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Os contornos da regra de redução equitativa da indenização: Controvérsias sobre a aplicação do artigo 944. Parágrafo único do CC/02

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:13

O princípio da reparação integral do dano é, hoje, considerado princípio jurídico de simetria entre a amplitude do dano e a indenização, estando no teor do caput do art. 944 do CC/02 a norma que melhor reflete a necessidade de reparar in totum toda e qualquer lesão injusta de bem jurídico alheio. Entretanto, não se trata a convergência entre a extensão do dano e a indenização de regra absoluta, admitindo exceções tal qual se encontra na hipótese de desproporção entre a culpa do causador e o dano sofrido pela vítima, prevista pelo parágrafo único do art. 944.

Norma de relativização do Princípio da Reparação Integral

Embora a regra geral estipule que o arbitramento do quantum debeatur deve levar em consideração toda a extensão dos prejuízos causados, a priori, sem sopesar questões subjetivas do ofensor, a exceção do parágrafo único do art. 944 autoriza a utilização do grau de culpa (essa em sentido estrito, obviamente) como critério para a redução do valor indenizatório, sem que isso afete de qualquer forma a dimensão do dano experimentado.

Trata-se de norma que, inicialmente, tem na conduta do agente e na magnitude do dano o seu suporte fático, diferentemente, portanto, do que ocorre no caso de contribuição causal da vítima para o evento danoso, que a despeito de também levar em consideração a culpa, desta vez da vítima, trata-se de questão a ser tratada sob a perspectiva do nexo causal.

E conquanto não esclarecido pelo texto normativo, a norma de redução da indenização pelo grau de culpa autoriza, excepcionalmente, que a culpa leve ou a culpa levíssima (e somente essas) do ofensor interfiram na fixação da indenização, resultando, desse modo, em reparação a menor do que o prejuízo sofrido pela vítima, absorvendo essa última uma parcela do seu próprio agravo a que não deu causa. Assim, mitigando a regra da reparação integral, o ordenamento jurídico permite socializar entre causador e vítima o resultado do evento danoso, com a finalidade de resguardar outros relevantes interesses de um responsável diante de ônus excessivo em certas situações.

A investigação do grau de culpa

A ratio da norma somente considera possível a diminuição do montante indenizatório se, diante da grandeza do dano, tiver agido o ofensor com atenção ordinária ou extraordinária (i.e., culpa leve ou levíssima), distinções de intensidade da culpa as quais remontam à discussão sobre a forma de apreciação da culpa, quer dizer, se deve-se aferir a culpa in abstracto ou in concreto.

A chamada apreciação in concreto considera a própria pessoa do autor do dano, exigindo-se dele um agir com os cuidados dos quais ele próprio é capaz, considerando-se os seus caracteres específicos, tais como nível de instrução, idade, saúde, profissão e demais fatores personalíssimos. Por sua vez, a apreciação in abstracto considera um homem razoavelmente diligente, de modo que o exame da culpa ocorre pela comparação entre um padrão de comportamento e a atuação do agente.

A apreciação in concreto da culpa estaria em maior harmonia com o conteúdo moral e a sanção justa da responsabilidade, mas seria incompatível com as necessidades sociais, em que se espera de todos um comportamento em harmonia com padrões de perícia, prudência e diligência. Portanto, para fins de imputação, ao concentrar a noção jurídica de culpa na inobservância dos deveres de conduta, não se exigirá o reconhecimento de condições subjetivas, senão a falta de adesão do agente a um standard, aferido mediante as condições externas que lhe circunscrevem.

No entanto, para efeito de redução equitativa da indenização, melhor entendimento assimila Sanseverino, defendendo a concepção concreta de culpa, ao afirmar que a "avaliação efetivamente equitativa do desequilíbrio ou desproporção entre a culpa e o dano recomenda que se verifique concretamente a culpabilidade do agente calcada nas suas circunstâncias pessoais, valorando-se, inclusive, critérios subjetivos"1. E isso acaba por dialogar com a solução mais justa pautada pela equidade no caso concreto, de modo que, enquanto a culpa, como elemento do ato ilícito, é estabelecida por um critério objetivo de aferição em abstrato, para fins de equalização da indenização na forma do parágrafo do art. 944, deverá ser apreciada mediante avaliação da pessoa do ofensor na circunstância do evento lesivo.

O fundamento da norma e sua restrita interpretação

A norma redutora, que não encontra correspondência no anterior código, tem razão de existir na equidade e na socialidade do vigente diploma, atendendo ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana, centrando-se acima de tudo em uma ideia de subsistência material da pessoa humana, pela qual se levará em conta o impacto que terá o pagamento integral da indenização sobre o patrimônio do ofensor e, de outro lado, o não recebimento para a vítima.

A incidência da norma está subordinada ao status patrimonial atual de ambas as partes e ao gravame excessivo que o pagamento da indenização pode implicar no patrimônio do ofensor, impedindo que, por um lapso quase escusável, seja ele de alguma forma privado do necessário à sua subsistência e de sua família. Em outras palavras, a redução equitativa será aplicável quando a indenização comprometer o patrimônio do ofensor para o seu mínimo existencial, sem que a absorção do dano pela vítima conflite com idêntica dificuldade.

A norma demanda aplicação quando a distorção entre a culpa e a gravidade afete a existência digna do ser humano, de maneira que, mesmo havendo a distorção entre grau de culpa e o resultado lesivo, se porventura inexistir comprometimento patrimonial do ofensor com o pagamento integral da indenização, deverá ser descartada a redução do quantum debeatur. Haverá nessa ordem uma razão de justiça equitativa para superar a atribuição dos efeitos da responsabilidade somente ao ofensor - o que é próprio da função reparatória da responsabilidade civil - e assim repartir os resultados danosos entre os patrimônios do ofensor e do ofendido.

A ideia se desenvolve, portanto, no sentido de que a fixação do montante indenizatório não seja potencial a levar o ofensor ou vítima à miséria, sem se descuidar que será sempre pressuposto fático a manifesta desproporção entre grau de culpa (leve ou levíssima) e o dano sofrido. Essa é a essência da norma. Assim, a situação patrimonial dos protagonistas deverá ser considerada junto aos requisitos legais da culpa leve ou levíssima e dano significante, tratando-se de construção que também leva à conclusão de que a norma se restringe somente aos casos nos quais se tem a pessoa humana com situação patrimonial insuficiente para suportar a extensão desproporcional do dano.

Por efeito, o critério da equidade aparece como um corretivo da justiça comutativa geral, permitindo tratamento racional para o arbitramento da indenização, modelando-a em conformidade com os elementos concretos dos envolvidos, e corrigindo-se exageros de indenizações que seriam equivalentes ao dano, conforme simetria do art. 944.

A indiferença da regra de responsabilidade

A incidência da cláusula não pode fechar as portas para a responsabilidade objetiva, sob pena de frustrar o seu próprio escopo de equidade. Reconhece-se não ser entendimento pacífico na doutrina, sobretudo, combatido pelos que defendem que a exceção deve ser aplicável apenas aos casos em que também seja importante a culpa para o nexo de imputação. No entanto, razões não faltam para estender a aplicação da norma a certos casos de responsabilidade objetiva2.

O primeiro motivo para não desconsiderar a regra na responsabilidade objetiva decorre da circunstância de não haver impeditivo para apreciar a culpa apenas com a finalidade de fixação do quantum debeatur, dado ser regra da responsabilidade objetiva a irrelevância da culpa para o nexo de imputação, sendo plenamente aceitável que, após a imputabilidade, considere-se o elemento subjetivo do responsável para aferir o quanto deverá arcar em indenização dado a extensão dos danos.

O segundo e preponderante motivo volta-se à necessidade atender ao escopo da norma. Tendo a norma por fim preservar o mínimo de sobrevivência do ofensor, em tutela da dignidade da pessoa humana, seria inusitado descartar por antecipação a possibilidade de incidência em determinadas situações nas quais o tamanho da participação e culpa do responsável é ínfima (ou ausente) e o dano se mostra elevadíssimo3. Basta pensar nos casos daqueles que respondem por danos provocados por terceiros ou coisas. Aqui, arriscar-se-ia dizer que até com mais razão se sustenta a impossibilidade de levar o responsável à ruína financeira.

Todavia, mais uma vez vale dizer, decerto não a todo e qualquer caso de responsabilidade objetiva se deve estender os efeitos da norma, mas somente àqueles que têm a pessoa humana em situação patrimonial que não resista à extensão do dano.

A tutela dos danos extrapatrimoniais: inaplicabilidade do art. 944, parágrafo único, do CC/02

A dogmática da responsabilidade civil demanda que se afirme ser a regra da redução da indenização pelo grau de culpa não incidente sobre os danos de natureza extrapatrimonial, sendo norma que se restringe apenas aos danos patrimoniais.

A razão principal é porque se trata de norma que incide, temporalmente, entre a completa estimação do dano sofrido e a condenação do responsável a indenizar. Assim, primeiro o dano deverá ser medido em toda a sua extensão, após, num segundo momento, será comparado com o grau de culpa e a capacidade econômica do ofensor e, então, será definida a redução ou não. Por exemplo, no dano a um veículo: antes se avaliará o prejuízo que custará o dano material para, depois, contrapô-lo com o grau de culpa, não havendo qualquer ponderação sobre a intensidade da culpa em momento anterior à definição da extensão do prejuízo.

Pelo contrário, nos danos extrapatrimoniais, grau de culpa e condição econômica configuram próprios critérios de arbitramento, e serão avaliados para definir o valor pecuniário do próprio dano a ser compensado. Assim, uma vez definida a dimensão da lesão, não haverá uma nova avaliação da intensidade da culpa para redução da indenização.

Outro motivo para compreender que a regra somente se reporta aos danos materiais compreende a ideia de que, se o escopo é dividir o risco econômico do prejuízo entre os patrimônios do ofensor e da vítima, por causa imputável apenas ao primeiro, não haverá que se espraiar a divisão desse risco entre o patrimônio do ofensor e os direitos de personalidade da vítima, bem jurídico de maior relevância, fazendo com que ela mesmo absorva lesão à sua personalidade sem compensação4.

Conclusão

A partir dessa breve análise, percebe-se que a literalidade do art. 944, parágrafo único, do CC/02, de per si, é insuficiente para sua adequada aplicação prática, razão pela qual se buscou apontar os canais a serem percorridos pela jurisprudência e doutrina para dotar a matéria de uma disciplina capaz de harmonizar os interesses do lesado e do ofensor com essa prática de redução equitativa da indenização em detrimento da reparação integral e, então, da própria função reparatória da responsabilidade civil.  

*Bruno Montanari Rostro é mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Civil pela Universidade do Vale dos Sinos. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado, sócio do escritório Matter, Boettcher, Zanini e Souza Advogados.

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1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 106

2 O tema já foi tratado mais de uma vez pelas Jornadas de Direito Civil do STJ, estando hoje fixado enunciado que não faz distinção entre os tipos de responsabilidade.

3 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 365

4 Não obstante, nem sempre a jurisprudência emprega cuidado ao adotar a norma, por vezes referindo o dispositivo para justificar a redução da indenização em casos de lesões extrapatrimoniais. Assim decidiu o TJRS na ApC nº 70019604404, em 13/6/2007, e na ApC nº 70082750118, em 5/3/2020 ; e o TJSP na ApC 00475358320148260114, em 26/6/2017.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).