não ser na seguinte, o inverso também pode ocorrer. Da mesma forma, as distintas composições familiares e seus diferentes estágios (p. ex. prole numerosa, ou a necessidade de assistência aos idosos), dificultam sobremaneira uma definição legal estrita, preferindo a melhor possibilidade de atualização do regulamento. A construção do conceito no direito do consumidor serve-se tanto do direito comparado (assim o recurso ao conceito de reste à vivre do direito francês), quanto do próprio direito brasileiro em diversas perspectivas. Veja-se, a respeito: BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor - Mínimo existencial - Casos concretos. São Paulo: RT, 2015. 13 O novo art. 54-A, §3º, refere: "O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor" 14 O novo art. 54-A, §2º define: "As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada." 15 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 209. 16 Neste sentido, informam os dados do PNAD Contínua Educação, do IBGE, relativos ao primeiro trimestre de 2019.  Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/educacao/17270-pnad-continua.html?edicao=28203&t=resultados. 17 Dentre outros: LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz, Superendividamento aplicado:aspectos doutrina´rios e experie^ncia no Poder Judicia´rio. Rio de Janeiro: GZ, 2009;  SAMPAIO, Mari´lia de A´vila e Silva. Justic¸a e Superendivamento: um estudo de caso sobre deciso~es judiciais no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.  
Introdução A pandemia de Covid-19, como vem sendo constantemente destacada pelo professor Flávio Tartuce é o maior desafio colocado para a atual geração de juristas, merecendo uma análise detida por todos nós. No Brasil, a pandemia é particularmente perversa, e até o presente momento tirou quase 500.000 vidas1. Já passamos por duas pesadas ondas de picos de contágios, e uma terceira poderá vir, com um potencial ainda mais devastador.  Enquanto a vacinação da população ainda patina (numa clara situação de mora debitoris de certos agentes públicos), a principal forma de impedir a disseminação da COVID-19 ainda é o isolamento social, além do uso de máscaras e higiene das mãos. Neste sentido, observamos a implementação de medidas de combate à pandemia tomadas por prefeitos e governadores, que compreendem ações como o fechamento do comércio, adoção de regime de trabalho remoto, entre outros. Paralelamente temos também uma situação econômica bastante preocupante no Brasil. Com certeza, as necessárias medidas de combate à pandemia impactam consideravelmente diversos setores. Mas, infelizmente, não verificamos uma política econômica do governo que represente um apoio mais significativo às pequenas e médias empresas e à população, para vencer estas dificuldades. Todos esses ingredientes apontam para um resultado óbvio: queda da produção econômica2, aumento do desemprego3, e avanço da desigualdade social4. Tudo isso tem repercussões inegáveis no direito das obrigações e dos contratos. A pandemia trouxe e continua trazendo uma considerável perturbação nas obrigações. Assim, é fundamental avaliar as repercussões jurídicas dessa instabilidade, que muitas vezes levará a hipóteses de inadimplemento e outras vezes a hipóteses de impossibilidade da prestação. Considerando essas decorrências da pandemia no mundo dos contratos, propomos uma reflexão sobre a exigibilidade e controle da cláusula penal, figura de grande aplicação nesse campo. Notas sobre a cláusula penal A cláusula penal, partindo-se de uma visão geral, é um pacto acessório a uma obrigação, na qual o devedor se compromete a uma prestação diversa da assegurada, que deverá ser prestada caso ocorra o inadimplemento culposo dessa obrigação5. Trata-se de um negócio jurídico necessariamente acessório, já que depende de uma obrigação principal para ser válida e produzir efeitos. A sua eficácia está condicionada à um fato futuro e incerto que é o inadimplemento da obrigação assegurada. Pode ainda ser caracterizada como uma obrigação com faculdade alternativa "à parte creditoris", já que o devedor se obriga a prestar apenas uma obrigação, mas, se tal prestação não for realizada, o credor que tem a alternativa de exigir a prestação diversa estabelecida pela cláusula penal6. A mencionada figura, que está regulamentada nos artigos 408 a 416 do Código Civil, atua como reforço à obrigação principal ao estabelecer uma sanção para o devedor, que é conhecida como "pena convencional"7. Do ponto de vista macro, portanto, a função da cláusula penal é reforçar o vínculo existente entre as partes, em uma clara valorização do princípio do pacta sunt servanda. Tradicionalmente, entende-se que a cláusula penal, a partir da teoria monista, se divide em duas modalidades: a compensatória e a moratória. Já pela teoria dualista, mais contemporânea e à qual aderimos, a figura se separa em duas espécies: uma com função indenizatória e outra com função coercitiva/punitiva8. A fim de simplificar a análise, e evitar maiores polêmicas doutrinárias, propomos aqui analisar exatamente a natureza indenizatória de cláusula penal. Neste caso as espécies tradicionais devem ser entendidas como modalidades da cláusula de liquidação antecipada dos danos: moratória e compensatória. Grosso modo, é possível falar que a primeira estabelece uma indenização pelo inadimplemento absoluto da obrigação, enquanto a segunda serve define o montante da compensação dos danos verificados quando há mora. A referida divisão inclusive consta do nosso Código Civil, que estabelece diferentes regime para cada uma das modalidades. A cláusula penal compensatória funciona substituindo a obrigação principal, sendo a única prestação indenizatória devida caso haja incumprimento do contrato, conforme estabelecido no artigo 410 do diploma civil. Já a cláusula penal moratória funciona cumulativamente com o cumprimento, podendo ser exigida em conjunto com a realização da prestação principal, nos termos do artigo 411 do Código Civil. Exigilidade da pena convencional A questão da exigibilidade, ou seja, da eficácia da cláusula penal, é bastante importante e parece ser consideravelmente impactada por situações decorrentes da pandemia. A cláusula penal, na espécie de liquidação antecipada dos danos, tem como efeito o estabelecimento de uma sanção indenizatória, que deverá ser paga pelo devedor caso este não cumpra a obrigação assegurada. Fixa-se antecipadamente o quantum debeatur devido pelo devedor caso seja verificado o inadimplemento. O pressuposto eficacial da cláusula penal, portanto, é a não realização da prestação por fato imputável ao devedor. Neste sentido, somente pode haver o exercício dessa cláusula, ou seja, a pena convencional só é exigível, caso ocorra o inadimplemento "culposo" da obrigação. A imputabilidade (cuja culpa é um dos possíveis fatores9), é condição essencial de eficácia de cláusula penal, conforme dicção expressa do art. 408 do Código Civil. Seja na modalidade moratória, seja na modalidade compensatória, a pena convencional só é exigível se inadimplemento foi por fato atribuível ao devedor10. Em regra, quando é verificada a não realização da prestação acordada, como por exemplo o não pagamento da mensalidade no contrato de prestação de serviços, ou a não entrega da mercadoria, tem-se o inadimplemento culposo da obrigação e a exigibilidade da pena convencional. Quando se tratar de uma cláusula penal compensatória ela poderá ser exigida como substituição da prestação não realizada. Já em se tratando de uma cláusula penal moratória o credor terá o direito de exigir a realização da prestação acrescida da cláusula penal. Como sabemos, a imputabilidade (ou culpa) nas relações contratuais é presumida. Contudo, importante sublinhar que estamos diante de uma presunção juris tantum, que é passível de afastamento caso seja produzida prova em contrário11. E é exatamente nesse ponto que verificamos o primeiro impacto das situações trazidas pela pandemia na cláusula penal. Caso o devedor consiga provar que a não realização da prestação se deu por fato alheio à sua vontade, ou seja, por fato que não é imputável a si, ele poderá pleitear a inexigibilidade da pena convencional. Neste sentido, devemos destacar que as hipóteses de caso fortuito ou força maior, nos termos do art. 393 do Código Civil, afastam a imputabilidade, transformando o inadimplemento em impossibilidade da prestação, que pode ser temporária ou definitiva12. Isto significa dizer que se o devedor demonstrar que a prestação não foi cumprida em razão de caso fortuito ou força maior a imputabilidade pode ser afastada, e com isso também a exigibilidade da cláusula penal. Conforme sabiamente nos ensina o professor José Fernando Simão,a pandemia em si não pode ser considerada como evento de caso fortuito ou força maior13. É preciso analisar as situações que decorrem da pandemia em cada caso concreto, e verificar o impacto e a extensão delas na prestação, pois se forem definitivos, a caracterizar uma impossibilidade absoluta, muitas vezes estaremos diante de hipótese de resolução da obrigação. Se a impossibilidade for temporária, contudo, é possível que a utilidade ainda se mantenha, ocorrendo uma hipótese de irresponsabilidade pela não realização da prestação14. A partir dessas considerações podemos propor um exemplo de inexigibilidade da cláusula penal. Por exemplo se em um contrato o transportador se obriga a entregar todo dia num horário determinado uma quantidade X ovos para um supermercado, estabelecendo-se uma pena convencional de R$Y para cada dúzia não entregue. Caso o transportador não realize a entrega num determinado dia, porque houve um decreto proibindo o transporte intermunicipal, ou porque os motoristas da sua frota estão todos com covid-19, temos aí uma hipótese de caso fortuito ou força maior que incide diretamente na relação contratual. Neste caso entendemos que não há que se falar em pagamento da pena convencional. Sua exigibilidade não foi verificada, já que não há verdadeiro inadimplemento culposo. Em casos como esse, mantendo-se a utilidade para o credor, a prestação principal poderá ainda ser exigível, devendo sempre prevalecer a função social do contrato e o princípio da conservação do negócio15. Mas se for verificado e provado um fato que efetivamente impacta a relação obrigacional que for decorrente da pandemia, esse fato deve ser suficiente para afastar a exigibilidade da pena convencional. Caracterizado um evento que de forma significativa, e sem participação do devedor, prejudique a realização da prestação16, como o acometimento da doença, o fechamento de estradas, proibição de circulação, restrição de funcionamento do estabelecimento, entre outros, a pena convencional não poderá ser exigida. Controle da pena convencional O controle da cláusula penal é tema de intensa controvérsia, em especial por se tratar de uma hipótese típica de controle judicial no conteúdo obrigacional, nos termos do art. 413, do Código Civil. O principal parâmetro de controle da pena convencional é a regra geral de proibição do abuso de direito17, já que é a boa-fé objetiva, em sua função corretiva, que fundamenta o referido artigo. A cláusula penal, por ser uma obrigação com faculdade alternativa ao credor cria um direito para o credor, que pode ou não exercê-lo, sendo esse um direito subjetivo. Ao exigir a pena convencional, que é seu direito subjetivo, o credor deve observar os limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico, em especial a boa-fé objetiva. Caso o credor exija uma pena excessiva atuará em abuso de seu direito. Isso significa dizer que o momento de verificação de uma eventual excessividade da pena é no momento da sua exigibilidade, quando ocorrer o inadimplemento18. Na cláusula penal de liquidação antecipada do dano, o controle deve ser realizado pela análise valorativa da pena convencional, que deverá ser controlada se, e somente se, for manifestamente excessiva19. Entendemos que só existirá excessividade quando a extensão dos danos sofridos pelo credor for significativamente inferior ao valor da pena convencional. Nessa espécie de cláusula penal o valor da pena deve sempre ser o mais próximo do valor do dano, já que a intenção das partes ao estipular essa espécie de pena é a reparação civil. Obviamente que, pela própria natureza negocial da pena, pequenas variações entre o valor desta e dos danos efetivamente verificados são plenamente justificadas20. Mas o parâmetro sobre o exagero da pena convencional deve ser calculado pela desproporção entre o valor dos danos efetivamente apurados e o valor dos danos previamente liquidados. O juízo de controle deve atentar à relação da pena com o dano efetivamente verificado21. Considerando tal premissa, e destacando o efeito de a inversão do ônus probatório que essa espécie de cláusula penal possuí, será ônus do devedor, ao requerer a redução da pena convencional, fazer essa prova. É assim que interpretamos o art. 416 do Código Civil relativamente à cláusula de liquidação antecipada do dano: o credor, no momento de exigir a cláusula penal não precisa alegar quais prejuízos sofreu para exigir a indenização predeterminada, mas o devedor deve demonstrar de forma inequívoca que o dano foi consideravelmente inferior ao antecipadamente liquidado. O julgador, portanto, somente deve reduzir a pena caso encontre fundamentos sólidos e devidamente comprovados, apresentados pelo devedor, quanto à excessividade da pena. Não se deve, portanto, operar a moderação da pena através de um julgamento justiceiro ou acrítico, mas sempre observar o montante dos prejuízos verificados22. O critério deve ser sempre científico e baseado nas provas dos autos. Tendo como base tal premissa, mais uma vez destacamos que a pandemia não pode ser encarada como fator ou justificativa para redução da pena convencional por meio do art. 413, do Código Civil. Se a pandemia faz com que a prestação se torne mais difícil para o devedor, não vislumbramos qualquer impacto direto no dano causado ao credor, e por isso não há razão para a redução da pena convencional. Aliás, fundamental sempre destacar que a pandemia em nenhum momento impossibilita efetivamente a realização da prestação de dar dinheiro23. Somente eventos decorrentes da pandemia que impactarem diretamente a relação contratual deverão ser considerados, sendo certo que esses eventos devem ter impacto nos danos causados pelo inadimplemento e que fatos anteriores à pandemia não podem ser considerados, com base nos ditames do art. 6º do RJET (Lei 14.010/2020). Portanto, o devedor que pretender requerer a redução da pena convencional com base no art. 413 do CC deve demonstrar inequivocamente que em razão da pandemia os danos causados pelo inadimplemento foram significativamente inferiores ao valor da pena24.  No caso do transporte de ovos colocado acima, caso o inadimplemento seja com culpa do devedor, mas a transportadora prove que os ovos entregues no dia seguinte acabaram sendo vendidos por um valor de R$Y+5, o julgador poderá reduzir em alguma extensão a pena convencional, por exemplo, para R$Y-4. Fica claro, portanto, que em cada situação caberá ao devedor a demonstração da excessividade da pena convencional, sendo que somente nesses termos deve o julgador realizar o controle com base no referido art. 413. Lado outro, e retomando a ideia da pena convencional como direito subjetivo do credor, vislumbramos uma outra forma de controle da figura. Não um controle valorativo, mas um controle do seu exercício. Exigir a pena convencional em certos casos relacionados com a pandemia pode significar a imposição de um sacrifício bastante desequilibrado ao devedor25. Em certas situações a cobrança da pena convencional no atual momento não se coaduna com os princípios da ética contratual, e prejudica que o programa contratual se mantenha destinado à sua finalidade precípua, que é o adimplemento satisfatório26. Exigir que uma família com membros desempregados pague a multa condominial de 2% pode ser abusivo no caso concreto. Exigir que o locatário de uma loja que ficou por diversos meses proibido de funcionar pague a multa rescisória no momento de devolução antecipada das chaves pode ser abusivo no caso concreto. Isto porque, a cobrança pelo credor da pena convencional pode imputar um sofrimento ao devedor, que está em dificuldades para cumprir com sua obrigação em razão da pandemia de Covid-19, representando um verdadeiro abuso de direito. O julgador poderá, portanto, reconhecer essa abusividade e obstar que a pena convencional seja cobrada, garantindo ao credor o direito da prestação acordada ou da resolução da obrigação. Essa é, inclusive, exatamente a orientação contida no Enunciado 617 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF27. Não será, portanto, um controle da cláusula penal baseado na excessividade do seu valor, mas sim, na excessividade do seu exercício. Voltando ao nosso exemplo da entrega dos ovos, caso eles venham a ser entregues com algum atraso, mas ainda no mesmo dia, por alguma das dificuldades relacionadas à pandemia, já mencionadas anteriormente, a exigência da pena convencional poderá ser abusiva, devendo ser obstada pelo julgador. Neste caso, como nos demais abordados no presente artigo, será sempre fundamental que haja um efetivo impacto de questões relacionadas com a pandemia na prestação. *Marcelo Matos Amaro da Silveira é  doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado em Belo Horizonte/MG. __________ 1 Na última consulta feita durante a elaboração deste texto, às 13h do dia 06/06/2021, os dados mostravam 472.629 óbitos. 2 O Produto Interno Bruto (PIB) do país caiu 4,1% em 2020 segundo dados oficiais, e no 1º trimestre de 2021 caiu 3,8%. 3 Dados oficiais apontam para uma taxa de desocupação de 14,7% da população economicamente ativa no 1º trimestre de 2021. 4 Como demonstrado pela pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas. 5 Por todos cf. MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 2014, p. 25-69. 6 ROSENVALD, Nelson. Cláusula Penal: A pena privada nas relações negociais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 42-47. 7 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, v. IX, 2017. p. 475. 8 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 25 a 54. 9 MARTINS-COSTA, Judith; COSTA E SILVA, Paula. Crise e perturbações no cumprimento da prestação: estudo de direito comparado luso-brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 154. 10 TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, p. 196. 11 SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos de Direito Civil: Obrigações, vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 320. 12 MARTINS-COSTA, Judith; COSTA E SILVA, Paula. Crise e perturbações no cumprimento da prestação: estudo de direito comparado luso-brasileiro, p. 159-160. 13 SIMÃO, José Fernando. "O contrato nos tempos da COVID-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. 14 MARTINS-COSTA, Judith; COSTA E SILVA, Paula. Crise e perturbações no cumprimento da prestação: estudo de direito comparado luso-brasileiro, p. 160-161. 15 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. 16 MARTINS-COSTA, Judith; COSTA E SILVA, Paula. Crise e perturbações no cumprimento da prestação: estudo de direito comparado luso-brasileiro, p. 33-34. 17 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 728-734. 18 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 277. (Coleção Biblioteca de Direito Civil, 7). 19 Essa também é a interpretação de MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 743. 20 MONTEIRO, António Pinto. Cláusula Penal e Indemnização, p. 741. 21 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das Obrigações: comentários aos arts. 389 a 420 do código civil, p. 242. 22 SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula Penal e Sinal: as penas privadas convencionais na perspectiva do direito português e brasileiro, p. 69-72. 23 SIMÃO, José Fernando. "O contrato nos tempos da Covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. 24 Lembrando sempre que na cláusula penal moratório esse dano acaba sendo in re ipsa. 25 CORDEIRO, António Menezes. Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 65, v. II, set. 2005. 26 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 574. 27 Tão bem destacado por Anderson Schreiber no seu comentário do art. 187, p. 116-117 (In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência).
A alta tecnologia impõe desafios nos vários campos do conhecimento humano. Na área jurídica não tem sido diferente. Desde o surgimento do primeiro computador, por volta de 1947, até os dias atuais, o desenvolvimento tecnológico apresenta novidades que induzem a novos contornos dos institutos jurídicos o que nos força a reconhecer inclusive novo formatos contratuais, sobretudo diante dos modelos de compartilhamento das coisas. Neste breve artigo, interessa-nos mais de perto as plataformas digitais que têm por escopo a intermediação de serviço de hospedagem, sendo a mais conhecida delas o "Airbnb"1. O uso massificado do referido aplicativo acabou fazendo surgir, no Brasil, uma discussão jurídica relevante e, deve-se admitir, de difícil solução. Recentemente, o STJ julgou o Recurso Especial 1.819.075-RS2 vedando o uso de unidade condominial com destinação residencial para fins de hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de aposentos existentes nos apartamentos, a diferentes pessoas, por curta temporada. O recurso julgado não estava afetado como recurso repetitivo, de forma que solucionou a controvérsia pontualmente, formando-se importante precedente, mas sem vincular a mesma solução para todos os casos análogos. O julgamento teve ampla repercussão, especialmente porque toca em questões sensíveis das relações condominiais, notadamente às que dizem respeito ao sossego, salubridade e segurança dos condôminos. Nomeadamente o aspecto da segurança tem sido utilizado na argumentação dos que defendem que não pode haver a cessão da posse das unidades imobiliárias em condomínios residenciais por diária. Por outro lado, a discussão se desenvolve no campo da impossibilidade de haver restrição ao exercício do direito de propriedade sem previsão legal, o que deslocaria a discussão para o campo da constitucionalidade da eventual restrição. Parece-nos, entretanto, que a questão tem outra sede que não a relacionada aos poderes inerentes à propriedade e às suas limitações. De fato, há um ponto preliminar sobre o assunto que se resolve a partir da análise da natureza jurídica do contrato celebrado e de sua repercussão prática quanto à compatibilidade da destinação exclusivamente residencial do condomínio. Vale dizer, a questão deve ser resolvida no âmbito da destinação condominial. Para tanto, o ponto de partida é o de se saber se estaríamos diante de um "contrato de locação por diária", de um "contrato de hospedagem" ou de um modelo contratual atípico? As questões condominiais devem ser vistas depois da definição da natureza jurídica do contrato desenvolvido entre os clientes e os aplicativos de hospedagem. O ângulo de análise deve se dar, a priori, a partir da natureza contratual, só depois perpassando pelos elementos que compreendem o direito de propriedade, inclusive tendo-se em vista que a destinação ou finalidade do condomínio - classicamente observada no sistema brasileiro - pode não ser compatível com a natureza contratual considerada. Observa-se que o serviço prestado através das plataformas digitais aqui analisadas tem como escopo principal a aproximação de pessoas que têm interesse em ceder seus imóveis, especialmente cobrando por diárias, para outras pessoas que buscam hospedagem, tanto assim, que nomeiam as partes no contrato de "anfitrião" e "hóspede"3. Nesse passo é importante observar que se está diante de uma categoria contratual complexa que envolve, pelo menos, três relações jurídicas: a) entre o "anfitrião" e o prestador do serviço pelo "aplicativo"; b) entre o "hóspede" e o prestador do serviço pelo aplicativo; e, c) entre o "anfitrião" e o "hóspede". O objeto dessa relação complexa entre os usuários  envolve publicação de ofertas de hospedagem, busca e reservas de serviços e, ao final, a cessão do imóvel por prazo curto, contratado por diária. Vale consignar que este contrato deve ser analisado, necessariamente, à luz de todos esses elementos. É que, se destacarmos apenas um deles, o contrato, como se propõe na prática, desconfigura-se. Sendo assim, seguiremos para a primeira pergunta: estamos diante de um contrato de locação? Os contratos celebrados através dos aplicativos de hospedagem transcendem os limites conceituais da locação. Como dito, a prática contratual envolvendo os aplicativos de hospedagem tem elementos complexos que englobam pelo menos as três relações já referidas acima, não se limitando, portanto, à relação entre o "anfitrião" e o "hóspede", que poderia ser vista, eventualmente, como o elemento locatício do contrato. Vale consignar que o contrato celebrado entre o "anfitrião", o hóspede" e o prestador do serviço do aplicativo, de fato, não se limita a um contrato de locação. Não sendo contrato de locação, não há como se especular também sobre a existência de um contrato de locação para temporada, nos termos previstos no art. 48, da lei 8.245/91 (Lei de Locações). Em sentido contrário a esta posição, Marco Aurélio Bezerra de Melo anota que, "na realidade, o contrato não é de hospedagem, mas sim de locação por temporada, nos moldes previstos na lei 8.245/1991, com as diferenças típicas da pós-modernidade trazida pela economia compartilhada via plataforma digital"4 A posição suscitada por Marco Aurélio Bezerra de Melo é a mesma trazida pelo Min. Luis Felipe Salomão, em seu voto que, no dia 10 de outubro de 2019, quando se deu início ao julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS, trouxe a conclusão de que os condomínios não podem proibir os proprietários de realizar locação de curta temporada via Airbnb5. A par dos argumentos levantados com extrema técnica, não só pelo Min. Luis Felipe Salomão, em seu voto, assim como, pelo Prof. Marco Aurélio Bezerra de Melo, grifa-se mais uma vez que, a partir da análise das cláusulas gerais de contratação dispostas pelos serviços de aplicativos, vê-se que se está diante de contrato complexo, que não se limita ao elemento locatício. Não sendo locação, estaríamos diante de um contrato de hospedagem? A lei 11.771/2008 traz os elementos caracterizadores do contrato de hospedagem no seu art. 23. O complexo contratual aqui analisado envolvendo as plataformas digitais também transcende os elementos do contrato de hospedagem, embora, diante de suas peculiaridades, tenha muito maior aproximação a este contrato. A rigor, o que se denota a partir dos elementos observados do contrato aqui estudado, é que se está diante de uma atividade complexa que envolve o serviço prestado pela empresa proprietária do aplicativo, em que os usuários publicam, oferecem, buscam e reservam múltiplos serviços; sua funcionalidade em ambiente eletrônico; a noção de compartilhamento;  a relação jurídica entre o "anfitrião" e o serviço do aplicativo; entre o "hóspede" e o serviço do aplicativo; e, entre o "anfitrião" e o "hóspede", transcendendo os conceitos do contrato de locação e hospedagem. Vale destacar a visão de Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi e Maria Lígia Coelho Mathias sustentando que "a natureza jurídica do contrato envolvendo a plataforma Airbnb e assemelhadas é híbrida ou mista, traduzindo-se num contrato sui generis por envolver aspectos da locação e da hospedagem, com preponderância desta última"6. Por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS, em abril de 2020, o Min. Raul Araujo apresentou voto divergente do Min. Luis Felipe Salomão, acima já mencionado, e concluiu que se está diante de "um contrato atípico de hospedagem, que expressa uma nova modalidade, singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas"7. Diante dos elementos vistos no contrato realizado através das plataformas de hospedagem e aqui já suscitados, parece-nos que a natureza jurídica do contrato aqui estudada é atípica, aproximando-se mais do contrato de hospedagem, de forma que, é mais apropriada para a espécie a afirmativa de que se trata de um contrato atípico de hospedagem. Diante desse quadro, calha agora partirmos para o foco principal da controvérsia, que diz respeito ao impacto que os efeitos deste contrato provocam em relação aos condomínios residenciais e o uso das unidades autônomas por pessoas que contratam através do serviço das plataformas digitais. Vale observar que o serviço prestado pela plataforma de hospedagem por diária alcança imóveis - e mesmo móveis, a exemplo de barcos com cabines para pernoite - em diversas circunstâncias, tais como, flats, apart-hotéis, "residences", casas fora de condomínio em local urbano ou rural. Essas tipologias imobiliárias não trazem nenhum aspecto controvertido. Com efeito, no caso dos flats, apart-hotéis, "residences", já é esperado e natural que haja uso destinado ao contrato de hospedagem típico ou atípico, conforme a conclusão a que chegou a 4ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS. No mesmo sentido, nas hipóteses das casas situadas fora de condomínio não há discussão sobre o uso de espaços condominiais. O ponto polêmico surge, então, nos casos em que o objeto do contrato de hospedagem atípico aqui considerado é uma unidade imobiliária em condomínio edilício com destinação residencial. Vale dizer, o ponto controvertido diz respeito ao "contrato de hospedagem atípico em condomínio com destinação residencial". Conforme já dito, a questão antes de perpassar pela impossibilidade de limitações aos elementos inerentes ao direito de propriedade, diz respeito à constituição e, sobretudo, à atribuição da finalidade do condomínio edilício, sendo relevante, especialmente, as regras previstas nos artigos 1.332, inciso III e 1.336, inciso IV, do Código Civil8. A discussão central sobre a possibilidade ou não de se disponibilizar unidades imobiliárias para hospedagem por diárias em condomínio edilício através do uso de plataformas digitais encontra-se, portanto, na destinação do condomínio prevista na convenção. Uma vez definida a destinação por ato de vontade do instituidor e não modificado pelos condôminos, estes devem observá-la, a teor do art. 1.336, IV, do Código Civil9. Se no ato de vontade de instituição do condomínio edilício, seja por destinação do proprietário da edificação; seja pelo incorporador; seja pelo testador, ficou determinado que a destinação ou finalidade do condomínio edilício é residencial, esta deve ser observada, sem que isso represente afronta ao direito de propriedade do condômino. As tradicionais vedações sobre a impossibilidade de ser ter, por exemplo, uma loja, um consultório médico, uma clínica de beleza em um apartamento, não suscita a mesma discussão que vemos agora para o contrato atípico de hospedagem. A obrigatoriedade de se observar as regras sobre a destinação da edificação não afronta o direito de propriedade e não há inconstitucionalidade, porquanto se está observando as normas de natureza convencional autorizadas pela lei e, dentro das quais, deve se desenvolver o exercício do direito de propriedade. Portanto, uma vez disposta na convenção de condomínio que a destinação da edificação é residencial, comercial ou mista, estas devem ser observadas pelos condôminos e por terceiros. O modelo de negócio praticado pelas plataformas digitais que fornecem o serviço de hospedagem por diárias, conforme já dito, aproxima a atividade do ramo da hotelaria e turismo. A própria oferta de preços para uso da unidade imobiliária levando-se em conta o fator "preço por diária", demonstra que se está diante de atividade voltada para hotelaria e turismo (de lazer, de negócios, entre outros), com fluxo maior de hospedagem, não se compatibilizando com a natureza exclusivamente residencial de determinado condomínio. Sendo assim, se a convenção de condomínio, estabelecida por ato de vontade do seu instituidor e mantida sem alterações pelos condôminos, determina que a natureza da edificação é residencial, os condôminos não poderão dar destinação vinculada à atividade de hotelaria e turismo, próprio do contrato atípico de hospedagem aqui visto, porque incompatível com a destinação exclusivamente residencial prevista na respectiva convenção condominial. Nesse sentido, é possível se concluir que o contrato envolvendo as plataformas digitais de hospedagem e seus clientes tem natureza de contrato de hospedagem atípico, que se aproxima de atividade de hoteleira e de turismo e que, por isso, é incompatível com a destinação residencial prevista na convenção de condomínio edilício, de forma que o condômino não poderá ceder o imóvel nesta modalidade contratual, salvo existindo autorização expressa constante na convenção de condomínio, ou nas hipótese de concordância tática dos demais condôminos. O tema requer outras reflexões, que pretendemos fazer, em breve, em artigo mais detalhado. __________ 1 Apesar do aplicativo de hospedagem por diária mais popular ser o "Airbnb", existem inúmeros outros que promovem o mesmo serviço, tais como, "Hoteis.com", "Booking.com", "Wimdu", "Misterb&b", "Tripadvisor Rentals", "GuestToGuest", "Onefinestay". 2 No momento em que escrevemos este artigo, não havia sido disponibilizado o acórdão pelo STJ, de forma que as informações sobre o julgamento foram pesquisadas no "site" do Superior Tribunal de Justiça. 3 Para fins meramente exemplificativos, destaca-se aqui os "Termos de serviços para usuários não europeus" do "Airbnb". No início das condições gerais de contratação, observa-se o seguinte: "A Plataforma Airbnb oferece um espaço online que permite que os usuários ("Membros") publiquem, ofereçam, busquem e reservem serviços. Os Membros que publicam e oferecem serviços são chamados de "Anfitriões" e os Membros que buscam, reservam ou usam os serviços são chamados de "Hóspedes." Os Anfitriões oferecem acomodações ("Acomodações"), atividades, passeios e eventos ("Experiências"), além de uma variedade de viagens e outros serviços (coletivamente, "Serviços de Anfitrião"; cada oferta de Serviço de Anfitrião é um "Anúncio"). Você precisa criar uma conta para acessar e usar muitos recursos da Plataforma Airbnb, devendo manter as informações de sua conta corretas e atualizadas. Como provedor da Plataforma Airbnb, o Airbnb não possui, controla, oferece ou gerencia nenhum Anúncio ou Serviço de Anfitrião. O Airbnb não é parte dos contratos celebrados diretamente entre Anfitriões e Hóspedes, tampouco corretor ou segurador de imóveis. O Airbnb não atua como agente em qualquer capacidade para nenhum Membro, exceto conforme especificado nos Termos de Serviço de Pagamentos ("Termos de Pagamento"). Para saber mais sobre a função do Airbnb, consulte a Seção 16".  Disponível aqui. Acesso em: 06 mai. 2021. 4 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O Airbnb e a vida condominial - Notas sobre a decisão do Superior Tribunal de Justiça. Disponível aqui. Acesso em: 06 mai. 2021. 5 Flávio Tartuce, ainda antes do julgamento do tema pelo Superior Tribunal de Justiça, sustentava que não cabem proibições prévias na convenção do condomínio sobre a impossibilidade de locação através de aplicativos como o "Airbnb", "pois se trata de uma restrição ao direito de propriedade não expressa em lei, o que afronta ao direito fundamental previsto no art. 5º, XXII, da Constituição" (TARTUCE, Flávio. Direito civil - Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 11. ed., 2019, p. 394). 6 DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro e MATHIAS, Maria Lígia Coelho. O SISTEMA AIRBNB E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO DE PROPRIEDADE E CONDOMÍNIO EDÍLICIO. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2021. 7 Informação disponível no "Informativo de Jurisprudência" do STJ. Acesso em 04 mai. 2021. 8 O respeito à destinação do condomínio é um tema que não afronta os elementos do direito de propriedade condominial, é estabilizado no direito brasileiro assegurado em inúmeros julgados, a exemplo dos julgamentos pelo TJRJ, em que se proibiu que loja se instalasse em um apartamento de prédio residencial e um salão de beleza se instalasse em prédio comercial destinado exclusivamente à atividade médica (Cf., TJRJ, apelação n. 00385366820118190203; e, TJRJ, apelação n. 02526651120178190001). 9 Nesse passo, merece trazer à lume as lições de Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloísa Helena Barbosa, que destacam: "A definição expressa da finalidade do condomínio edilício é essencial para que não haja desvio de uso pelos condôminos, a quem cabe observá-la, sob pena de aplicação das sanções cabíveis, estabelecendo-se relação de vizinhança entre os condôminos. Assim por exemplo, um médico ou terapeuta não poderá usar o seu imóvel, localizado em prédio com finalidade residencial definida pelos condôminos, para atender os seus pacientes, salvo concordância expressa ou tácita, dos demais condôminos" (BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de; TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. V. III, p. 684).
O agronegócio no Brasil vem se agigantando rapidamente. Motor da economia nacional, mesmo em tempos de pandemia, vem se tornando mais profissionalizado a cada dia. Porém, contrario sensu do que era de se esperar, o referido setor continua encontrando obstáculos em determinados aspectos legais do agronegócio que causam o atravancamento das relações jurídicas, entre eles a intervenção do Estado nos contratos de arrendamento rural. Na lide diária do setor, claramente se percebe que há empresários, altamente capacitados e atentos à legislação, que vêm enfrentando um grande número de controles em suas opções, frutos das limitações impostas aos contratos agrários típicos, notadamente o arrendamento e a parceria rural. Em 30 de novembro de 1964, o Congresso Nacional aprovou a lei 4.504, denominada Estatuto da Terra. Trata-se de uma lei editada com finalidade eminentemente política, visando fixar parâmetros para a realização de uma já longamente discutida reforma agrária no Brasil. O Estatuto, à época, foi recebido pelos latifundiários e pelas suas entidades sindicais com desprezo e repúdio, porém, com o passar do tempo, percebeu-se que se tratava de uma inevitável reformulação agrária liberal, como uma opção mais doce ao amargor de uma reforma agrária socialista. Não obstante, esse diploma legislativo colocou-se como uma rede de segurança para aqueles que viviam e trabalhavam na terra, estabelecendo requisitos objetivos para os contratos de arrendamento e parceria agrícola.1 Os contratos agrários são, em regra, instrumentos que gozam de tipicidade e controles muito próprios. Originalmente regulados pelos arts. 1.211 a 1215 e 1.410 a 1.423 do Código Civil de 1916, os dispositivos foram substituídos pela vetusta lei 4.947, que remonta ao longínquo ano de 1964. Nem mesmo com o advento do Código Civil de 2002, mais moderno e arrojado, os contratos agrários foram rediscutidos, mantendo-se o manto já surrado do Estatuto da Terra, que continua reinando predominantemente sobre a matéria. Se naquele momento a necessidade era a proteção da pequena agricultura, em 2021 experimentamos uma realidade totalmente diversa, quando são cada vez mais presentes negócios agrários gigantescos, envolvendo estruturas complexas, como as holdings formadas como instrumentos de implementação empresarial e planejamento sucessório, com capital aberto em bolsas de valores. A regulação dos contratos típicos de arrendamento e parceria evidenciam o dirigismo estatal no sentido de tutelar o direito dos mais hipossuficientes, limitando a liberdade de contratar. Esse marco legislativo, portanto, impôs ao direito do contratos uma série de normas de ordem pública que não podem ser contornadas pela autonomia da vontade. Nas palavras de Wellington Pacheco Barros: A nova disposição legal retirou das partes muito daquilo que a lei civil pressupõe como liberdade de contratar. Substituiu, portanto, a autonomia de vontade pelo dirigismo estatal. Ou seja, o Estado passou a dirigir as vontades das partes nos contratos que tivessem por objeto o uso ou posse temporária do imóvel rural.2 Se fizermos uma reflexão do ponto de vista jurídico-histórico, a intervenção estatal não era desnecessária. Tratava-se de um momento em que a agricultura brasileira ainda era muito concentrada em latifúndios, com uma população rural gigantesca que era explorada ao tentar a sobreviver em meio aos grandes latifundiários. O problema maior que se vislumbra é no sentido de que a regra protegia um micro e pequeno produtor rural, outrora maioria, que já não existe. Dado o seu caráter universal, ela engessa também o médio e o grande produtor, que se veem tolhidos de sua autonomia em negócios corriqueiros que envolvem o arrendamento, os quais somente seriam viáveis fora do escopo legislativo. Regulado pelo decreto 59.566, de 1966, o Estatuto da Terra veda o arrendamento com preço fixado em produto. Art 18. O preço do arrendamento só pode ser ajustado em quantia fixa de dinheiro, mas o seu pagamento pode ser ajustado que se faça em dinheiro ou em quantidade de frutos cujo preço corrente no mercado local, nunca inferior ao preço mínimo oficial, equivalha ao do aluguel, à época da liquidação. Se no passado esse o preço fixado em produto era uma forma de espoliar o pequeno arrendatário hipossuficiente, hoje, com a quebra dos mega latifúndios e dos oligopólios, a profissionalização do agronegócio, o aumento constante do preço das commodities agrícolas, a sua negociação em bolsas internacionais e a grande procura pela produção, a norma prejudica tanto aquele produtor que pretende utilizar a propriedade de outrem, como aquele que detém a propriedade, mas beneficiar-se-ia com a transferência remunerada da posse. Evidentemente que a fixação do preço em produto é um risco, porém também pode ser um tremendo benefício. Trata-se de prática muito comum no dia a dia dos negócios agrários, que os proprietários estão dispostos a assumir, posto que cientes dos riscos. Afirma Renato M. Buranello: O risco é um elemento inerente ao negócio e o resultado esperado de um investimento, podendo ter variações significativas a cada safra devido ao clima, às condições de mercado, às mudanças nos ambientes político e econômico, entre outras variáveis exógenas à atividade de produzir. [...] A gestão empresarial moderna baseia-se na maximização da relação risco-retorno dos acionistas e investidores do negócio por meio da utilização de estratégias empresariais consistentes. Neste caso, a gestão dos riscos é crucial para o agronegócio estável e para a obtenção do retorno desejado.3 Para deixar isso mais evidente, observe-se os seguintes números: segundo a Associação dos Produtores de Soja (APROSOJA/MT)4, o preço médio da saca de soja de 60kg em Mato Grosso, no dia 08 de março de 2019 era de R$ 63,56 (sessenta e três reais e cinquenta e seis centavos). O mesmo produto, em 09 de março de 2021 estava avaliado em R$ 164,43 (cento e sessenta e quatro reais e quarenta e três centavos), uma diferença percentual de 158,70%, enquanto a inflação nacional, no mesmo período apurada no IGP-M da Fundação Getúlio Vargas foi de 37,76%. Portanto, o arrendatário que fixou o seu contrato em pecúnia corrigido pelo IGP-M teve um expressivo prejuízo econômico, enquanto o arrendador teve um extremo benefício econômico. É importante apontar que o ambiente de negócios do "agro" é, em regra, calculado em produto, assim, sacas, cabeças, arrobas, bushel etc são vocabulário comezinho nas mesas de negociação. Não são poucos os produtores que realizam negociações inteiras discutidas e contratadas com o preço fixado em quantidade de produto, pois, dessa forma, minimizam o risco de inadimplemento em caso de eventual disparada ou recessão de preços. Os negócios celebrados com dação em pagamento são parte intrínseca da realidade agrária, porém eles são vedados nos contratos de arrendamento. O tema é tão controvertido que existe doutrina e jurisprudência que apontam para lados absolutamente diversos, que impedem a experimentação de um mínimo de segurança jurídica. Em março de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial (REsp) nº 1.266.975/MG entendendo que RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À AÇÃO MONITORIA. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. FIXAÇÃO DE PREÇO. CLÁUSULA. NULIDADE. PROVA ESCRITA. INSTRUÇÃO DO FEITO. POSSIBILIDADE. 1. Discute-se nos autos se contrato de arrendamento rural em que se estipulou o pagamento da dívida mediante entrega de produtos agrícolas serve como "prova escrita sem eficácia de título executivo", hábil a amparar propositura de ação monitória. 2. A teor do disposto no art. 1.102-A do Código de Processo Civil, a prova escrita capaz de respaldar a demanda monitória deve apresentar elementos indiciários da materialização de uma dívida decorrente de uma obrigação de pagar ou de entregar coisa fungível ou bem móvel. 3. É nula cláusula contratual que fixa o preço do arrendamento rural em frutos ou produtos ou seu equivalente em dinheiro, nos termos do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66. Essa nulidade não obsta que o credor proponha ação de cobrança, caso em que o valor devido deve ser apurado, por arbitramento, em liquidação. Precedentes. 4. O contrato de arrendamento rural que estabelece pagamento em quantidade de produtos pode ser usado como prova escrita para aparelhar ação monitória com a finalidade de determinar a entrega de coisa fungível, porquanto é indício da relação jurídica material subjacente. 5. A interpretação especial que deve ser conferida às cláusulas de contratos agrários não pode servir de guarida para a prática de condutas repudiadas pelo ordenamento jurídico, de modo a impedir, por exemplo, que o credor exija o que lhe é devido por inquestionável descumprimento do contrato. 6. Recurso especial não provido. (Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1266975/MG. 3ª Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julg. 10 mar. 2016; publ. 28 mar. 2016.) Não obstante, no próprio Tribunal da Cidadania, são fartas as decisões que entendem serem válidas as cláusulas de contratos de arrendamento fixados em produtos, geralmente referindo-se aos "usos e costumes" da região5. Outro ponto a ser considerado, é que a lei não veda o pagamento em produto, mas tão somente a contratação do preço do arrendamento nessa modalidade. Portanto, é plenamente possível que um arrendamento fixado em dinheiro seja pago em produto se assim acertarem as partes, mas lhes é subtraído o direito de fixar o preço diretamente em produto. Oportuno apontar também que, dentro daquilo que se vem costumeiramente chamando de Direito do Agronegócio, a ideia de obrigação fixada em produto e a sua liquidação não é inédita, muito pelo contrário. Por exemplo, a lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, criou a Cédula de Produto Rural (CPR) - que é um título de crédito  representativo de promessa de entrega de produtos rurais - e admite expressamente a sua liquidação financeira. Essa liquidação já era permitida, mas em 2020 foi editada a lei 13.986, que reformou extensivamente a lei anterior, para criar a CPR financeira, que já era uma realidade no meio ambiente de negócios rural. Assim, a nosso ver, já é hora de revisitarmos o Estatuto da Terra, no sentido de torná-lo compatível com a realidade contemporânea. Do ponto de vista prático, essa lei, da forma como está vigente, inviabiliza um ambiente de negócios saudáveis, gerando absoluta insegurança jurídica e uma sobrecarga de judicialização de contratos plenamente adequados com a realidade do agronegócio. *Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador e professor do curso de Direito da Faculdade de Nova Mutum (FAMUTUM). Membro do IBDCont, IBDCivil e IBERC. Advogado e consultor jurídico.    __________ 1 BRUNO, Regina. O Estatuto da Terra: entre a conciliação e o confronto. Estudos Sociedade e Agricultura. 5 nov. 1995. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. p. 5-31. Disponível aqui. Acesso em 05 abr. 2021. 2 BARROS, Wellington Pacheco. Contrato de arrendamento rural: doutrina, jurisprudência e prática. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 43. 3 BURANELLO. Renato M. Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio: regime jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 107-108. 4 APROSOJAMT. Histórico de cotações - Preço soja disponível compra. Cuiabá, 2021. Disponível aqui. Acesso em 09 abr. 2021. 5 Vide: Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no REsp 1.062.314/RS. 3ª Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julg. 16.08.2012; publ. 24.08.2012).
A contratação de advogados e a jurisprudência A jurisprudência, nas demandas que envolvem contratos de prestação de serviços advocatícios, é rica e plural. Há decisões para todos os gostos, e com as mais variadas soluções. Cite-se dois exemplos interessantes, ambos do TJPR, bem dissonantes. Num determinado caso, o Tribunal entendeu não ser ilegal nem abusiva a fixação de honorários de êxito no importe de 50% do benefício econômico obtido pelo cliente1; assim não interferiu nem revisou o contrato, privilegiando a autonomia das partes. Noutro caso2, o TJPR entendeu, num primeiro momento, que não se podem cumular honorários pro labore e honorários de êxito3; depois, em Embargos de Declaração, decidiu que pode haver cumulação, mas reduziu o valor da honorária de êxito (de 10% para 5% sobre o proveito econômico). Justificou essa intervenção dizendo que a fixação dos honorários deve levar em conta os "desdobramentos fáticos e jurídicos desse tipo de contratação de honorários advocatícios na realidade da advocacia brasileira"4. Agora, novo julgado que reflete essas inconsistências (erros ou acertos?) do tratamento judicial dado à contratação de advogado veio à luz. O STJ, no REsp nº 1.882.117/MS, decidiu que o contrato de prestação de serviços advocatícios não pode estipular multa para a hipótese de revogação unilateral do mandato. No que interesse, diz a ementa: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO. AUSENTE. DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. PREVISÃO DE PENALIDADE CONSUBSTANCIADA NO PAGAMENTO INTEGRAL DOS VALORES PACTUADOS ANTE A REVOGAÇÃO UNILATERAL DO MANDATO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO POTESTATIVO DO CLIENTE DE REVOGAR O MANDANTO, ASSIM COMO É DO ADVOGADO DE RENUNCIAR. (...) 5. Em razão da relação de fidúcia entre advogado e cliente (considerando se tratar de contrato personalíssimo), o Código de Ética e Disciplina da OAB (CED-OAB) prevê no art. 16 - em relação ao advogado - a possibilidade de renúncia a patrocínio sem a necessidade de se fazer alusão ao motivo determinante, sendo o mesmo raciocínio a ser utilizado na hipótese de revogação unilateral do mandato por parte do cliente (art. 17 do CED-OAB). 6. Considerando que a advocacia não é atividade mercantil e não vislumbra exclusivamente o lucro, bem como que a relação entre advogado e cliente é pautada na confiança de cunho recíproco, não é razoável - caso ocorra a ruptura do negócio jurídico por meio renúncia ou revogação unilateral mandato - que as partes fiquem vinculadas ao que fora pactuado sob a ameaça de cominação de penalidade. 7. Não é possível a estipulação de multa no contrato de honorários para as hipóteses de renúncia ou revogação unilateral do mandato do advogado, independentemente de motivação, respeitado o direito de recebimento dos honorários proporcionais ao serviço prestado. 8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. (STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.882.117, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27/10/2020) A decisão já é objeto de debate pela comunidade jurídica em geral5 e desperta - evidentemente - o interesse dos advogados6. A contratação de honorários: cada caso é um caso É preciso atentar para a impertinência da aplicação ampla e irrestrita das conclusões alcançadas pelo STJ no REsp nº 1.882.117/MS. A solução, embora soe adequada para determinados casos e alguns contratos em particular, nem por isso alcança todas as múltiplas possibilidades que a casuística oferece. Cada contratação de serviços jurídicos se reveste de características peculiares, que reclamam soluções igualmente peculiares7.  Basta ver que a remuneração dos serviços advocatícios pode assumir, a princípio, dois formatos: em honorários pro labore e ad exitum. A diferença entre os modelos decorre de suas respectivas causas. No primeiro caso, os honorários correspondem à contraprestação pelos serviços. A causa imediata da remuneração - que é contraprestação, o componente do outro extremo da relação sinalagmática8 - é o serviço considerado em si mesmo, independentemente do resultado proporcionado ao contratante. Inúmeras são as formas de pactuar a remuneração pro labore: com pagamento inicial ou final, parcelado ou não; com pagamentos periódicos, como na advocacia de partido; com pagamentos escalonados conforme o grau de jurisdição em que ocorre a atuação etc. A segunda espécie de remuneração (cotalícia, quota litis ou ad exitum) tem como causa, no outro polo da relação sinalagmática, a obtenção de alguma vantagem pelo constituinte. Para que seja devida esta honorária, deve-se apresentar um determinado e esperado resultado, fruto da atuação do advogado. Neste caso, a exigibilidade dos honorários está necessariamente condicionada (condição suspensiva) à efetiva concretização do resultado previsto em contrato. Também há diferentes possibilidades: porcentual sobre o benefício econômico obtido pelo cliente; valor nominal em razão do provimento de um recurso; pagamento em razão do sucesso na negociação de uma determinada cláusula específica, etc. Se o cenário é assim rico; se as particularidades são tantas quantos são os diferentes contratos9, soluções generalistas não dão conta de todos os casos adequadamente. Esse raciocínio se aplica também às sanções contratuais em caso de revogação precoce do mandato. A decisão do STJ referida, embora não seja revestida das qualidades de um precedente (na acepção do art. 927, CPC, pelo menos), fixa uma tese cuja reprodução automática e generalizada deve ser evitada. Será injusta (e antijurídica) a estipulação que determine, em caso de revogação, o vencimento antecipado da integralidade dos honorários pro labore que seriam pagos ao final do serviço? Se o trabalho não se realizou em todo, há causa para a remuneração integral? Será também injusto que, em caso de extinção precoce do mandato, os honorários ad exitum se convertam automaticamente em uma determinada quantia a título de pro labore (ou mesmo de multa compensatória)10? As circunstâncias são distintas, e como tais devem ser apreciadas e julgadas. A questão da confiança O Superior adota como razão de decidir o argumento de que a contratação de advogados se funda na confiança. A decisão especa-se, inclusive, em dispositivos do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (Res. 02/2015/CFOAB)11. Embora a afirmação seja verdadeira, é também verdadeiro que todas os contratos se fundam na confiança e devem se desenvolver em torno dela, na direção do adimplemento12. A relação entre cliente e advogado, ainda que fundada em uma confiança peculiar, de índole subjetiva, atraente de regime próprio, é também e sobretudo uma relação obrigacional. Não é imune, portanto, à observância do modelo da boa-fé objetiva, que impulsiona o laço obrigacional ao adimplemento. A falha na performance integral do contrato, ainda que causada pela possível revogação do mandato (motivada, e.g., pela quebra da confiança em sua faceta subjetiva), frustra o iter do liame contratual. Imagine-se a hipótese em que o advogado é contratado para atuação em uma complexa ação reparatória de danos, com remuneração em honorários pro labore e ad exitum. Realiza todas as providências preparatórias; pesquisa extensivamente jurisprudência e doutrina; desenvolve uma tese para o caso; protocola a petição inicial (que sintetiza as estratégias processuais e a condução do processo). Ato contínuo, o cliente cassa o mandato e constitui novo causídico. Há uma violação clara da confiança subjetiva e objetiva, dessa vez em prejuízo do advogado. Por qual razão não é possível tutelar, em contrato, por cláusula penal compensatória, essa justa expectativa do advogado de realização da evença? Se justifica, efetivamente, resolver o problema apenas pela estreita via do arbitramento e da reparação de danos? Considerações finais Proibições gerais e abstratas às cláusulas penais (notadamente as de índole compensatória), às cláusulas de vencimento antecipado, enfim, às previsões contratuais que desde logo traçam os efeitos e consequências para a extinção precoce do contrato - e.g. pela revogação do mandato -, impedem injustificadamente a regulação privada de fenômenos da vida de relação. Esses fatos jurídicos, mais do que resolvidos pelo direito de danos, podem ser destinatários do exercício da autonomia privada. É certo que, ao fim e ao cabo, essas estipulações contratuais não podem ter o condão de obstaculizar o exercício, pelo cliente-mandante, da faculdade de revogar o mandato ou de desistir da ação, por exemplo. Da mesma forma, e na mesma medida, devem ser tutelados os interesses do advogado-mandatário, que tem a justa expectativa da realização plena do contrato. A confiança, ao contrário de afastar, parece justificar a possibilidade de gravar contratos de prestação de serviços advocatícios com cláusulas cominatórias de sanção na hipótese de revogação do mandato (em alguns casos e guardadas certas limitações). O julgado do REsp nº 1.882.117 resolveu (certo ou errado) um caso. E os demais? *Eroulths Cortiano Junior é pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.   **Paulo Mayerle Queiroz é mestrando em Direito na UFPR. Advogado em Curitiba/PR. __________ 1 TJPR, 12ª Câmara Cível, AC nº 988.646-0, Rel. Des. Rosana A. G. Fachin, julg. 06/03/2013. No corpo do acórdão constou: "Vigora no Direito Contratual, o Princípio da Autonomia da Vontade, por meio do qual as partes possuem a liberdade de contratar..." e "Dessarte, o fato de terem sido estipulados os honorários em 50% (cinquenta por cento) sobre a quantia a ser recebida pela constituinte, não caracteriza a abusividade da cláusula". 2 TJPR, 11ª Câmara Cível, AC nº 1.140.680-3, Rel. Juiz 2º Grau Francisco Cardozo Oliveira, julg. 02/04/2014. 3 No acórdão da Apelação constou: "No caso em exame, considerando que o apelante já pagou o valor de R$ 10.000,00 referente à remuneração concomitante à atuação do advogado no processo, bem como que a pactuação da cláusula quota litis constitui exceção, pode-se concluir que a cumulação das duas formas de remuneração fere o regime ético-disciplinar da advocacia". 4 Nos aclaratórios, o Tribunal levou em conta fatores exógenos ao contrato, como o incentivo a demandas de massa, a entrada de jovens advogados no mercado de trabalho e até as peculiaridades da ação para a qual o advogado foi contratado. Posteriormente, o STJ reformou o acórdão do TJPR e revigorou a sentença de 1º Grau. 5 Por todas as publicações sobre o tema, exemplificativamente: CRUZ E TUCCI, J. R.. Interpretação do STJ de cláusula penal no contrato de honorários. 2021. Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 11 mar. 2021; Especialistas opinam sobre rescisão unilateral de contrato advocatício: Recente julgado da 3ª turma do STJ fixou que a rescisão unilateral não enseja multa de pagamento integral de honorário. Acesso em: 11 mar. 2021. 6 O perfil oficial do Superior Tribunal de Justiça no Instagram (@stjnoticias) publicou sobre o resultado do julgamento (vide). No momento em que é elaborado este texto, a publicação conta com mais de 60 comentários (a título de comparação: outras postagens do mesmo perfil contam com uma média aproximada de 10 comentários). 7 Não se ignora o papel de uniformização que assume uma Corte como o STJ. A questão é outra: a casos similares, soluções similares; a casos distintos, soluções distintas. 8 Sinalagma, nos dizeres de Pontes de Miranda, é o "toma-lá-dá-cá" (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 2012. Passim). 9 A complexidade que informa a fixaão da horário aparece no art. 49 do Código de Etíca e Disciona da OB, que orienta a contrata~çao a parir de vários parâmetros: Art. 49. Os honorários profissionais devem ser fixados com moderação, atendidos os elementos seguintes: I - a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; 8 Ver arts. 21 a 26 e 34, III, do Estatuto e arts. 14 e 111 do Regulamento Geral. CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB 13 II - o trabalho e o tempo a ser empregados; III - a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV - o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para este resultante do serviço profissional; V - o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente eventual, frequente ou constante; VI - o lugar da prestação dos serviços, conforme se trate do domicílio do advogado ou de outro; VII - a competência do profissional; VIII - a praxe do foro sobre trabalhos análogos. 10 O que o STJ também rejeita, vide REsp nº 1.346.171/PR, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão. A decisão se sujeita às mesmas críticas aqui expostas. 11 Sobre o assunto específico, o CED/OAB dispõe apenas: "Art. 17. A revogação do mandato judicial por vontade do cliente não o desobriga do pagamento das verbas honorárias contratadas, assim como não retira o direito do advogado de receber o quanto lhe seja devido em eventual verba honorária de sucumbência, calculada proporcionalmente em face do serviço efetivamente prestado." 12 Essa conclusão é secundada pela seminal obra do Prof. Clovis do Couto e Silva: A obrigação como processo. É também em função da textualidade do art. 421, CC, que se pode afirma-lo.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O contrato de namoro é um aborto jurídico?

O tema do contrato de namoro sempre foi polêmico, desde a sua gênese. De fato, o próprio nome já desperta um misto de curiosidade e estranhamento. Não se sabe ao certo a quem atribuir o pioneirismo do termo. A expressão começou a figurar em reflexões jurídicas e, até mesmo, em reportagens nas revistas de grande circulação1. No presente texto, examinaremos com especial destaque o primeiro acórdão que se tem notícia que referenciou o contrato de namoro. Trata-se da Apelação Cível nº 70006235287 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 16 de junho de 2004, pela Sétima Câmara Cível. Como se verá adiante, é do voto do Des. Rel. Luiz Felipe Brasil Santos que se extrai o seguinte excerto que dá nome a esta reflexão, a saber: "(...) contratos de namoro, esses abortos jurídicos que andam recentemente surgindo por aí (...)".  Importa ressaltar que foi a partir desse pronunciamento que vários escritos2 passaram a afirmar com veemência que o contrato de namoro seria nulo de pleno direito, porque teria como única finalidade afastar de modo fraudulento normas jurídicas cogentes. Ocorre que esse não foi o prisma de análise do julgado. Lamentavelmente, o acórdão parece ter sido mais citado do que efetivamente lido e compreendido. Por isso, seu exame se faz importante até mesmo para desfazer falsas crenças. Antes, porém, cabe uma importante advertência metodológica: o julgado em comento é extremamente rico em argumentação e fundamentação. As matérias foram debatidas com rigor, após ampla dilação probatória e, como já se espera em temas sensíveis, o resultado foi proclamado por maioria (e não por unanimidade). Para além de todo o esmero dos eminentes magistrados, também ganhou destaque o trabalho dos advogados das partes. Nas palavras do Des. José Carlos Teixeira Giorgis: "este é um processo como poucos, porque é raro encontrarmos num feito um trabalho tão profícuo, profundo e dedicado de ambos os advogados". E prossegue o Desembargador: "Seja qual for o vitorioso, ambos merecem elogios pela dedicação à causa e pela produção do trabalho notável, o que, em contrapartida, também exige do julgador uma dedicação maior". Diante de tantos caminhos que poderiam ser percorridos para analisar o recurso de apelação, nos concentraremos na verticalização dos aspectos atinentes ao tema já enunciados no título. A demanda aforada por Marinês pretendia declarar a existência de união estável com Carlos, decretar sua dissolução, partilhar os bens amealhados no período compreendido entre 1990 e 1999 e fixar alimentos. Em primeiro grau, a magistrada julgou procedente o pedido para reconhecer a união estável entre as partes pelo período de nove anos, determinando a partilha dos bens e estabelecendo alimentos em favor de Marinês. Porém, em segundo grau foi dado provimento ao apelo para afastar o reconhecimento da união estável e os consequentes efeitos patrimoniais. Como já dito, o julgamento foi por maioria. Para o Des. Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, cujo entendimento foi acompanhado pelo Des. José Carlos Teixeira Giorgis, é absolutamente inequívoco que as partes mantiveram um relacionamento afetivo de longa duração, mas que não se revestiu das características típicas de uma entidade familiar, não tendo havido comunhão plena de vidas. Aqui, cabe lembrar que a união estável é reconhecida pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 3º, como entidade familiar. Já o artigo 1.723 do Código Civil prevê que um relacionamento afetivo, para que seja considerado uma união estável, deverá preencher os seguintes requisitos: "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Uma nota importante para a compreensão do caso: Marinês e Carlos eram solteiros, não havendo nenhuma lógica em cogitar se o relacionamento seria concubinário (nos moldes do artigo 1.727 do Código Civil), uma vez que ambos eram plenamente desimpedidos para, querendo, se casarem. Os fundamentos que levaram os julgadores a afastar a constituição da união estável estão especialmente centrados na ausência de publicidade e de objetivo de constituir família. Quanto ao fato de a união ser contínua e duradoura, entendeu-se que apesar das alegações de terem existido períodos de afastamento, o relacionamento foi bastante longevo, alcançando quase uma década. No que toca a ausência de publicidade e de objetivo de constituir família, foi consignado que o casal nunca coabitou, não manteve conta corrente ou poupança em conjunto, não figuravam como dependentes no imposto de renda ou plano de saúde do outro, não eram apresentados na sociedade como companheiros em união estável e mantinham vidas independentes apesar do relacionamento afetivo. Nesse sentido, destaca-se um elemento probatório acostado aos autos: a declaração do pároco da igreja que Carlos frequentava por mais de vinte anos no sentido de que quando questionava o fiel sobre casamento, ouvia de Carlos que ainda não teria encontrado a mulher ideal para constituir família. O que mais chama atenção no acórdão é o que serve, nas palavras do próprio Des. Luiz Felipe Brasil Santos, de "inspiração, norte e até de filosofia" no enfoque do "cipoal de provas deste processo". O Relator afirma, com acerto, que examinará os autos a partir da seguinte mentalidade: "devemos, antes e acima de tudo, respeitar a opção pessoal das pessoas, a liberdade individual de cada um constituir a forma de relacionamento que melhor lhe aprouver, indagando, com muita cautela, as razões pelas quais essas pessoas teriam optado por não casar, podendo fazê-lo, mas não o fazendo. E, por isso, só reconhecendo a união estável em situações em que ela esteja palpitante na prova dos autos, nunca em situações dúbias, em situações contraditórias ou em situações em que a prova se mostre dividida, porque aí vamos estar fazendo como João Baptista Villela refere: casando de ofício quem não o fez motu proprio". Baseado em tais premissas, reformou a decisão exarada em primeiro grau e afastou a caracterização da união estável ante a ausência da comunhão plena de vida e dos elementos constantes no artigo 1.723 do Código Civil. Pois bem, compreendidas as linhas mestras da decisão, cabe então indagar: as partes pactuaram contrato de namoro? O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou o instrumento como elemento de prova para entender pela não configuração da união estável? A resposta para os questionamentos acima é não. O julgamento em comento não enfrentou a questão do contrato de namoro por uma razão bem simples e óbvia: as partes não o pactuaram. Em nenhum momento dos autos há qualquer menção sobre tal instrumento. Ocorre que no afã de explicitar a cautela que deve guiar a magistratura em decisões como aquela, no sentido de evitar ao máximo uma indevida intromissão do Estado-Juiz na vida privada das pessoas, o julgador assim asseverou: "É isso que não desejo realizar nunca, porque tenho certeza de que não estarei colaborando para o afeto, não estarei colaborando para a realização espontânea do amor, da autonomia de vontades; pelo contrário, estarei colaborando para a proliferação do medo, para o resguardo das pessoas sob a forma de contratos de namoro, esses abortos jurídicos que andaram recentemente surgindo por aí, que são nada mais do que o receio de que um namoro espontâneo, natural, simples e singelo, resultante de um afeto puro, acabe transformando-se em uma união com todos os efeitos patrimoniais indesejados ao início" (grifo nosso). A crítica feita pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos parece estar muito mais direcionada ao aludido receio que as relações de namoro sejam transformadas em união estável de forma indevida, projetando consequências patrimoniais que não foram previamente e inequivocamente desejadas pelas partes.    Feitas essas considerações, voltemos então à pergunta que intitula este texto: o contrato de namoro é um aborto jurídico? Considerando a polissemia do termo "aborto" e, também, o neologismo semântico de "aborto jurídico" - aqui tomado como palavra ou expressão já existente e que ganha outro novo significado - cabe perquirir o real alcance do que teria dito o julgador. A partir de interpretação subjetiva formulada por esta autora, quer nos parecer que a expressão "aborto jurídico" foi empregada no julgado como sendo uma espécie de intervenção externa voluntária utilizada pelas partes com o objetivo de evitar que se dê vida aos efeitos jurídicos consequentes do relacionamento. Nesse sentido, assiste razão ao julgador. É muito grave o fato de o instituto da união estável ter ganhado tentáculos tão extensos e numerosos a ponto de levar o ordenamento jurídico a promover a criação de instrumentos para evitar sua configuração. No fundo, a grande lição que se extraí aqui é que o instituto da união estável precisa urgentemente ser repensado. Não se ignora que a união estável passou por um longo e tortuoso caminho até alcançar reconhecimento constitucional e status de família e, posteriormente, receber um regramento infraconstitucional. É fato, inclusive, que esse regramento quando vertido na codificação civil de 2002 padeceu de várias imprecisões e inconstitucionalidade já declarada. Esse caminho lembra um movimento pendular, que vai da sua negação, avança para a indenização por serviços prestados e pela sociedade de fato e aporta na família. Agora, porém, parece ter atingido o outro extremo da trajetória: alcançar relações amorosas e afetivas em que não há vontade expressa de ambas as partes para que se constitua.    Assim, o maior desafio do instituto hoje parece estar nucleado na definição de bases mais sólidas e concretas para sua constituição. Afinal, transformar qualquer relacionamento em união estável é, antes de tudo, banalizar essa forma tão digna de família. Por essas razões, enquanto perdurar a extensa zona de penumbra que norteia o conceito jurídico da união estável, sua natureza jurídica e seus requisitos de constituição, parece pertinente, sim, pactuar contratos de namoro3. Por certo que eles só serão válidos se encontrarem exata ressonância com aquilo que é vivido pelas partes no cotidiano. Porém, caso o relacionamento evolua para uma união estável, as partes já podem fixar qual será o regime de bens (podendo, portanto, afastar o regime legal da comunhão parcial). Por fim, conclui-se que uma análise crítica e atenta do julgado permite retirar lições completamente diversas do que uma leitura apressada poderia sugerir. A intensa utilização pela doutrina da expressão "aborto jurídico" de forma descontextualizada induz em erro o leitor e gera perigosas incompreensões. O conselho dado aos acadêmicos nos seus primeiros anos dos bancos escolares parece cada vez mais atual: quer entender? Leia o texto original. *Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora de Direito Privado da Escola Superior de Advocacia do Paraná. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Advogada. Mediadora. Autora da obra "Contrato de Namoro: amor líquido e direito de família mínimo", publicada pela Editora Fórum, em sua segunda edição e reimpressão  __________ 1 OYAMA, Thais. Homens precavidos estão assinando contratos de na~o-compromisso com namoradas. Revista Veja, São Paulo, Ed. 1746, 10 abr. 2002. Com a devida vênia à repórter, acredita-se que o título da matéria seja bastante equivocado por reforçar estereótipos de gênero infelizmente comuns no passado, mas que não mais resumem a plural sociedade brasileira contemporânea.  2 Em homenagem aos ditames de elegância acadêmica e da pretensão de afastamento de qualquer espécie de "pessoalização" do debate, deixa-se de mencionar expressamente tais textos. Porém, é certo que o leitor não encontra dificuldade em localizá-los, eis que estabelecem verdadeira relação de causa e efeito entre o julgado e a tese de nulidade do contrato de namoro. 3 Defende-se que a natureza jurídica do contrato de namoro seria mais afeta aos negócios jurídicos de direito de família. Isso em razão da polêmica doutrinária sobre a patrimonialidade dos efeitos do contrato. Para melhor compreensão, seja consentido remeter o autor a seguinte obra: XAVIER, Marilia Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
No debate jurídico brasileiro já há alguns bons anos quando se trata de planos de saúde ou operadoras de saúde suplementar, a tendência é pela demonização do setor, com críticas fundadas e infundadas e, não raro, desprovidas de alicerce em dados que fundamentem os argumentos. É comum que os críticos deem destaque aos altos índices de judicialização do setor ou, de reclamações perante os órgãos de defesa do consumidor, sem analisar com profundidade e objetividade sempre necessárias, os aspectos técnicos que envolvem esse complexo setor. Neste exato momento, o tema que está sendo tratado sem o imprescindível cuidado técnico-jurídico é o dos aumentos que foram suspensos em razão da pandemia e que agora, a partir de janeiro de 2021, começarão a ser aplicados pelas operadoras. O primeiro aspecto técnico a ser considerado diz respeito às operadoras. Do que estamos falando quando nos referimos a operadoras de saúde? Rapidamente mencionamos as 4 ou 5 operadoras de saúde que se encontram no topo do ranking, sem recordar que segundo dados da Sala de Situação1 da Agência Nacional de Saúde Suplementar existem 737 operadoras de saúde suplementar em todo o país, espalhadas pelos 27 estados federativos e Distrito Federal e que atendem a números variados de beneficiários. Assim, qualquer medida adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS deverá ser aplicada igualmente a todas as 737 operadoras de saúde em atividade no setor desde aquelas que ocupam o topo do ranking, até aquelas que ocupam os últimos lugares em número de beneficiários e, consequentemente, em valores de faturamento. Outro aspecto importante e que tem sido reiteradamente argumentado é que no ano passado, em razão da pandemia da Covid-19, foram suspensos os atendimentos eletivos e, por isso, as operadoras de saúde teriam tido menor volume de atendimentos e, consequentemente, de despesas. Não foi isso o que ocorreu! A Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, em 25 de março de 2020, alterou o sistema de prazos para atendimento previstos na Resolução Normativa n.º 259, de forma que com prazos um pouco mais dilatados (de 7 dias para 14 dias para realização de consulta médica, por exemplo), pudessem ser praticadas medidas preventivas de contaminação da Covid-19. Foram suspensos os prazos para internação eletiva e para utilização de hospital-dia. A ANS manteve a obrigatoriedade de atendimento para casos em que os tratamentos não podiam ser interrompidos ou adiados por colocarem em risco a vida do paciente: atendimentos relacionados ao pré-natal, parto e puerpério; doentes crônicos; tratamentos continuados; revisões pós-operatórias; diagnóstico e terapias em oncologia, psiquiatria e aqueles tratamentos cuja não realização ou interrupção colocaria em risco o paciente, conforme declaração do médico assistente (atestado). Também ficaram mantidos os prazos para atendimentos de urgência e emergência. Essa medida durou apenas até a data de 09 de junho de 20202 quando a ANS determinou o retorno dos prazos e dos atendimentos eletivos, até porque os hospitais que prestavam serviços para o setor de saúde suplementar já haviam se organizado adequadamente para permitir o atendimento em segurança para os beneficiários, sem contato com as alas isoladas para atendimento de contaminados ou suspeitos de contaminação por Covid-19. Assim, é exagero afirmar que as operadoras de saúde deixaram de atender durante o período da Covid-19. Ao contrário, continuaram atendendo com prazos dilatados para alguns casos, com prazos iguais para outras situações, atenderam regularmente as urgências e emergências e, desde o primeiro momento atenderam os casos de infecção pelo coronavírus com todos os protocolos determinados, o que incluiu realização de exame para constatação da infecção, ventilação mecânica, intubação, medicação, internação prolongada em unidades de terapia intensiva, entre outros. É incorreto, ainda, afirmar que as operadoras atenderam menor número de casos em 2020. Houve o represamento em decorrência do compreensível temor da população e da flexibilização de prazos, porém a partir de meados do ano com a diminuição dos índices de contaminação e óbito decorrentes da Covid-19, o percentual de atendimentos voltou a subir. A Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS divulgou dados sobre atendimentos das operadoras de saúde em 18 de dezembro.3 Com esses dados demonstrou que: - Taxa Mensal de Ocupação de Leitos - Comum e UTI4 - teve redução de agosto a dezembro de 2020 e se manteve em média com 65% de ocupação. - Exames de Tomografia Computadorizada de Tórax tiveram aumento de até 202% em julho de 2020 comparado com fevereiro do mesmo ano. - Os índices de sinistralidade caíram para 62% em junho de 2020 e alcançaram o patamar de 79% em novembro de 2020. Em agosto de 2020 a Agência Nacional de Saúde Suplementar suspendeu os reajustes de mensalidade dos beneficiários que deveriam ser aplicados de setembro a dezembro para todas as modalidades de planos de saúde.5 O reajuste será aplicado a partir de janeiro de 2021, embora já existam vozes contrárias a essa retomada alicerçados em argumentos jurídicos os mais variados, porém, quase sempre carentes de argumentos técnicos imprescindíveis para a correta análise do problema. É preciso recordar dois aspectos técnicos essenciais para a discussão jurídica dos contratos de planos de saúde: (i) como se dá a formação do fundo mutual; e, (ii) a cadeia de suprimentos da qual dependem as operadoras de saúde. O fundo mutual é formado com parte dos valores das mensalidades pagas pelos usuários; a outra parte, é destinada ao pagamento de despesas administrativas, de distribuição e para remuneração do capital investido (lucro). Em poucas palavras: uma parte do valor da mensalidade é destinado às despesas assistenciais cujos valores pertencem exclusivamente aos beneficiários; e, outra parte é destinada às operadoras. A parcela destinada ao fundo mutual atende rigorosamente a cálculos atuariais e é fiscalizada pela ANS; a parcela destinada às operadoras atende aos princípios constitucionais da ordem econômica. Determinar que não sejam aplicados índices de reajuste para o ano de 2021 é ferir de morte os fundos mutuais e, decretar graves dificuldades de sobrevivência para operadoras de menor porte que se encontram localizadas em todas as regiões do país, atendem milhões de pessoas e, não terão como buscar subsídios para a continuidade de suas atividades. Perdem os consumidores duas vezes: a primeira, porque os fundos mutuais poderão ficar sem os recursos necessários para custear as despesas assistenciais (exames, consultas, internações, terapias etc.); e, perdem uma vez mais se operadoras de menor porte forem impactadas a ponto de cessarem suas atividades. Outro aspecto técnico relevante é a cadeia de fornecimento de suprimentos que o setor de saúde suplementar utiliza obrigatoriamente e, que sem dúvida, é uma das mais complexas de todo o setor produtivo. Todas as operadoras de saúde suplementar - seguradoras, medicina de grupo, autogestão e cooperativas -, contratam a compra de produtos e serviços de fornecedores. Essa contratação inclui desde os insumos mais simples e baratos - gases, soro fisiológico, alimentos -, até os insumos mais complexos - equipamentos de milhões de reais para exames de imagem, medicamentos de uso exclusivo em hospitais, quimioterápicos etc. -, muitas vezes disponibilizados por um único fornecedor, por exemplo, o laboratório farmacêutico que detém por lei a exclusividade de fabricação e distribuição de um determinado quimioterápico. Nenhuma operadora de saúde suplementar, mesmo aquelas ditas verticalizadas que possuem médicos e hospitais contratados para seu uso exclusivo, conseguem fabricar/produzir todos os insumos necessários para suas atividades. Precisam necessariamente comprar produtos e serviços que se sujeitam impiedosamente à lei da oferta e da procura que se não está escrita em nenhum código ou lei, também nunca será derrogada enquanto vivermos sob o regime capitalista. As negociações de preço variam em conformidade com a necessidade de utilização, assim as operadoras de maior porte podem pagar menos que as de menor porte, isso sem computar as naturais dificuldades de logística em um país de larga extensão territorial como o Brasil, que também impactam decisivamente no preço final. Mutualismo e cadeia de suprimentos complexa são fatores essenciais para o equilíbrio das operadoras de saúde suplementar no Brasil e ambos, são custeados pelo valor das mensalidades pagas pelos beneficiários. As regras de reajuste dos planos de saúde podem ser aprimoradas e é necessário que esse debate seja feito de forma técnica e séria pela sociedade brasileira, com a contribuição dos juristas que estudam essa modalidade de contrato. A sociedade brasileira exige cada vez maior governança e transparência das empresas em todos os setores econômicos, em especial aqueles que atuam em áreas sensíveis como a saúde e a educação. A atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS pode ser mais decisiva para a melhoria das relações entre beneficiários e operadoras. Sem se converter em órgão de defesa do consumidor individual o que as agências regulatórias não são, pode e deve a ANS aprimorar as relações nesse setor de forma a garantir o equilíbrio e a proteção dos vulneráveis de forma coletiva. O consumidor tem vários e importantes canais para esclarecer dúvidas sobre os índices de reajuste ou, exigir seus direitos e deve utilizá-los sempre. Pode utilizar o Serviço de Atendimento ao Cliente - SAC, obrigatório para setores regulados como a saúde suplementar; pode utilizar as Ouvidorias, obrigatórias por força de decisão da ANS; pode utilizar a plataforma digital consumidor.gov da Secretaria Nacional de Direito do Consumidor - SENACON, com índice histórico de resolução de conflitos bastante positivo; pode utilizar a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, que tem o sistema de Notificação Preliminar de Intermediação - NIP por meio do qual o beneficiário noticia o problema e pede resposta para a operadora, tendo a agência como intermediária; pode utilizar os Procons e o judiciário. Mas acreditar que as operadoras de saúde suplementar no Brasil possam ficar sem a aplicação de reajustes referentes ao período 2019/2020, que deveriam ter sido aplicados de setembro a dezembro e foram suspensos e que isso não trará consequências para os consumidores, é caminhar ao largo da realidade e da técnica. E isso não é papel do Direito! __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021. 2 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021. 3 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021. 4 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021. 5 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Os contratos em 2020: o ano da pandemia de Covid-19

Esta é a última coluna do Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), deste 2020, o ano da pandemia de Covid-19. Se até março seguíamos o nosso curso "normal", com temas que até então eram de relevo, a sua chegada ao Brasil trouxe grandes impactos para o Direito Privado Nacional, o que, por óbvio, repercutiu diretamente sobre os contratos. A partir desse mês, quando tivemos o início do estado de emergência, esta coluna passou a ser diária e depois semanal, tendo sido publicados 62 artigos. Isso mesmo, 62 artigos, sobre temas variados, de autoria de Everilda Brandão, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Salomão Resedá, Rodolfo Pamplona Filho, João Hora Neto, Rafael Mansur, Gustavo Henrique Baptista Andrade, Marcos Ehrhardt Júnior, Pablo Malheiros da Cunha Frota, Raif Daher Hardman de Figueiredo, Arnaldo Rizzardo Filho, Jeniffer Gomes da Silva, Marcos de Souza Paula, Gabriela Buarque Pereira Silva, Anderson Schreiber, Bruno Casagrande e Silva, José Augusto Fontoura Costa, Marco Aurélio Fernandes Garcia, Felipe Quintella, Hercules Alexandre da Costa Benício, Angélica Carlini, João Pedro Leite Barros, Marcelo Matos Amaro da Silveira, João Pedro Kostin Felipe de Natividade, André Luiz Arnt Ramos, Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira, Úrsula Goulart, Cesar Calo Peghini, Renato Mello Leal, Ronnie Preuss Duarte, Jânio Urbano Marinho Júnior, Ricardo Alves de Lima, José Fernando Simão, Maurício Bunazar, Cristiano Sobral Pinto, Oksandro Gonçalves, Daniel Bucar, Luciana Pedroso Xavier, Adroaldo Agner Rosa Neto, Carla de Calvo Dantas, Ana Luiza Maia Nevares, Paulo Nalin, Fernando Carvalho Dantas, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Bruna Duarte Leite, Marcos Catalan, Rodrigo da Guia Silva, Marília Pedroso Xavier, William Soares Pugliese, Carlos Eduardo Pianovski, Bianca Kremer, Gustavo Tepedino, Carla Moutinho, Gabriel Schulman, João Pedro Biazi, Rodrigo Mazzei, Bernardo Azevedo, Aline de Miranda Valverde Terra, Vynicius Pereira Guimarães, Eduardo Nunes de Souza, Roger Vidal Ramos, Fernando Rodrigues Martins e Pablo Renteria. Entre os assuntos tratados, destacaram-se aqueles relativos a temas como prescrição, princípios contratuais, caso fortuito e força maior, enriquecimento sem causa, revisão, extinção, adimplemento substancial, endividamento, racionalidade econômica, contratos digitais, negócios imobiliários, locação, franquia, seguro, transporte, contratos e sucessão, entre outros. Além dessa farta produção doutrinária - não vista em tempos recentes, e que também se verificou em outros ambientes, virtuais ou não -, em 2020 foram editadas leis emergenciais para tentar resolver os problemas decorrentes da pandemia. Farei o destaque de três delas. A primeira é a Lei n. 14.046/2020, originária da Medida Provisória n. 948, dispondo sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e de cultura em razão da pandemia de Covid-19. A norma tem claro intuito protetivo das empresas, para "salvar" esses setores, em detrimento dos direitos e interesses dos consumidores. Entre as suas regras que devem ser destacadas, o art. 2º estabelece que, na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão da pandemia, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem: a) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou b) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas. Ainda conforme o § 1º deste comando, tais operações se darão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data e a partir de 1º de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de cento e vinte dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou trinta dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes. Se o consumidor não fizer essa solicitação no prazo assinalado de cento e vinte dias, por motivo de falecimento, de internação ou de força maior, o prazo será restituído em proveito da parte, do herdeiro ou do sucessor, a contar da data de ocorrência do fato impeditivo da solicitação (§ 2º). Esse crédito poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, devendo-se respeitar os valores e as condições dos serviços originalmente contratados e o prazo de dezoito meses, contado da data do encerramento desse estado de calamidade pública (§§ 4º e 5º). O prazo para restituição pelo prestador de serviço é de doze meses, novamente a partir do encerramento desse estado de calamidade, e somente ocorrerá se os prestadores de serviços ficarem impossibilitados de exercer as alternativas antes referidas (§ 6º do art. 2º da lei 14.046/2020). Seguindo, o art. 5º da lei 14.046/2020 prevê que eventuais cancelamentos ou adiamentos dos contratos de natureza consumerista regidos pela norma caracterizam hipótese de caso fortuito ou de força maior, "e não são cabíveis reparação por danos morais, aplicação de multas ou imposição das penalidades previstas no art. 56 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, ressalvadas as situações previstas no § 7º do art. 2º e no § 1º do art. 4º desta Lei, desde que caracterizada má-fé do prestador de serviço ou da sociedade empresária". Lamenta-se o teor do preceito,  generalizando os adiamentos como eventos imprevisíveis e inevitáveis, e decretando-se uma indesejada moratória ampla e irrestrita, mais uma vez em detrimento dos interesses dos consumidores. O segundo diploma legal a ser mencionado é a lei 14.034/2020, que consagrou regras emergenciais para a aviação civil brasileira, em razão da pandemia da Covid-19, também com vistas a proteger as empresas desse setor. Todavia, ao contrário da lei 14.010/2020 - que será a última a ser abordada -, esse diploma legal trouxe regras definitivas, muito além do reembolso do valor das passagens que foram canceladas em virtude da pandemia, no longo prazo de doze meses, contados da data do voo cancelado (art. 3º). Entre essas regras permanentes foi incluído um art. 251-A no Código Brasileiro de Aeronáutica, exigindo a prova efetiva do dano moral - chamado na lei de "dano extrapatrimonial", com falta de propriedade técnica, uma vez que a Constituição Federal, o Código Civil, o CDC e o CPC falam em "dano moral" -, em virtude de falha na execução do contrato de transporte, o que inclui o atraso de voo e o extravio de bagagem. Trata-se de um claro retrocesso na tutela dos consumidores, diante de julgados que vinham concluindo pela presença de danos presumidos ou in re ipsa em casos tais. Como outro aspecto relevante, essa mesma lei também trouxe novas e específicas excludentes de responsabilidade civil contratual para o transporte aéreo. Conforme o novo § 3º do art. 256 do Código Brasileiro de Aeronáutica, incluído pela lei 14.034/2020, constitui caso fortuito ou força maior, para fins de análise do atraso do voo, a ocorrência de um ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis: a) restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo; b) restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária, podendo aqui ser enquadrado, por exemplo, o "apagão aéreo" que nos acometeu no passado; c) restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada, podendo aqui também se enquadrar esse eventos; e d) a decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias, hipótese essa, sim, que tem relação com a crise decorrente da Covid-19. Observa-se que foram incluídas na lei excludentes que antes não eram admitidas, pois ingressavam no risco do empreendimento ou risco do negócio das empresas de transporte aéreo, o que representa outro retrocesso na tutela e proteção dos passageiros-consumidores. Como terceira lei, foi muito comentada e debatida, especialmente nas nossas colunas deste último ano, a lei 14.010/2020, que criou o Regime Jurídico Emergencial Transitório de Direito Privado (RJET). O novo diploma teve origem no Projeto de lei 1.179/2020, por iniciativa dos Ministros Dias Toffoli (STF) e Antonio Carlos Ferreira (STJ), tendo sido proposto pelo Senador Antonio Anastasia. O seu conteúdo foi elaborado sob a liderança do Professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., contando com a minha honrosa participação e o meu total apoio. A atuação do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT) foi também destacada no parecer da Senadora Simone Tebet, relatora do projeto. A sua inspiração, segundo o Professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., foi a Lei Failliot, da França, de 21 de janeiro de 1918. Segundo ele, "era uma lei de guerra, de caráter transitório, mas que introduziu no ordenamento jurídico um suporte normativo que possibilitou a resolução, por qualquer das partes contratantes, de obrigações de fornecimento de mercadorias e alimentos, contraídas antes de 1º de agosto de 1914, bem assim que ostentassem a natureza sucessiva e continuada, ou apenas diferida" (RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A célebre lei do deputado Failliot e a teoria da imprevisão. A sua extensão de aplicação, com caráter transitório, foi fixada entre 20 de março e 30 de outubro de 2020, imaginando-se que nesta última data os efeitos da pandemia já teriam cessado entre nós, o que acabou não ocorrendo. Eventualmente, caso tais consequências persistam, defendo que a norma seja reativada, por um novo projeto de lei. Com impacto direto para os contratos, o art. 3º da lei 14.010/2020 impediu ou suspendeu os prazos de prescrição e de decadência entre a sua entrada em vigor - em 12 de junho - e 30 de outubro. Por certo que muitos casos concretos de disputas contratuais deverão considerar essa regra, para os fins de se reconhecer ou não a perda da pretensão ou do direito potestativo. Além disso, o seu art. 7º trouxe parâmetros para a revisão e extinção dos contratos. O dispositivo havia sido vetado pelo Sr. Presidente da República, sob o argumento de que a legislação civil já disporia de mecanismos suficientes para a revisão contratual. Todavia, o Congresso Nacional derrubou o veto, pois, de fato, apesar da existência de normas a respeito da temática, haveria a necessidade de sua adaptação e de pequenos ajustes para atender aos desafios decorrentes da pandemia da Covid-19. Conforme o caput desse art. 7º da lei 14.010/2020, não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário. Adota-se, portanto, o entendimento consolidado de análise limitada e objetiva da imprevisibilidade, algo que se sustenta para os tempos pandêmicos, em prol da conservação dos contratos. Também se preceituou que tais afastamentos não se aplicam à revisão ou resolução dos contratos de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), que não exige o elemento da imprevisibilidade; e pela Lei de Locações (lei 8.245/1991). Sobre essa última, apesar das considerações feitas por parte da doutrina, não houve a inclusão de regra específica de revisão, o que acabou por incrementar a judicialização, no meu entender. Apenas se afastou o despejo liminar em algumas situações (art. 9º da lei 14.010/2020). Ademais, o art. 7º, § 2º, do RJET estabelece que, "para os fins desta lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários". Assim, não é possível aplicar a revisão contratual prevista no CDC aos contratos civis ou mesmo aos contratos que se enquadram como de consumo, mas que sejam celebrados somente por empresas ou empresários. Afasta-se, portanto, para as ações revisionais fundadas na crise decorrente da Covid-19, a chamada teoria finalista aprofundada ou mitigada, que possibilita a utilização da Lei Protetiva em favor de sujeitos que não sejam destinatários finais do produto ou serviço, mas que estejam em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência. Não incide para essas revisões fundadas na pandemia entre empresários a tese n. 1 constante da Edição n. 39 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, dedicada ao Direito do Consumidor: "o Superior Tribunal de Justiça admite a mitigação da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor - CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), apesar de não ser destinatária final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade". Novamente, essa limitação visa a trazer maior estabilidade aos contratos, limitando-se aos fins da lei transitória. Em todas as hipóteses de revisão, mesmo dos contratos e negócios submetidos ao CDC e a outras leis específicas, as consequências decorrentes da pandemia do coronavírus nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos ou ex tunc, mas apenas efeitos a partir de então ou ex nunc. É o que consta do art. 6º da lei 14.010/2020, outra norma que traz segurança aos contratos em tempos tão difíceis, sendo louvável. Esse comando também havia sido vetado pelo Sr. Presidente da República, de forma inexplicável, uma vez que tutela, mais uma vez, a segurança e a estabilidade das relações contratuais, afastando pedidos retroativos oportunistas. Além disso, prevê o art. 8º da lei 14.010/2020 que "até 30 de outubro de 2020, ficou suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos".  Afastou-se a aplicação do prazo de arrependimento de sete dias para os serviços nele referidos, e que foram muito incrementados e considerados essenciais no período da pandemia, iniciado em 12 de março de 2020. Para a entrega de outros produtos, como roupas e outros bens duráveis, o art. 49 do CDC continuou tendo plena aplicação. Como último aspecto deste breve texto de retrospectiva, destaco que muitas foram as ações judiciais propostas para a revisão de contratos no ano de 2020, em virtude da pandemia da Covid-19, com grandes variações de entendimento. O que se procurou, na essência, foi afastar a já criticada moratória ampla e irrestrita em benefício de qualquer uma das partes, o que poderia trazer graves consequências para o sistema jurídico nacional. Em pesquisa realizada para atualização de minhas obras, constatei uma grande quantidade de julgados a respeito de locação imobiliária, contratos de prestação de serviços escolares, planos de saúde e negócios de aquisição de energia. Sobre os últimos, destaco a seguinte conclusão do Tribunal Paulista, somente para ilustrar a dedução pelo equilíbrio: "Decisão que deferiu a tutela antecipada para determinar que o agravado pague apenas a energia elétrica efetivamente consumida, em razão da pandemia (COVID 19). Parte agravante que pleiteia reforma da decisão. Desacolhimento. Crise de saúde em combate à Pandemia do COVID 19. Medidas restritivas governamentais em garantia do isolamento social que a todos afeta, especialmente com limitação às atividades turísticas e educacionais desenvolvidas pelo autor. Força Maior que justifica análise da situação contratual frente a excepcionalidade vivificada. Cláusula contratual que impõe aquisição mínima de energia fora dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade, com desequilíbrio evidente. Sacrifício excepcional que a todos se impõe. Consumidor que não pretende a suspensão dos pagamentos mas lançamentos pelo consumo efetivamente realizado enquanto perdurar a situação excepcional. Decisão agravada mantida" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2231179-36.2020.8.26.0000, Acórdão n. 14075283, Campinas; Trigésima Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luis Fernando Nishi, julgado em 20/10/2020, DJESP 23/10/2020, p. 2635). Em todos os casos de revisão, contudo, cabe a advertência que consta em outro aresto do Tribunal Paulista, no sentido de que "a mera dificuldade financeira do consumidor não é suporte para o descumprimento das obrigações sem as consequências da mora ou do inadimplemento" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2174726-21.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13919752, São Paulo, Décima Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Afonso Bráz, julgado em 31/8/2020, DJESP 03/09/2020, p. 2216). Reitero, como já fiz em outro texto publicado neste canal, a necessidade de se observar a boa-fé e a transparência nas demandas de revisão contratual. As análises judiciais relativas à pandemia de Covid-19 se deram, no ano de 2020, em sede de tutela provisória e em agravo de instrumento. Aguardemos, portanto, a abordagem do mérito definitivo das questões pandêmicas e suas repercussões para os contratos nos próximos anos, considerando-se especialmente a duração da crise entre nós. E que 2021 seja melhor do que o ano que ora termina. Ficam os meus agradecimentos a toda a Diretoria do IBDCont, aos nossos articulistas e associados, a todos os que se dedicaram ao aprimoramento do Direito Privado neste último ano e ao Migalhas, pela parceria que prossegue.  
Uma das primeiras lições de um estudante de Direito Contratual é que o contrato é realizado para trazer benefícios para as partes, daí a importância da existência do sinalagma. O universo dos contratantes, com todos os seus interesses, é o ponto de partida de todas as condutas pactuadas. Pois bem. É o ponto de partida, mas não o de chegada. O Estado Social, e posteriormente o sócio-ambiental, vieram remodelar completamente a função contratual, incluindo um terceiro contratante no pacto obrigacional, a sociedade, e ao mesmo tempo exigindo um impacto no meio social e natural consonante com os princípios constitucionais. É interessante observar como os contratos conseguem refletir o modelo de sociedade, seus valores, suas riquezas, suas prioridades. Em países democráticos os contratos sofrem grande influência dos direitos fundamentais; já em países teocráticos e ditatoriais, é possível ver a proibição de mulheres firmando contratos sem um homem que as represente, ou a permissão de trabalho penoso, insalubre, até mesmo de crianças, sem qualquer intervenção do Estado. Os objetos envolvidos nos contratos também caracterizam as sociedades. Naquelas agrícolas, a compra e venda tende a ser o centro dos negócios; nas sociedades mais desenvolvidas e digitalizadas, o direito de acesso tende a um protagonismo antes desconhecido. A virada do milênio e a era digital produziram um giro nos modelos contratuais e produziu inovações impactantes nas estruturas tradicionais. Um desses fatores é a migração do centro de interesse do contrato, antes no objeto, agora na pessoa do contratante. Aqui se quer destacar a reputação do contratante como centro de interesse do contrato, ou a sua causa fundante. Com o fenômeno das redes sociais desenvolveu-se exponencialmente o desejo das pessoas de serem apreciadas, elogiadas, e em linguagem digital, seguidas. E para muitas, esses elementos passaram a ser produto de negócios. Ser o centro de interesse de centenas ou milhares de pessoas passou a ter um valor de mercado. A influencer Camila Coutinho, com 2,5 milhões de seguidores, chega a cobrar 13 mil reais por uma postagem em seu instagram. Emily Weiss, em 2018, ultrapassou a marca de 100 milhões de dólares de faturamento na sua empresa de cosméticos graças ao seu número de seguidores. "Nesse contexto, marcas que surgem em blogs e perfis em redes sociais viram ameaças reais não só às empresas de cosméticos mas também a fabricantes de alimentos, cervejarias e companhias de vários outros segmentos".1 Ter boa imagem, ter uma vida que se torna objeto de desejo ou de inspiração de pessoas, passou a ser rentável. Mais que viver de imagem, o contratante passou a viver de reputação. E o interessante é ver que essa reputação não precisa necessariamente se enquadrar em determinando lugar no campo da moral. O que interessa é o impacto sobre a vida das pessoas, de modo a influenciar centenas e milhares a um modo de pensar, de vestir, de viver. Não é a toa que negócios milionários vem sendo geridos por pessoas cujo trabalho é apresentar-se nas redes sociais mostrando sua vida, seu cotidiano com a família, sua alimentação, seus cuidados com a beleza, sua intimidade. São os influenciadores digitais, cujo negócio se funda em contratos com marcas comerciais que possam ser apresentadas aos seus seguidores, influenciando seu modo de comprar, trabalhar, se divertir ou se locomover. A tendência de consumo é comer, vestir ou visitar lugares indicados por aquela pessoa que se admira e que se acompanha nas redes sociais. Pode-se dizer que hoje em dia não é a qualidade do produto que determina a venda, e sim a pessoa que usa esse mesmo produto. Por isso tais contratantes precisam sempre estar atualizados com a moda, com o luxo, com as tendências culturais e de costumes. Cada um atrai um nicho de mercado, seja pela beleza, pelo estilo de vida simples ou ostensivo, pela religião ou qualquer outro fator que possa agregar milhares de pessoas sobre um ponto de interesse. Quanto mais seguidores, maior o valor de mercado do contratante, e maiores as cifras envolvidas em postagens. O ponto de análise aqui é o fato de que o motivo fundante do contrato é a reputação do contratante, seu estilo de vida, ou a simbologia que exerce em determinados grupos sociais. Em outras palavras, a razão de contratar é o impacto social produzido por uma pessoa, e por isso mesmo ela não pode mudar seu comportamento. Tomemos por exemplo uma marca de produtos para bebê. Certamente ela contratará uma pessoa com estilo de vida sereno, maternal e que espelhe amor por crianças. Já uma marca de cerveja procurará uma pessoa ativa, festeira e que exale alegria e dinamismo constantes. Se uma delas muda seu estilo de vida, de forma a impactar aqueles que a admiram, a razão do contrato deixa de existir. Mas uma certa dinâmica social tem interferido nesse tipo de contrato. Trata-se do impacto de certas condutas do contratante, que saindo do roteiro do contrato, são repelidas socialmente por fatores ideológicos, culturais, ativistas, ecológicos, etc. O elemento controlado do contrato, como a manutenção da aparência, do estilo de vida, do patrimônio, é fácil de lidar. Contudo, não se tem qualquer controle sobre a reação do público a pequenas condutas que por muitas vezes passam totalmente despercebidas pelo contratante. É o caso recente de uma digital influencer que no começo da pandemia do Covid-19 realizou uma festa com amigas em seu apartamento, postando fotos de alegria, muita bebida e luxo. As redes sociais se movimentaram com uma infinidade de comentários ruins destacando a falta de solidariedade com a família dos mortos, com os desempregados, com os trabalhadores em risco. O resultado lhe rendeu a perda de pelo menos nove patrocinadores, milhares de seguidores e milhares de reais advindos dos seus contratos. As empresas não quiseram associar a marca de seus produtos a quem desdenha de um momento de luto nacional. Por isso a pergunta que se faz é a seguinte: a conduta do contratante, fora do ambiente contratual ou da sua prestação de serviços, pode ser considerado justa causa para o rompimento do contrato? Um comentário tido como racista em uma rede social, a acusação de violência doméstica ou de assédio sexual, ou uma opinião política que discrimine um grupo social ou uma região do país, quando realizados fora do cumprimento da prestação de serviço contratada, pode legitimar a extinção do contrato por justa causa ? É possível se falar em resilição por denúncia cheia ? Quando analisamos o contrato sob a ótica da sua função social, é possível dizer que sim. Se a reputação é a causa fundante do contrato, pode ela ser a causa da extinção contratual. A pessoa do contratante, e seu modo de se relacionar com o mundo, passa a ser tão importante quando o produto comercializado. Pode o contratante balizar as condutas que considera como elemento do negócio para que possa ao mesmo tempo determinar as que deseja repelir. O politicamente correto pode ser um elemento dosador do cumprimento ou descumprimento da prestação de serviços. Alguns temas tem se tornado a marca dos tempos atuais, e o mundo dos negócios já compreende que não pode ignorá-los, sob pena de grande impacto em sua imagem. São temas como igualdade de gênero, direitos humanos, empoderamento feminino, ecologia, proteção da infância e dos idosos, entre outros. Se a sociedade é o terceiro sujeito dos contratos, cabe a ela apontar como determinado contratante é visto, qualificando-o pela admiração ou repúdio. E aqui a lição mais importante da teoria dos contratos trazida pelo Estado Social: o contrato deve ser ótimo para as partes e ótimo para a sociedade. Sãos os contratantes, como agentes ativos do contrato, que devem cumprir a função social. Pessoas que não refletem os valores de dignidade, humanismo e igualdade consolidados na Constituição Federal não cumpre a função social dos contratos, e por isso, suas condutas, ainda que praticadas fora do cenário de cumprimento do pacto, são legitimadoras de rompimento contratual. Talvez em nenhuma outra época tenha sido tão evidente como estamos conectados uns aos outros. O capitalismo começa a sofrer os impactos das causas sociais mais atuantes e começa a compreender que a venda de produtos e serviços não pode mais ser balizada em dados estatísticos ou planilha de preços. Os valores e pessoas agregadas ao produto são tão ou mais relevantes do que números. Se o capitalismo está se humanizando não é fácil dizer, mas uma certeza é que os contratos que lhe servem de base já requerem uma nova linguagem jurídica e social. *Everilda Brandão Guilhermino é advogada. Mestre e doutora em Direito Civil (UFPE). Membro do IBDCont. __________ 1 Revista Exame. Quem Manda na Beleza?. Por Ivan Padilla e Karin Salomão. 27/8/2020.
Introdução Objetivamos discutir se a meação pode ou não ser objeto de contrato de cessão, qual a forma desse negócio e se esse contrato pode ingressar na matrícula dos imóveis do casal. Meação é metade dos bens comuns, assim entendidos aqueles que se comunicam em razão de um regime de bens de casamento. Cada cônjuge tem direito à meação quando da extinção do casamento, como pelo divórcio ou pela viuvez, direito esse que redundará na necessidade de ser realizada a partilha dos bens comuns. É comum que, por ocasião do inventário, o viúvo queira transferir sua meação a um dos herdeiros. O artigo discutirá essa questão e avançará para tratar também de uma outra hipótese não tão comum: a de um cônjuge querer ceder sua meação no caso de um divórcio sem partilha. Saudamos, desde logo, o jurista João Francisco Massoneto Junior por ter levantado debates sobre o assunto em recente artigo sobre a matéria (Cessão dos direitos de meação ou doação da meação?. Disponível aqui. Publicado em 11 de novembro de 2020). Cabimento da cessão de meação Entendemos pelo cabimento, desde que o casamento já tenha sido extinto (seja pela morte, seja pelo divórcio). Não podemos fazer interpretações para dificultar o quotidiano das pessoas, ainda mais para criar restrições que a lei não estabeleceu. Por isso, não há motivos para proibir a cessão do direito à meação após o fim do casamento (seja pela morte, seja pelo divórcio). A cessão do direito à meação durante a constância da sociedade conjugal, todavia, nos parece inviável por dois motivos. O primeiro é a natureza personalíssima dos direitos matrimoniais (inclusive o patrimonial). Essa natureza personalíssima só desaparece com o fim da sociedade conjugal, pois aí a meação deixa de ser um direito patrimonial personalíssimo para se tornar um direito patrimonial impessoal. O segundo é que o direito à meação só nasce com o fim do casamento. Antes disso, cada cônjuge tem a propriedade integral do bem concomitantemente com o outro consorte, tudo dentro da noção de condomínio de mão juntas (ou por mancomunhão) que foi adotada pelo Código Civil para o regime de bens. Assim, é viável que, com a morte do cônjuge, o outro ceda a terceiros não só o seu direito hereditário (art. 1.793, CC) como também o seu direito à meação. Igualmente, se ocorrer o divórcio sem a partilha dos bens, nada impede que qualquer dos cônjuges ceda a terceiros o seu direito à meação, caso em que caberá ao cessionário pleitear a partilha dos bens comuns. Forma e natureza jurídica da meação O segundo ponto é saber se a cessão da meação deverá ser feita por termos nos autos, por escritura pública ou por instrumento particular. A meação é a metade dos bens comuns pertencente ao cônjuge supérstite em razão do regime de bens do casamento. Não é herança e, portanto, ao tratarmos de uma cessão de meação, não se estamos a falar aqui da cessão de direito hereditário prevista no art. 1.793 do CC (que exige escritura pública) nem de uma renúncia de herança, que, à luz do art. 1.806 do CC, pode ser feita por termo nos autos ou por escritura pública. Daí se segue que, à luz da jurisprudência do STJ, a cessão de meação não poderia ocorrer por termo nos autos (STJ, REsp 1196992/MS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/8/2013). Além disso, o STJ entende que a cessão da meação pelo(a) viúvo(a), em regra, pode ser feita tanto por instrumento particular quanto por escritura pública, salvo quando envolver imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, pois, nessa hipótese, a escritura pública seria obrigatória em razão da incidência do art. 108 do CC (que exige escritura pública para negócios jurídicos envolvendo direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 salários mínimos) (STJ, REsp 1196992/MS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/8/2013). Ousamos, porém, pensar diferente. Temos por irrelevante se há ou não bem imóvel envolvido na meação, pois esta é um bem coletivo na modalidade de universalidade de direito (art. 91 do CC) e, assim, ela deve ser considerada um bem (coletivo) móvel por se enquadrar em um direito pessoal de caráter patrimonial nos termos do art. 83, III, do CC. É diferente do que se dá com a herança, que, apesar de também ser uma universalidade de direito, é considerada um bem imóvel por previsão legal expressa nesse sentido (art. 80, II, do CC). Assim, entendemos que é inaplicável o art. 108 do CC para a cessão do direito à meação, até porque estamos a tratar da transmissão de uma universalidade de direito, e não de um dos bens singulares que compõe essa universalidade. Nesse sentido, de um lado, a cessão de meação tem forma livre, se for onerosa (nos termos do art. 107 do CC). Deveras, ela poderia ocorrer sem forma escrita, mas haveria um problema operacional: o cessionário teria de comprová-la perante o juízo incumbido da partilha a sua condição, o que será uma prova difícil de ser produzida se a cessão tiver adotado forma não escrita. De outro lado, a cessão terá de observar qualquer forma escrita (instrumento público, particular ou termo nos autos), se for gratuita (nos termos do art. 541 do Código Civil, que exige forma escrita para a doação e que deve ser aplicado analogicamente para cessões gratuitas de direito em sintonia com o princípio da proteção simplificada do agraciado1). Consequentemente, a cessão de meação pode ocorrer por termo nos autos também, não por conta do art. 1806 do CC (que se restringe a renúncia de herança), e sim por força do fato de o "termo nos autos" poder ser equiparado a uma forma escrita em compatibilidade com os arts. 107 e 541 do CC. Portanto, a natureza jurídica da meação é de bem móvel e coletivo (na modalidade universalidade de direito) e, como há apenas um julgado do STJ pela necessidade de escritura pública para a sua cessão na hipótese de haver imóveis e pelo descabimento da cessão por termo nos autos, convém que outro caminho seja adotado diante da falta de consolidação da jurisprudência. Averbação da cessão de meação nas matrículas dos imóveis do casal Na matrícula dos imóveis do casal, é obrigatório que seja noticiado o casamento do proprietário, o que é feito por meio da indicação desse estado civil no registro do título aquisitivo do imóvel (se o adquirente era casado à época) ou da averbação da certidão de casamento (se o adquirente casou posteriormente), tudo nos termos dos arts. 167, II, "1", e 176, II, "4", "a", e III, "2", "a", da LRP2. Essa notícia não é para mera identificação. Ela tem uma finalidade jurídico-real. Ela se destina a deixar publicizado que o imóvel pode ter-se comunicado ou não em razão do regime de bens entre os cônjuges. Nesse sentido, se um dos cônjuges cede o seu direito à meação, há uma potencial mutação jurídico-real na titularidade desse imóvel, pois, agora, a eventual meação sobre esse imóvel passa a se reverter em favor do cessionário. Se proibíssemos que essa mutação ingressasse na matrícula por meio de averbação (e não por registro, porque se está alterando o anterior ato que noticia o estado civil de casado do titular), deixaríamos o cessionário sem proteção "erga omnes". O cedente poderia dar-lhe um "golpe", cedendo à meação a outrem ou apressando-se a adquirir o imóvel por uma partilha e a aliená-lo a terceiro, o que evidentemente contraria a lógica do sistema registral. Assim, entendemos que é cabível a averbação da cessão do direito à meação com fundamento no art. 246 da LRP, que autoriza a averbação para qualquer fato que, por qualquer modo, pode vir a alterar ato anterior. Trata-se, na verdade, uma averbação-notícia, destinada a dar ciência a terceiros de que o imóvel, em futura partilha, poderá vir a ser titularizado pelo cessionário, e não mais pelo cônjuge cedente. Essa averbação, porém, não é obrigatória diante do fato de que não necessariamente essa cessão de meação implicará a partilha do imóvel em questão, até porque este, no procedimento de partilha, poderá vir a ser considerado um bem particular (e não um bem comum). Sob essa ótica, o cessionário pode, mesmo sem essa averbação, já pleitear, desde logo, a partilha dos bens, caso em que o formal de partilha poderá ser diretamente registrado na matrícula do imóvel para sua transferência em nome do cessionário. É fundamental, porém, que, nesse registro do formal de partilha, seja consignado expressamente que o adquirente se trata de um cessionário de meação, tudo em homenagem ao princípio da continuidade registral. A única desvantagem de não averbar a cessão é a falta de proteção que o cessionário terá perante terceiros de boa-fé que venham a adquirir o imóvel ou que venham a, em primeiro lugar, averbar uma outra cessão de meação. Conclusão Em suma, entendemos que: (1) a cessão de meação é cabível no caso de extinção do casamento; (2) ela pode ocorrer por termo nos autos, por instrumento particular, por escritura pública ou, se for onerosa, por qualquer outra forma não escrita (embora, à falta de uma forma escrita, o cessionário terá de dificuldades operacionais de comprovar a sua condição), mas ressalvamos que há um julgado do STJ a exigir escritura pública quando houver imóvel. (3) A cessão de meação pode ser averbada na matrícula dos imóveis do casal apenas para efeito de proteção de terceiros, mas essa averbação não é indispensável ao futuro registro do formal de partilha. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral na UnB e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado/parecerista. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro. __________ 1 A propósito desse princípio, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. Acesso em 4 dezembro 2018-A. 2 Lei de Registros Públicos.
I. Introdução. Enquanto os candidatos intensificam o seu contato - atualmente, sob recomendação, mais virtual do que físico - com seus eleitores, os simpatizantes de cada um dos lados aumentam sua confiança na vitória. Defensores fervorosos de determinado ponto de vista político, alguns eleitores lançam-se ao trabalho de convencimento dos indecisos, procurando demonstrar força de convicção contra os adversários, participando de carreatas e panfletagens. Porém, no meio de todo esse fervor, existem aqueles que buscam um desafio ainda maior e partem para a celebração de compromissos mediante apostas. É interessante notar que com o aumento das redes sociais, cresceu a autonomia de publicação de conteúdo de propaganda eleitoral. Os filtros antes existentes - seja por interesse ideológico, político ou econômico - das empresas detentoras das permissões para transmissão de conteúdo pela televisão ou pelo radio, foram lançados ao chão com o advento dos smartphones. A partir dos atuais e avançados meis de comunicação, respeitados os limites de razoabilidade impostos pelas plataformas digitais, qualquer pessoa poderá publicar sua opinião, mensagens ou imagens de algo que produza. A facilidade de tais expedientes trouxe consigo o estímulo na sua utilização, em volume muito maior do que na eleição anterior, e, certamente, menor do que na próxima, sendo possível encontrar-se stories, feed e mensagens através de aplicativos de comunicação instantânea, onde pessoas esbanjam quantias elevadas de cédulas de real sobre mesas, camas, ou qualquer outro objeto, afirmando que se trata de dinheiro vinculado a uma aposta quanto a vitória do candidato A ou do candidato B, nas eleições municipais que se aproximam. Independentemente da inclinação política ou da região do país em que se encontrem os envolvidos, o ritual seguido é sempre o mesmo: Uma parte apresenta uma determinada quantia e entrega para um terceiro. Da mesma forma, a outra parte repete o ato. O terceiro confere os valores e ambos os celebrantes apertam as mãos, em sinal de concordância e de concretização da relação contratual. Assim, está desenhado o contrato de aposta. Porém, cabível o alerta para um detalhe importante. II. Breves palavras sobre o contrato de jogo ou aposta. Ao tratar sobre o tema, o Código Civil trouxe à lume a abordagem simultânea de dois contratos: o de aposta e o de jogo. Basicamente, a diferença entre um e outro está na participação dos contratantes junto ao evento justificador do enlace. Assim, no contrato de jogo, ambas as partes participam diretamente da partida e, de acordo com o seu esforço ou com sua sorte, aquele que lograr êxito recebe determinada quantia do perdedor. Por sua vez, no contrato de aposta, o resultado justificador do cumprimento da obrigação não possui a participação dos contratantes. A disputa é realizada por terceiros, cabendo aos celebrantes apenas a indicação do vencedor ao final. Atualmente, com a evolução da informática, inúmeros são os sites, sediados em países onde há o permissivo legal, que promovem a realização de apostas esportivas. Voltadas para o resultado das eleições, as pessoas que se expõem nas redes sociais com suas patrimônios em dinheiro, celebram um contrato de aposta, pois, como dito, não possuem a participação direta no resultado da vitória do candidato A ou B. Ainda que se fale que as partes trabalham no convencimento dos eleitores, isso não é elemento justificador para alterar a natureza da aposta em um contrato de jogo, pois não são eles, os celebrantes, os candidatos. Doutrinariamente, é possível classificar os jogos e apostas em ilícitos, lícitos, tolerados e lícitos permitidos. Nestes últimos, tudo ocorre da forma ordinária, com a dívida sendo passível de ser executada, nos moldes determinados pelo art. 814, § 3º, do Código Civil. Para adequá-lo a este parâmetro, faz-se necessário, porém, que haja o atendimento às exigências legais, como, por exemplo, a aprovação por parte da Caixa Econômica Federal. No que se refere aos jogos lícitos tolerados, não haverá a exigibilidade da dívida. Portanto, havendo êxito de qualquer das partes, a obrigação que nasce do trato negocial será natural, não sendo possível impor o cumprimento. A obrigação dela decorrente, portanto, nasce, desde então, como natural, e, consequentemente, sem exigibilidade jurídica, o que não implica reconhecer a sua inexistência (art. 814, CC). Tanto é assim que o próprio Código Civil, ao final do art. 814, afirma que se o pagamento for feito de forma voluntária - indicando, exatamente, a ausência de possibilidade de imposição jurídica - não será possível reavê-lo, por qualificá-lo como existente e válido. A obrigação, neste caso será, então, tida como cumprida, estando quites as partes envolvidas no negócio jurídico. Deve-se fazer um adendo, logicamente, que o pagamento mediante dolo ou feito por pessoa incapaz, não terá validade, cabendo o retorno do montante ao pagador. III. Devo não nego, pago quanto quiser. Certamente, a principal característica dos contratos de jogo ou aposta está estampada no art. 814, do Código Civil, onde consta que a obrigação dele decorrente, nasce com uma característica especial, pois desprovida de exigibilidade jurídica por ser natural. Assim, não haveria como demandar judicialmente o devedor para que se posicione no sentido do cumprimento do avençado. Seria uma opção exclusiva do devedor, posto que caso pretendesse não adimplir, nada lhe seria imputado. É interessante notar que, exatamente por conta da ausência de coerção jurídica, os juros e multas que, em tese, podem existir nas cláusulas contratuais, também não poderão ser cobrados, ante a gravitação jurídica segundo a qual o acessório segue a mesma sorte do principal. Apesar de muitos apresentarem inúmeras resistências ao contrato de jogo ou aposta, não há como negar que o desenho feito pelo art. 814, do C.C., aponta no sentido de uma valorização da perspectiva da confiança a patamar bastante elevado. Isso porque, quando adentra nesse universo, os celebrantes terão a plena consciência de que o cumprimento obrigacional somente será realizado mediante única e exclusiva vontade do devedor. Sua negativa lançará a obrigação ao limbo, pois ausente a coercibilidade protetiva no caso de inadimplemento. A sabedoria popular espelha muito bem essa situação. O conhecido dito popular "devo não nego, pago quando quiser", representa o contorno da obrigação natural e, exatamente, a situação que se envolvem os celebrantes do contrato de jogo ou aposta. Não se trata de invalidade negocial, como se ouve de alguns. Desde que atendidos os requisitos legais, a celebração é plenamente válida, tendo peculiaridades no âmbito, apenas, da coerção quanto ao cumprimento obrigacional. Porém, evitar abusos é sempre uma missão do operador do direito. Neste ponto, é preciso destacar um elemento fundamental trazido pelo art. 814, do Código Civil, pois havendo pagamento voluntário este não poderá ser revisto. Isto significa que havendo o adimplemento da obrigação decorrente da relação negocial, não será possível alegar a ausência da coerção para reaver o valor pago. IV. Uma vez pago, pago está. No que se refere ao pagamento da obrigação vinculada à dívida decorrente da aposta, o Superior Tribunal de Justiça, tem precedente interessante sobre o tema, cuja apreciação ficou sob a relatoria do Min. Humberto Gomes de Barros, da Terceira Turma, quando do julgamento do Resp. 822.922/SP, decidiu que quando houver o adimplemento a partir de cheque, a ausência de provimento de fundos para sua compensação, autoriza o manejo de ação de cobrança, sem que isso represente burla ao quanto determinado na legislação civil. Pode parecer estranha a postura adotada pelo Ministro Relator, mas, na realidade, não há qualquer empecilho quanto a sua incidência. Trata-se de posicionamento que busca reprimir o tu quoque na medida em que, conforme mencionado, não há a exigibilidade do pagamento, porém, quando feito, de forma voluntária, deverá resultar no efetivo adimplemento. A emissão de cheque sem provimento de fundos resultará na quebra da boa-fé, razão esta que justifica a possibilidade da cobrança judicial. Perceba que, neste caso, a demanda não está vinculada, necessariamente, à causa justificadora do título de crédito, mas, sim, alo próprio conteúdo que a ele compõe. Não havia sobre o devedor a obrigação para o pagamento da dívida. A inexigibilidade jurídica, conforme disposto no art. 814, do Código Civil, impõe que o pagamento deve ser feito, sempre, de forma voluntária. Alie-se a isto a perspectiva de que o contrato de aposta é válido, porém revestido de obrigação natural, condição esta que, logo em primeiro plano, não desmorona as estruturas justificadoras do contrato. Em sentido semelhante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, firmou posicionamento no sentido de que "adimplida a obrigação por meio de cheque, ordem de pagamento à vista, cabível a ação de execução para pagamento do título não compensado, sendo despicienda, nessa fase, qualquer discussão a respeito da suposta inexigibilidade da dívida oriunda de jogo de azar, a qual, uma vez adimplida espontaneamente, mostra-se irrepetível, máxime quando não comprovada coação na emissão do título, consoante prevê o artigo 814 do Código Civil" Ao efetuar o pagamento com título de crédito desprovido de fundos, o emitente, como mencionado, rompe com os deveres anexos do contrato, fulminando a boa-fé objetiva constante no art. 422, do Código Civil. Disso implica reconhecer a prática de ato de abuso de direito na perspectiva do tu quoque, posto que estaria ele beneficiando-se de conduta ilícita praticada. Esconder a exigibilidade de um cheque, que figura como um título de crédito de pagamento à vista, somente porque origina-se de dívida de aposta, é causa justificadora de certo desvirtuamento do sistema. Isso porque haveria um duplo benefício ao devedor, pois, primeiramente, seria-lhe conferida a voluntariedade do pagamento diante da condição de obrigação natural e após, mesmo rejeitando-se esta situação de relativo conforto - pois desprovido da imposição jurídica - ele ainda teria a possibilidade de declarar inexigível o título de crédito emitido voluntariamente, ou mesmo não efetuar a cobrança daquele desprovido de fundos. Nesta linha de interpretação, parece claro que aceitar tal posicionamento - adotado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo - seria autorizar a prática de atos qualificados como venire contra factum proprium e tu quoque, respectivamente, causando graves ruídos na base estruturante da eticidade. Mais uma vez, não se pode negar que, a partir de uma leitura inicial, idealizar a quebra da boa-fé numa relação contratual de aposta pode parecer estranho e incongruente. Porém esta impressão é apenas, como dito, inicial, posto que, apesar de toda carga ideológica incidente sobre a aposta - lembre-se que o sistema cuida de dividir a atividade em ilícita, lícita tolerável e lícita permitida - o fato é que trata-se de um contrato taxativo, pois expresso no Código Civil. Para uma análise mais adequada do que se propõe, antes de mais nada, deve-se despir-se dos pré-conceitos vinculados à ideia da aposta. Há, sem dúvidas, uma carga ideológica que atrai boa parte das conclusões erigidas sobre o tema. Discursos que estampam a marca de meio para lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, alimentação do crime organizado, entre outros, já colocam este contrato contra as cordas, antes mesmo do início de qualquer batalha. Não se quer aqui discutir legalidades ou ilegalidades de formas de apostas - como, por exemplo, bingo, caça-níquel, apostas esportivas, entre outras -  mas não se pode fechar os olhos para a situação segundo a qual trata-se de um contrato previsto no Código Civil e, como tal, aceito pelo ordenamento. Submetido aos requisitos de validade do art. 104, do CC, ele ingressará no universo jurídico com a mesma tranquilidade e disposição das modalidades mais ordinárias, como, por exemplo, a compra e venda. Superados os planos da existência e da validade, a referida avença encontra-se apta a produzir seus efeitos. É neste ponto que surge seu traço característico. Ao contrário do que ordinariamente ocorre, no caso do contrato de aposta, a coercibilidade jurídica que se impõe para o cumprimento de qualquer outra relação obrigacional inexiste. Ela já nasce manca, por qualificar-se como obrigação natural. Com isto, por mais lógico que possa parecer, querer-se afirmar que o contrato de aposta é um contrato! e é exatamente por conta desta discutível situação que não se pode negar a incidência dos arts. 421 e 422, do Código Civil, sobre suas diretrizes. Os princípios da função social e da boa-fé fazem-se presentes, incontestavelmente, em todas as fases da avença. Ora, seguindo esta trilha, alcança-se uma conclusão ideal, afinal, não sendo obrigatório o cumprimento da obrigação vinculada ao contrato de aposta, ao efetuar o pagamento o devedor abre mão desta confortável posição para adimplir o quanto constante na cártula. Nasce, então, para o credor uma situação completamente diversa daquela existente inicialmente, pois, enquanto no momento primeiro ele não tinha qualquer perspectiva de receber a prestação ajustada, agora ele tem, para si, a aquiescência do devedor quanto a imperiosidade do cumprimento do que restou ajustado. Tanto assim que o próprio art. 814, do Código Civil, deixa clara a impossibilidade de reaver aquilo que foi pago, salvo nas duas situações legalmente relatadas. Trocando em miúdos, o que se observa por parte do Código é uma preocupação com o comportamento contraditório. Não se aceita que o espectro de mera expectativa, uma vez se concretizado em pagamento, retorne para o status quo ante, salvo nas exceções legais. A base do ditado popular "devo não nego, pago quando quiser", encaixa perfeitamente para o contrato de aposta, mas, uma vez pago, não é possível reavê-lo. No caso de emissão de cheques, o pensamento a ser aplicado deve ser o mesmo. Por se tratar de um título de crédito de pagamento à vista, quando a parte que perdeu a aposta e emite a cártula, ela está transferindo a situação de expectativa para a concretude. O ato de, posteriormente, sustar sua compensação; de buscar a invalidade do pagamento pela simples justificativa de ter sido originário de aposta; ou mesmo a condição de desprovido de fundos, é postura incongruente com os preceitos da boa-fé. Antes que se joguem pedras na Jení, deve-se relembrar quem, em momento algum, se quer analisar quais modalidades de apostas encaixam-se na perspectiva da ilicitude; da licitude tolerada ou da licitude permitida. Os argumentos trazidos palmilham situação segundo a qual a esfera da licitude é assegurada, até mesmo porque, em sentido contrário, o próprio contrato seria invalidado, fulminando toda discussão em questão. Portanto, saber se, por exemplo, em qual das três esferas encontra-se a aposta esportiva, é um corte epistemológico a ser feito em outro ensaio. É interessante notar que a linha de raciocínio a ser desenvolvida seria no sentido de garantir uma proteção do sistema contra a própria conduta abusiva violadora da boa-fé. Isto abre a possibilidade de pleito, inclusive, de demanda indenizatória - art. 187, CC, responsabilidade objetiva - e de tipificação de crime de estelionato, nos moldes estabelecido pela súmula 244, do STJ. Alerte-se, também, que em se tratando de propositura de ação monitória - para casos em que o cheque tenha perdido sua exigibilidade - prescinde prova da causa debendi que deu causa ao título, já que a própria cártula firmada já faz presumir o débito que serve como fato gerador, conforme entendimento do próprio STJ. Diante disto, pode-se afirmar que o cheque é prova suficiente da existência da dívida. Em alusão aos portugueses, precisa-se separar os alhos dos bugalhos, sob pena de chancelar comportamento diverso do desejado pelo ordenamento. Não se pode confundir a inexigibilidade jurídica característica do contrato de aposta com o pagamento feito voluntariamente. Uma vez realizado, passa a ser direito do credor exigi-lo, afinal, ninguém é obrigado a fazê-lo, mas, se o fizer, que faça da melhor forma possível. Antes, porém de encerrar e cometer uma garfe, deve-se lembrar que a linha de entendimento desenvolvida até então, aplica-se, também, para a emissão de cheques anteriormente ao resultado e que, como comumente acontece, permanecem na posse de um terceiro. Exatamente por se tratar de um título de crédito de pagamento à vista, ao atuar desta forma, os contratantes, antecipadamente, posicionam-se no sentido inconteste de cumprir com a obrigação decorrente da avença. Voltando para a perspectiva da transformação da expectativa em concretude, neste caso, a chave foi girada antecipadamente, de forma cautelar e sem que se soubesse quem seria o devedor e o credor. As partes reciprocamente posicionam-se com o desejo inconteste de adimplir uma futura condição de devedor, ainda que, no exato momento da entrega dos cheques ou do dinheiro não se saiba, exatamente, quem assim será. Despindo-se de toda armadura jurídica para adentrar no mundo mais simples possível do trato social, soaria, no mínimo, estranho, até mesmo para o mais incauto, aceitar que, por exemplo, após ter deixado na posse de terceiro determinada quantia, a parte perdedora do contrato de aposta pudesse exigir a devolução do seu dinheiro. Neste caso, o terceiro é um garantidor da incolumidade do bem pertencente a cada um dos apostadores e, ao mesmo tempo, testemunha do desejo de cumprir com a obrigação. Ele, o terceiro, tem o dever de entregar a quantia ao credor do contrato de aposta, obrigação esta que tem como fundamento fático a própria aposta, mas como lastro jurídico outro contrato, que no caso o coloca na situação de depositário fiel, com todas as consequências jurídicas dai decorrentes. Afinal, não se pode esquecer que contratos sempre nascem para ser cumpridos dentro dos limites da autonomia privada que traz consigo, a função social e a boa-fé. A sopa de letrinhas trazida pela boa-fé - no caso com o venire contra factum proprium e o tu quoque - estampa ferramentas úteis ao sistema para evitar abusos na relação contratual. Especificamente no caso da aposta, não podem os navegadores deste imenso mar que é o direito civil, encantar-se com o canto da sereia que desde então desqualifica os elementos morais e a finalidade desse tipo de avença, sob pena de lançar às rochas o barco da razoabilidade. V. Conclusão. Diante de tudo o quanto foi dito, observa-se que o contrato de aposta deve ser encarado como uma relação negocial como qualquer outra. A ausência de exigibilidade jurídica da prestação não desnatura essa condição. A qualidade de natural decorrente da obrigação que surge da avença deve ser analisada com cuidado, posto que, em diversas situações práticas, é possível enxergar uma postura plenamente volitiva por parte de um, ou ambos os contratantes para o cumprimento. A condição confortável assegurada pela obrigação natural é uma postura que deve ser analisada com bastante cautela. A entrega de dinheiro para guarda por terceiros - contrato de depósito - e a emissão de cheques, são posturas que representam o cumprimento da obrigação por parte do devedor, o que atrai para si a aplicação da determinação constante no art. 814, do Código Civil, quanto à impossibilidade de reaver o montante. Trata-se de um grande exemplo trazido pelo legislador vinculado ao princípio da eticidade. De fato, estranho seria se, além da ausência de coercibilidade jurídica no contrato de jogo ou aposta, houvesse ainda a possibilidade de retorno daquilo pago voluntariamente. Pensar desta forma, resultaria na qualificação do negócio jurídico muito próximo da invalidade, desnaturando, por completo esta modalidade do contrato que, além de uma peculiaridade tão forte, carrega consigo, uma pecha social bastante marcante. A razoabilidade é um norte a ser seguido na interpretação e execução dos contratos e situação diferente não poderia ser exigida para o contrato de jogo ou aposta. De fato, a máxima popular do "devo não nego, pago quando quiser" pode ser aplicada de forma bem saliente na avença em questão, porém, não se pode deixar de lado que qualquer manifestação que conduza à identificação do pagamento, faz nascer para o credor a concretização de sua realização, desvinculando-se, completamente, da mera expecta, pois regente o princípio da boa-fé nos tratos negociais. _____________ FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Contratos. v. 4. 10 ed. rev. atual. amp. Salvador: JusPodivm, 2020. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Contratos. vol 4. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2019. GOMES, Orlando. Contratos. 24 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001. STJ. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol 3. 15 ed. São Paulo: GEN, 2020. TJ/DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TJ/MG. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: clique aqui; acessado em 30 out 2020. TJ/SP. Tribunal de Justiça de São Paulo. Disponível em: clique aqui; acessado em 31 out 2020. _____________ *Salomão Resedá é doutor e Mestre pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Bahia. Professor Universitário. Membro do Grupo de Pesquisa Serviço de Pesquisa em Direitos e Deveres Fundamentais do Brasil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual IBDCont.
"O direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana." - Tobias Barreto  Neste breve estudo, pretende-se perquirir se o princípio do equilíbrio contratual é uma norma jurídica absoluta, que não comporta relativização, ou se é possível mitigá-lo em relação a algumas categorias contratuais. Um primeiro ponto a destacar é de que vivemos hoje numa sociedade pós-industrial - complexa, plural, globalizada, massificada - largamente desigual e com múltiplos interesses assimétricos. A judicialização é um fenômeno crescente e, ao que parece, sem fim, carreando ao judiciário demandas dos mais variados matizes, engendradas via pretensões individuais e, primacialmente, coletivas, todas elas caracterizadas por um mesmo pano de fundo, isto é, uma mesma 'causa de pedir', que são as notórias desigualdades fáticas e/ou jurídicas presentes na realidade brasileira. Nesse contexto, não é desarrazoado afirmar que o justiça brasileira de há muito presta serviços a quatro grandes 'clientes', seus principais usuários -- o próprio poder público; os bancos; as telefônicas e as operadores de plano de saúde - os quais relutam em agir de forma cooperada e solidária, inclusive em respeito à jurisprudência dominante, posto que, ainda que os tribunais já tenham declarado que determinado cláusula contratual é abusiva, tais fornecedores continuam a praticá-las, fomentando, assim, a litigiosidade. Na vida contemporânea, o contrato não é apenas um poderoso instrumento de circulação de riqueza na economia capitalista, mas também visa a efetivar os valores constitucionais, mediante o adequado sopesamento dos interesses contratados. O contrato, enquanto uma obrigação por excelência, deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança, a exigir das partes uma série de atividades em prol do fim colimado, de modo que seu cumprimento ocorra de maneira mais satisfatória para o credor e menos onerosa para o devedor (COUTO E SILVA, Clóvis V. do, 2018). Em verdade, muito mais do que dissera Enzo Roppo (2009, p. 11) - "o contrato é a veste jurídico-formal de operações econômicas" - na atualidade observa-se sua expansão para outros ramos do direito privado e do direito público, regrando até interesses existenciais e não patrimoniais, como, por exemplo, em sede de direito família (pactos de união estável); em sede de direito das sucessões (pactos de planejamento sucessório); em sede de direito administrativo (convênios ou termos de cooperação); em sede de direito penal (acordos de leniência e delação premiada) e, por fim, em sede de direito processual (negócios jurídicos processuais), num fenômeno denominado de 'pancontratualismo' ou 'contratualização' das relações sociais (SCHREIBER, Anderson, 2018). Numa sociedade consumista, desigual e globalizada, contratualiza-se 'tudo ou quase tudo', o que gera uma litigiosidade exponencial, na qual são postos em disputa interesses conflitantes e assimétricos, reciprocamente amparados em princípios colidentes, como, por exemplo, o princípio do equilíbrio contratual e o princípio do pacta sunt servanda; o princípio da segurança jurídica e o princípio da revisão dos contratos; o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia privada, dentre outros. Ocorre que, em razão dessa ingente litigância contratual, exige-se que o judiciário fique atento à correta aplicação dos princípios contratuais, mediante um fundamentado juízo de discricionariedade, a fim de não descambar para um juízo de arbitrariedade - decisionista, sentimental ou ideológico. Para tanto, convém elucidar a distinta classificação dos contratos. Diferentemente da teoria contratual clássica, típica do Estado Liberal, fundada nos dogmas do voluntarismo e abstencionismo, atrelada à dicotomia direito público/direito privado (summa divisio), com o advento do Estado Social, a partir da primeira metade do século XX, uma nova teoria contratual se impõe, decorrente do dirigismo contratual (publicístico e privado), haja vista que o contrato passa a ter uma finalidade social como instrumento de política econômica, com a adoção de normas imperativas ou cogentes, materializado por uma contratação padronizada e estandardizada do seu conteúdo. As classificações clássica e moderna do contrato coexistem, valendo-se destacar que a classificação tradicional (bilateral/unilateral; oneroso/gratuito; comutativo/aleatório; consensual/real; solene/não solene, etc), própria do século XX, adota uma importante distinção entre contrato paritário e de adesão, que continua sendo utilizada pela classificação moderna do contrato, diante da sua notória relevância prática e dogmática. Já à luz da moderna classificação contratual, uma primeira distinção a ser feita reporta-se à natureza jurídica dos contratos em voga na atualidade, isto é -- o contrato civil, o de consumo e o empresarial -- posto que, a partir dela, chega-se a uma compreensão mais aclarada sobre o largo espectro do contrato. Melhor exemplificando: há contrato civil se na relação jurídica estiverem presentes leigos ou civis, em condições de igualdade jurídico-formal (partes iguais) e que não visem a obtenção de lucro por habitualidade ou profissão; há contrato empresarial se na relação jurídica envolver empresários, isto é, se as empresas celebrantes desenvolvam atividade empresarial movida pela busca do lucro (FORGIONI, Paula A., 2019); e, por fim, há contrato de consumo se as partes contratantes são 'desiguais', quer dizer, são sujeitos da relação de consumo (ratione personae), ou seja, fornecedor e consumidor (arts. 2º, 3º, 17 e 29 CDC) ou se tiver por objeto produtos ou serviços (ratione materiae) (arts. 4º e 5º CDC), independente da área do Direito em que a relação de consumo venha ocorrer, bem como irrelevante se a relação jurídica é contratual ou extracontratual. Ainda sob o âmbito dessa tríplice distinção - contratos civil, empresarial e de consumo - a moderna classificação contratual se desdobra em outras espécies contratuais, na esteira da legalidade civil-constitucional, como, por exemplo, as cláusulas contratuais gerais ou condições gerais dos contratos; o contrato relacional; o contrato cativo de longa duração; o contrato conexo ou rede contratual; o contrato eletrônico; o contrato sob o paradigma da essencialidade e, por último, o contrato empresarial e o contrato existencial, com a ressalva de que todas essas novéis espécies são consideradas contratos de consumo, salvo os contratos civis e empresariais. Contudo, a despeito dessa variada gama de espécies contratuais, afora, ainda, as categorias contratuais atípicas, próprias do século XXI, entende-se que a melhor dicotomia classificatória a ser acolhida é a do jurista Antonio Junqueira de Azevedo (2010), pertinente à distinção entre contrato empresarial e contrato existencial, por ser mais abrangente e racional, na medida que resume em apenas duas categorias o universo da contratualística moderna. De fato, percebe-se que a distinção proposta evidencia as disparidades (fática e jurídica) dos contratantes modernos, uma vez que alberga argumentos que se digladiam e que são reciprocamente fundados na principiologia constitucional, sendo que o contrato empresarial reflete os anseios do mundo empresarial e o contrato existencial se volta à proteção das pessoas físicas economicamente desafortunadas. Em essência, o que se observa é a existência de posições correlatas e antagônicas, ou seja, uma notória assimetria contratual, em que de um lado há uma clara posição de poder (econômico, técnico, jurídico, informativo) e, de outro, uma posição típica de vulnerabilidade. Objetivamente, o presente estudo adota a referida classificação - contrato empresarial e contrato existencial - por ser considerada a mais consentânea com a sociedade pós-moderna do século XXI, a despeito da convivência com a dicotomia do século passado (contrato paritário e contrato de adesão). Assim, em relação ao primeiro (contrato empresarial), entende-se aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial "ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade" (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Dito contrato também é denominado contrato de lucro ou profissional, destacando-se, entre seus caracteres: o risco empresarial, o profissionalismo, o dever de diligência, de organização, a rivalidade e a concorrência (LUPION, Ricardo, 2011). Já em relação ao segundo (contrato existencial), é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010). Efetivamente, todo contrato existencial é um contato de consumo, como, por exemplo, todas as novéis espécies antes referidas, haja vista que têm por objeto bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o seu patrimônio mínimo existencial (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros). Basicamente, a distinção mais precisa entre eles se reporta à intenção ou não do lucro das partes do contrato, assim resumida: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018). Anote-se, ademais, que a citada dicotomia logrou inconteste êxito, na medida em que foi acolhida pelo legislador, pelo menos parcialmente, quando positivou expressamente o contrato empresarial na recente Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19). À luz da referida lei (art. 7º), no contrato empresarial a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda), enfatizando, assim, um dos princípios basilares do ordenamento pátrio, o da segurança jurídica. Dessarte, o contrato empresarial é presumido como paritário e simétrico (art. 421-A CC), pois as partes se acham no mesmo patamar jurídico-formal (contratantes 'iguais'),  caracterizado pela prevalência do princípio da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda) e também reforçado pelo novel subprincípio da intervenção mínima (art. 421 § único CC), além do que somente revisável ou resolúvel em situações especiais. Diferentemente, o contrato existencial não foi positivado pela Lei da Liberdade Econômica, razão por que toda a compreensão acerca do contrato empresarial é inaplicável ao contrato existencial, uma vez que aquele é tido como paritário e, este, é eminentemente de adesão, sendo um contrato de consumo por excelência. Melhor explicando: por 'interpretação inversa' ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), no contrato existencial entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), também em 'diálogo das fontes' com a principiologia consumerista, valendo-se destacar a Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível em prol da manutenção do contrato, sendo o direito à revisão uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), também em conformidade com o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil. No que pertinente ao ponto fulcral deste estudo - o equilíbrio do contrato - registre-se que dentre os três princípios sociais do contrato, o Código Civil previu expressamente o princípio da boa fé objetiva (arts. 113, 187 e 422) e o princípio da função social do contrato (art. 421), fazendo alusão apenas implícita ao princípio do equilíbrio contratual, mediante os institutos do estado de perigo (art. 156,) da lesão (art. 157) e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480), sendo considerado, portanto, o menos estudado na doutrina e o menos referido na jurisprudência. Anote-se, inclusive, que o princípio do equilíbrio do contrato ou da equivalência material é tido como de alcance dogmático reduzido, uma vez que classificado não como um princípio autônomo em si, mas tão apenas um subprincípio dos dois demais princípios sociais do contrato (função social e boa-fé objetiva), a despeito de - ao fim -- buscar o equilíbrio entre as prestações contratadas e evitar "o abuso do poder econômico e a tirania - já anacrônica - do vetusto pacta sunt servanda." (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo, 2014, p. 97-98). De qualquer sorte, relevante observar que, independente de ser catalogado como princípio ou subprincípio, a sua importância normativa é crescente e induvidosa, mormente porque o contrato, na contemporaneidade, não pode servir de instrumento para ruína econômica de qualquer dos contratantes. Conceitualmente, diz-se que o princípio do equilíbrio contratual visa à justiça contratual, à justiça material, no sentido de efetivar a livre iniciativa (o lucro) em consonância com os valores constitucionais, além de aplicável a todo e qualquer contrato, a fim de evitar o desequilíbrio excessivo do contrato. Induvidoso que o princípio do equilíbrio contratual tem como fim reequilibrar o contrato, mormente sob o ângulo econômico, atinente aos sacrifícios (ônus) e benefícios a cargo das partes, considerando que o contrato é um processo dinâmico, complexo, cooperado e solidário, pelo qual se exige das partes uma série de condutas atinentes às suas legítimas expectativas, a fim de alcançar o seu adimplemento (COUTO E SILVA, Clovis V. do, 2018). Contudo, diferentemente do que defende a majoritária doutrina (SCHREIBER, Anderson, 2018), no sentido da preferência pelo dever de renegociar o contrato em geral, o presente estudo sustenta que não há um dever de renegociar amplo e irrestrito aplicável a qualquer espécie contratual. Re vera, entende-se ser perfeitamente lícita uma cláusula contratual que limita ou exclua a tutela do equilíbrio contratual, inclusive transferindo os riscos decorrentes do caso fortuito e força maior, desde quando se trate de um contrato empresarial, mantendo-se incólume o princípio do pacta sunt servanda, valendo-se frisar que tal cláusula é até desnecessária, à vista do disposto na própria Lei da Liberdade Econômica - que, de forma clara, prevê que a revisão/renegociação é apenas excepcional e limitada. No contrato empresarial, pois, a regra é não renegociar, em atenção à segurança jurídica. A outro giro, em sendo caso de um contrato existencial, há um dever de renegociar prima facie, por interpretação contrária/inversa ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana/igualdade/solidariedade, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional. No contrato existencial, pois, a regra é o dever de renegociar, em atenção à principiologia civil/consumerista. Ad summam, entende-se que para a correta solução do caso concreto (justiça contratual), com base num juízo de discricionariedade e não de arbitrariedade, uma primeira medida prática é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio - se empresarial ou existencial - posto que, a partir disso, advirão conclusões jurídicas diversas, assim resumidas: que há uma faculdade de renegociar o contrato empresarial e que há um dever de renegociar o contrato existencial! __________  AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos de pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p.185-186. _________.___________________. São Paulo: Saraiva, p. 186. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2018, p. 21-22. _______________.___________. São Paulo: FGV, 2018, p. 33. EROLES, Pedro. Boa-fé objetiva nos contratos: especificação normativa, cogência e dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125. FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 27. _________.________. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos - teoria geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 4. LUPION, Ricardo. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2011, p. 139-154. ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009. SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 15. ___________.________. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 275-524.
O inadimplemento consiste na mais relevante patologia observada no campo obrigacional. Mantendo-se a prestação possível e útil ao credor mesmo após o descumprimento imputável ao devedor, diz-se relativo o inadimplemento (ou, simplesmente, mora); tornando-se impossível a prestação ou inútil ao credor, o inadimplemento converte-se em absoluto. Apesar de inequivocamente mais grave, o (estudo do) inadimplemento absoluto costuma ser eclipsado pela mora, possivelmente pelo fato de o Código Civil ter a ela dedicar um capítulo próprio (arts. 394 a 401). Talvez por essa razão, questões relevantes ligadas à proteção do credor diante do inadimplemento absoluto ainda careçam de um melhor delineamento em nossa ordem jurídica. Dois são os remédios tradicionalmente reconhecidos ao credor que vê o seu crédito absolutamente inadimplido: a resolução contratual e as perdas e danos (CC, arts. 389 e 475).1 Optando o credor por exercer seu direito potestativo à resolução do contrato, as perdas e danos se somam a eventual restituição devida em razão da extinção do vínculo negocial. Caso não seja cabível a resolução ou o credor opte por manter hígida a obrigação, a impossibilidade ou falta de utilidade, características desta modalidade de inadimplemento, impedem que a prestação originária continue a integrar a estrutura da relação jurídica. Em razão disso, afirma-se que se opera a "conversão da prestação em perdas e danos", importando a "substituição da res debita pelo seu equivalente monetário".2 Este mecanismo, pelo qual a prestação original (supostamente) converte-se em uma indenização substitutiva, é denominado por parcela da doutrina como execução pelo equivalente pecuniário ou cumprimento pelo equivalente.3 Ocorre que, nos termos acima delineados, o sistema de tutela do crédito diante do inadimplemento absoluto revela-se insuficiente para uma adequada proteção ao credor. Com efeito, primeiramente, a resolução contratual não constitui um remédio de aplicação geral, tendo seu âmbito de incidência limitado, de acordo com a doutrina majoritária, aos contratos bilaterais.4 Já as perdas e danos, por força do seu caráter reparatório, não surgem automaticamente a partir do inadimplemento obrigacional, impondo-se apenas quando do incumprimento decorra um dano concreto ao credor, não bastando para tanto a simples ausência da prestação.5 Esta breve explanação é suficiente para demonstrar a possibilidade de, não obstante se verificar uma violação ao direito de crédito consubstanciada em inadimplemento absoluto, o credor restar desprovido de qualquer meio para reagir ao ilícito negocial. Imagine-se a hipótese de descumprimento de uma promessa de recompensa, que, (a) por se tratar de negócio jurídico unilateral, não pode ser resolvida pelo credor, e (b) por não ter ensejado qualquer dano ao promissário, não lhe confere o direito de pleitear perdas e danos. Estaria o direito de crédito, neste caso, totalmente desamparado pela ordem jurídica? Para contornar este problema, parcela da doutrina afirma que todo inadimplemento causa um dano ao credor, consubstanciado no próprio valor da prestação que este deixa de receber (uma espécie de "dano mínimo"), ao qual se somariam eventuais danos ulteriores.6 No entanto, já se objetou, acertadamente, que o valor da prestação não pode ser considerado um dano mínimo automático, pois este valor não traduz necessariamente o efetivo prejuízo experimentado pelo credor. Em outros termos, tal entendimento "violenta o sentido ressarcitório da responsabilidade civil. Distorce um instituto que se destina a eliminar danos. O 'mínimo' pretendido por esta doutrina é um corpo estranho no direito da indemnização."7 O fato de o pagamento de valor equivalente ao da prestação não poder ser incorporado à responsabilidade civil, em razão da apontada incompatibilidade funcional, não significa, contudo, que este valor não é devido ao credor em casos de inadimplemento absoluto. Interessante notar que a doutrina defensora da noção de indenização mínima reconhece que o papel atribuído à responsabilidade contratual seria o de "assegurar e prolongar a função do contrato, assente na criação e na circulação da riqueza".8 E, de fato, o direito de crédito não releva apenas em sua dimensão prestacional, mas representa para o seu titular também, sob o ponto de vista econômico, um valor patrimonial atual.9 Ocorre que a persecução deste valor após o inadimplemento absoluto não representa, como visto, uma forma de reparar os prejuízos concretamente suportados pelo credor, mas sim um meio de lhe garantir um sucedâneo ao cumprimento da prestação - impossibilitada ou inutilizada pelo devedor inadimplente -, permitindo que o crédito originário, que teve sua dimensão prestacional irreversivelmente aniquilada pelo inadimplemento absoluto, possa atuar ao menos em sua dimensão exclusivamente econômica, representada pelo valor "abstrato", de mercado, da prestação inadimplida. Sob esta perspectiva, torna-se possível reconciliar a execução pelo equivalente com a abordagem ainda predominante no campo da responsabilidade civil, que identifica justamente na unidade funcional em torno da reparação do dano o núcleo comum entre as responsabilidades contratual e aquiliana.10 Tal compatibilização não se dá pela atribuição, à responsabilidade contratual, de um caráter abstrato excepcional, contemplando um dano mínimo que não corresponda ao prejuízo efetivamente sofrido pelo credor. Impõe-se, na verdade, reconhecer a autonomia da execução pelo equivalente perante a responsabilidade civil.11 Referida autonomia não se limita ao campo conceitual, projetando importantes consequências na esfera aplicativa. Por se tratar de método alternativo de execução - não em sentido processual, mas em sentido material, vale dizer, de cumprimento -, seu regime é o dos negócios jurídicos, e não o da responsabilidade civil. A conversão da prestação no seu equivalente pecuniário opera uma sub-rogação real,12 de modo a submeter a prestação pecuniária substitutiva, na medida do possível, ao mesmo regime jurídico anteriormente aplicável à prestação originária. Esta solução oferece significativas vantagens sob o ponto de vista da preservação da unidade fundamental ao ordenamento jurídico. A autonomia da execução pelo equivalente permite vislumbrar a racionalidade subjacente ao sistema de proteção ao direito de crédito, que se articula em dois planos: o da tutela específica, que protege o interesse do credor de maneira mais direta e intensa, e o da tutela pelo equivalente, que visa a uma proteção subsidiária do interesse do credor e limitada ao seu aspecto econômico.13 Estas duas modalidades de tutela se manifestam nas relações obrigacionais provenientes de diferentes fontes - o negócio jurídico, o dano injusto e o enriquecimento sem causa14  -, sempre com o mesmo efeito: o de submeter a tutela pelo equivalente a um regime análogo ao incidente sobre a tutela específica. Em termos mais diretos, tem-se que (a) a execução do negócio jurídico (seja ela específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime negocial, (b) a reparação do dano injusto (específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime da responsabilidade civil e, por fim, (c) a restituição do proveito ilegítimo (específica ou pelo equivalente) submete-se ao regime jurídico do enriquecimento sem causa. Tudo isso sem prejuízo, naturalmente, da possibilidade de se reconhecer, em cada um destes campos, certas peculiaridades à tutela específica e à tutela pelo equivalente. A interpretação tradicional, e ainda majoritária, no sentido de que o inadimplemento absoluto converteria a prestação nascida de um negócio jurídico em uma prestação substitutiva de natureza indenizatória, acaba dando ensejo a uma relação jurídica submetida a disciplina híbrida, combinando aspectos do regime negocial com o regime reparatório, cujos contornos não são claramente definidos, razão pela qual se torna fonte de intensa insegurança jurídica. Toda esta problemática acaba sendo "mascarada" pela atribuição de uma natureza sui generis à responsabilidade contratual, caminho que tem deflagrado novos problemas em matérias que, no passado, não suscitavam maiores dificuldades.15 Resta saber se, apesar das suas vantagens no plano teórico, a autonomia da execução pelo equivalente pecuniário se afigura compatível com o dado normativo. O Código Civil refere-se ao equivalente pecuniário da prestação ao lado das perdas e danos em diversas passagens, especialmente ao disciplinar o inadimplemento das obrigações de dar e de restituir (arts. 234 e 239) e das obrigações solidárias (art. 279), o que poderia servir de indicativo de que o legislador reconheceu a autonomia entre as referidas parcelas. Por outro lado, a omissão do Código ao mencionar o equivalente ao tratar do inadimplemento das obrigações de fazer e não fazer (arts. 247, 248 e 251) e das obrigações indivisíveis (art. 263), bem como as referências a "resolução" ou "conversão da prestação em perdas e danos" (arts. 263 e 271) parecem, em uma primeira leitura, excluir a possibilidade de se considerar a execução pelo equivalente como um remédio distinto da responsabilidade contratual. Preceito que pode ser decisivo nesta questão, contudo, é o artigo 947 do Código Civil, que dispõe: "Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente." A inclusão do dispositivo no capítulo dedicado à indenização (arts. 944 a 954) tem levado parcela da doutrina contemporânea a interpretar o artigo como uma consagração da primazia da reparação específica sobre a reparação em pecúnia.16 É possível elencar, no entanto, ainda que sumariamente, alguns elementos do referido enunciado normativo que depõem contra a sua recondução ao campo da responsabilidade civil: (a) não há menção a dano ou prejuízo, elemento indispensável ao surgimento do dever de indenizar; (b) não se evoca qualquer relação de causalidade; (c) não há referência a qualquer dos critérios típicos de imputação de responsabilidade (culpa ou risco); e (d) o efeito previsto não é o nascimento de um dever de indenizar - a prestação pecuniária contemplada pelo artigo 947 não tem como referencial o valor do prejuízo sofrido pelo credor privado da prestação, mas sim o valor da própria prestação. O preceito, em verdade, se limita a prever como suporte fático a impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor, atribuindo-lhe o efeito de acarretar a substituição da prestação impossibilitada pelo seu valor, em moeda corrente. No mais, ao se referir à impossibilidade de cumprimento da prestação "na espécie ajustada", o dispositivo parece revelar seu propósito de disciplinar as obrigações de fonte negocial, hipótese em que a prestação devida é estabelecida, ao menos em regra, por um "ajuste" (no mais das vezes, verdadeiro acordo de vontades). As obrigações de reparar e de restituir, por sua vez, têm seu objeto definido, também em regra, pela própria lei ou por decisão judicial, e não em um ajuste entre as partes. Tudo a indicar que o artigo 947 deve ser interpretado não como norma de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual), mas sim como norma sobre o incumprimento de relações obrigacionais fundadas em negócios jurídicos, consagrando o instituto da execução pelo equivalente pecuniário. Em conclusão, o que se defende é a necessidade de releitura dos remédios atribuídos ao credor diante do inadimplemento absoluto da obrigação, reconhecendo-se a execução pelo equivalente como remédio autônomo e inconfundível com a responsabilidade civil contratual. Trata-se de interpretação que contribui para uma leitura mais racional de todo o sistema de tutela do direito de crédito e para uma maior segurança jurídica neste campo, além de se revelar compatível com o direito positivo vigente, encontrando guarida especialmente no artigo 947 do Código Civil.17 *Rafael Mansur é mestrando em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduado pela EMERJ. Pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ (UERJ resp). Advogado. __________ 1 "Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. (...) Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos." 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. II. 25ª ed. atual. por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 178. 3 STEINER, Renata C. Reparação de Danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, pp. 356 e ss. 4 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Da Extinção do Contrato. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao Novo Código Civil. v. VI. t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 386. 5 "O inadimplemento da obrigação, portanto, não basta para que a relação obrigacional dê ensejo às perdas e danos. Ainda que tal inadimplemento se afigure culposo ou mesmo doloso, a responsabilidade pelas perdas e danos não nasce sem que haja efetivo prejuízo a ser reparado. Necessário se faz que a parte prejudicada demonstre haver sofrido efetivamente um dano em decorrência do descumprimento da obrigação" (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do Direito Civil. v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 360). 6 "Havendo, entre as partes, uma obrigação específica, cabe ao devedor executar a prestação principal. O dever dele é o bem do credor, atribuído e legitimado pelo ordenamento. Se o devedor não cumpre, é grave: ele está a frustrar, pela sua conduta, precisamente o valor que o Direito atribuía ao credor. Em face do incumprimento, o devedor é automaticamente condenado a indenizar, isto é: a prosseguir, no plano indemnizatório, o dever de prestar principal que inadimpliu" (Menezes Cordeiro, António. Tratado de Direito Civil. v. VIII. Coimbra: Almedina, 2017, pp. 391-392). 7 PEREIRA, Maria de Lurdes; MÚRIAS, Pedro. Obrigação primária e obrigação de indemnizar. In: FREITAS, José Lebre de et al. (orgs.). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida. vol. II. Coimbra: Almedina, 2011, p. 611. Também afirma a incompatibilidade deste valor equivalente ao da prestação com a "finalidade meramente compensatória ou ressarcitória" da responsabilidade civil: MOTA PINTO, Paulo. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo. vol. II. Coimbra Ed., 2008, p. 1501. 8 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil. v. VIII. Coimbra: Almedina, 2017, p. 391. 9 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. t. I. Trad. do alemão por Jaime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958, p. 444). 10 Conforme leciona Carlos Edison do Rêgo MONTEIRO FILHO. Responsabilidade Contratual e Extracontratual: contrastes e convergências no direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 80: "no que tange à natureza dos institutos, dúvidas já não prevalecem sobre a identidade de ratio que preside a temática em apreço, daí poder-se afirmar a unidade essencial da responsabilidade civil. De fato, tanto num caso como no outro, o que se verifica é sempre um dano a clamar por reparação." 11 Posição pioneiramente defendida na doutrina nacional por Francisco Paulo De Crescenzo MARINO. Responsabilidade Contratual. Efeitos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coords.). Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2011, pp. 413-414: "Ao segregar a responsabilidade por perdas e danos da responsabilidade pelo 'equivalente' (isto é, equivalente pecuniário da coisa perdida), a lei, ao menos do ponto de vista literal, tratou as duas 'responsabilidades' como portadoras de naturezas distintas. (...) a opção do legislador brasileiro parece ir ao encontro da teoria que vê, no caso, não a mera extinção da obrigação original com o correlato surgimento da obrigação de indenizar, mas sim a perpetuação da obrigação original, transformada (quanto ao objeto) em equivalente pecuniário." Mais recentemente, a questão foi analisada com verticalidade por Aline de Miranda VALVERDE TERRA. Execução pelo Equivalente como alternativa à Resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, passim. 12 "A execução pelo equivalente conduz (...) à sub-rogação objetiva, consistente na substituição do objeto devido pelo devedor pelo seu valor pecuniário" (VALVERDE TERRA, Aline de Miranda. Execução pelo Equivalente como alternativa à Resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, p. 64). 13 Sobre estas duas modalidades de tutela, explicitando as razões históricas e ideológicas que levaram à prevalência de um modelo centrado sobre a tutela pelo equivalente pecuniário no âmbito do direito privado, cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, pp. 51-55 e 105-107. 14 Adere-se, aqui, à classificação das fontes obrigacionais proposta por Fernando NORONHA. Direito das Obrigações. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 440-441: "O interesse do credor que é tutelado em cada obrigação é suscetível de variações infinitas. Todavia, ele poderá ser sempre classificado em uma das seguintes três categorias: a) interesse na realização das expectativas nascidas de compromissos assumidos por outra pessoa (devedor) em negócio jurídico; b) interesse na reparação dos danos antijuridicamente causados por outra pessoa (devedor), ou, como também se poderá dizer, dos danos resultantes da violação de deveres gerais de não lesar a pessoa nem o patrimônio alheio; c) interesse na reversão para o patrimônio de uma pessoa (credor) dos acréscimos verificados no patrimônio de outrem (devedor), quando juridicamente eles estivessem destinados àquele. (...) As obrigações correspondentes à primeira das três categorias são as negociais; as correspondentes à segunda são as de responsabilidade civil (em sentido estrito); as correspondentes à terceira são as de restituição por enriquecimento sem causa." 15 Basta observar o imbróglio instaurado no Superior Tribunal de Justiça acerca da definição de um prazo prescricional para as pretensões reparatórias oriundas de dano contratual diverso do prazo trienal previsto no artigo 206, §3ª, V, do Código Civil, que teria sua aplicabilidade limitada às hipóteses de responsabilidade aquiliana. A questão parece estar pacificada pela decisão proferida pela Corte Especial no julgamento do EREsp 1.281.594/SP (Rel. p/ acórdão Min. Felix Fischer, j. 15.5.2019), no qual se definiu que "enquanto não prescrita a pretensão central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos (caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao descumprimento do pactuado." Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson SCHREIBER; Rafael MANSUR. A prescrição trienal da responsabilidade contratual. Disponível aqui. Acesso em 17 out. 2020.  16 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETO, Felipe. Código Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 916-917. 17 Este texto sintetiza algumas das conclusões alcançadas em pesquisa, ainda em curso, realizada no âmbito da linha de pesquisa de Direito Civil do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UERJ para elaboração de dissertação de mestrado, sob a orientação do Professor Anderson Schreiber.
As mudanças no modo de conviver no último século podem servir como ponto de partida para as reflexões propostas no título. Estamos vivendo mais. Com a longevidade, avós conseguem conviver com seus netos, terão oportunidade de conhecer seus bisnetos e se manterão no mercado de trabalho por muito mais tempo do que as gerações anteriores. Vivendo mais, passamos a ter outras necessidades, especialmente no campo da saúde e qualidade de vida, pois o acesso aos avanços tecnológicos da vida moderna e as recentes descobertas da medicina têm seu preço. O roteiro por muitos imaginado: concluir estudos, casar, ter filhos, aposentar-se (por poucos anos) antes de morrer, não pode ser pensado como a última opção que deve ser tutelada pelo Estado, diante da atual pluralidade de arranjos familiares, que reflete um momento histórico no qual as pessoas poderão ter vários relacionamentos ao longo de suas vidas, constituindo um retrato familiar muito mais próximo de um mosaico do que de uma vetusta pintura a óleo que costumava imortalizar a imagem da família patriarcal tradicional. Um novo tempo de convivência e necessidades, aliado a um momento em que a incerteza e a proximidade da morte nunca estiveram tão próximas, ante a pandemia do coronavírus, parece propício a um repensar sobre o exercício da autonomia no direito sucessório, matéria que, pelo menos do ponto de vista legislativo, experimentou poucos avanços no Código Civil vigente, quando comparado com o seu antecessor. Será que sob os auspícios de um texto constitucional que consagra a igualdade material, através do qual se consolidou um marco legislativo que reconhece e tutela a vulnerabilidade de diversos grupos de pessoas, ainda devemos interpretar o direito das sucessões sob o ponto de vista da igualdade formal entre os herdeiros? A pequena digressão acima serviu para apresentar o objetivo deste texto: expor os diferentes pontos de vista em matéria de "contratualização" das relações sucessórias. Dito de outro modo: quais os limites e possibilidades para o exercício da autonomia privada no campo do direito das sucessões?  No atual estágio de nosso ordenamento jurídico, seriam admitidas cláusulas contratuais estabelecendo, por exemplo, "pactos de não suceder", vale dizer, renúncia antecipada a direitos sucessórios relativos à sociedade conjugal ou convivencial, em caráter irrevogável? Num momento em que se incentivam os mecanismos de desjudicialização, com o fortalecimento dos métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias, permitindo ainda a solução de questões sucessórias diretamente nos cartórios, não teria chegado o momento de se pensar num direito sucessório mínimo, sujeito à interferência estatal apenas quando estritamente necessário para a proteção de vulneráveis, com amplo espaço para que o titular dos bens decida qual o destino que pretende conferir ao seu patrimônio, quando aberta a sua sucessão? Talvez, caro leitor, você esteja se perguntando: mas não é exatamente isso o que acontece atualmente, com as previsões do CC/02? Quem deseja uma solução diferente das regras dispositivas da sucessão sem testamento pode optar por uma das modalidades de fazer eficaz a sua vontade para depois da morte... Mas quando se constata que arranjos patrimoniais para a sociedade conjugal, como a adoção do regime da separação convencional de bens, só geram efeitos em vida, criando um cenário completamente diferente no momento da sucessão de um dos cônjuges, fica mais fácil perceber que o espaço de autonomia privada no campo sucessório não é tão amplo quando parece. No decorrer dos últimos anos, um movimento doutrinário fez despertar o debate em torno dos institutos do direito das sucessões. Em alguns ordenamentos jurídicos, a discussão tem girado em torno da liberdade de testar, aproximando também nesse aspecto os dois grandes sistemas do direito contemporâneo, o da Common Law e o romano-germânico ou da Civil Law, numa demonstração de que ambos dialogam em busca de segurança jurídica com um maior equilíbrio entre a proteção dos herdeiros necessários e a ampliação da autonomia do autor da herança quanto à destinação dos seus bens após a morte1. No Brasil, para além da temática concernente à sucessão testamentária e, por consequência, à possibilidade de flexibilização ou relativização da herança legítima, o debate assumiu dimensão mais larga para abranger uma série de institutos que se abrigam sob o espectro do que veio a se apresentar como "planejamento sucessório"2. Mais do que um simples pensar sobre como se dará a sucessão no estreito campo da divisão dos bens, o planejamento sucessório trouxe da experiência do direito empresarial, onde acontece com frequência, a práxis relacionada a uma intrincada rede de atos jurídicos que visam tornar mais rápida, mais fácil e dotada de maior efetividade a sucessão da pessoa física.  É possível afirmar que a discussão sobre o tema tem trazido muitas contribuições, em especial por demonstrar que esse planejamento não está voltado apenas a grandes patrimônios. Pelo contrário, é cada vez mais comum a tomada de decisões de pessoas que podem ser incluídas "na classe médica", sobre situações jurídicas que se projetam para o futuro, para o tempo da morte do autor da herança, mas adotadas ainda em vida. Situações as mais diversas e muitas vezes de pouca complexidade, como as que visam apenas à diminuição de custos pela quantidade de atos jurídicos a serem praticados e de impostos a serem recolhidos. O planejamento sucessório tem no testamento um dos seus principais instrumentos, senão o mais importante. Entretanto, inúmeras são as possibilidades de arranjos para essa programação. Mais do que trazer soluções para problemas práticos enfrentados no dia a dia do direito das sucessões, esse movimento vem contribuindo com a releitura de institutos consagrados numa legislação rígida e desenhada para um momento histórico cujas bases socioeconômicas mudaram por completo. A perenidade dos institutos jurídicos não significa o seu engessamento. Faz-se necessário, porém, um repensar considerando as transformações e as contingências que o tempo histórico acarreta. Conforme apontado acima, com poucas modificações, o direito das sucessões no Código Civil de 2002 é voltado não só para uma tipologia familiar que já não é a única; porém, mais que isso, carrega o forte conteúdo moral que predominava na sociedade ainda no início do século XX. De fato, embora fundado na proteção familiar, o fenômeno sucessório se volta à manutenção do patrimônio concentrado em um determinado grupo de herdeiros e, mesmo entre estes, com pouca mobilidade. Como se os "desvios comportamentais" tão combatidos há cem anos, como a ruptura da sociedade conjugal, a formação de novos vínculos familiares e a própria disposição do patrimônio, representassem uma ameaça à pré-falada concentração de riqueza. Não à toa vige até hoje dispositivo que obriga o maior de setenta anos a adotar o regime da separação de bens. Trata-se do inciso II do art. 1641, que até 2010, com o advento da lei 12.344, limitava em sessenta anos a idade para a pessoa escolher o regime de bens sob o qual deseja submeter seu casamento, seu patrimônio, incapacitando alguém que ainda se encontra em idade produtiva, na maioria das vezes alocado no mercado de trabalho, sem justificativa jurídica para tal. Nesse cenário, onde a mobilidade do patrimônio pode ser entendida como risco à sua integralidade para efeitos sucessórios, vários são os dispositivos do Código Civil que fazem interlocução com o Livro das Sucessões e necessitam, ao menos, ser debatidos. É o caso do art. 426, o qual dispõe que "não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". Entre os autores que vêm se dedicando ao tema da "contratualização do direito das sucessões", Mário Delgado destaca seu entendimento sobre a possibilidade de celebração de pactos sucessórios, forte na disposição prevista no art. 1.639 do Código Civil, segundo o qual é lícito aos nubentes estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.  E a outros dispositivos do Código Civil que, na opinião do mesmo autor, concretizam a autonomia patrimonial, soma-se o uso de soluções extrajudiciais em litígios sucessórios, a exemplo da inserção de cláusula compromissória em testamentos e escrituras de partilha, bem como a crescente utilização de compromisso arbitral entre os herdeiros em conflito3.  Aliado a outros doutrinadores, Delgado provoca uma reflexão sobre a atualidade das regras que proíbem a celebração de pactos sucessórios, em especial quando inseridos em pactos antenupciais e contratos de convivência, chamando a atenção para a necessidade de ampliação da autonomia no direito das sucessões, possibilitando-se que seja contornada ou mesmo afastada a vedação legal à disposição contratual prevista no mencionado art. 426 do Código Civil. Indo além, adverte que inexiste norma expressa que proíba a celebração de todo e qualquer tipo de pacto sucessório. As modalidades mais referenciadas pela doutrina nacional seriam a do pacto aquisitivo ou designativo, na qual se institui herdeiro ou legatário através de contrato, distinguindo-se do testamento pelo caráter irrevogável das disposições contratuais; do pacto renunciativo ou "pacto de não suceder", em que é permitido ao herdeiro renunciar à herança do outro pactuante; e a do pacto dispositivo, através da qual é permitido pactuar a sucessão de um terceiro ainda não aberta, a exemplo de uma cessão de direitos hereditários antes da morte do autor da herança.  A interpretação do mencionado art. 426 deveria alcançar apenas o pacto dispositivo, já que as outras duas modalidades não constituem, a rigor, contratos que tenham por objeto herança de pessoa viva. Na Europa continental, Alemanha e França permitem a celebração do pacto renunciativo e, recentemente (2018), Portugal passou a permitir a renúncia a direito sucessório em pacto antenupcial, mais precisamente da condição de herdeiro necessário.  Na visão de Delgado, há diversos pactos sucessórios permitidos no Brasil, aos quais, por um jogo de palavras, é retirada a incidência da norma, como o caso da doação4 causa mortis, que é exatamente um pacto designativo no qual o donatário passa a ser receptor de um direito que adquirirá somente após a morte do doador. A partilha em vida também poderia ser inserida na categoria dos pactos sucessórios. E se essa restrição fosse tão ampla, haveria de se reconhecer a invalidade dos modelos citados como exemplo. "O que não pode ser objeto de contrato é a herança de pessoa viva e não todo e qualquer direito sucessório". Entre os inúmeros doutrinadores infensos à chamada contratualização do direito sucessório encontra-se o professor João Aguirre, o qual defende que a interpretação do art. 426 do Código Civil deve ser mesmo restritiva, dado que o próprio sistema, o ordenamento jurídico brasileiro, está direcionado a essa restrição da ampla liberdade de pactuação, em virtude da tutela dos interesses daqueles sujeitos de direito que o legislador elegeu para objeto de proteção5. Aguirre não reconhece espaço no ordenamento brasileiro para que se possa renunciar a direito sucessório, o que somente poderia acontecer por intermédio de autorização legal expressa mediante alteração legislativa, como ocorreu em Portugal e como previsto em outros sistemas. Assim, o art. 426 proíbe tanto o pacto dispositivo como o renunciativo, havendo norma expressa no próprio Código Civil no sentido de restringir a celebração de pactos sucessórios, além do pacto dispositivo; exemplifica com os arts. 1.808, 1.863 e 1.898, asseverando igualmente que a distinção entre direito sucessório e herança não foi a opção dos Códigos de 1916 e 2002. O estado da arte desse debate está bem delimitado em arquivo disponível na plataforma digital Youtube, contendo reunião do grupo de pesquisas CONREP-Constitucionalização das Relações Privadas, realizada no dia 3 de julho de 2020 com o tema Contratualização do Direito das Famílias e Sucessões e a participação, como expositores, de ambos os professores aqui mencionados6. Para além da posição adotada neste trabalho, a qual, adianta-se, segue o entendimento pela defesa da necessidade de alteração legislativa para a livre pactuação de direitos sucessórios, dos quais a herança é espécie, o debate demonstra o quão rígido é o sistema no que diz respeito à mobilidade patrimonial no direito das sucessões e também no direito das famílias. Os argumentos em defesa de um ou outro posicionamento no debate entre Mário Delgado e João Aguirre se complementam e, dados os seus fundamentos, enriquecem sobremaneira a discussão. Porém, o que se extrai de conclusão - e aqui se destaca o reforço argumentativo trazido pelo primeiro ao referir-se à carga moral que contamina a interpretação e aplicação da norma - é que, a exemplo de Alemanha e França, que dispõem da matéria em seus Códigos, e da alteração levada a efeito em Portugal, necessária será a autorização expressa para a celebração de pactos sucessórios no direito brasileiro, já que à proibição do art. 426 do Código Civil somam-se outros dispositivos voltados a restringi-los. Observe-se que a mudança no direito das sucessões com a releitura de seus institutos, se não é uma opinião unânime, tampouco enfrenta resistência. É um movimento sem volta. A questão a destacar é que a doutrina tem o importante papel de debater e apresentar opções legislativas que se coadunem com a ordem constitucional e atendam à solução das mais diversas questões oriundas da diversidade de situações jurídicas surgidas nos últimos cem anos. Não se trata de lacunas a exigir do aplicador, por exemplo, o uso da metodologia civil constitucional como forma de validar dispositivo do Código Civil que admite interpretação mais dúctil à míngua de outras normas do sistema que tenham por foco a restrição. Pelo contrário, sobram dispositivos infraconstitucionais a indicar que a interpretação restritiva do art. 426 se encontra concorde com o ordenamento vigente. Por isso a alteração legislativa imporá maior segurança jurídica ao sistema. Daí a importância do debate em torno dos limites e possibilidades da autonomia privada no direito sucessório. *Gustavo Andrade é pós-doutorado pela UERJ. Doutor em Direito pela UFPE. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Procurador do município do Recife. Advogado.  **Marcos Ehrhardt Júnior é doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado. __________ 1 Ver por todos: ANDRADE, Gustavo Henrique Baptista. O direito de herança e a liberdade de testar: um estudo comparado entre os sistemas jurídicos brasileiro e inglês. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 2 Ver por todos: TEIXEIRA, Daniele (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020. 3 DELGADO, Mario Luiz. MARINHO JÚNIOR, Jânio Urbano. Novos horizontes para os pactos sucessórios no Brasil. Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister, Jan./Fev. 2019. 4 Sobre o planejamento patrimonial e o contrato de doação, remete-se à coluna de Felipe Quintella, disponível aqui. Acesso em 12/10/20. Ainda sobre o tema da doação, desta vez entre cônjuges no regime da comunhão universal de bens, deve-se destacar a contribuição de Carlos Eduardo Elias de Oliveira para esta coluna, disponível aqui. Acesso em 7/10/2020. 5 No mesmo sentido, Flávio Tartuce já se posicionou em coluna também publicada pelo Migalhas. Acesso em: 12/10/2020. 6 Disponível aqui. Acesso em: 7/10/2020.
As sociedades de economia mista e as empresas públicas estatais foram inicialmente estruturadas pelo decreto-lei 200/1967, inspirada nos établissements publics franceses1, com o intuito de conferir maior rapidez, qualidade e eficiência a partir de um modelo empresarial em diálogo com o direito administrativo, que fazem parte da Administração Pública Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. O contexto jurídico das sociedades estatais une o direito constitucional, o direito administrativo, com a aplicação de recursos estatais, o direito empresarial, ante as atividades empresariais, normalmente desenvolvidas pelas sociedades estatais2, e o direito civil, na configuração jurídica dos institutos de base desde a constituição à extinção das sociedades estatais. Como o regime jurídico das sociedades estatais é híbrido, deve-se focar na "maior liberdade de atuação possível às estatais no que elas necessitarem para atuarem com eficiência no mercado, mas sem olvidar de mecanismos que evitem que essa liberdade seja desviada, mecanismos que, todavia, não correspondem ao mero retorno ou fortalecimento dos controles típicos da Administração Pública tradicional"3. Por isso, os aspectos relacionados ao regime4-5-6-7 das sociedades estatais8. A Emenda Constitucional 19/1998 alterou os arts. 22, XXVII, e 173 da Constituição Federal de 1988, da hibridez do regime jurídico que cerca as sociedades estatais e, diante da aplicação às empresas públicas e de economia mista e subsidiárias da legislação atinente aos entes da Administração Pública Direta, como a lei 8.666/93 (Licitações e Contratos), lei 8.987/95 (delegação de serviço público à iniciativa privada), lei 10.520/02 (Pregão), lei 11.079/04 (parceria público-privada), lei 12.462/11 (RDC - Regime Diferenciado de Contratações Públicas), entre outras, foi promulgada a lei 13.303/16, a fim de regular o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios9. Nessa linha, a hibridez do regime jurídico das sociedades estatais permite que a lei 13.303/16 seja interpretada "de acordo com a realidade da função econômica com que a gestão pública brasileira, a partir da Carta Fundamental de 1988, tem manejado aquelas empresas"10-11. Esse caldo de cultura de modificação do estatuto jurídico das sociedades estatais traz à baila o estratégico papel que estas pessoas coletivas exercem no cenário brasileiro do século XXI, uma vez que se apresenta na gestão estatal influenciadora de agentes políticos, públicos e privados na seara da ordem econômica, cujas decisões podem produzir efeitos em aspectos ambientais, sociais, jurídicos e econômicos do espaço em que atuam12. Essa autuação, muitas vezes, se verifica no campo licitatório e contratual. Desse modo, a adequada regulação das sociedades estatais passa pela correta compreensão da lei 13.303/16 no âmbito das licitações e dos contratos. Isso porque a lei manteve regulações no âmbito licitatório e contratual com base na experiência legal e concreta da legislação retrocitada, bem como trouxe regulamentos específicos para tema em relação às sociedades estatais. Diante disso, a regra continua sendo licitar, como se infere do art. 71 do decreto-lei 8.945/16, mantendo-se hipóteses de contratação direta13. Destaca-se que o art. 40 da lei 13.303 indica que as sociedades estatais devem manter atualizados o RILC, sendo que as "disposições do regulamento devem basear-se nas normas gerais da Lei n.º 13.303/16, sendo vedado à empresa estatal dispor de modo diverso, porém admitidas soluções procedimentais com elas compatíveis, com o fim de atender às peculiaridades de cada empresa"14. Dentro dos diversos temas que emergirão da referida lei, um tem causado controvérsia, a interpretação do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais: Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei. § 3º Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput . (...) Art. 97. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Como deve ser lido o art. 91, § 3º, da lei 13.303/16? Noutros termos, a lei 13.303/16 aponta ser autoaplicável regime de licitação e de contratação por ela estipulado, salvo quanto aos arts. 31, § 4º, 32, V, § 3º e § 4º, 39, 40, 42, X, 48 e 63-67 da referida lei15, como explica a literatura jurídica: À exceção dessas hipóteses, as normas sobre licitações e contratações da lei 13.303/16 têm eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral, desde a entrada em vigor da lei, aptas, portanto, a produzir efeitos independentemente de norma regulamentar. Aquelas exceções dependem de regulamento para lhes complementar o sentido, e a elaboração desse regulamento é atribuição interna de cada empresa estatal, com o que o direito brasileiro ainda produzirá considerável volume de normas disciplinadoras da atividade contratual dessas empresas, podendo suscitar conflitos interpretativos que terminarão nos tribunais, judiciais e de contas16. Para que não paire dúvida sobre o ponto, a lei 13.303/16 foi promulgada em 30.06.2016 (lei 13.303/16, art. 97), sendo que o prazo de 24 (vinte e quatro) meses de adaptação e de adequação das sociedades estatais já existentes à lei 13.303/16 posto no art. 91, caput "não se trata de "vacatio legis" mas de prazo para adaptação"17. O Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que as sociedades estatais já existentes teriam até 30 de junho de 2018 para realizar as referidas adaptações (TCU, Acórdão n.º 23/2017). Explica a literatura jurídica: Quanto aos contratos e licitações, dispõe o § 3º do art. 91 que permanecem regidos pela legislação anterior, até o final do prazo previsto de vinte e quatro meses da vigência da lei. Assim, a legislação anterior, nesses temas em específico, acaba sendo perpetuada por esses dois anos. Diante da conjuntura em destaque, consideramos um equívoco não aplicar a lei 13.303/16, a partir da sua vigência, quanto às licitações e aos contratos feitos posteriormente à vigência da lei 13.303/16. Tais situações deveriam seguir as suas disposições, e não as normas anteriores, ainda que tenham sido feitos por empresa estatal criada antes da vigência da legislação ora comentada. Não tem sentido esperar que as empresas públicas e as sociedades de economia mista aguardem o prazo de vinte e quatro meses para começar a aplicar a lei 13.303/16 nesse tema, porque, como dissemos, não se trata de "vacatio legis", mas de prazo para adaptação. Apenas correriam pelas regras antigas os negócios os negócios celebrados ou em execução antes da vigência da Lei das Estatais. Nesse caso, não caberia sequer a opção do gestor para aplicação da lei nova. De mais a mais, não faria sentido a publicação da lei com a urgência a que foi submetida, e, de outro lado, se ofertado dois anos para que ela tivesse vigência - seria um contrassenso nesse sentido18. Dessa maneira, a lei 8.666/93 somente deve ser aplicada, no âmbito das licitações e dos contratos das sociedades estatais após a entrada em vigor da lei 13.303/16, nas hipóteses, arts. 41 e 55, III, da lei 13.303/16, conforme, por exemplo, despacho desta DIJUR/COJUR (41000884), nos autos do processo n.º 00111-00006125/2018-79. Nessa senda, o art. 68 da lei 13.303/16 indica que: "Os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta lei e pelos preceitos de direito privado". O TCU, no Acórdão 213/2017, assentou: "Não faz sentido pretender que a Lei 13.303/1016 estabelecesse às empresas estatais limitações maiores do que a Lei 8.666/1993 já estabelece". Explica a literatura jurídica: (...) enfatiza-se que, embora a Lei das empresas Estatais tenha sofrido importante influência da Lei Geral das Licitações, com ela não se confunde. Assim que não se pode cogitar da aplicação subsidiária, como regra. (...) um contrato feito por uma empresa estatal e regulado pelo art. 68 da lei13.303/16 não seria "contrato administrativo", para a concepção por assim dita "clássica" ou "ordinária", mas, sim, típico "contrato da Administração" (...), porque, em tese, despidos do regime derrogatório - cláusulas exorbitantes - , tendo em vista que a regra em questão determina que sejam eles regidos pela própria lei 13.303/16 e pelos preceitos de direito privado. (...) o regime de direito privado não é aplicado de modo supletivo, mas de modo direto, ao lado das disposições da legislação mencionada - a qual, diga-se de passagem, sequer prevê um rol de cláusulas exorbitantes. Assim, o regime dos contratos do direito civil aplica-se como fonte primária do direito, e não de modo supletivo, na hipótese em que a Lei das Estatais não desse conta de disciplinar o tema. Logo, a natureza dos contratos feitos e regidos pela lei 13.303/16 seria típico "contrato da administração". Para sermos ainda mais objetivos, o art. 68 determina que somente possam ser inseridas nos contratos feitos pela empresa estatais as cláusulas que derivam expressamente da lei 13.303/16 e, claro, do direito privado. De modo que tal legislação não permite a importação de norma administrativa que não aquelas já constantes (recepcionadas) na própria lei 13.303/16. Assim, se por um acaso se quisesse mirar uma dita "clausula exorbitante" nos negócios jurídicos feitos pelas empresas estatais, teríamos de procurá-las no âmbito do seu estatuto, ora comentado. Portanto, o art. 68 impõe um traço diferencial marcante entre os contratos feitos pela lei 13.303/16 e pela lei 8.666/93. A origem dessa disparidade reside na possibilidade de  as sociedades de economia mista e de as empresas públicas deterem capacidade gerencial menos rígida e burocrática, como ocorre com as autarquias e as fundações, para que aquelas entidades possam seguir a lógica do mercado, a enaltecer sua competitividade. Logo, é apropriado dizer que as empresas estatais receberam a possibilidade de contratações de forma mais flexível e ágil, adequadas às dinâmicas do mercado no qual estão inseridas, desde que observados os princípios da administração pública19. Não obstante isso, houve divergência quanto à incidência (ou não) da lei13.303/16 às licitações e aos contratos feitos pela Terracap antes da entrada em vigor da Lei das Estatais e que produziam efeitos futuros depois da entrada em vigor da citada lei. Emergiram dois entendimentos no âmbito de diversas sociedades estatais: (i) manutenção até o término do processo licitatório e do contrato dele advindo da legislação anterior; (ii) aplicação da Lei n.º 13.303/16 para os efeitos produzidos pelos processos licitatórios e pelos contratos firmados antes da lei, mas que, sob seu vigor, produzem efeitos. Defendemos, desde sempre, a hipótese de correção do segundo entendimento, com base na perspectiva traçada por Mario Delgado ao interpretar o art. 2.035 do Código Civil (CC): Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. Estabelece o presente dispositivo que os requisitos de validade dos negócios e demais atos jurídicos serão aqueles estabelecidos na lei anterior, mas os seus efeitos, desde que produzidos após a vigência do novo Código, a ele estarão subordinados, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Assim, um contrato celebrado antes de 11 de janeiro de 2003, ainda que uma das partes estivesse, por exemplo, em estado de perigo (art. 156), será válido, ou pelo menos por tal vício não haverá de ser anulado. Entretanto, contratos anteriores, que ainda estejam sendo executados, como nos casos de financiamentos a longo prazo, poderão ser revistos ou resolvidos sempre que, por evento imprevisível, ocorrido após 11 de janeiro de 2003, venham a se tornar excessivamente onerosos para um dos contratantes (art. 478). Nas repactuações que venham a ser realizadas após a entrada em vigor do Código, aplicam-se integralmente todas as novas regras, desde que compreendidas como novo contrato. Imagine-se, em outro exemplo, um contrato de prestação de serviços, de trato sucessivo, onde as partes hajam fixado determinado percentual para o reajuste periódico das parcelas do preço, vindo a lei posterior (por exemplo, plano econômico de congelamento) proibir esse tipo reajuste. Ainda que o reajuste contratual só viesse a ocorrer quando já vigente a lei nova proibitiva, a teor do disposto no caput do art. 2.035, deve ser observada a lei da época da celebração e aplicado o percentual definido no contrato. O pagamento posterior de parcela do preço, quando já estabelecido o respectivo valor em época pretérita, não seria considerado efeito futuro de ato passado, de modo a receber os influxos da lei novata. Trata-se (o reajuste) de fato pendente de realização, porém já definitivamente assentado sob o pálio da lei revogada. A incidência da lei nova, nesse caso, caracterizaria retroatividade de "grau médio". No mesmo exemplo, houvessem as partes previsto apenas a atualização do preço de acordo com certo índice oficial, a ser apurado no mês anterior ao do reajuste, e havendo esse índice sido extinto pela lei posterior, não haveria como se pleitear a manutenção do indexador, pois o facta pendentia ainda não estava definitivamente assentado. Sua ultimação se daria no futuro, quando fosse apurado o percentual do indexador eleito no contrato. Extinto o índice oficial, sem que o ajuste de vontades houvesse estabelecido percentual certo nem outro índice substituto, não haveria possibilidade de se assegurar a sobrevivência da lei revogada, aplicando-se imediatamente a lei nova. Vê-se, aqui, uma situação jurídica de fato passado, cujos efeitos jurídicos ainda não foram consumados, o que possibilita a aplicação imediata da lei posterior. Nos contratos de trato sucessivo, o CC/2002 trouxe, no caput do art. 2.035, verdadeira regra de sobredireito plenamente adequada e consentânea à doutrina de um novo direito intertemporal brasileiro. A ideia de que o contrato, como negócio jurídico realizado sob o império de determinada lei, se enquadra no conceito de "ato jurídico perfeito", para os fins de se furtar à retroatividade da lei nova, é assimilada pelo Código, que inclui, sob a sua regência, tão somente os efeitos futuros dos contratos anteriores, desde que produzidos após a vigência da lei nova e desde que as partes não tenham previsto determinada forma de execução. Caso os contratantes tenham feito essa previsão, fica afastada a incidência imediata da lei. Fica assegurada, assim, como regra geral codificada, a pós-atividade do Código de 1916 no que tange aos requisitos de validade dos contratos e a eficácia imediata do Código de 2002 quanto aos efeitos futuros desses negócios jurídicos. A regra geral, portanto, é a da aplicação imediata da lei nova aos efeitos dos contratos em curso, salvo se as partes houverem expressamente manifestado a intenção de excluir também os efeitos futuros do âmbito de eficácia da lei posterior. Para isso, precisariam haver inserido no contrato cláusula específica, salvaguardando o regime de execução, e desde que não houvesse contrariedade a norma de ordem pública. Convém esclarecer, no entanto, não serem poucos os autores que encampam a tese da inconstitucionalidade do dispositivo. A doutrina clássica, forjada à luz do Código de 1916, se opõe firmemente à eficácia imediata da lei nova nesses casos, sacralizando o princípio do pacta sunt servanda. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que, "se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado" (ADIn 493/DF, Rel. Min. Moreira Alves). Não partilhamos dessa opinião, tampouco concordamos com as conclusões do aresto do STF. A imprecada retroatividade do caput do art. 2.035 constitui mera hipótese de aplicação imediata da lei nova. Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro direito adquirido aos efeitos futuros das situações jurídicas contratuais constituídas sob a égide da lei antiga. A lei nova colhe os contratos em curso de execução ou de produção de efeitos no estado em que se encontram, aplicando-se imediatamente, sem retroatividade. Apenas os efeitos já produzidos, por exemplo, a multa moratória já vencida e já paga em percentual superior ao novo teto legal, não seriam alcançados pela nova lei. Mais polêmica ainda que a regra constante do caput do art. 2.035 é a norma que se extrai do parágrafo único, a prever, não só a aplicação imediata, mas também a aplicação retroativa (nenhuma convenção prevalecerá) das normas de ordem pública, citando como exemplos aquelas relativas à função social dos contratos e da propriedade. O dispositivo deixa claro que está apenas a exemplificar, e quaisquer outras normas, desde que consideradas como "de ordem pública", terão aplicação imediata, contra elas não cabendo invocar direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Defendemos, com entusiasmo, a possibilidade de se utilizar a técnica da ponderação para avaliar, em cada caso concreto, se a lei posterior pode interferir nos contratos anteriores. Se a partir da ponderação entre o valor da segurança e os princípios da segurança jurídica e do pacta sunt servanda, de um lado, e o valor da Justiça e os princípios da solidariedade e da função social do contrato, de outro, pudermos concluir qual o lado mais pesado da balança, esse será o critério para decidir entre a aplicação da lei anterior, vigente à data da celebração do contrato, e a lei posterior, editada quando o contrato encontrava-se em curso de produção de efeitos. Formulemos um exemplo hipotético para facilitar a compreensão da ideia. Vamos supor que o personagem João, pretendendo abrir um negócio próprio, tivesse celebrado, no ano de 2002, antes do início da vigência do atual Código Civil, um contrato de franquia, cujas obrigações do franqueado eram manifestamente desproporcionais àquelas do franqueador e com cláusula penal em valor manifestamente excessivo. Com a posterior entrada em vigor do Código Civil de 2002 e vendo-se impossibilitado de continuar a cumprir com todas as obrigações do contrato, João postula a sua revisão (ou alternativamente a resolução com redução da cláusula penal), invocando a seu favor o estatuído nos arts. 413, 421 e 2.035 do CC/2002. Depois de ponderar e sopesar normas e valores conflitantes no caso concreto (p. ex., pacta sunt servanda => ato jurídico perfeito => segurança jurídica versus função social => solidariedade => justiça social), provavelmente entenderíamos razoável a pretensão de João, e optaríamos pela aplicação imediata do CC/2002, ainda que o contrato tenha sido celebrado em data anterior. É verdade que a técnica de ponderação poderá levar, no limite, à admissão de hipóteses invalidantes supervenientes, previstas na lei posterior, o que será motivo de estupefação para a doutrina tradicional. Entretanto, nas quadras atuais, onde temos uma população cada vez maior e com crescente expectativa de vida, onde os recursos naturais (e os direitos a eles inerentes) são cada vez mais escassos, o aplicador do Direito será chamado, cada vez mais, a fazer escolhas como essa, atribuindo direitos para alguns e suprimindo direitos já considerados incorporados ou adquiridos por outros. Se não existem direitos para todos, há de se suprimir de alguns e atribuí-los a outros. A norma que se extrai do art. 2.035 ainda não foi apreendida em sua plenitude pela doutrina nacional. Durante a IV Jornada de Direito Civil ocorreram extensos debates, os quais resultaram na aprovação de dois enunciados. O Enunciado n. 300 esclarece que "a lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio". O Enunciado n. 396, por sua vez, versa sobre a capacidade para ser sócio, dispondo que "a capacidade para contratar a constituição da sociedade submete-se à lei vigente no momento do registro". Interessante questão de direito intertemporal surgiu com o advento da lei 13.786/2018, que disciplina "a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária" e trouxe importantes inovações para o mercado imobiliário, especialmente o estabelecimento de limites (de até 50%) para a estipulação de cláusula penal. A indagação logo surgida era se as novas regras se aplicariam aos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor. A aplicação analógica do art. 2.035 do Código Civil c/c o art. 6º da LINDB nos leva a conclusão de que, se não houver previsão no contrato estipulando o percentual da cláusula penal, aplica-se imediatamente a nova lei, com os limites ali previstos, pouco importando a data da celebração do negócio. Contudo, se o contrato estabelecer um percentual ou montante para a cláusula penal, essa pactuação estará ao abrigo da aplicação da nova lei20. À vista do exposto, sugere-se a seguinte ideia interpretativa do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais: Até 30 de junho de 2018, último dia do prazo de adaptação das empresas públicas e sociedades de economia mista construídas anteriormente ao início do vigor da lei 13.303/16, permanecem regidos pela legislação anterior e a indicada no Edital, os processos licitatórios, os contratos, os acordos, os ajustes, os aditivos, os convênios e instrumentos congêneres iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16, que ocorreu em 30 de junho de 2016. A partir de 1º de julho de 2018, todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16 será por ela regido, na forma do art. 91, § 3º, da lei 3.303/16. Todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados a partir de 30 de junho de 2016 será regido pela lei 13.303/16. Espera-se que com isso, a Lei das Estatais possa ser adequadamente interpretada no Brasil, a fim de que possa ser efetivamente utilizada pelas sociedades estatias. *Pablo Malheiros da Cunha Frota é professor de Direito Civil e de Processo Civil da UFG. Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Sócio de Alencar, Barroso e Malheiros Advogados (DF). __________ 1 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - Lei n.º 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 27. 2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13.ed. São Paulo: RT, 2018, Capítulo 6, Item 17 (edição eletrônica). 3  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 146. 4 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 78-79, 89 e 133. 5 No RE 172.816, o STF indicou que o art. 173, § 1º, da CF/88 não incide nas atividades econômicas titularizadas com exclusividade pelo Estado. "A norma do art. 173, § 1º, da Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade". Essa posição do STF foi reiterada em muitos julgados, como no RE 356.711/PR, voto do Ministro relator Gilmar Mendes, julgamento em 06.11.2005, Segunda Turma, DJ 07.04.2006 e no RE 433666 AgR/BA, julgamento em 03.11.2009, DJ 26.11.2009. 6 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104. 7 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104-106. 8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 140. 9 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 10 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29. 11 Sobre o tema vejam: MOREIRA, Egon Boockmann. O Direito Econômico e o papel regulatório das empresas estatais. Disponível aqui. Acesso em 20/8/2020. 12 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29. 13 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 14 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 344. 15 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28. 16 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28-29. 17 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais - lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 731. 18 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 730- 731. Essa é a linha, entre outros, do Parecer SEI-GDF n.º 241/2020 - TERRACAP/PRESI/DIJUR/COJUR, nos autos do processo n.º 0111-005447/2013 (39854799). 19 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 627-629. 20 DELGADO, Mario. Art. 2.035. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando ; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; RÉGIS, Mário Luiz Delgado . Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Forense, 2020p. 1568.
A Circular de Oferta de Franquia (COF) é o instrumento por meio do qual a franqueadora apresenta ao candidato a franqueado informações sobre a franqueadora, negócio franqueado, franqueado ideal, interações associativas e condições contratuais. Trata-se de instrumento de disclosure que impõe à franqueadora, detentora de informações sobre o seu sistema e o sobre o mercado em que atua, o dever e o ônus de revelar informações claras, objetivas e sinceras para auxiliar o candidato a franqueado, parte desinformada, na tomada de decisão quanto ao ingresso ou não na rede franquias. A COF deve ser apresentada pela franqueadora ao candidato a franqueado com antecedência mínima de 10 dias da assinatura do contrato de franquia ou do recebimento de quaisquer valores (art. 2º, §§ 1º e 2º, da lei 13.966/2019). O conteúdo mínimo que deve constar obrigatoriamente da COF está previsto nos incisos do art. 2º, da lei 13.966/2019. Por se tratar de conteúdo obrigatório mínimo nada obsta que a franqueadora apresente outras informações, mormente se tais informações forem decisivas para a escolha do candidato a franqueado. Parece-nos que, com a Pandemia, dentre as informações a serem obrigatoriamente expostas pela franquedora, merecem atenção as seguintes: balanços e informações financeiras da empresa franqueadora dos últimos dois exercícios (inciso III), descrição detalhada da franquia e descrição geral do negócio (inciso V) e condições para incorporação de novas tecnologias às franquias (inciso XIII, d). A pandemia do Novo Coronavírus, como se sabe, levou a OMS (Organização Mundial da Saúde) a recomendar a adoção de medidas de distanciamento social e maximização das medidas sanitárias em todo o mundo para dificultar a disseminação do vírus. A crise sanitária fez com que a maioria da população precisasse ficar em casa por determinação governamental durante meses, sendo determinado, inclusive, lockdown durante semanas em algumas cidades. Como medida preventiva, a população foi orientada a utilizar máscaras, álcool em gel e a manter distância segura de outras pessoas. Após mais de seis meses do reconhecimento da pandemia do novo coronavírus pela OMS, ainda não há previsão de "normalização" da vida. Há quem fale que o mundo nunca mais voltará a ser o mesmo. Tornou-se comum a referência ao "novo normal". Ou seja, normalização da vida com a absorção pela população das medidas sanitárias impostas pelas medidas preventivas em relação ao novo coronavírus. A volta ao "novo normal" tem ocorrido com medidas de flexibilização do isolamento social e intensificação das medidas de higienização. A crise econômica, contudo, já é uma realidade e a extensão dos seus efeitos ainda é incerta. Em razão das medidas de isolamento social lojas e restaurantes permaneceram fechados por meses fazendo com que as empresas precisassem se adaptar ao e-commerce; cursos, escolas e faculdade precisaram se adequar ao EAD; academias precisaram encontrar formas de manter a fidelidade de seus clientes mesmo fechadas; escritórios comerciais foram desativados e seus trabalhadores passaram a trabalhar em homeoffice, outros foram demitidos; indústrias de bens considerados não essenciais reduziram a produção; a demanda por consumo, naturalmente, sofreu enorme retração. Por outro lado, algumas empresas puderam experimentar aumento de faturamento, a exemplo daquelas vinculadas ao ramo de saúde e higiene. No "novo normal", os estabelecimentos comerciais puderam reabrir, mas com limitação de pessoas por metro quadrado e adoção de medidas de higienização dos ambientes e das pessoas. O uso de máscaras e álcool em gel por funcionários e clientes se tornou comum; muitas pessoas, principalmente integrantes dos grupos de riscos em relação ao patógeno, permanecem em isolamento doméstico. O "novo normal" normal, sem dúvida, é um desafio para as empresas e para as pessoas. A disponibilidade financeira e as prioridades dos consumidores mudaram. A forma de vender também mudou. Não se sabe por quanto tempo irá viogorar o "novo normal" e se o "velho normal" voltará a existir. Fato é que as empresas precisaram se adaptar às novas tecnologias e às novas necessidades de mercado e precisarão continuar se adaptando para sobreviver. Como falávamos acima, a franqueadora precisa apresentar informações transparentes e sinceras para que o candidato a franqueado possa decidir da forma mais imparcial possível sobre o seu ingresso, ou não, na rede. Parece-nos que para cumprir o normativo que determina a descrição detalhada da franquia e descrição geral do negócio (art. 2º, V, da lei 13.966/2019), a franqueadora deve apresentar não só o seu comportamento pré-pandemia, mas a forma com a qual lidou com a crise econômica, quais foram os comportamentos de seus consumidores e de seus concorrentes, quais os impactos no setor e quais as perspectivas para o futuro do mercado consumidor com o "novo normal" e com a eventual retomada ao "velho normal". É preciso esclarecer que o balanço patrimonial e as demonstrações financeiras de 2018 e 2019 (dois últimos exercícios) - art. 2º, II, da lei 13.966/2019 - não refletem a situação da franqueadora durante a crise. Da mesma forma, a partir de 2021, o balanço patrimonial e as demonstrações financeiras deverão vir acompanhadas das notas técnicas que expliquem a situação econômico-financeira da empresa no ano de 2020 com os impactos da crise. De acordo com a BDO Canadá, é necessário considerar, por exemplo, impactos sobre perdas de créditos e projeções de fluxo de caixa, rescisões contratuais, multas, indenizações e reembolsos decorrentes da crise gerada pela Pandemia1. Importa salientar, ainda, que a crise do Novo Coronavírus fez com que as empresas fossem obrigadas a evoluir, do ponto de vista tecnológico, em meses, o que normalmente demoraria anos para acontecer. Por isso, mais do que nunca, a forma de incorporação de novas tecnologias às franquias (art. 2º, XIII, "d", da lei 13.966/2019) precisa estar claras no instrumento de disclosure. Nos Estados Unidos, precursor da legislação protetiva na indústria de franquias, as franqueadoras estão autorizadas pelo item 19 da FTD Franchise Rule a apresentar ao franqueado, no instrumento de disclosure, uma simulação de performance financeira de uma unidade franqueada com base em dados históricos. Diante da Pandemia do Novo Coronavírus e das alterações no mercado já mencionadas, a NASAA (North American Securities Administrarion Association) foi instada por diversos franqueadores a se manifestar acerca da manutenção da simulação do item 19 em suas Circulares. De acordo com o parecer da NASAA2, as empresas cujas atividades econômicas apresentaram alteração substancial na performance financeira devem retirar a simulação financeira com base em dados históricos de suas Circulares. A nossa conclusão, portanto, é no sentido de que a franqueadora deve fornecer em sua COF informações o mais realistas possível. Não se está a falar que a franqueadora deve prever o futuro ou prever exatamente o que será implantado em cada etapa de suas atividades. Está-se a falar que a franqueadora não deve fornecer informações que não sejam condizentes com o momento pós-pandêmico, devendo apresentar, sempre que possível, como se dará o processo por meio do qual ocorrem as decisões de implantação de novas tecnologias na rede. *Raif Daher Hardman de Figueiredo é bacharel em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Direito dos Contratos pela FGV-SP. Associado do IBDCont. Advogado. **Arnaldo Rizzardo Filho é bacharel em Direito pela PUC-RS. Mestre em Direito Público pela Unisinos. Advogado, professor e autor. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
A exceção de contrato não cumprido, também denominada pela doutrina de exceptio non adimpleti contractus, exceção de inexecução ou exceção de inadimplemento, pode ser conceituada como a "faculdade que tem uma das partes de recusar-se a cumprir a obrigação, quando a parte contrária, por sua vez, à sua não deu cumprimento"1. Prevista expressamente no art. 476 do Código Civil2, alude-se a essa figura jurídica a noção de direito potestativo3, atuando como remédio para o contratante que possui interesse na manutenção da relação obrigacional e no adimplemento da contraparte. Busca-se refletir, então, acerca da possibilidade do exercício de renúncia à oposição dessa exceção. Afirma-se que a renúncia consiste em causa impeditiva da exceção de contrato não cumprido4. Em outros termos, o exercício de autonomia privada pelas partes, no bojo de uma relação sinalagmática, com o propósito de renunciar à possibilidade de oposição da exceção de contrato não cumprido não extingue essa exceção, apenas impede o seu exercício por parte do contratante que estaria na posição de excipiente. A renúncia à exceção de contrato não cumprido pode se configurar de diversos modos, quais sejam de forma antecipada, no próprio contrato; no curso da relação obrigacional, por meio de ato unilateral de uma das partes; e depois de oposta a exceção, desde que antes do trânsito em julgado do provimento que reconhecer a exceção5. Quanto à renúncia pactuada no bojo da relação contratual - seja no próprio contrato ou em seu respectivo aditivo -, a doutrina geralmente enuncia a cláusula solve et repete, que em sua concepção latina significa "pague e depois reclame". Importa observar, todavia, que tal cláusula pode se manifestar por arranjos contratuais os mais diversos e pode ter por objeto exceções muito variadas. Por essa razão, a restrição de seu  âmbito de atuação à exceção de contrato não cumprido não parece adequada, como não raramente se verifica na doutrina6. Nesse contexto, a cláusula solve et repete "tem uma finalidade específica, qual seja limitar, em favor daquele a quem beneficia, a oponibilidade de exceções relativas à inexecução das obrigações contratuais, como é o caso da exceptio non adimpleti contractus"7. Dito de outra forma, a cláusula solve et repete consiste em "meio de autotutela no contrato bilateral, em favor da parte que tem a receber a prestação indispensável, a fim de impedir que a contraparte se exima de cumprir invocando a exceção"8. Trata-se, portanto, de renúncia ao exercício da oponibilidade de uma exceção e não de renúncia ao crédito. Por essa razão, pode o contratante, impedido de opor a exceção e prejudicado pelo inadimplemento da contraparte, voltar-se contra o inadimplente para exigir o cumprimento da prestação ou as perdas e danos9. Essa renúncia gera, então, o efeito de impedir que o contratante prejudicado se recuse a cumprir a própria prestação10, mas não o impossibilita de perseguir o seu crédito pelos meios adequados. Assim, a cláusula solve et repete assegura ao contratante que dela se beneficiou "um fluxo contínuo das prestações a que tem direito, o que pode atender a diversos interesses negociais dignos de tutela"11. Embora amplamente aceita doutrinariamente, a cláusula solve et repete, diferente do direito italiano12, não possui previsão legal na codificação civil brasileira. Ainda assim, é possível cogitar de sua aplicabilidade como resultado do exercício da autonomia privada, desde que observadas certas limitações tais como a observância dos deveres laterais da boa-fé objetiva, o respeito aos critérios de validade do negócio jurídico, bem como o exercício não abusivo da cláusula13. Ainda sobre as limitações de aplicabilidade da cláusula solve et repete, podem-se reputar os contratos de adesão e os contratos de consumo. Quanto aos contratos de adesão, considerando-se especificamente a exceção de contrato não cumprido, pode-se alcançar a conclusão de que a cláusula solve et repete se amolda à causa de nulidade disposta no art. 424 do Código Civil14, tendo em vista que essa exceção consiste em remédio atribuído aos contratos sinalagmáticos15. Já em relação aos contratos de consumo, a inserção de cláusula solve et repete seria reputada nula por força do art. 51, I, do CDC16. O exercício de renúncia à possibilidade de oponibilidade da exceção de contrato não cumprido também pode resultar de ato unilateral do contratante, seja expresso ou tácito. No primeiro caso, é possível vislumbrar a hipótese em que, diante de um inadimplemento, o contratante prejudicado pela falta da prestação comunique a contraparte informando que continuará cumprindo com a sua obrigação, a despeito do incumprimento do outro. A renúncia seria tácita, por outro lado, se o contratante, cientificado de forma antecipada pela contraparte de seu iminente descumprimento, ainda assim efetuasse normalmente o seu pagamento17. Nesse contexto, Vitor Butruce observa que o não uso da exceção de contrato não cumprido não implica necessariamente em renúncia. Isso porque a exceção de contrato não cumprido consistiria em direito potestativo e, por essa razão, faculta-se ao seu titular o seu exercício no momento mais oportuno. Dessa forma, a tolerância ao inadimplemento não se iguala à renúncia à oposição da exceção de contrato não cumprido18. É o que se constata nos chamados contratos de duração, em que a parte excipiente por vezes, aceita o inadimplemento do outro contratante enquanto essa postura se mostra conveniente à persecução de seu interesse dentro do programa contratual globalmente considerado. A renúncia à exceção de contrato não cumprido demonstra que as partes podem perseguir o resultado útil do contrato sem necessariamente lançarem mão do remédio previsto em lei. Embora o adimplemento reconhecidamente polarize a obrigação, a complexidade da relação contratual permite construir e modular os meios para alcançá-lo, de maneira que o próprio adimplemento passa a integrar uma equação mais ampla, em que se leva em conta a globalidade dos interesses subjacentes ao contrato. Uma vez mais, a leitura funcional se mostra imprescindível, ao permitir, de um lado, a identificação dos fins efetivamente perseguidos pela parte que renuncia e, do outro, a submissão da própria renúncia, enquanto expressão da autonomia privada, a um exame de conformidade com a ordem civil-constitucional. *Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela UERJ. Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.   **Marcos de Souza Paula é mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ. Assessor do TJ/RJ.  __________ 1 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: os contratos. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, v. 2, p. 188. 2 "Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro". 3 Nesse sentido, v. BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 64 e FREITAS, Rodrigo Lima e Silva de. O locus de atuação da exceção de contrato não cumprido no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 53-54. 4 GAGLIARDI, Rafael Villar. A exceção de contrato não cumprido. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC SP, 2006, p. 228. Em sentido contrário, Araken de Assis considera que a renúncia como uma das "causas autônomas de extinção da exceção de inadimplemento" (ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 694). 5 ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 695-696. 6 Para uma análise pormenorizada da matéria e dessa crítica, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia; SILVA, Jeniffer Gomes da. Cláusulas solve et repete: perspectivas de atuação da autonomia privada na (de)limitação das exceções oponíveis pelo devedor. Revista Eletrônica da PGE RJ. Jan.- abr./2020, v. 3, n. 1. Disponível aqui. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Contratos e Obrigações - Pareceres: de acordo com o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 472. 8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 6, t. 2, p. 821-822. 9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 414. 10 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167. 11 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 171. 12 Na codificação civil italiana, as cláusulas solve et repete são previstas no art. 1.462: "Cláusula limitativa da proponibilidade de exceções. A cláusula pela qual se estabelece que uma das partes não pode opor exceções a fim de evitar ou de retardar a prestação devida, não tem efeito para as exceções de nulidade, de anulabilidade e de rescisão do contrato. Nos casos em que a cláusula for eficaz, se o juiz achar que concorrem motivos graves, pode, apesar da circunstância, suspender a condenação, impondo, quando for o caso, uma caução" (tradução livre do original). 13 Miguel Maria de Serpa Lopes conclui pela admissibilidade da cláusula solve et repete no direito brasileiro, desde que ressalvadas algumas limitações: "(...) a referida cláusula não pode ser entendida deslimitadamente, mas sim guardadas certas reservas, sobretudo no tocante à questão da nulidade, anulabilidade e precipuamente em relação ao dolo. Consideramos, mesmo, que a omissão da nossa ordem jurídica a esse respeito pode ser perfeitamente suprida obedecendo-se à estrutura que vem de lhe dar o atual Código Civil italiano (...)" (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p. 334). 14 "Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio". 15 Em sentido semelhante, manifesta-se João Pedro de Biazi: "Em contratos por adesão, a cláusula solve et repete é inválida por incidência do artigo 424 do Código Civil, bem como por incidência da cláusula geral de boa-fé, que impõe a preservação de regras que assegurem o equilíbrio mínimo da relação negocial" (BIAZI, João Pedro de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 241). 16 "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;". 17 A situação é bem exemplificada por Vitor Butruce: "Imagine-se situação em que um empreiteiro deixe de concluir tempestivamente certa etapa do cronograma de uma empreitada, por encontrar-se em dificuldades financeiras. Haveria renúncia expressa à exceptio se o dono da obra comunicasse à contraparte, mediante correspondência, que não suspenderia seus pagamentos periódicos para não o conduzir à ruína. Diante da mesma inadimplência, haveria renúncia tácita, por exemplo, se o empreiteiro desse ciência ao dono da obra sobre o iminente descumprimento do prazo e este, verificado o inadimplemento, solicitasse emissão de fatura para providenciar o pagamento da prestação vencida (embora inexigível, dado o inadimplemento). Também o próprio cumprimento da prestação, antecipado ou em conformidade ao programa contratual, é considerado por alguns autores como uma espécie de renúncia tácita ao exercício da exceptio". (BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167). 18 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um "direito a não cumprir". Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 168.
Este artigo discute se é ou não viável doação entre cônjuges casados no regime da comunhão universal. A doação entre cônjuges é permitida pelo CC de modo implícito no art. 544 do CC1. É preciso, porém, observar a sua compatibilidade com o regime de bens do casal. No caso de consortes casados em regime diverso do da comunhão universal, não há obstáculo à doação entre cônjuges, pois as liberalidades não se comunicam. Se, porém, os consortes foram casados no regime da comunhão universal de bens, o STJ entende que a doação entre eles seria nula por impossibilidade jurídica do objeto, a qual decorre da comunicabilidade das doações nesse regime de bens (STJ, REsp 1787027/RS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 24/04/20202; AR 310/PI, 2ª Seção, Rel. Ministro Dias Trindade, DJ 18/10/19933). No voto da Ministra Nancy Andrighi do primeiro julgado retrocitado, é citado Pontes de Miranda para estabelecer que, no regime da comunhão universal, sequer seria viável uma doação entre cônjuges com cláusula de incomunicabilidade, pois isso "importaria permitir-se-lhes a alteração no regime de bens estabelecidos, que é, ex potestate legis, irrevogável"4. Isso foi dito de passagem (obiter dictum), pois o caso concreto não envolvia essa hipótese. Ousamos apontar a necessidade de parcial ajuste nesse entendimento. Na verdade, nem se poderia falar propriamente que estamos suscitando uma divergência, pois o caso concreto julgado pelo STJ não abrangia as ressalvas que faremos abaixo. Em primeiro lugar, a doação entre cônjuges no regime da comunhão universal poderia ocorrer quanto aos bens particulares. O art. 1.668 do CC lista bens particulares nesse regime, como o instrumento de trabalho e as doações recebidas com cláusulas de incomunicabilidade, além de a própria jurisprudência reconhecer outros bens particulares no regime da comunhão universal de bens, como o valor recebido a título de seguro de vida5.  Nesse sentido, temos apoio no professor Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2020). Igualmente, o professor Hamid Charaf Bdine acena no mesmo sentido quando ele admite compra e venda de bens particulares entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens (Jr. BDINE JR., Hamid. Charaf. Art. 499. In: PELUSO, Cesar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri/SP: Manole, 2012). Sobre esse caso especificamente, o STJ não se manifestou e, por isso, a questão ainda está em aberto nessa Corte. Em segundo lugar, no tocante aos bens comuns, temos por devida a doação, com cláusula de incomunicabilidade, por parte de um cônjuge de modo a tornar a coisa doada um bem particular do outro consorte (art. 1.668, I, CC6). De fato, o regime da comunhão universal comporta bens particulares, de modo que está implícita a possibilidade de os consortes transformarem bens comuns em particulares por meio da cláusula de incomunicabilidade inserida em uma doação. Entendimento contrário levaria ao absurdo de os consortes terem de doar um bem a um terceiro que, em seguida, doaria apenas a um dos consortes com cláusula de incomunicabilidade com base no art. 1.668, I, do CC, o que seria um despropósito. Interpretações não podem nos levar ao absurdo, como milenar regra de direito. Além do mais, nada impediria que, por testamento, um consorte deixasse a sua parte sobre um bem comum ao outro, de maneira que seria um contrassenso entender que o Código Civil teria vedado que, em vida, um consorte já tornasse desde logo um bem como como bem particular do outro por meio da cláusula de inalienabilidade. De mais a mais, a jurisprudência tende a fortalecer a possibilidade de, mesmo no regime da comunhão universal, um dos consortes ter bens particulares, a exemplo do seu direito de salvar, para si, metade do bem comum que foi penhorado por dívida contraída pelo outro sem proveito do casal7. Não se deve contrariar essa tendência, ainda mais por meio de uma interpretação restritiva que cria embaraços à autonomia da vontade num contexto em que inexiste norma expressamente proibindo a doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens. Por fim, o próprio art. 499 do CC, ao permitir compra e venda entre cônjuges quanto aos bens excluídos da comunhão (sem excluir expressamente o regime da comunhão universal), demonstra o prestígio do legislador à gestão dos bens particulares em qualquer regime de bens, mesmo no da comunhão universal.  O STJ não chegou a enfrentar diretamente um caso concreto envolvendo doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal. Por isso, o tema ainda está em aberto na jurisprudência no STJ. Em suma, defendemos que, fora desses dois casos acima (bens particulares e cláusula de inalienabilidade), como a doação é comunicável no regime da comunhão universal, a doação seria nula, nos termos da jurisprudência do STJ8. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/parecerista. Ex-advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB). Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro __________ 1 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança. 2 O caso envolvia a nulidade de cessão gratuita de quotas de pessoa jurídica ao cônjuge casado no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade. 3 A hipótese consistia na nulidade de doação de bens à esposa casada no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade. 4 Cabe uma ressalva: o regime de bens pode ser alterado mediante autorização judicial no regime do CC/2002. O excerto é este (fls. 11/14 do voto da Relatora no julgamento do REsp 1787027/RS): Os cônjuges são senhores pro indiviso dos bens comunicados. Nenhum dos dois os tem e possui por si; dão-se caracteristicamente, os fatos jurídicos da composse e do condomínio. Porém, composse e condomínio mais íntimos e, ao mesmo tempo, mais independentes do que a composse e o condomínio ordinários: os cônjuges não podem alienar ou gravar as suas partes (metades ideias), nem a composse dos bens comunicáveis permite o exercício sobre uma das partes dos bens, nem mesmo a separação. Trata-se de absoluta indivisão de bens presentes e futuros. Daí a impossibilidade das doações entre cônjuges quando o regime entre eles é o da comunhão universal: a) Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal, todos os adquiridos se comunicam. Já era o argumento de Melo Freire e Almeida e Sousa, que invocaram Groeneweg, Stryk e Bohmer. "Com efeito", dizia Almeida e Sousa, "nas nações em que é costumo, como no nosso reino, de se comunicarem entre os cônjuges, em falta de outro contrato, todos os bens, dizem os doutos nacionais que cessa este título pela mesma razão de outra vez se comunicarem os bens, que mutuamente se doam". A impossibilidade é de ordem lógica. b) Se a doação se fizesse com cláusula de incomunicabilidade, é certo que tais bens seriam incomunicáveis, porque assim mesmo dispõe o Código Civil (art. 263, II); mas essa condição de incomunicabilidade não seria lícita aos cônjuges: importaria permitirem-se-lhes alterações no regime de bens estabelecidos, que é, ex postestate legis, irrevogável (art. 230). As doações entre cônjuges são, portanto, impossíveis, lógica e juridicamente, se vigora o regime de comunhão universal. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito de família. Vol. II. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 363/364). 5 STJ, REsp 631.475/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJ 8/2/2008. 6 "Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;" 7 "A jurisprudência desta Corte consolidou entendimento de que os bens indivisíveis, de propriedade comum dos cônjuges casados no regime de comunhão de bens, podem ser levados à hasta pública na execução, desde que reservado ao cônjuge meeiro do executado a metade do preço obtido" (STJ, AgInt no AREsp 1127248/PE, 1º Turma, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06/12/2017). 8 A título de lembrança, recordamos que a doação entre cônjuges implica antecipação de herança e, por isso, tem de ser colacionada em futura sucessão, salvo se tiver havido cláusula expressa de dispensa de colação. Sobre o tema, reportamo-nos a este outro artigo nosso que trata da dispensa de colação pós-doação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Escritura pública de dispensa de colação pós-doação. Disponível aqui. Publicado em 12 de agosto de 2020).  
A revolução tecnológica verificada nos últimos anos trouxe à tona uma série de novas dinâmicas de mercado que ainda não foram objeto de satisfatória avaliação e regulação, e que demandam do aplicador jurídico o desafio da adaptação cada vez mais frequente de textos normativos analógicos a uma nova realidade social cada vez mais digital e impactada pela introdução de novas aplicações de inteligência artificial. É incontestável que os algoritmos vêm assumindo vasta participação numa série de atividades no campo negocial. Exsurge um novo paradigma operacional, com máquinas programadas para tomar decisões e assumir posturas típicas de indivíduos. Sistemas decidem como serão feitos os investimentos de um banco, negócios jurídicos são firmados por meio de softwares desenvolvidos em conjunto com sistemas de reconhecimento facial. Cada vez mais tomamos decisões sobre o que vamos consumir (livros, música, filmes) com base em sugestões que nos são apresentadas por aplicações que inteligência artificial criadas para traçar perfis de comportamento. Antes de prosseguirmos com algumas reflexões acerca de como a tecnologia vem impactando no campo contratual, é preciso estabelecer, o que se entende por uma aplicação de inteligência artificial (IA). Há quem os defina como "um sistema computacional com capacidade de decisão, agindo de forma autônoma a partir de suas capacidades de comunicação com outros agentes e/ou humanos para desempenhar a sua função específica1". São, em síntese, agentes com certo grau de autonomia, reatividade e proatividade. Jerry Kaplan argumenta que a essência da inteligência artificial, na verdade, a essência da inteligência, é a capacidade de fazer generalizações apropriadas em tempo hábil, com base em dados limitados2, consoante previsto em sua programação inicial. Um dos grandes obstáculos à melhor compreensão do tema objeto deste estudo é a dificuldade de lidar com conceitos e ideias de outros campos do saber, que exigem daqueles que se dedicam à pesquisa jurídica atenção com a terminologia empregada. A inteligência artificial muitas vezes se utiliza de algoritmos, ferramenta que pode ser compreendida como uma sequência de etapas utilizada pela inteligência artificial para solucionar um problema ou realizar uma atividade, cruzando dados e fazendo correlações em busca de um padrão3.  Os algoritmos, por sua vez, podem atuar por meio de machine learning, que é, essencialmente, a atividade da máquina de aprender novos fatos por meio da análise dos dados e da experiência prévia, sem programação explícita para tanto, adaptando a aprendizagem a novas situações4. Tais tecnologias se alimentam de um combustível essencial: dados. É nesse contexto que assume relevância a expressão Big Data, compreendida como um grande conjunto de dados, cada vez mais alimentado graças à presença de dispositivos sensores na vida cotidiana e ao crescente número de indivíduos conectados a essas tecnologias por meio de redes digitais5. Acumulam-se informações sobre tudo e sobre todos, 24 horas por dia, sete dias por semana, tudo armazenado, catalogado e pronto para ser minerado de acordo com os objetivos dos agentes de tratamento de dados. A revolução tecnológica tem desafiado o entendimento da dinâmica dos contratos e ensejado questionamentos acerca dos novos arranjos firmados. Se tradicionalmente compreendemos os contratos como negócios jurídicos de "autocomposição dos interesses e da realização pacífica das transações ou do tráfico jurídico, no cotidiano de cada pessoa"6. Precisamos nos aprofundar nos contratos ditos "algorítmicos", tipo de arranjo negocial nos quais uma ou mais partes usa(m) um algoritmo para determinar se deve(m) ou não se vincular7, isto é, contratos com termos que podem ser determinados com bases em critérios sugeridos ou avaliados pelo algoritmo8. O smart contract,  um tipo de contrato algorítmico, pode ser compreendido como um contrato autoexecutável aplicável a diferentes tipos de situações, regido por códigos específicos, que permite que as partes possam acordar entre si a negociação de bens e valores, executado de forma automática assim que as condições contratuais previamente definidas se cumprirem9. Não se confundem com os contratos eletrônicos, compreendidos como aqueles em que a proposta e a aceitação são realizadas por meio de sistemas de processamento de dados10, sem interatividade física entre as partes. Trata-se, assim, de contratos muitas vezes baseados na conduta negocial típica que induz a uma relação contratual, relativizando a exigência de aferição da capacidade civil dos envolvidos, mas sem que nenhum mecanismo explícito de oferta e aceitação tome espaço, o que mitiga a clássica ideia do consentimento de vontades, necessário para a concretização de um contrato. Nesse contexto, a teoria canandense do reliance estabelece que a adequação do negócio jurídico não depende de uma vontade interna do declarante, mas de sua conduta, que enseja a criação de confiança e leva o contratante a crer que houve assunção de uma obrigação11. Não obstante a evidente e inquestionável utilidade social decorrente do desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial, são também inúmeras as possibilidades de eclosão de danos em uma sociedade pós-moderna marcada pelo risco de sua utilização. A programação, vale dizer, o código algorítimo, não pode se sobrepor a direitos e garantias fundamentais, entre os quais podemos destacar o respeito à dignidade humana e a exigência de solidariedade social nos relacionamentos entre particulares, não importando a sua natureza. E não nos esqueçamos das questões relativas à transparência, num mundo no qual cada vez mais se ressalta a necessidade de accountability. O receio acerca do avanço da inteligência artificial também é fomentado pela ausência de conhecimento exato de como essas máquinas funcionam. A preocupação com a black box da IA é tão crescente que novas pesquisas têm sido feitas sob a denominação de Explainable Artificial Intelligence (XAI)12, ramo que visa fazer com que a IA vá alem da solução de problemas e que também seja capaz de trazer dados que possam elucidar como suas soluções são tomadas. Se temos máquinas que são programadas para pensar e se comportar como seres humanos, emulando o modo de comunicação e as nossas reações, não podemos esquecer que estamos diante de um produto de ações de programadores e empresas sujeitas ao ordenamento jurídico em vigor. Dito de outro modo, limitações tecnológicas não podem ser utilizadas como excludentes do dever de observar direitos fundamentais dos envolvidos em todas as etapas da aplicação da inteligência artificial.  Em sede contratual, os algoritmos podem ser utilizados tanto para fornecer informações relevantes para a pactuação do negócio jurídico como também em uma função de negociação. Nesse sentido, alguns desafios são impostos no que tange ao uso dos dados pelos algoritmos, especialmente considerando que, nesse contexto, muitas conclusões algorítmicas podem acarretar melhores condições contratuais para um dos polos da relação. Como saber que informações estão sendo utilizadas? De que forma tal informação é processada? É nesse panorama de razoável obscuridade que exsurgem as manifestações de discriminações algorítmicas. Impende evidenciar que a ideia de discriminação algorítmica não se restringe ao cenário em que determinado indivíduo é excluído de um grupo pelo fato de possuir determinada característica, manifestando-se, também, na situação em que alguém é julgado pelas características de um grupo a que pertença, de modo que suas características individuais passam a ser desconsideradas e o sujeito passa a ser visto como um mero membro de um dado grupo13. Nesse sentido, imagine-se a situação em que determinado indivíduo tem seu financiamento negado em razão da conclusão obtida pelo sistema de credit score, sem que nem sequer tenha conhecimento dos critérios levados a cabo pelo sistema. Ou ainda a hipótese em que determinado consumidor tem uma oferta virtual bloqueada simplesmente por estar situado em determinada cidade ou bairro, ou ainda, que tenha sua taxa de juros definida a partir de análises de dados do cadastro positivo. Esses são pequenos exemplos de como a participação algorítmica nas relações contratuais pode ensejar questionamentos e conclusões obscuras. No mesmo trilhar, Stefano Rodotà argumenta que:  A resposta rápida às necessidades imediatas tem realmente como efeito a igualdade substancial ou tende muito mais a congelar cada um na posição na qual se encontra, dando origem a uma discriminação bem mais forte? Se, por exemplo, se verifica que a maioria das famílias que habitam em um determinado bairro lê apenas um tipo de publicação, razões econômicas estimularão a distribuição naquela área apenas de livros e jornais correspondentes aos gostos e interesses individuados naquele momento particular. Por um lado, portanto, dá-se início a um mecanismo que pode bloquear o desenvolvimento daquela comunidade, solidificando-a no seu perfil traçado em uma situação determinada. Por outro lado, penalizam-se os poucos que não correspondem ao perfil geral, iniciando-se assim um perigoso processo de discriminação de minorias. A "categorização" de indivíduos e grupos, além disso, ameaça anular a capacidade de perceber as nuances sutis, os gostos não habituais14.  A generalização efetuada por muitos algoritmos pode enfrentar inconsistências quando se constata que muitas características não são universalmente compartilhadas por membros de determinado conjunto de pessoas. A ideia de suprimir a individualidade de um sujeito em prol de sua mera inserção em determinado grupo é, inclusive, perspectiva que enfrenta dificuldades sob o prisma kantiano da dignidade da pessoa humana. Sobre as discriminações algorítmicas, Laura Schertel e Marcela Mattiuzzo listam quatro das principais formas de discriminação que auxiliam na compreensão do cenário: por erro estatístico, por generalização, pelo uso de informações sensíveis e pela limitação do exercício de direitos15. Nesse contexto, a utilização de critérios como nacionalidade, gênero, posição política, religião, idade ou identidade sexual pode acarretar uma série de discriminações por estarem relacionadas ao íntimo da personalidade de cada indivíduo, além de acirrar estereotipização de grupos e acirrar ânimos sociais. Mas as espécies de discriminação que merecem atenção quando se estudam as consequências da utilização de algorítimos na prática negocial não se limitam aos exemplos acima apresentados, comumente relacionados a formas diretas de discriminação. É preciso aprofundar os estudos acerca das formas indiretas de discriminação, que ocorrem quando se verificam efeitos discriminatórios, vale dizer, impacto desproporcional em um grupo protegido, a partir da utilização de dados e critérios aparentemente neutros, segundo o senso comum16. No contexto contemporâneo, a inteligência artificial assume espaço em diversos ramos e possui inúmeras funções, podendo ajudar especialistas a resolver difíceis problemas, a desenvolver novas ferramentas, a aprender por meio de exemplos e representações e a criar oportunidades de mercado, participando, também, o desenvolvimento dos contratos, em quaisquer de suas fases. Essa expansão tem acarretado severos questionamentos quando se constata que a inteligência artificial não é uma tecnologia imune a falhas e que, mesmo quando ausentes vícios em seu funcionamento, sua interferência pode acarretar resultados discriminatórios para determinado indivíduo ou grupo de pessoas. É nesse panorama que exsurge a ideia de discriminação algorítmica, caracterizada quando determinado indivíduo é excluído de um grupo pelo fato de possuir determinada característica, manifestando-se, também, na situação em que alguém é julgado pelos aspectos de um grupo a que pertença, de modo que sua individualidade passa a ser desconsiderada e o sujeito é visto como um mero membro de um dado grupo. Deve-se então destacar algumas diretrizes axiológicas que podem nortear o emprego de tais aplicações tecnológicas em sede contratual: a necessidade de observância da explicabilidade, supervisão humana em todas as fases do processos realizados por máquinas, não discriminação, auditabilidade, prevenção dos danos e responsabilização. A tutela do contratante vulnerável também assume destaque, devendo a interpretação dos contratos ser efetuada com base no ordenamento jurídico de forma unitária e sistemática, não importando estarmos diante de contratação analógica ou digital.  Impõe-se, portanto, a necessidade de equalizar os interesses em questão, especialmente a livre-iniciativa com a função social dos contratos e a solidariedade social, conformando as balizas que delimitam o Estado Democrático de Direito e evitando a proliferação de danos injustos e distorções nas relações contratuais. *Marcos Ehrhardt Jr. é advogado. Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont.  **Gabriela Buarque Pereira Silva é mestranda em Direito Público pela UFAL. Advogada.  Este texto foi extraído e adaptado do artigo "Contratos e algoritmos: alocação de riscos, discriminação e necessidade de supervisão por humanos", escrito para integrar uma coletânea que tratará sobre aplicações de inteligência artificial, que ainda está em fase de elaboração, com previsão de publicação para dezembro de 2020. __________ 1 CELLA, José Renato Gaziero. DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto. Lógica, inteligência artificial e comércio eletrônico. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020. 2 "The essence of AI- indeed the essence of intelligence- is the ability to make appropriate generalizations in a timely fashion based on limited data".  KAPLAN, Jerry. Artificial Intelligence: What everyone needs to know. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 5. 3 GUTIERREZ, Andriei. É possível confiar em um sistema de inteligência artificial? Práticas em torno da melhoria da sua confiança, segurança e evidências e accountability. In: FRAZÃO, Ana. MULHOLLAND, Caitlin. Inteligência artificial e Direito: Ética, Regulação e Responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 85. 4 CERKA, Paulius; GRIGIENE, Jurgita; SIRBIKYTE, Gintare. Liability for damages caused by artificial intelligence. Computer Law and Security Review. United Kingdom, v. 31, p. 380. 5 ITS Rio 2016. Big Data in the Global South Project Report on the Brazilian Case Studies. Disponível aqui. Acesso em: 3 nov. 2019. 6 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 15. 7 "Algorithmic contracts are contracts in which one or more parties use an algorithm to determine whether to be bound or how to be bound". SCHOLZ, Laura Henry. Algorithmic contracts. Stanford Technology Law Review. Vol. 20, n. 128, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2020. 8 Anote-se, neste particular, que as aplicações de inteligência artificial, na forma como descrito acima, estão sendo empregadas como instrumentos para avaliação da alocação de riscos nos contratos, v.g., projeção de cenários, aferição de contingências, entre outros aspectos. Dessa forma, geram informações que fundamentam as decisões dos contratantes, sujeitos de direito personificados (pessoas naturais ou jurídicas). 9 LAUSLAHTI, Kristian. MATTILA, Juri. SEPPALA, Timo. Smart Contracts - How will Blockchain Technology Affect Contractual Practices?" ETLA Reports. N. 68. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2020. 10 AZEREDO, João Fábio Azevedo e. Reflexos do emprego de sistemas de inteligência artificial nos contratos. 2014. 221 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil): Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 37. 11 AZEREDO, João Fábio Azevedo e. Reflexos do emprego de sistemas de inteligência artificial nos contratos. 2014. 221 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil): Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 120. 12 DIOP, Lamine. CUPE, Jean. Explainable AI: The data scientist's new challenge. Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2019. 13 MENDES, Laura Schertel. MATTIUZZO, Marcela. Discriminação Algorítmica: Conceito, Fundamento Legal e Tipologia. Revista de Direito da Univille. Porto Alegre, Volume 16, n. 90, 2019, 39-64, nov-dez 2019, p. 9.  Estamos diante do profiling, no qual se rotulam indivíduos (labeling), que passam a ser tratados como integrantes de um conjunto, de modo impessoal e massificado. 14 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 83. Quanto mais informações sobre nossos hábitos de acesso, utilização e navegação na internet são mineradas, maior a possibilidade de experimentarmos uma vida digital dentro de uma "bolha", um ambiente controlado, no qual anúncios, sugestões de filmes, livros e novas amizades são parametrizados para seus interesses, ignorando qualquer coisa que não siga determinado padrão. Isso vem provocando intensa discussão acerca do incremento, ainda que não intencional, da intolerância comportamental, sobretudo em redes sociais, pois as pessoas passam a interagir cada vez menos com pontos de vistas diferentes dos seus. 15 Sobre este tema, tratando especificamente da questão da discriminação algorítmica nos contratos de seguro, Thiago Junqueira anota que "apenas quando um tratamento desigual é baseado em critérios protegidos pelo ordenamento jurídico ocorrerá discriminação. Não obstante o catálogo aberto de signos protegidos contra a discriminação (art. 3º, inc. IV, da CF), é possível reconduzi-los a duas categorias gerais: i) características imutáveis ou alheias ao controle dos indivíduos (e.g., raça, idade, deficiência, origem, dado genético) e ii) escolhas existenciais que possuam significância social (v.g., religião e orientação sexual). Elas têm em comum a marginalização e a opressão histórica de alguns grupos substancialmente minoritários, de modo a justificarem um grau de escrutínio mais rígido para que sejam feitas generalizações - e, a partir disso, tomem-se decisões tendo-as como suporte". (Cf. JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: RT, 2020, p. 380). 16 JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: RT, 2020, p. 383-4.
Nos últimos anos, tem se propagado a crença de que existe um embate ferrenho no âmago do Direito Contratual Brasileiro, envolvendo, de um lado, os cultores do chamado direito civil-constitucional e, de outro lado, os defensores da liberdade econômica. Enquanto os primeiros seriam defensores de um pan-principiologismo voltado a desnaturar tudo que tenha sido livremente pactuado entre os contratantes, os últimos estariam imbuídos da missão de restaurar o livre mercado, blindando-o de qualquer influência jurídica, em uma espécie de retorno à versão mais drástica do laissez faire, laissez passer. E o Direito Contratual Brasileiro precisaria, assim, se decidir entre um ou outro desses caminhos. Quero crer que um dilema assim tão inglório reflita, na verdade, uma falsa encruzilhada. Como tem acontecido em tantas searas no Brasil de hoje, esse chamado embate do Direito Contratual Brasileiro me parece se verificar mais em um plano abstrato, puramente ideológico, que em uma efetiva diferença técnica ou científica na interpretação e aplicação das normas jurídicas que regem, entre nós, as relações contratuais. E isso acontece por vicissitudes que afetam ambos os polos dessa disputa. De um lado, há toda uma má-compreensão da metodologia civil-constitucional, guiada por preconceitos que a enxergam ora como a ideia de que "tudo se resume à dignidade humana", ora como uma fonte de permanente insegurança para as relações contratuais, ameaçadas por construções que se fundam em meras referências nominais a princípios e cláusulas gerais. Nesse sentido, o direito civil-constitucional no Brasil talvez tenha se tornado vítima de seu próprio sucesso: o que era, até a última década do século XX, corrente minoritária, restrita a estreitos círculos acadêmicos, tornou-se, nos últimos anos, um emblema de prestígio que muitos passaram a empregar sem o devido conhecimento técnico1. Isso gerou um número considerável de textos, artigos e decisões que, embora empregando a designação de direito civil-constitucional, propõem soluções arbitrárias ou puramente casuísticas amparadas em uma impressão pessoal de "justiça", contrariando as bases fundantes da metodologia e se aproximando mais de correntes do chamado pensamento jurídico crítico que - e, aqui, não vai nenhum juízo de valor, mas apenas o realce de uma diferença essencial - ignora ou exprime desapego pelo dado normativo. A metodologia civil-constitucional é, bem ao contrário, uma corrente positivista, pois propõe uma interpretação-aplicação (como procedimento unitário) do direito civil que somente encontra legitimidade quando amparada em normas de direito posto, ainda que considere como tais também as normas constitucionais2 - o que é, de resto, hoje uma realidade amplamente aceita entre nós também no campo do direito público (natureza normativa da Constituição, eficácia horizontal dos direitos fundamentais etc.)3. De outro lado, parece que também os chamados defensores da liberdade econômica têm padecido de mal semelhante. Há, sob aquele rótulo genérico, autores que manifestam fundada preocupação com uma aplicação demasiadamente elástica de normas jurídicas veiculadas por meios de enunciados abertos (princípios, cláusulas gerais etc.), mas há também aqueles que pretendem simplesmente promover um retorno a uma liberdade imune a todo e qualquer olhar do Estado ou do Direito, a toda e qualquer norma jurídica, uma verdadeira terra de ninguém. Trata-se não apenas de uma pretensão historicamente inusitada, mas de um erro à luz da ciência jurídica, na medida em que não se pode simplesmente ignorar a existência de normas que - seja em sede constitucional, seja em sede infraconstitucional - aludem expressamente a noções como "função social da propriedade", "função social do contrato", "boa-fé objetiva", "excessiva onerosidade" e assim por diante, voltando-se expressamente à disciplina das relações contratuais. Entenda-se bem: o saudosismo é sempre permitido, mas não se pode enxergar uma proposta séria, sob o prisma jurídico, em discursos acalorados que selecionam arbitrariamente quais normas jurídicas pretendem ver mantidas (se alguma), descartando todas as demais.  Aqui, é interessante observar como os extremos se tocam: em ambos os lados do suposto embate, há os discursos juridicamente insustentáveis, pois, ignorando os limites impostos pelas normas de direito positivo brasileiro (constitucionais ou não), acabam por confundir debates legítimos sobre metodologias de interpretação e aplicação do direito com o seu simples abandono em prol da defesa de uma ou outra ideologia. Tais discursos padecem, em ambos os lados, do mesmo vício fundamental: violam a legalidade democrática, na medida em que propõe metodologias (ou, ao menos, métodos) de interpretação e aplicação do direito que ignoram o dado normativo, preferindo substituir a norma jurídica pela ideia de justiça; cada qual pela sua própria, naturalmente. O importante, todavia, é perceber que, quando se tolhem, nos dois extremos, aqueles ramos que não podem ser levados a sério em uma discussão jurídica por não estarem apresentando uma proposta juridicamente sustentável em um Estado Democrático de Direito, como é o Estado brasileiro, o que sobra é um grupo de juristas que, conquanto possam ter ideologias políticas distintas, aparecem guiados, de um lado ou de outro, por objetivos muito semelhantes na aplicação do Direito Contratual Brasileiro. De fato, não há, no campo dos autores que valorizam seriamente os princípios constitucionais, qualquer um que simplesmente ignore o valor da liberdade individual como direito fundamental ou deixe de reconhecer, tal como a própria Constituição expressamente reconhece, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV), a livre iniciativa como princípio da ordem econômica (art. 170, caput), a garantia constitucional da propriedade privada como direito fundamental (art. 5º, XXII) e assim por diante. Do mesmo modo, não parece haver, dentre os juristas que valorizam a liberdade econômica, qualquer um que pretenda, seriamente, impedir a incidência de normas jurídicas de fonte constitucional ou infraconstitucional, tais como a boa-fé objetiva - nascida, de resto, no campo das relações entre comerciantes e insculpida, desde 1850, no antigo Código Comercial4. É evidente que algumas destas normas, por seu conteúdo aberto, podem produzir uma forte impressão de insegurança jurídica. Esse temor, embora legítimo, reage a um perigo que não é inteiramente verdadeiro ou, ao menos, não é exclusivo, na medida em que é historicamente comprovado que um ordenamento jurídico composto apenas por normas muito específicas, de caráter regulamentar, não é capaz de eliminar a insegurança, pois, diante da insuficiência de um regramento matemático (vide a incompletude das grandes codificações), acabam os magistrados, premidos por suas necessidades cotidianas de solução de casos concretos, a recorrer a fundamentações alheias ao direito positivo, enquanto cláusulas gerais e princípios, precisamente por seu conteúdo aberto, permitem que a real fundamentação do decisum seja exposta e formulada dentro do sistema jurídico, sujeitando essa mesma fundamentação, portanto, ao controle dos diferentes graus de jurisdição, bem como às garantias do contraditório e da ampla defesa. Isso não significa, obviamente, que devamos aceitar a insegurança - cujo malefício não está exatamente na falta de segurança em si, mas sim na possibilidade de grave violação à isonomia, por meio da emissão de decisões radicalmente distintas para casos semelhantes. A insegurança, todavia, se combate com o trabalho cotidiano da doutrina e da jurisprudência na identificação e construção de parâmetros mais específicos para a aplicação de normas de conteúdo aberto a gêneros semelhantes de casos concretos. E é exatamente a isso que se dedicam diuturnamente os juristas sérios, tanto os que enaltecem os princípios constitucionais quanto aqueles que enfatizam a importância da liberdade econômica. Parece, em suma, que, quando se deixa o plano puramente ideológico e, mais que isso, o plano dos rótulos e emblemas - que se tornaram, infelizmente, os principais instrumentos de debate na realidade radicalizada do Brasil e de grande parte do mundo de hoje -, o que se vê não é um real embate entre defensores da liberdade econômica e defensores da constitucionalização do direito contratual, mas, muito ao contrário, uma atuação convergente em prol do mesmo objetivo: a obtenção de uma maior previsibilidade e uniformidade na solução dos conflitos contratuais à luz das diferentes normas que compõem a ordem jurídica em seus múltiplos graus. Vale dizer: por trás da notícia sensacionalista do conflito, o que se vê, em sua essência, é uma atuação pacífica e unitária em prol de um resultado que, por ser necessário no âmbito da ciência jurídica, é não apenas óbvio, mas também comum. E a insegurança que ambos os lados se propõem a combater não é, por certo, privilégio das normas constitucionais ou das normas que tratam da boa-fé objetiva ou da função social do contrato. Vejamos um caso emblemático: a lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, considerada a conquista maior deste novo pensamento jurídico animado pela tutela da liberdade econômica e batizada como Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A referida lei introduziu, por exemplo, no Código Civil uma norma expressa determinando que a interpretação do contrato deverá lhe atribuir o sentido que "for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio" (art. 113, §1º, I). Ora, trata-se de elemento que poderia trazer enorme insegurança, na medida em que o regramento da relação contratual passa a depender não apenas do que constava do instrumento originário, mas também do modo como as partes agiram, sendo sabido que o agir é sempre mais dinâmico e incerto que as palavras estampadas em um contrato5. No mesmo dispositivo, a referida lei introduziu a noção de que a interpretação do contrato deve "corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração" (art. 113, §1º, V). Arrisco dizer que não há um elemento interpretativo do contrato mais aberto do que este em toda a legislação brasileira. O que, afinal de contas, corresponderá à "razoável negociação das partes sobre a questão discutida"? "Razoável"para quem ou em qual sentido? E o que será a "racionalidade econômica das partes"? São expressões de conteúdo extremamente aberto, tal como os princípios jurídicos. E são todas expressões introduzidas como elementos de interpretação do contrato que não coincidem com a literalidade do instrumento contratual (pois, se coincidissem, seriam inúteis). Tumultuam, nesse sentido, a interpretação contratual; não a tornam mais precisa ou matemática, embora possam torná-la mais adequada.  Exemplos assim revelam que a diferença entre os dois lados do tal embate, se existe, não se situa na questão da segurança. Há uma clara distinção de símbolos e emblemas, mas isso não deveria adentrar a discussão jurídica sobre a interpretação e aplicação do Direito Contratual Brasileiro. Infelizmente, todavia, isso, por vezes, acontece. A lei 13.874/2019 é, de novo, um exemplo, a começar pelo seu próprio nome: uma Declaração de Direitos de Liberdade Econômica revela já em seu título um propósito um pouco mais panfletário do que aquele que se deveria esperar de uma lei ordinária. O uso dos rótulos e emblemas não se interrompe, contudo, por aí, mas se reflete em normas introduzidas no Código Civil como o novo artigo 421-A, inciso III, em que se lê: "a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada". A nova norma é inteiramente inútil. A revisão contratual não é regra, nem exceção. Trata-se de um remédio aplicável diante da presença dos requisitos que o próprio Código Civil estabelece para tantos nos seus artigos 317 e 4786. Dizer que a revisão é "excepcional e limitada", sem alterar aqueles requisitos, não traz qualquer inovação no mundo do direito - como, aliás, não traria dizer que "não é excepcional", que é "ilimitada" ou que deve ocorrer "com frequência" ou "em regra". Ou se modificam os requisitos que atraem a revisão ou tudo permanece como era antes. O novo artigo 421-A, inciso III, é, portanto, um dispositivo legal de conteúdo meramente retórico, que seguramente teria sido evitada se houvesse efetiva discussão em torno da intervenção legislativa, e não o apressamento que se tornou habitual na tramitação das normas jurídicas (a própria lei 13.874/2019 é fruto de uma Medida Provisória, nada urgente ou emergencial) para consolidar posições e consagrar autorias. O mesmo problema se repete na alteração promovida ao artigo 421 do Código Civil, que, além de reiterar a excepcionalidade da revisão contratual (a lei que reitera algo normalmente vai mal), alude a um inédito "princípio da intervenção mínima"7. Quem intervém em algo é o Estado ou o próprio legislador, de modo que afirmar em lei que a intervenção será "mínima" (ou "máxima" ou "equilibrada") nada acrescenta ao nosso direito contratual; os seus remédios se apresentam quando preenchidos seus pressupostos. Assim caminha a ciência jurídica, justamente para se diferenciar da política e das ideologias de ocasião. A incorporação da política ou das ideologias ao Código Civil, travestidas de normas, é que dá ares de insegurança àquilo que deveria ser simplesmente jurídico, pois há nisso inevitável transitoriedade: o próprio retorno ao liberalismo, que vinha se ampliando até o início de 2020 no Brasil, pode sofrer a volta do pêndulo com a intervenção estatal que já está sendo exigida na economia brasileira diante da paralisia de produção e comércio causada pela pandemia de covid-19. Em suma, política à parte, não parece existir uma real dissonância no tocante ao que realmente constitui o cerne da discussão: a interpretação e aplicação do direito contratual. Podem existir, naturalmente, divergências ideológicas (por exemplo, quanto ao grau ideal de intervenção do Estado nas relações entre particulares), divergências que, além de legítimas e saudáveis, constituem o cerne do debate político há séculos, mas isso não é o mesmo que enxergar fraturas ou encruzilhadas no avanço do Direito Contratual Brasileiro. Tampouco é o caso, e com ainda menos razão, de uma nova summa divisio ou cisão, como aquela que propõem, consciente ou inconscientemente, os defensores de uma distinção ontológica ou normativa entre contratos civis e empresariais. A unificação do direito das obrigações foi uma das poucas inovações do Código Civil de 2002, exprimindo uma tendência global de eliminação de lógicas puramente setoriais em prol da unidade dos sistemas jurídicos. A construção de "guetos" jurídicos, embora possa parecer mais fácil e confortável para acomodar divergências de pensamento ou abordagem, resulta, não raro, em um aprofundamento de idiossincrasias que, a médio prazo, acaba por tornar impraticável a leitura sistemática e a reconexão de cada ramo do direito com uma ideia mínima de sistema - o que aprofunda a diferença de tratamentos e a imprevisibilidade de resultados, conduzindo à falta de isonomia que é, como já dito, aquilo que a ordem jurídica deve, mais que tudo, evitar8. Direito civil e direito empresarial não são regimes jurídicos apartados, governados por lógicas próprias. Integram-se na legalidade constitucional. No atual estado da experiência jurídica brasileira, não parece crível que alguém pretenda negar nem a força normativa da Constituição, nem a tutela que a própria Constituição reserva à livre iniciativa no campo contratual.  Significa dizer que, sob os gritos de ordem e as insígnias tremulantes, pode haver menos desacordo do que parece entre os fautores da liberdade econômica e os defensores do chamado direito civil-constitucional. Talvez pela obviedade ululante de que não há uma liberdade econômica que possa se desenvolver fora do quadro normativo constitucional, do mesmo modo que não há uma leitura constitucional do Direito Contratual Brasileiro que possa ser indiferente à tutela da liberdade econômica. O que deveríamos estar realmente discutindo não é qual caminho seguir nessa falsa encruzilhada, mas como solucionar a principal preocupação dos juristas situados em ambas as quadras: como assegurar uma aplicação do direito que seja, a um só tempo, sistemática e previsível (e, portanto, isonômica)? Como evitar arbitrariedades e casuísmos? Decisões ruins e caricaturais sempre irão existir, mas como unificar as respostas em torno da solução reservada aos diferentes conflitos contratuais? Está claro que a mera remissão à literalidade do instrumento contratual originário (em um direito contratual backward-looking) não se afigura suficiente para solucionar os problemas que afetam a relação contratual em seu atual dinamismo e que outros elementos (comportamento das partes, fim contratual, racionalidade econômica etc.) têm sido chamados a contribuir nessa missão. Como, entretanto, assegurar que essas fórmulas não sejam usadas de modo meramente retórico ou vazio? Um bom primeiro passo é unir esforços doutrinários e jurisprudenciais em torno do estabelecimento de parâmetros para a aplicação destas noções mais abertas que estão presentes no Direito Contratual Brasileiro, como estão, de resto, presentes em praticamente todos os ramos do direito contemporâneo. Mais importante que aportar novas noções ou restringir ou limitar noções já consolidadas na legislação, como muitos parecem pretender neste momento, é construir um consenso sólido - a partir da convergência entre a experiência pragmática da jurisprudência e a análise científica da academia propensa à elaboração de soluções mais prospectivas e sistêmicas - em torno do modo correto de aplicação daquelas noções, tornando tal aplicação uniforme e previsível nos seus resultados.  Em conclusão: posicionar-se a favor da constitucionalização do direito civil ou da proteção da liberdade econômica é um falso dilema. Ainda que não fosse, equivaleria a simplesmente escolher um dos lados da disputa, como numa espécie de fla x flu jurídico. Por mais entusiasmante que pareça, não há nada de efetiva atividade jurídica nisso. O verdadeiro desafio - este sim, jurídico - está em construir soluções para os conflitos contratuais que permitam uma aplicação sistemática, racional e previsível das normas que integram a ordem jurídica brasileira (sem descartar arbitrariamente qualquer uma delas) de modo a assegurar, a um só tempo, a concretização do projeto constitucional brasileiro e o desenvolvimento econômico do país. E esse é um desafio que exige soma, não divisão. *Anderson Schreiber é professor Titular de Direito Civil da UERJ. Membro Fundador do IBDCONT. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.  __________ 1 Para uma análise mais detalhada da trajetória da constitucionalização do direito civil, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Direito e Constituição, in Direito civil e constituição, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 5-24, especialmente o tópico intitulado "o que é (e o que não é) direito civil-constitucional". 2 Na lição de Pietro Perlingieri: "O princípio da legalidade constitucional é um ponto fixo, um caminho obrigatório para o intérprete que pretenda reencontrar uma uniformidade de interpretação, utilizando as potencialidades implícitas do sistema jurídico, no respeito substancial do mesmo e com um renovado positivismo que, não se identificando na simples reverência aos códigos, constitua um possível ponto de confluência metodológica". (O Direito Civil na Legalidade Constitucional, ed. brasileira org. por Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 576-577). 3 Ver, por todos, Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil), in ReRE - Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 9. 2007. 4 "Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras (...)". 5 Registre-se que também esta regra já constava do velho Código Comercial de 1850: "Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: (...) 3 - o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato". 6 Para uma análise mais detida da revisão judicial dos contratos no Brasil, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva Educação, 2020, 2ª edição, passim. 7 "Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". 8 Registre-se que, neste particular, a lei 13.874/2019 parece ter reconhecido a ausência de distinção, pois, no caput do artigo 421-A, emprega a expressão "os contratos civis e empresariais" sem fazer, ali ou nos incisos seguintes, qualquer distinção em sua disciplina jurídica: "Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (...)".
Texto de autoria de Raif Daher Hardman de Figueiredo e Arnaldo Rizzardo Filho A pandemia do Novo Coronavírus, com status mundial reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 20 de março de 2020, causou impactos econômicos estrondosos na economia mundial e brasileira. De acordo com o IBGE, o Brasil encerrou o segundo semestre de 2020 com 7,8 milhões de postos de empregos formais aniquilados e com 1,3 milhões de empresas fechadas, sendo que 40% dessas empresas foram fechadas em razão da crise econômica gerada pela pandemia do covid-19. No mês de junho de 2020, em comparação a maio do mesmo ano, houve um aumento de mais de 80% nos pedidos de recuperação judicial e 28% dos pedidos de falência. Ainda não é possível prever a totalidade dos efeitos negativos decorrentes da pandemia. A crise econômica atingiu todo mercado desde empresas locais até multinacionais com a redução generalizada da demanda. O impacto negativo é sentido com mais gravidade pelas empresas de micro e pequeno porte, seja pela menor reserva de caixa, seja pela maior dificuldade de acesso ao crédito. Desde o início da pandemia, o Estado-juiz tem sido instado a se manifestar sobre revisões contratuais, suspensão de pagamentos e redução de aluguéis comerciais, inclusive em shopping center. Naturalmente, a crise econômica não poupou redes de franquias (ou outros negócios em rede), atingindo franqueadores e franqueados. Assim como o valor dos aluguéis nos contratos de locação, os royalties e as taxas de marketing nos contratos de franquia muitas vezes necessitam ser renegociados para não haver uma "quebradeira" geral da rede. Com efeito, a renegociação tem sido o mandamento da vez para atenuar os impactos da crise. Ainda que o cenário seja desolador, há esperanças de que o pós-pandemia seja contemplado com o aumento do mercado de franquias. Isso porque parte considerável das pessoas atingidas pelo desemprego e pela dificuldade de recolocação no mercado formal de trabalho vê-se obrigada a iniciar de um negócio próprio para garantir seu sustento e de sua família. E nessa esteira, aderir a uma rede de franquias significa maior segurança de ingressar em um negócio, em tese, testado e aprovado pelo consumidor, com amparo de um franqueador com largo know-how naquele mercado. Aliado a isso, tem-se a própria força da rede de franquias e da marca. As estatísticas apontam para uma menor mortalidade de empresas franqueadas nos primeiros cinco anos de atividade em relação às empresas que atuam individualmente. A ciência da administração tem nos alertado que negócios em rede, como agências, distribuições, franquias, associações comerciais e redes atípicas (plataformas digitais, por exemplo) têm a tendência de aumentarem durante períodos de crise econômica. Os negócios em rede são soluções intermediária entre a integração vertical (sociedade) e o livre mercado. Atores econômicos formam coletividades que operam de forma coordenada e cooperada, sem relação de sociedade, e sem competirem entre si (e é por isso que seus ambientes diferem do livre mercado). No caso das redes de franquia Subway e McDonald's, são mais de 40.000 franqueados que a partir de contratos comerciais (contrato de franquia) aderem (contrato comercial "de adesão") às respectivas redes através de contratos de "gaveta". E o mesmo se dá com a plataforma Uber, por exemplo, onde mais de 1.000.000 motorista aderem à plataforma por contratos eletrônicos de "gaveta" (frise-se que recentemente o TST decisiu que a relação contratual da Uber com seus motoristas não é de emprego. Crê-se que a mesma decisão será tomada em relação à Rappi e à Loggi). Neste artigo pretendemos chamar a atenção para a necessidade de contratualização e regulamentação dos negócios em rede. E, mais, pretendemos chamar a atenção para o fato de que o momento é oportuno, pelo menos por duas razões: (i) entrada em vigor da nova lei de franquia (lei 13.966/19) em 27 de março de 2020 e (ii) o momento é de planejar o pós-pandemia e organizar a casa. Atualmente, os contratos em rede são interpretados com base no princípio da boa-fé objetiva ampliada, assim como se tem ocorrido com contratos cativos, contratos de longa duração e contratos relacionais. É bem verdade que em tais contratos a relação diuturna entre as partes é capaz de gerar deveres e obrigações entre as partes, conforme se depreende da conceituação de contratos de longa duração por Ricardo Lorenzetti em seu tratado dos contratos. O comportamento das partes é mais importante do que aquilo que está 'positivado no instrumento contratual. Não estamos questionando essa afirmação. Porém, parece-nos necessária o estabelecimento de regras estruturais para definir funções e papéis no bojo da rede, evitando conflitos entre os seus componentes. Nessa trilha, é importante situar os contratos em rede como contratos híbridos. Ficam no meio do caminho entre o mercado (livre concorrência) e a empresa (hierarquia). Nos contratos em rede, várias empresas independentes se reúnem em prol de um objetivo comum. A rede, contudo, não pode ser "descordenada". Precisa ter uma liderança, que pode ser exercida em conjunto por todos os seus membros ou isoladamente por um deles. No caso da franquia, a liderança é exercida pelo franqueador. Ainda nesse contexto, é interessante observar que as relações no livre mercado são regulamentadas por contratos, mas na falta de previsão contratual, o Código Civil ou, ainda, a lei específica para os contratos nominados, encarrega-se de regulamentar os deveres e obrigações das partes ou suprir lacunas. No caso das relações hierárquicas, embora existam os atos constitutivos da empresa, há inúmeras previsões de regulamentação estrutural da empresa tanto no Código Civil quanto na lei das sociedades por ação e na legislação esparça. O fenômeno da rede, embora seja econômico e não propriamente jurídico, carece de atenção do jurista porquanto é uma realidade crescente e potencial e efetivamente geradora de conflitos que desembocam na seara jurídica. No mundo dos fatos, vemos que as redes de franquias, e outras redes de empresas, raramente possuem uma regulamentação formal estrutural. Ou seja, raramente possuem um instrumento constitutivo com o estabelecimento de regras para convocação de reuniões ou assembleias, tomada de decisões e quórum de votação, regras sobre ingresso e retirada de membros, estabelecimento de normas, planejamento de estratégias de marketing, política de mercado internacional, divisão de responsabilidades, incorporação de novas tecnologias e regência da concorrência entre os membros da rede. Defendemos, portanto, a necessidade de organização estrutural dos negócios em rede como forma preventiva de conflitos entre seus membros. No caso do contrato de franquia, a função diretiva e coordenadora é assumida pelo franqueador, que deve ser o responsável pela sistematização, formatação e organização da rede. Dizemos que o momento é oportuno para a organização porque com a redução da carga operacional em razão do isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavirus, embora com efeitos preponderantemente negativos, pode deixar os gestores/franqueadores com mais liberdade para organizar a estrutura da sua rede e se preparar para o período pós-pandemia, inclusive com a recepção de novo franqueados. A organização da rede além de prevenir conflitos internos, facilita criação de uma governança sustentável e aberta aos interessados. Temos, ainda, a entrada em vigor da lei 13.966/19 em março deste ano, que gera a necessidade de atualização da Circular de Oferta de Franquia em razão da inclusão de novos requisitos mínimos no seu conteúdo. A própria necessidade de revisitação do instrumento de disclosure da franquia já seria um motivo para a criação de regras estruturais. Mas, tem mais. Não obstante a nova lei de franquia tenha, de fato, deixado a desejar no estabelecimento de regras para os contratos de franquia, acabou por incentivar a criação de regras estruturais, conforme se depreende, por exemplo, do art. 2º, XI, "c", que determina que a franqueadora anuncie a existência ou não de "regras de concorrência territorial entre unidades próprias e franqueadas" e do art. 2º, XX, que determina a "indicação de existência de conselho ou associação de franqueados, com as atribuições, os poderes e os mecanismos de representação perante o franqueados, e detalhamento das competência para gestão e fiscalização da apliacação dos recursos de fundos existentes". Reiteramos, portanto, que a contratualização dos negócios em rede é imprescindível para a sua manutenção saudável no mercado, salientando que o momento vivido, embora tenha aspectos preponderantemente negativos para a economia, é apropriado para se pensar na (re)estruturação das redes de empresas. Finalmente, alertamos que, no contexto de rede, contratualizar significa muito mais que no contexto das contratações lineares (compra e venda e prestação de serviço). É a partir da contratualização que se faz a devida governaça do ente coletivo (a rede), segundo os parâmetros constitucionais do nosso país. *Raif Daher Hardman de Figueiredo é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduado em Direito dos Contratos pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Associado do IBDCont. Advogado. *Arnaldo Rizzardo Filho é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Advogado, professor e autor.
Texto de autoria de Bruno Casagrande e Silva No dia 5 de agosto de 2020, a MP 925, de 18 de março de 2020 (MP 925), foi convertida na lei 14.034, de 05 de agosto de 2020 (lei 14.034). Conforme demonstraremos a seguir, trata-se de um caso em que a medida provisória que deu origem a ela era preferível ao seu resultado. Repleta de atecnia e com questionável eficácia, a nova norma afeta a sistemática dos contratos de consumo na prestação de serviços de transporte aéreo, atendendo a antigos pleitos das empresas de viação civil, que sempre bradaram que as normas do Código de Defesa do Consumidor a elas aplicadas inviabilizavam a sua atividade. A MP 925 era singela. Em um total de quatro artigos prorrogava o vencimento das contribuições devidas em razão dos contratos de concessão, estabelecia como prazo máximo de reembolso no caso de desistência da viagem o total de 12 meses, isentava os consumidores das penalidades pela desistência no caso em que optavam por créditos junto às empresas aéreas e fixava o ocaso da sua vigência em 31 de dezembro de 2020. Sem ser complexa, criava um equilíbrio entre consumidor e companhias aéreas, que receberam com alívio uma normatização para o período excepcional. Todavia, segundo o processo legislativo brasileiro, as medidas provisórias têm força imediata, mas podem ter o seu conteúdo alterado pelo Poder Legislativo durante a sua tramitação, exatamente como ocorreu neste caso. O período de discussão da medida provisória é curto, 60 dias prorrogáveis por igual período a partir da sua edição, sob pena da norma perder a sua validade. Se por um lado ela permite rápidas soluções, como efetivamente o fez naquele período de dúvidas, é bastante comum que o processo legislativo, quando atribulado pela pressa, resulte em leis cuja técnica é duvidosa. Assim, aquela medida provisória, que era composta por quatro artigos e dois parágrafos, se tornou uma lei com 13 artigos repletos de parágrafos e incisos, tratando de matérias tão diversas que sequer deveriam constar do mesmo instrumento legislativo. A lei 14.034 trata de matérias de direito do consumidor, de responsabilidade civil do transportador, de contratos de concessão e de recolhimento de taxas aeroportuárias, porém - atento à proposta desta coluna - apenas serão abordadas as matérias que atingem os contratos e os seus desdobramentos na responsabilidade civil. Afirma o artigo 1º que "Esta Lei prevê medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19 na aviação civil brasileira". Todavia, apesar de criar um marco temporal em algumas hipóteses específicas, como o faz no artigo 3º, em outros casos altera definitivamente diversos outros diplomas legais. Ao expressamente referir-se a medidas emergenciais relativas à COVID-19, a nova lei gera dúvida quanto à temporariedade dos artigos 4º ao 12. A redação nos dá impressão de que são alterações definitivas, já que atingem o conteúdo material de outras legislações, definindo novos paradigmas para elaboração e interpretação dos contratos de transportes aéreos. O artigo 3º da lei 14.034 cuida do reembolso do valor pago pelo consumidor para aquisição de passagem aérea. A MP 925 estabelecia o prazo de 12 meses para reembolso dos consumidores, isentando-os de multa em caso de optarem por manterem créditos para uso futuro nas companhias aéreas. A lei 14.034 por sua vez, alterou a redação da norma significativamente: O reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, observada a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente. (destaque nosso) (sic) Se a primeira norma atendia o consumidor que, em razão da COVID-19, desistia da viagem, a lei 14.034, de 2020 desdobrou a norma, criando uma moratória para a indenização do consumidor no caso de cancelamento do voo por ato da companhia aérea (caput), por atraso superior a 4 horas na partida ou em escala (§5º). Assim, a regra de restituição imediata do consumidor prevista no inciso II do artigo 20 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi afastada completamente. O conteúdo plasmado do caput do artigo 3º já vinha sendo aplicado por alguns magistrados ao interpretarem a MP 925, conforme noticiou o Migalhas, em 29 de abril de 20201. A norma original, que cuidava da desistência dos consumidores foi desdobrada, tendo sido retirada do caput e relegada ao §3º do mesmo artigo, combinando o caput e o §1º do artigo 3º da MP 925. §3º O consumidor que desistir de voo com data de início no período entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 poderá optar por receber reembolso, na forma e no prazo previstos no caput deste artigo, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais, ou por obter crédito de valor correspondente ao da passagem aérea, sem incidência de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste artigo. O §1º do artigo 3º obriga que as empresas de transporte aéreo concedam ao consumidor a opção entre receberem a devolução do dinheiro no prazo de 12 meses ou a aquisição de créditos, que podem ser utilizados em até 7 (sete) dias, no período de até 18 (dezoito) meses, a partir do recebimento do crédito, em favor de si próprio ou de terceiros. O mesmo direito foi estendido ao consumidor que, ao desistir do voo durante a janela legal, optar por créditos junto à companhia, isentando-o neste caso de penalidades. Aparentemente o §6º do art. 3º da lei 14.034 é uma tentativa de relativização do direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC, mas que talvez seja ineficaz. A norma consumerista assegura ao consumidor o prazo de 7 dias para arrepender-se dos serviços contratados fora do estabelecimento comercial. Nas lides cotidianas já se tornou lugar comum a defesa das companhias aéreas a alegação de que o direito de arrependimento não deveria ser aplicado aos seus contratos, mas sim o artigo 11 da Resolução 400, de 13 de dezembro de 2016, expedida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que dispõe sobre o direito de arrependimento dentro de 24 (vinte e quatro) horas ao consumidor que efetuou a compra com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data do embarque. Ainda quanto ao §6º do art. 3º da lei 14.034, a nosso ver, este não tem o condão de atingir o direito de arrependimento do artigo 49 do CDC, porque não revoga o seu elemento essencial, que é justamente a compra fora do estabelecimento. Na prática, reforça o leque protetivo do consumidor, elevando para o texto de lei o direito de arrependimento em 24 horas quando a compra é feita dentro do estabelecimento comercial, outrora assegurado por diploma infralegal e de pouco conhecimento. Nesse caso, inclusive, não se deve aplicar também a moratória de 12 (doze) meses, já que afasta a norma do §3º do mesmo artigo, que se torna perfeita com a integração com os termos impostos pelo caput. O direito ao reembolso, ao crédito, à reacomodação ou à remarcação deve ser assegurado independentemente da forma como foi adquirida a passagem, que pode ser tido comprada em dinheiro ou por meio de programas de benefícios ou fidelidade, conforme prevê o §7º. Esse dispositivo foi bastante mal elaborado. Ao mencionar os meios de compra, registra "pecúnia, crédito, pontos ou milhas", sem definir, contudo, o que seriam "pontos e milhas". Apesar de se tratar de expressões triviais, "pontos e milhas" não são termos técnicos, tendo o seu conteúdo definido por contrato entre as partes. É bastante comum que os programas de milhagem e benefícios se utilizem de nomes singulares, como estratégia de publicidade para valorizar o seu produto. Outro ponto em que o dispositivo falha é ao mencionar a modalidade de compra por "crédito", sem definir qual a extensão dessa forma de pagamento. A compra por meio de cartão de crédito é considerada como compra à vista, em pecúnia, uma vez que a empresa emissora do cartão de crédito se torna, ao mesmo tempo, credora do consumidor e devedora da companhia aérea. Os próprios programas de milhagem são uma espécie de programa de crédito, já que o consumidor é credor dos benefícios remunerados pelo programa de milhagem. Essa redação imperfeita pode levar a muitos questionamentos, inclusive - por exemplo - no que diz respeito à devolução da forma de pagamento, já que o texto não diz que a devolução deve ocorrer ou não na mesma forma que se deu o pagamento. A nosso ver, a devolução precisa ocorrer na mesma forma em que o pagamento se deu, porém é imperioso atentar que os prazos prescricionais dessas formas alternativas de pagamento devem ser reiniciados, devolvendo ao consumidor a totalidade do prazo prescricional. O §8º do art. 3º, por sua vez, tem conteúdo importante, dialogando diretamente com as regras de moratória sancionadas no caput. Na prática, antes da MP 925 e da Lei 14.034 as companhias aéreas eram obrigadas a restituir integralmente os valores pagos, ainda que houvesse parcelas sendo debitadas em cartão de crédito. Caberia a elas - já que do seu interesse - resolver a questão logística do cancelamento. Com a moratória de 12 (doze) meses em vigor, as empresas passam a poder restituir os consumidores de forma futura, em tempo superior àquele que as parcelas seriam debitadas nos cartões de crédito. Diante de tal possibilidade, o legislador determinou que a prestadora de serviços tome providências imediatas para suspender cobranças futuras. Apesar da norma não prever penalidade em caso de descumprimento, é medida a ser festejada, cabendo a responsabilização por inobservância da lei à responsabilidade civil. Finalizando as normas temporárias, a devolução das tarifas aeroportuárias ou de outros valores devidos a entes governamentais, pagos pelo consumidor diretamente ao transportador, não se submete à moratória do caput e do §3º, devendo ser realizada em até 7 (sete) dias, contados da solicitação, salvo se, por opção do consumidor, a restituição for feita mediante crédito, que será integralmente convertido em favor do consumidor nos termos do §1º. Outro ponto digno de nota é que diferentemente da MP 925, o artigo 3º da lei 14.034 faz referência expressa a "consumidor". Portanto, nos contratos em que não se aperfeiçoarem os elementos da relação de consumo, as normas temporárias do artigo 3º não serão aplicáveis, não havendo que se falar em moratória. A guisa de exemplo, imaginemos que uma empresa de turismo tenha realizado um fretamento de aeronave para levar passageiros até determinado destino. Nesse caso, o contrato entre a empresa de transporte aéreo e a empresa de turismo - que não é destinatário final - não é abarcado pelo Código de Defesa do Consumidor, devendo a restituição dos valores pagos ser imediata, salvo disposição contratual em sentido diverso. Nesse mesmo exemplo, todavia, a empresa de turismo poderia devolver os valores pagos pelos consumidores na forma prevista no caput artigo 3º da lei 14.034. O artigo 4º da lei 14.034 traz alteração que - aparentemente - não se submete a transitoriedade da situação imposta pela COVID-19, alterando definitivamente a matéria de responsabilidade civil dos prestadores de serviço de transporte aéreo, fixada pela lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA). O primeiro ponto a ser trazido a lúmen é que a responsabilidade civil dos transportadores aéreos é regulada por dois dispositivos distintos: o CBA e o CDC. Nas relações ordinárias, quando o tomador não é destinatário final, aplica-se apenas a codificação aeronáutica, porém, quando o tomador dos serviços é destinatário final, há de se aplicar o CBA em conjunto com a codificação consumerista. Nesse sentido afirma Flávio Tartuce, refletindo sobre o artigo 734 do Código Civil: Ao contrato de transporte, aplica-se o Código Civil e, havendo relação jurídica de consumo, como é comum, o código de Defesa do Consumidor (...). Desse modo, deve-se buscar um diálogo das fontes entre as duas leis no que tange a esse contrato, sobretudo o diálogo de complementaridade. Além disso, não se pode excluir aplicação de leis específicas importantes, como é o caso do Código Brasileiro de Aeronáutica (...), incidente para o transporte aéreo2. A lei 14.034 inclui um novo artigo no CBA, o artigo 251-A, com a seguinte redação: Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga. (destaque nosso) A primeiro ponto que se nota é que a norma cuida de dano extrapatrimonial, porém exige que a vítima demonstre efetivo prejuízo e a sua extensão. O primeiro problema que se apresenta é que os danos extrapatrimoniais - diferentemente dos danos patrimoniais - não tem um prejuízo matematicamente apurável. O ônus da prova do dano extrapatrimonial sempre foi do consumidor, sendo que a sua "presunção" somente ocorre em situações em que o prejuízo e a extensão são evidentes, já que fatos notórios dispensam prova. Assim, sendo a indenização do dano moral assegurada constitucionalmente, sem que haja regra para a liquidação do dano extrapatrimonial - como ocorreu com a responsabilidade trabalhista, ainda que de duvidosa constitucionalidade - o novel artigo 251-A é regra vazia. Em que pese a tese de que a norma teria sido editada para ser aplicada nas relações ordinárias, já que as pessoas físicas e jurídicas também podem sofrer danos extrapatrimoniais fora da relação de consumo, ela continua dispensável, pois essa já é a regra vigente no ordenamento jurídico. Na fixação do quantum indenizatório do dano extrapatrimonial, o magistrado deverá levar em conta a extensão do dano demonstrada pela vítima, que corresponde ao seu efetivo prejuízo imaterial, fixando um valor em dinheiro correspondente a indenizar o sofrimento da vítima. Portanto, para que houvesse alguma inovação nessa sistemática, seria preciso surgir uma tabela de liquidação de danos extrapatrimoniais, coisa que o legislador não fez. Outra alteração introduzida pela lei 14.034 foi a exclusão da responsabilidade do transportador nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, quando for impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano. Esse dispositivo é expressamente complementado pelos noveis §3º do artigo 256 e inciso I do artigo 264: §3º Constitui caso fortuito ou força maior, para fins do inciso II do § 1º deste artigo, a ocorrência de 1 (um) ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis: I - restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo; II - restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária; III - restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada; IV - decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias. Art. 264. (...) I - que o atraso na entrega da carga foi causado pela ocorrência de 1 (um) ou mais dos eventos previstos no § 3º do art. 256 desta Lei; A norma reproduz uma tendência que vem se construindo na jurisprudência consumerista3. Ainda que o CDC não mencione o caso fortuito e a força maior no §3º do artigo 14, que cuida de hipóteses que excluem a ilicitude do ato, não há como se negar que havendo caso fortuito ou força maior, não se exclui apenas o ato ilícito, mas o nexo de causalidade em si. Por fim, o §4º inserido no artigo 256 do CBA afirma que apesar de não se falar em dever de indenizar o dano extrapatrimonial, há o dever do transportador em oferecer assistência material ao passageiro, bem como indenizá-lo materialmente, nos termos dos artigos 230 e 231 do CBA. A lei 14.034 até propõe um caminho a ser seguido, porém apresenta equívocos e defeitos técnicos que não garantem à segurança jurídica que se espera da lei, cabendo à doutrina e a jurisprudência, novamente, fixar seus contornos e extensão precisos. *Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito Pela FADISP. Especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador do Curso de Direito da FAMUTUM. Professor em graduação e pós-graduação. Membro do IBDCont, do IBDCivil e do IBERC. Advogado e parecerista. __________ 1 Companhia aérea não deve restituir de imediato passagem cancelada durante pandemia. Migalhas, 2020. Disponível em . Acesso em 06 ago. 2020. 2 TARTUCE, Flávio. Manual de Reponsabilidade Civil. Rio de Janeiro: FORENSE; São Paulo: Método, 2018. P. 1072. 3 APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL - APLICABILIDADE CDC - ATRASO VOO - CONDIÇÕES METEOEOLÓFICAS ADVERSAS - CASO FORTUITO COMPROVADO - RECURSO DESPROVIDO. A empresa comprovou que o atraso do voo se deu em razão de condições meteorológicas adversas. Tendo em vista caso fortuito, a empresa não possuía opções a não ser aguardar que o tempo melhorasse para pouso, o que exclui a responsabilidade pelo atraso, uma vez que a segurança dos passageiros deve ser priorizada. Comprovado que a apelada cumpriu com suas obrigações e não houve erro na prestação do serviço, não há o que se falar em danos morais. (TJ-MT - AC 000334269.2015.8.11-0015. Primeira Câmara de Direito Privado. Relatora Desa. Nilza Maria Possas de Carvalho. Julg. 27.11.2018; Publ. 03.12.2018).
Texto de autoria de José Augusto Fontoura Costa e Marco Aurélio Fernandes Garcia Ganham-se tanta eficiência e tantas vantagens a ponto de ser impossível, além de indesejável, interromper o crescimento da telemedicina. Autorizada legalmente no Brasil por meio da Lei 13.989/20, a telemedicina ocupou rapidamente vários espaços e, irremediavelmente, se expandirá muito mais. A complexidade dos vínculos contratuais sobre os quais se apoiam os negócios relacionados ao setor já deixou de fazer parte do futuro para se integrar ao presente. Essas relações são o objeto desse breve artigo. Para sua discussão são necessárias duas observações preliminares. Em primeiro lugar, é preciso compreender o potencial de transformar em profundidade os modos e estruturas de prestação de serviços de saúde, dentre os quais se destacarão as consultas médicas. Além disso, deve-se discutir a inexistência de um quadro regulatório claro e seguro no Brasil atual, até em razão da autorização legal estar condicionada à continuidade da crise ocasionada pelo coronavírus (Lei 13.989/20, Art. 1o). Por fim, é importante discutir brevemente a posição jurídica dos médicos em suas relações aos provedores de telemedicina. Para avaliar possíveis cenários da transformação dos modos de oferta de serviços de saúde, deve-se partir da estrutura do sistema brasileiro. Definida como um direito social (CF, Art. 6o, caput), a saúde deve ser oferecida universal e igualitariamente pelo Estado (CF, Art. 196) por meio do SUS (CF, Art. 198) e, complementar e suplementarmente, pela iniciativa privada (CF, Art. 199). A oferta pública tende a ver a telemedicina como um instrumento para a redução de custos e, desta ótica, avaliar a aquisição e desenvolvimento de tecnologias em face dos potenciais benefícios em termos de eficiência e qualidade. A iniciativa privada, por seu turno, não apenas buscará reduzir custos, mas buscará abrir o campo de novas possibilidades de negócios. Da perspectiva pública, parece pouco provável haver mudanças sensíveis na estrutura de produção e distribuição dos serviços. Do outro lado, há potencial para transformações bastante significativas. De fato, a oferta remota, sincrônica ou não, de serviços de saúde por meio de modernas tecnologias de informação agrega uma nova função ao quadro, já complexo, das entidades que atuam no setor sanitário: o provedor de serviços de telessaúde ou provedor de telemedicina, encarregado da estruturação negocial da plataforma de acesso por parte dos tomadores e prestadores dos serviços. Em princípio essa função pode ser absorvida por algum dos atores setoriais já existentes, como hospitais ou empresas de planos e seguros de saúde. Porém, em condições de puro funcionamento do mercado, é mais provável haver o aparecimento de entidades separadas, especializadas nessa intermediação e desvinculadas da produção direta do serviço ou de seu financiamento, assim como a Uber não dispõe de automóveis ou locadoras de veículos e a Airbnb não atua no setor imobiliário. Uma plataforma de telemedicina, capaz, por exemplo, de disponibilizar consultas remotas sincrônicas, pode organizar as seguintes atividades: (i) contratação e parametramento da empresa de tecnologia para a construção e manutenção da plataforma digital; (ii) ações estratégicas para a formação direta de uma carteira de tomadores dos serviços; (iii) ações estratégicas para a formação indireta dessa carteira, inclusive envolvendo hospitais, seguradoras e associações de classe e (iv) formação da carteira de prestadores de serviços, inclusive os médicos. É possível, desde logo, identificar um amplíssimo campo para a multiplicação de questões contratuais de diversas naturezas, grande parte delas marcada por uma profunda assimetria informacional e, dependendo da escala e posição de mercado, disparidades de capacidade econômica. Esse tipo de cenário, ainda que mitigado no caso brasileiro pela existência de uma oferta universal pública, levanta diversas preocupações, dentre as quais destacam-se (i) a possível uberização do trabalho dos profissionais da saúde, inclusive médicos e (ii) a potencial absorção de margens de lucratividade de outros atores empresariais do setor pelos provedores de serviços, sobretudo se tendentes ao monopólio ou oligopólios com nichos bem definidos. No campo da teoria e prática contratuais é importante refletir sobre tais aspectos e compreender os limites e possibilidades de estruturação de relações contratuais capazes de lidar com tais questões. Na seara regulatória, as pressões são bem mais imediatas. Não cabe, em um espaço limitado e reservado a questões contratuais, o aprofundamento de questões regulatórias. Deve-se ressaltar, porém, a relação forte entre os possíveis desenhos normativos e institucionais, de um lado, e o desenvolvimento da estrutura dos negócios da telemedicina privada, do outro. Isso implica, no curto prazo, em um padrão complexo de cooperação e rivalidade entre os atores do campo da oferta privada de saúde. Essa, possivelmente, é a razão da inexistência, até o presente, de regras estáveis a respeito do tema. Em particular, a breve trajetória da Res. CFM 2.227/18 ilustra a insegurança jurídica atinente ao tema. Com efeito, essa norma vigorou por pouco mais de dois meses e deu lugar à repristinação da Res. CFM 1.643/02, expressamente determinada (Res. CFM 2.228/19). A Lei 13.989/20 tratou de dar suporte à oferta de diversos serviços por meio remoto mas, como dito, tem a eficácia condicionada à continuidade da pandemia, finda a qual se restabelece o limbo. Deixe-se clara, não obstante, a ausência de necessidade de uma lei autorizante da oferta remota de serviços médicos; a Lei 12.842/13, reguladora do exercício da medicina, tem abrangência material suficiente para alcançar as teleconsultas e outras práticas. O problema é que muitos atores não se sentem razoavelmente confortáveis para realizar investimentos significativos em um ambiente de insegurança regulatória. Por conseguinte, as contratações para estruturação de serviços de telemedicina realizadas hoje têm um horizonte de grande indeterminação. As questões regulatórias e a incerteza quanto ao comportamento do mercado não admitem previsibilidade. Isso reduz o apetite de alguns investidores. Por outro lado, a prometida lucratividade e as vantagens de chegar primeiro a um setor em que os efeitos de rede são significativos geram a percepção de que o momento é propício. Aqui, a estruturação de instrumentos contratuais adequados é fundamental. E não é possível fazer isso sem aliar a compreensão jurídica à da natureza econômica, social e regulatória do setor. Por fim, resta compreender as posições jurídicas dos telemédicos em um ambiente dominado pelos provedores. Há, aqui, duas questões centrais. Em primeiro lugar coloca-se a relação entre médico e paciente e deve-se ter em vista a possibilidade de descaracterização dos modos históricos do vínculo. Em segundo lugar, há o vínculo jurídico entre telemédico e provedor, o qual pode até mesmo tomar a forma de duas caracterizações jurídicas especiais: a de trabalhador e a de consumidor. A relação com o paciente é tradicionalmente enquadrada em uma ética médica relacionada com os modos de controle profissional, a cargo, no Brasil, do CFM e dos CRMs. Entende-se haver uma imensa vulnerabilidade dos pacientes em razão de ao menos dois fatores: (i) o desnível de conhecimento técnico e científico que impossibilita uma verificação imediata da qualidade e correção do serviço, deixando grande parte da relação ao estabelecimento de vínculos de confiança e (ii) o estado de debilidade decorrente das próprias enfermidades e das urgências delas decorrentes. Formas mediadas de oferta da medicina, das quais participam entidades coletivas como hospitais, planos de saúde ou sistemas públicos, tendem a mitigar essa assimetria. É interessante observar que o Código de Ética Médica (Res. CFM 2.217/18) inclui entre seus princípios fundamentais a indicação de que "a natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo" (Cap. I, XX). Com efeito, a tendência doutrinária e jurisprudencial brasileira vem no sentido de caracterizar o vínculo entre médico e paciente como alheio ao campo das relações de consumo, embora as entidades responsáveis pela prestação de serviços de saúde não tenham o mesmo destino (entendimento capitaneado pelo Resp 819.008, ainda em 2012, no sentido de que a relação médico-paciente é contratual e encerra obrigação de meio, salvo em casos de cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética). Nesse sentido, não é demais apontar que a responsabilidade do médico se apura mediante comprovação de culpa, por força do Art. 14, §4º CDC. Note-se que se trata de questão suficientemente profunda para repelir a tentação de um tratamento apressado. Importa destacar, porém, a tendência a uma considerável despersonalização e comoditização dos serviços dos telemédicos, inclusive nas teleconsultas. Há poucas dúvidas de que o serviço dos provedores de telemedicina mediante as plataformas de acesso deverá vir a ser considerado como submetido às regras consumeristas. A situação dos médicos é menos clara. Há, aqui, vários elementos da ética e conduta médicas que devem ser preservados para evitar a reclassificação dos serviços prestados e a eventual responsabilização consumerista solidária. Particularmente, não é razoável que o médico deva avaliar com integral liberdade a viabilidade de realizar o diagnóstico e iniciar tratamento por via remota; ocorre que tal liberdade nem sempre é facilmente aceita por um paciente que pagou pela consulta. Alguns desses ajustes deverão estar não apenas no termo de adesão à plataforma pelos pacientes, mas nos contratos dos telemédicos. Resta, ainda, discutir a ambiguidade da situação do médico em face do provedor de telemedicina. A figura do trabalhador médico já existe há muito tempo e não haveria nada de excepcional em sua aplicação à telemedicina, sobretudo na oferta pública. As situações difíceis ficam por conta da potencial uberização, ou seja, formas de prestação de serviços sem vínculo trabalhista formal, em jornadas flexíveis on demand, com o risco e os custos principais incidentes sobre o profissional e a ausência de exclusividade como indicador da inexistência de relação de dependência. Há, nesse sentido, indicadores importantes na doutrina e jurisprudência referente à equivalência entre franquia e trabalho. O tratamento dos condutores de Uber ainda está em construção na jurisprudência trabalhista, com destaque recente para decisão do TST contrária ao reconhecimento do vínculo de emprego (RR 1000123-89.2017.5.02.0038). Também nesse sentido, bons instrumentos contratuais podem reduzir a incerteza, seja pela contratação como empregado, seja por um modelo obrigacional suficientemente afastado dos elementos característicos do liame laboral. Por fim, o telemédico pode eventualmente ser caracterizado como consumidor dos serviços do provedor de telemedicina. Decerto, o profissional interessado em utilizar uma plataforma digital e o conjunto de clientes cadastrados pelo provedor, bem como se beneficiar de sua propaganda e reputação como modo de assegurar algum fluxo de pacientes, contrata serviços como destinatário final e, nesse sentido, revela-se como consumidor. Há evidentes sutilezas relacionadas à condição de consumidor intermediário, mas a verificação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica foi aceita pela jurisprudência do STJ como suficiente para configurar a aplicabilidade do CDC (Resp. 716.877, Resp. 914.384, Resp. 1.010.834 e Resp. 1.080.719 i.a.). Observa-se, portanto, que a novidade do setor e, sobretudo, seu potencial de gerar impactos significativos sobre os modelos de oferta de serviços de saúde pela iniciativa privada, com a eventual preponderância de provedores de telemedicina, levantam questões importantes e indicam um cenário de considerável incerteza. Nesse sentido, a boa estruturação dos contratos em face da compreensão dos modelos de negócio é fundamental para aqueles que pretendem desbravar esse novo campo. *José Augusto Fontoura Costa é professor da Faculdade de Direito da USP, do Mestrado Profissional em Direito Universidade CEUMA e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Doutor e livre-docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bolsista produtividade do CNPq. Membro do IBDCont. Advogado. **Marco Aurélio Fernandes Garcia é mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Luxemburgo. Atua na área de startups e novos negócios Advogado.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Planejamento patrimonial e o contrato de doação

Texto de autoria de Felipe Quintella Considerações iniciais No Brasil, o contrato de doação constitui, sem dúvida, uma das ferramentas mais utilizadas de planejamento patrimonial e sucessório. Minha atuação na área, como advogado, como professor e como pesquisador, não me deixa dúvida disso. Porém, também não tenho dúvida de que o contrato de doação ainda precisa de mais cuidados por parte da comunidade jurídica em um sentido amplo: autores, advogados, juízes e legisladores. Espero, neste breve trabalho, destacar três pontos fundamentais, que requerem atenção, fazendo uma síntese do conteúdo que estou desenvolvendo no Curso de Direito Patrimonial, o qual está em fase de elaboração. São pontos que, novamente, como advogado, como professor e como pesquisador, destacam-se quanto a aspectos teóricos e práticos. Primeiramente, é preciso lembrar que, conforme as regras estabelecidas pelo Código Civil de 2002, as doações feitas por quem posteriormente morre deixando herdeiros necessários representa sempre adiantamento de herança. Explicarei, adiante, na seção 1, o porquê da ressalva quanto a morrer deixando herdeiros necessários. Ademais, é preciso observar que, ao considerar o contrato de doação como adiantamento de herança, o Código Civil brasileiro distingue duas hipóteses: a da doação como adiantamento de legítima (art. 544), e a da doação como adiantamento de parte disponível (art. 549). Explicarei essa distinção na seção 2. Outro ponto problemático está no fato de que, como se sabe, frequentemente o Direito brasileiro se inspira no Direito estrangeiro - em geral, no Direito europeu. O legislador e a doutrina fazem isso habitualmente, e, por vezes, também os Tribunais Superiores. E, quanto à doação, essas ideias colhidas fora do Direito pátrio não foram bem costuradas pelo Código Civil. Temos um sistema misto, e truncado. Explicarei esse ponto na seção 3. Antes de examinarmos os três pontos, no entanto, é necessária uma ressalva: este trabalho contém reflexões teóricas com preocupação prática, para contribuir para o desenvolvimento da cultura do planejamento patrimonial no nosso país. Logo, as reflexões são todas de lege lata, ou seja, sobre o Direito que temos em vigor, e não de lege ferenda, sobre como gostaríamos de que o Direito fosse. 1 Por que a existência de herdeiros necessários ao tempo da abertura da sucessão é que determina o caráter de adiantamento de herança da doação? Como explicarei melhor na seção 2, são os arts. 544 e 549 do Código Civil os dispositivos legais que atribuem à doação o caráter de adiantamento de herança. Porém, como afirmei nas considerações iniciais, somente serão consideradas adiantamento de herança as doações feitas por doador que falecer deixando herdeiros necessários, ainda que tal esclarecimento não esteja expresso na lei. Por quê? O Direito brasileiro, diversamente do que ocorre em alguns outros países, distingue as doações - contratos -, dos legados - disposições testamentárias. E, por isso, somente se preocupa com efeitos sucessórios da doação para proteger a legítima dos herdeiros necessários. A legítima, conforme se depreende dos arts. 1.789 e 1.846 do Código Civil, constitui a parcela da herança - hoje, 50% - que a lei atribui aos chamados herdeiros necessários ou legitimários (ou, ainda, reservatários). Por esse motivo, não pode ser objeto de testamento, cabendo ao testador a liberdade de testar apenas quanto à outra metade da herança, denominada parte disponível. Os herdeiros necessários, atualmente, segundo o art. 1.845, são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, sendo, ainda, controvertida a situação do companheiro, vez que o STF, ao equiparar a sucessão do cônjuge à do companheiro, não tratou expressamente do assunto1. Ocorre que, para proteger a sucessão dos herdeiros necessários, evitando a denominada fraude à legítima, o Código Civil houve por bem atribuir efeitos sucessórios à doação. Isso para impedir que aquele que gostaria de beneficiar mais um filho que outro, por exemplo, e que não se conforma com a limitação à liberdade de testar nos limites da parte disponível, fizesse em vida doações para beneficiar o predileto, em detrimento do outro. Ainda que a herança somente surja com a morte e que, consequentemente, só se possa falar em legítima e em parte disponível após a abertura da sucessão, a lei brasileira projeta efeitos sucessórios antecipados à doação. Mas, como a ideia é proteger a legítima, e esta só surge efetivamente quando o autor da herança falece deixando herdeiros necessários, somente nessa hipótese é que serão confirmados os efeitos sucessórios projetados antecipadamente à doação. Não se pode esquecer, porém, que a maior parte dos brasileiros morre deixando herdeiros necessários. 2 Como se distinguem o adiantamento de legítima e o adiantamento de parte disponível? Conforme o art. 544 do Código Civil, consideram-se adiantamento de legítima as doações de ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro. Vale destacar, mais uma vez, que ainda não está resolvida a situação do companheiro; se este vier a ser considerado herdeiro necessário por alteração legislativa, ou por decisão do STF, também as doações de um companheiro a outro terão que ser consideradas adiantamento de legítima. As doações consideradas adiantamento de legítima, conforme o art. 2.002, devem ser conferidas no inventário do doador. É o que se denomina colação. Para que não haja dúvida, o art. 2.003 esclarece que a finalidade da colação é justamente igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente. Em tempo: apesar de o art. 544 não fazer tal ressalva, somente se consideram adiantamento de legítima as doações feitas aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio. A própria lógica do sistema embasa tal conclusão: não são consideradas adiantamento de legítima as doações feitas a descendentes que não sejam chamados à sucessão, ou que sejam chamados por direito de representação, ou de transmissão, porque tais descendentes não têm direito à legítima! Quando herdam por representação ou transmissão, herdam a legítima do herdeiro que representam, ou que lhes transmitiu, e, por isso, devem colacionar as doações recebidas pelo representado, ou pelo transmitente. A parte inicial do art. 2.002, ao impor a obrigação de colacionar aos "descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum", bem como a regra do art. 2.009, no sentido de que os netos, sendo chamados à sucessão por direito de representação, somente estão obrigados à colação das doações recebidas pelo representado, confirmam a conclusão. O art. 549, por sua vez, estabelece a nulidade das doações que ultrapassarem a metade disponível do doador, no momento da doação. Embora essa linguagem não seja frequentemente utilizada - ainda -, tais doações são consideradas adiantamento de parte disponível. Tal conclusão é inquestionável ao se verificar que o critério para examinar a validade total, ou a invalidade parcial da doação, é justamente o do montante de que o doador poderia, naquele momento, dispor em testamento. Ademais, conforme o art. 2.005, pode o doador, no instrumento da doação, ou em testamento, dispensar os donatários que receberam adiantamento de herança da respectiva conferência no inventário - da colação. Nos próprios termos do art. 2.005, a ideia seria a de que tais doações sairiam da parte disponível do doador. Ou seja, trata-se, também nessa hipótese, de adiantamento de parte disponível, e não de legítima. Em resumo, pois, são consideradas adiantamento de legítima as doações de ascendente aos descendentes chamados à sucessão por direito próprio, bem como aos descendentes representados ou transmitentes, ou de um cônjuge a outro, sem dispensa de colação; são consideradas adiantamento de parte disponível, por sua vez, as doações a quem não seja cônjuge ou descendente chamado à sucessão por direito próprio, ou que não seja representado ou transmita o direito à sucessão aberta, bem com as feitas aos que sejam, mas que tenham sido dispensadas da colação. O fato de representarem adiantamento de legítima, por si só, jamais interfere na validade de tais doações. Sua eficácia é que poderá ser impactada. Em outras palavras, as doações com adiantamento de legítima sujeitam-se à conferência no inventário do doador - à colação -, o que se dá no plano da eficácia, e não no plano da validade. Já as doações com adiantamento de parte disponível sujeitam-se a exame na plano da validade, vez que a lei estabelece a nulidade do excesso, o qual, posteriormente, será resolvido no plano da eficácia, por meio da redução. E, como o critério para se apurar o excesso é o da parte disponível calculada ao tempo da doação, a discussão, normalmente, requer dilação probatória, razão pela qual, em geral, não é admitida no bojo do inventário, demandando ação própria. 3 Quais os desafios do Código Civil brasileiro quanto à disciplina da doação como adiantamento de herança? O primeiro desafio, que já vem do Código Civil de 1916, consiste nos diferentes critérios estabelecidos para o exame das doações que configuram adiantamento de legítima e das doações que configuram adiantamento de parte disponível. Conforme o art. 2.002, a conferência das doações consideradas adiantamento de legítima - a colação - é feita no inventário, após, pois, a morte do doador. Dentro deste tema específico, um outro desafio consiste nos modos de se proceder à colação, vez que o Código de Processo Civil de 2015 derrogou tacitamente regras do Código Civil de 2002, repristinando regras do Código de Processo Civil de 1973: o Código de 2002 mandava fazer a colação por estimação, e pelo valor da época da doação (arts. 2.002 e 2.004); os Códigos de Processo de 1973 e de 2015 mandam fazer a colação em substância, se o donatário ainda tiver o bem doado ao tempo da morte do doador, e por estimação, pelo valor da época da abertura da sucessão, se o donatário não mais tiver o bem doado (arts. 1.014, caput e parágrafo único, e 639, caput e parágrafo único, respectivamente). O assunto é bastante complexo, e ainda não tão bem explorado quanto precisa ser. Quanto às doações que implicam adiantamento de parte disponível, por sua vez, o Código não esclarece - como fazem os de outros países - em que momento se poderia discutir o eventual excesso na doação - a denominada doação inoficiosa, que, na verdade, constitui apenas uma parte da doação, correspondente ao excesso. Há quem entenda que a discussão pode ser feita desde a doação, e há quem entenda que a discussão só faz sentido depois de aberta a sucessão. Doutrina e jurisprudência se dividem quanto ao tema. Além disso, independentemente de quando se suscita a discussão, o art. 549 estabelece como parâmetro para verificar se houve ou não excesso na doação o patrimônio do doador ao tempo da doação: a doação integralmente válida não pode exceder a metade de que, naquele momento, o doador poderia dispor em testamento. Isso quer dizer que a conferência do adiantamento de parte disponível não é feita com base na verdadeira parte disponível, aquela que é calculada após a liquidação da herança, depois de aberta a sucessão. Por si só, esse fato já torna o tema intrincado. O Código Civil francês, por exemplo, usa como critério, diversamente, a verdadeira parte disponível (art. 913). Mas, para piorar, o Código de 2002, inspirado, sobretudo, pelo Códigos Civis francês e português, estabeleceu, no art. 2.007, regras sobre como se deve realizar a redução do excesso da doação inoficiosa. O Código de 1916 não o fazia. E ocorre que nem o Código francês, nem o Código português, consideram inoficiosa a doação que ultrapassa a parte disponível calculada ao tempo da liberalidade, como faz o Código brasileiro. Na pesquisa jurisprudencial que estou realizando para o Curso de Planejamento Patrimonial, ainda não encontrei julgados discutindo as regras - provavelmente, por serem novas, e complexas. Por exemplo - para não estender demais este trabalho, que tem que ser breve -, veja-se que o § 2º do art. 2.007 manda fazer a redução "em espécie" - querendo dizer, na verdade, em substância -, e por aplicação das regras sobre a redução das disposições testamentárias, as quais sabemos que se encontram nos arts. 1.967 e 1.968. Por mais que a aula sobre redução do excesso nas disposições testamentárias seja uma das que mais gosto de dar, todo semestre, na disciplina do Direito das Sucessões, reconheço que o assunto é complexo, e muitas vezes até pouco explorado em obras sobre Sucessões, que dirá em obras sobre Contratos. Por fim, veja-se que o § 4º do art. 2.007 trata de redução das doações por ordem cronológica, como manda a parte final do art. 923 do Código Civil francês, esquecendo-se, todavia, de que o critério brasileiro considera cada doação separadamente, e a parte disponível calculada no momento da liberalidade, e não a soma das doações, e a verdadeira parte disponível, calculada após a abertura da sucessão, como o Código francês. A meu ver, não há como aplicar, no Direito brasileiro, a regra do art. 2.007, § 4º, do nosso próprio Código Civil! Foi mal importada pelo Código de 2002, e não se encaixa no sistema que o nosso Código estabeleceu desde o de 1916, e que o de 2002 não ajustou. Considerações finais O texto já está extenso demais. Como eu disse nas considerações iniciais, a ideia foi a de levantar a discussão de três pontos fundamentais referentes ao planejamento patrimonial das doações, apresentando um brevíssimo resumo do conteúdo que estou desenvolvendo para o Curso de Planejamento Patrimonial. Estou bem certo de que o IBDCONT constitui o espaço ideal para os debates sobre os temas aqui suscitados, para o desenvolvimento de soluções, e para a necessária difusão e para o imprescindível fortalecimento da cultura de planejamento patrimonial no Brasil, como uma das saídas para reduzir a litigiosidade e aumentar a segurança. *Felipe Quintella é doutor, mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Professor da Faculdade de Direito Milton Campos e do Ibmec. Autor do Curso de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Membro do IBDCONT, do IBDCivil, do IBDFAM e do IBERC. Advogado na área de planejamento patrimonial. Instagram @prof.felipequintella. __________ 1 Eu, particularmente, entendo que nem o cônjuge, nem o companheiro precisariam ser herdeiros necessários, mas, examinando os fundamentos determinantes lançados nos votos dos Ministros do STF que votaram pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, chego à conclusão de que o companheiro também se equiparou ao cônjuge quanto à condição de herdeiro necessário.