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Responsabilidade civil pela perda de água no novo marco legal do saneamento básico

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Atualizado às 09:06

Texto de autoria de Marcelo Kokke

A aprovação do PL 4.162/2019 pelo Senado, no último dia 24 de junho de 2020, estabelece prognósticos inovadores e promissores quanto à implementação de novo marco legal do saneamento básico no Brasil. Parametrizado a partir da MP 868/2018, que perdeu sua validade e assim decaiu, o novo marco legal prevê mudanças de gestão, governança, financiamento e prognósticos de implementação a alterar tanto as competências da Agência Nacional de Águas quanto a sistemática de gestão de resíduos e acesso à água.

Dentre diversos pontos a se destacar no diploma legal aprovado, propõe-se neste artigo destacar um em específico, relacionado ao impacto do novo marco legal nos denominados litígios hídricos, em especial, no que diz respeito à responsabilidade civil por lesão ambiental. Os litígios hídricos são caracterizados por uma dosagem de abstração de referenciais no ordenamento jurídico brasileiro, com alta medida de confusão entre lesões ecológicas e lesões econômicas derivadas do uso da água e da gestão do saneamento básico.

O marco legal, ainda pendente de sanção, estabelece a consagração de uma novidade normativa no cenário brasileiro em termos de abertura para questionamento de responsabilidade civil por danos ambientais. Estes últimos normalmente são antevistos como atos de degradação ou lesão aos bens jurídicos ambientais, como situações de violação poluidora que provoque prejuízos seja ao ecossistema, seja às relações econômico-sociais afetas aos bens ambientais. Seguindo a direção de posicionamentos doutrinários1, e de ensaios normativos que semearam o tema, o marco legal abre espaço institucional para se discutir a responsabilidade civil pela perda de água na gestão hídrica a partir de critérios fixados em vias regulamentares.

A perda de água na gestão hídrica, ligada diretamente ao saneamento, foi objeto de referência na decaída Medida Provisória n. 868, assim como consta em breve referência na lei 13.329/2016. Mas com o novo marco legal a perda é reformulada em novo patamar significativo. O novo tratamento legal permite identificar as situações de perda hídrica como dano ambiental, passível de reparação e de responsabilização civil. Estabelece-se solidamente um novo padrão de responsabilidade por dano ambiental que não se origina em uma situação de degradação ou poluição, mas sim em desperdício, em perda de eficiência dos recursos naturais.

O Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto2, elaborado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS, e publicado em 2019, identifica que, ao distribuir água para o consumo, os sistemas de distribuição convivem com perdas em média nacional a alcançar 38,5%. Isso significa que mais de um terço da água captada e posta em distribuição no Brasil é simplesmente desperdiçada, não chega ao seu ponto de destino e se esvai sem utilização efetiva. O contraste que se revela é perceptível. De um lado, há escassez e falta de água em coletividades, acompanhada do custo de pagamento pelo consumo, de outro, tem-se níveis de ineficiência técnica e de gestão, tanto privada quanto pública, que simplesmente agravam a escassez e o custo pelos níveis de desperdício que se naturalizaram no sistema.

As perdas reais de água no sistema são decorrentes, comumente, de vazamentos em adutoras, redes, ramais, conexões, reservatórios ou unidades operacionais do sistema3. Os principais indicadores na análise de perda são o IN049, correspondente ao índice de perda na distribuição, e o IN051, índice de perda por ligação. Evidentemente, os problemas da perda de água na distribuição e na gestão do consumo são de longa data. A diversidade é justamente a base normativa conferida pelo novo marco regulatório para a gestão do problema ecológico, social e econômico.

Até o advento do vindouro marco regulatório, os seguintes contextos se apresentam. Há uma difusão de atuações legislativas e administrativas entre os entes federativos quanto ao tema. Municípios e Estados vertem normas próprias relacionadas ao tema da gestão hídrica e combate aos fatores de perda de água. O traçado de papéis entre as esferas dos Legislativo e do Executivo não é clara, com constantes litígios judiciais que se voltam a delimitar as respectivas esferas de atuação. Exemplificativa é a ADI Estadual n. 2111108-44.2016.8.26.0000, em que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou inconstitucional lei municipal que regulava aspectos da política hídrica relativa à perda de água. A lei foi de iniciativa do Legislativo e então contrastada em seu aspecto formal, justamente porque a matéria seria de iniciativa do Executivo.

As confrontações também se passam no âmbito judicial, e envolvem os limites entre Poder Executivo e Poder Judiciário, assim como a possibilidade de o Ministério Público manejar em ação civil pública a pretensão de critérios e fixações regulamentares para reger tanto a perda de água quanto os mecanismos de seu controle. Isso pode ser observado em alguns precedentes. O Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Apelação n. 1000757-86.2016.8.26.0140, foi instado em recurso para julgar se a adoção de medidas administrativas relacionadas à perda de água é uma matéria afeta à elaboração de políticas públicas, sob atribuição, portanto, do Poder Executivo.

O caso envolve mais do que a definição de autocontenção do Poder Judiciário em face das soluções potenciais para o problema. As ações judiciais que tramitam e tramitaram quanto ao tema da perda de água são marcadas por uma certa abstração quanto ao critério utilizado e bases de referência para fixação da responsabilidade ambiental. Além disso, a sistemática, ainda regente, abre espaço para atuações judiciais que são próprias da esfera administrativa. Ações judiciais passam a ser palco da fixação de planos de contenção de perda de água com critérios e progressões próprios e destituídos de sistematicidade quando se avalia o todo do modelo. Em outras palavras, é possível que haja uma pluralidade de regimes e medidas de contenção segundo cada ação judicial, sem uma base de uniformidade ou coerência.

Sob o ponto de vista meritório, há ainda problemas que se desencadeiam. Não há dúvida de que o fator de perda de água na casa de 38,5% é extravagante. Mas qual seria o limite a partir do qual a perda se configura como lesiva ou inadmissível ambientalmente? O atual índice de perda de distribuição no Nordeste é de 46%, conforme aferido no Diagnóstico4. Isso significa que uma gestão que leve o índice regional em um primeiro momento para a média do índice nacional é mais pragmática e realizável do que a ideal perspectiva de zerar-se o nível de perda.

Lado outro, a definição dos limites e prognósticos demandam estudos e mapeamentos de causa nas perdas segundo cada localidade. Belo Horizonte apresenta um índice de perda na distribuição de 42,9%, Porto Alegre de 29,5%, Rio de Janeiro de 29,5%, São Paulo de 35,4, Maceió de 61,2%, e Porto Velho de 77,7%5. Há razões para essas variações que precisam ser diagnosticadas com especificidade. Não é possível adotar um único critério e medida para enfrentamento do problema. Exatamente esta foi a base orientadora do novo marco regulatório e de seu planejamento executório.

Indiscutivelmente, o ideal seria um nível zero de perda de água. Mas não se pode conceber o nível zero para fins de situar a responsabilidade ambiental, pois as conjunturas de realização da tutela ambiental e ajustes de eficiência são progressivos, a variar inclusive de acordo com o local ou espaço de implementação do sistema de distribuição. As avaliações remetem a um necessário crivo de admissibilidade técnica e planejamento de progressividade na realização da tutela ambiental hídrica e de saneamento propriamente dita.

Este é o ponto de distinção marcante no Projeto de Lei aprovado sob o aspecto da responsabilidade ambiental por uso hídrico no marco do saneamento básico. O projeto, sob expectativa de sanção, prevê que a Agência Nacional de Águas instituirá normas de referência para regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, incluindo redução progressiva e controle da perda de água. O combate à perda de água passa a ser expressamente considerado como um princípio regente do sistema.

Além disso, a previsão de progressiva queda nos níveis de perda deve estar presente nos contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico. O diploma fixa que a entidade reguladora estabelecerá limites máximos de perda na distribuição de água tratada, que poderão ser reduzidos gradualmente, conforme se verifiquem avanços tecnológicos e maiores investimentos em medidas para diminuição desse desperdício. A perda de água, para além de um problema ecológico e econômico em seu sentido estrito, ganha uma conotação de problema jurídico para fins de atribuição de responsabilidade sob balizas técnicas de progressividade.

O caráter normativo e fixador dos parâmetros progressivos de desperdício permite a configuração de uma nova tendência de responsabilização civil por dano ambiental, a responsabilidade pelo desperdício ou pela ineficiência, tendo em conta parâmetros objetivos certificados pelos órgãos de gestão ambiental e hídrica. O dano não se afigura como uma degradação ou lesão propriamente dita ao ecossistema, mas sim pela não utilização nos patamares mínimos aceitáveis em termos de eficiência dos recursos hídricos. O desperdício hídrico é erigido como uma lesão ambiental, ao que a ocorrência de índices de perda superiores aos constantes em regulação administrativa implicará em responsabilidade civil do responsável, tanto para fins de compensação ambiental quanto para fins de adoção de ações de estancamento dos fatores de perda.

Simultaneamente, guarnece-se o sistema jurídico e econômico de maior segurança. Afinal, não será um nível qualquer de perda de água que se configurará como violação normativa, mas sim aquele nível de perda que ultrapasse os limites tecnicamente aceitáveis e postos em balizas progressivas. Evita-se a incerteza jurídica que abre flancos para ajuizamentos e deliberações sem critérios de aferição. Simultaneamente, o marco regulatório implica em uma declaração legislativa de atribuição do órgão gestor como o apto para definir os limites e bases de política hídrica e de saneamento voltada para a contenção do desperdício e reversão dos parâmetros fáticos nacionais de ineficiência na distribuição de água.

A segurança jurídica propiciará não somente concretude e objetividade, como também determinará uma situação clara de cumprimento ou de descumprimento das normas segundo os índices de aferição da perda de água em dado local e contexto de utilização. Violações aos patamares regulamentares serão caracterizadores de lesão ambiental por utilização ineficiente, com consequente atribuição de responsabilidade para reparação em face da perda de uso do recurso natural. Essa responsabilização implica efeitos tanto a pessoas jurídicas responsáveis pela gestão da distribuição e saneamento quanto a seus usuários. As metas de redução de desperdício deixam de ser apenas um indicativo de reflexão econômico-ecológica para se densificar como responsabilidade ambiental hídrica.

*Marcelo Kokke é pós-doutor pela Faculdade de Santiago de Compostela(ES), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, procurador Federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito da Dom Helder Câmara e do Uni-BH, professor de pós-graduação da PUC-MG, membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC

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1 Vide obra relevante sobre o tema: PURVIN, Guilherme (Coord. Geral). CARDIA, Regina Helena Piccolo; SÉGUIN, Élida; SOUZA, Luciana Cordeiro de. Direito ambiental, recursos hídricos e saneamento: estudos em comemoração aos 20 anos da Política Nacional de Recursos Hídricos e aos 10 anos da Política Nacional de Saneamento. São Paulo: Letras Jurídicas, 2017.

2 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019.

3 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, p. 80.

4 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, 82.

5 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, p. 93.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).