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Os estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos

terça-feira, 13 de abril de 2021

Atualizado às 08:35

Por alterarem tão significativamente a dinâmica terrestre, as mudanças climáticas causam impactos negativos de natureza socioeconômica, política, cultural e ambiental. Esta relação de condicionalidade vem sendo demonstrada pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC) e pelos estudos de atribuição, que associam a elevação da temperatura da Terra com o aumento da intensidade e da frequência de eventos climáticos extremos, com o derretimento de geleiras e o subsequente aumento do nível do mar, com a formação de ilhas de calor, que causam a morte de pessoas e a perda da biodiversidade, e com prolongadas estiagens que colocam em risco a segurança alimentar e determinam a extinção de espécies.

Não obstante, a multiplicidade de fatores que concorrem, direta ou indiretamente, para o aquecimento global tem ocasionado uma certa resistência a esquemas de imputação de responsabilidade civil para reparação de danos que são causados ou intensificados pelo aquecimento global. Esta resistência ocorre porque a estrutura de imputação da responsabilidade civil foi pensada com a racionalidade do século XIX, sob a demanda da proliferação de acidentes deflagrados pela revolução industrial, para enfrentar situações em que o lesante é certo e determinado e se tem condições de apurar o nexo causal entre a ação ou a omissão e o dano.

Consequentemente, os casos em que o nexo causal é fluido e impreciso produzem perplexidade e a percepção de que os problemas devem ser resolvidos através de políticas públicas regulatórias que imponham limites ao exercício das atividades poluidoras, e não através da responsabilidade civil em sua perspectiva reparatória, ou mesmo preventiva.

Essa assertiva ficou evidente na ação movida pelo Native Village of Kivalina e pelo Município de Kivalina, em defesa do povo esquimó (Inupiat Eskimo), com fundamento no direito federal norte-americano,contra as 29 empresas que, historicamente, mais emitem gases de efeito estufa, dentre as quais a Exxon Mobil Corporation. Os demandantes pretendiam obter indenização pelos danos pessoais e patrimoniais, inclusive futuros, oriundos do derretimento  do mar Ártico, cujas barreiras de gelo protegiam a comunidade de Kivalina contra as tempestades de inverno. No entanto, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu pelo descabimento da ação, sob o argumento de que o assunto já era objeto de regramento por parte do Clean Air Act e de outras regulações definidas pelo então presidente Barack Obama, inserindo-se em um contexto político, insuscetível de controle judicial1.

Esta interpretação é adotada pela Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho2 e corroborada por Canotilho3 segundo o qual, em virtude da indeterminação das fontes emissoras, a responsabilidade civil não apresenta solução satisfatória, eis que amparada no esquema lesante/lesado, devendo-se partir para outras respostas, tais como os impostos ecológicos e os fundos de compensação ecológica.

Não obstante, este cenário poderá ser modificado em virtude do significativo aporte dos estudos de atribuição4, que alcançam informações baseadas em probabilidade estatística e proporcionam que a causalidade seja construída, normativamente, conforme juízos de probabilidade. Nessa perspectiva, foi a ação ajuizada, em 2015, junto ao Poder Judiciário alemão, pelo fazendeiro Saul Lliuya, que vive em Huaraz, no Peru, contra a empresa RWE, considerada a maior produtora de energia da Alemanha.

A ação, formulada a partir do disposto no parágrafo 1004 do Código Civil Alemão e amparada em um estudo de atribuição produzido pelo Institute of Climate Responsability, imputa à empresa a responsabilidade por haver lançado 0,47% das emissões de gases de efeito estufa detectadas no Planeta no período compreendido entre 1751 a 2010, que estaria desencadeando o derretimento dos glaciares localizados no Lago Palcacocha, e postula uma indenização proporcional a esse percentual. A ação também pede o ressarcimento das despesas havidas até o ajuizamento da ação para a proteção de sua casa e o pagamento do valor de dezessete mil euros para que a comunidade de Huaraz possa construir diques de proteção da cidade. 

Embora inicialmente rechaçada pela Corte Regional de Essen,  em 2017, a Alta Corte Regional de Hamm  reconheceu que os maiores emissores de gases de efeito estufa devem ser os principais responsáveis por apoiar as ações de adaptação climática no Sul Global afetado pelas mudanças climáticas e admitiu fosse produzida prova técnica, em que deverá restar demonstrado que as emissões de CO2 causam a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, que há aumento da temperatura, em que medida esse aumento pode estar causando o derretimento da geleira de Palcaraju e se a proporção da causa parcial em relação ao nexo causal é mensurável e calculável e se soma 0,47% ao tempo do ajuizamento da ação.

Esse caso mostra que o problema na causalidade difusa não é a certeza sobre a existência do dano e de suas causas, mas como garantir a imputação a uma empresa específica, sob o critério da conditio sine qua non, ou da but-for causation, porquanto a contribuição causal de uma empresa individualmente considerada pode ser insignificante para a produção dos danos cumulativos e sinérgicos e, além disso, ter sido perpetrada em conformidade com os padrões normativos vigente à época.

Se a Justiça alemã reconhecer o direito de Saul Lliuya a uma indenização proporcional ao percentual de 0,47% das emissões históricas da RWE, estabelecido conforme estudos científicos de atribuição, estará superando a "market substituition defence", argumento de defesa que é destacado por Peel e Osofsky como um dos principais obstáculos jurídicos para as pretensões reparatórias na litigância climática, segundo o qual, uma vez suprimida a contribuição causal do suposto responsável, ainda assim o dano ocorrerá5. Em outras palavras, trata-se da superação do argumento da "gota d'água no oceano", se não para impedir a implantação de empreendimentos emissores de gases de efeito estufa, ao menos para viabilizar uma indenização proporcional às emissões de CO2.

Portanto, o caso Lliuya v. RWE abre uma nova perspectiva para a imputação da responsabilidade civil, que sinaliza a possibilidade de atenuação da exigência de demonstração de nexo causal direto e imediato ou mesmo do nexo causal adequado, que vem substituído por uma abordagem estatística. Além disso, fricciona a teoria do âmbito de proteção da norma, pois as emissões de RWE, além de lícitas, sob o olhar das emissões globais de gases de efeito estufa, podem ser consideradas pouco significativas, já que correspondentes a apenas 0,47%. 

Na base desta modificação da responsabilidade civil estão as demandas da realidade concreta, devendo-se, como salienta Kysar, questionar constantemente que ajustes são necessários para aproximar as ciências empíricas do Direito, reconhecendo-se que, na alocação dos custos decorrentes da produção de danos, não é justo que estes fiquem com as vítimas, apenas porque a moldura jurídica tradicional não conta, ainda, com o instrumental necessário para dar respostas mais adequadas6.

Foi este o esforço de Benjamin, quando afirmou a necessidade de um regime especial para a responsabilidade civil pelo dano ambiental, revisitando-se suas funções clássicas, sob a premissa de que o instituto ostenta um caráter evolutivo, sempre a demandar novas teorias explicativas, que consigam dar conta da redistribuição de custos e de benefícios. Na ocasião, abordou o problema da dispersão do nexo causal e argumentou que, à luz do direito fundamental ao ambiente equilibrado, não se admite "qualquer distinção - a não ser no plano do regresso - entre causa principal e acessória e concausa", do que resultaria a incidência da teoria do risco integral, rechaçando-se as excludentes de causalidade7. A tese foi adotada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça8.

No entanto, a imputação solidária e fundada em risco integral para os casos de emissões de gases de efeito estufa que, individualmente considerados, parecem insignificantes, pode revelar-se desproporcional. Por isso, uma solução interessante é o recurso à tese do polluter-share liability9, desenvolvida com inspiração na imputação conforme o market-share liability nas ações de responsabilidade civil por danos à saúde associados ao consumo de cigarros e de medicamentos10. Nessa estrutura, ao invés de se lançar mão da imputação solidária, estima-se estatisticamente o percentual de contribuição causal de cada empresa envolvida para o todo, e a indenização é rateada proporcionalmente. Portanto, trata-se de uma abordagem que propicia uma mínima compensação para as vítimas, além de permitir a imputação de responsabilidade por medidas preventivas.

A respeito desta última possibilidade, Kysar  esclarece que, na polluter-share liability, não há incerteza a respeito da autoria do dano, mas o reconhecimento de que cada emissão poluidora contribui para um processo global que desencadeia os danos, e se busca, ao invés de uma reparação integral, a responsabilização proporcional e preventiva, com vistas à execução de medidas que proporcionem a mitigação dos impactos negativos e, no caso das mudanças climáticas, a adaptação para o aumento da resiliência contra as vulnerabilidades.

No Brasil, o recurso à causalidade estatística foi adotado na ação civil pública movida pela Advocacia-Geral da União contra a Phillip Morris e outras, em que os custos com as doenças associadas ao consumo de tabaco e que oneram o Sistema Único de Saúde são imputados, proporcionalmente, às empresas11.

Em conclusão, têm-se que os problemas de imputação de responsabilidade civil por danos climáticos, quando se têm múltiplas concausas, que concorrem cumulativa e sinergicamente para o agravamento dos problemas ambientais e climáticos, podem ser equacionados pelos estudos de atribuição, que se colocam como uma alternativa para os casos em que a imputação solidária se revelar desproporcional pela presença de um grande número de possíveis responsáveis que, individualmente, contribuem de forma pouco expressiva para o dano. Nesse caso, o termo "adequação" causal é preenchido pelos dados empíricos oriundos da probabilidade estatística que relaciona as inúmeras condições que têm potencial para gerar emissões de gases de efeito estufa e as consequências do aquecimento global.

*Annelise Monteiro Steigleder é mestre em Direito pela UFPR, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, promotora de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul. 

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1 O caso é Kivalina v. Exxon Mobil Corp, et. al. US. Supreme Court, n. 12-1072. Notícia disponível aqui, acesso em 21 jan. 2021.

2 A Diretiva 2004/35/CE, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais, afirma que nem todas as formas de danos ambientais podem ser corrigidas pelo mecanismo da responsabilidade (art. 4º). Para que este seja eficaz, tem de haver um ou mais poluidores identificáveis, o dano tem de ser concreto e quantificável e tem de ser estabelecido  um nexo de causalidade entre o dano e  o ou os poluidores identificados.

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito como direito subjetivo. In A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Coimbra: Coimbra  2005.

4 DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Bases estruturantes para a compensação climática no Brasil: Limites e potencialidades. Tese de Doutorado em Direito. UNISINOS, São Leopoldo, 2018, p. 84.

5 PEEL, Jacqueline, OSOFSKY, Hari. Climate change litigation: regulatory pathways to cleaner energy. Cambridge: Cambridge University Press, 2015; e PEEL, Jacqueline; OSOFSKY, Hari. A right turn in climate change litigation? In Transnational Environmental Law, 7:1 (2018), pp. 37-67. Cambridge University Press.

6 KYSAR, Douglas A., What Climate Change Can Do About Tort Law (July 20, 2010). Yale Law School, Public Law Working Paper No. 215, Environmental Law, Vol. 41, No. 1, 2011.

7 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 09/1998, p. 5-52, jan/mar/1998, p. 31.

8 Superior Tribunal de Justiça, Resp. 948.921 e Resp. 1.071.741.

9 MARQUES, Cláudia Lima e STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A aplicação do pollution share liability no direito brasileiro: reflexões a partir das contribuições de Antonio Herman Vasconcelos e Benjamin para a responsabilidade civil ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 100, out.-dez./2020, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,  pp. 27-56.

10 FACCHINI NETO, Eugênio. A relativização do nexo de causalidade e a responsabilização da indústria do fumo - a aceitação da lógica da probabilidade. Civilística.com, a. 5, n. 1, 2016, pp. 16-17.

11 A íntegra da ação civil pública, onde há referência a precentes norte-americanos, pode ser obtida aqui, acesso em 20 jan. 2021.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil