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Automação da regulação do sinistro: o exemplo dos seguros paramétricos

terça-feira, 20 de abril de 2021

Atualizado às 08:07

A concretização do risco segurado em conformidade com as coberturas contratadas, e a consequente ocorrência do sinistro, em princípio, gera ao segurado o direito a ser indenizado pelo segurador. O processo de análise da cobertura e extensão da prestação do segurador, designado como regulação do sinistro,1 não costuma, porém, ser simples.  

Didaticamente, é possível ilustrar a usual sequência de acontecimentos da seguinte maneira: após a ocorrência do sinistro, o segurado faz o seu aviso diretamente ao segurador ou ao corretor de seguros, que o repassará ao segurador, acompanhado da entrega de alguns documentos, conforme a modalidade de seguro envolta no caso concreto. O exame de tais documentos e das condições do sinistro será feito pelo regulador do sinistro. Na sequência, o regulador irá emitir um relatório que será utilizado como guia para a efetiva, ainda que parcial, cobertura do sinistro pelo segurador ou a sua recusa, que necessariamente terá de ser fundamentada.

O procedimento de regulação do sinistro não raro envolve questões complexas e multidisciplinares, demandando uma avaliação extremamente técnica, inclusive por meio de exames e vistorias. Tenha-se em mente, por exemplo, a regulação de sinistros envolvendo plataformas petrolíferas. Existem, todavia, casos mais simples, como ocorre no seguro de vida em que não há suspeita de suicídio ou agravamento do risco incorrido pelo segurado.

Embora não se questione que algumas linhas financeiras de seguros - que dependem visceralmente da interpretação dos termos da apólice em cotejo com as hipóteses fáticas - continuarão sendo reguladas de forma analógica por muito tempo (v.g., seguro D&O e seguro E&O), deve-se reconhecer que uma parte considerável dos seguros será impactada pelas novas tecnologias aplicadas na regulação de sinistros, sobretudo nos ramos massificados.2 

A digitalização de ponta a ponta da regulação de sinistros pode ser segmentada em cinco fases, a saber: i) prevenção de sinistros (avisos de segurança e treinamento comportamental do cliente); ii) aviso de sinistros (por meio de chatbots, eventualmente com autenticação biométrica de clientes, ou até mesmo de forma automatizada, via telemática); iii) gestão de reclamações (predição das características das reclamações, segmentação das reclamações por tipo e complexidade, bem como análise aperfeiçoada das fraudes); iv) avaliação e reparação das perdas (estimativa automática ou semiautomática do valor do dano com base na imagem/reconhecimento de vídeo); e v) resolução de sinistros (processos de pagamento automatizados ou semiautomatizados).3

No presente artigo, pretende-se examinar o item v); mais especificamente, os denominados seguros paramétricos, que têm como nota distintiva a automação da regulação dos sinistros.

Paramétrico é aquilo que parte de entendidos e pressupostos. O que é predefinido não é, via de regra, objeto de longas discussões. Os seguros paramétricos prescindem de regulação do sinistro no sentido de investigações complexas da dinâmica do sinistro, porque, neles, bastará o cotejo entre o sinistro e uma lista preexistente de suportes fáticos autorizadores do acesso à indenização. Dito de outra forma, verificado o alcance de um parâmetro predeterminado, haverá o pagamento da indenização securitária, salvo a ocorrência de fraude.

Enquanto no seguro de danos tradicional, afirma Andre Martin, "é pago um prêmio em troca de uma promessa de cobrir a perda real incorrida de um incidente ou de um perigo nomeado", e a indenização só se concretiza "após uma avaliação e investigação das perdas reais, com o objetivo de colocar o segurado novamente na posição em que se encontrava antes do evento", as "soluções paramétricas (ou baseadas em índices) são um tipo de seguro que cobre a probabilidade de um evento predefinido acontecer em vez de indenizar as perdas efetivamente incorridas".4

Para tornar a compreensão do assunto mais simples, exemplifica-se. Determinada seguradora pode estabelecer que, na ocorrência de tremor de terra cuja magnitude seja igual ou superior a X pontos na Escala Richter, o prejuízo do segurado será presumido e a indenização paga. Outros exemplos de seguros paramétricos no cenário internacional são os relacionados ao atraso ou ao cancelamento de voos e à inundação em propriedades.5

Na definição de Pedro Guilherme Souza: "Os seguros paramétricos consistem em modalidade securitária que, no lugar de exigir a apuração de perdas e suas respectivas extensões no momento de liquidar um sinistro, utiliza como referência um índice ou parâmetro predefinido. Caso determinado índice seja atingido, e.g. ventos acima de setenta nós por mais de três horas consecutivas, o segurado é indenizado pelas perdas estimadas para eventos dessa natureza e magnitude".6

Os seguros paramétricos coadunam-se com o ordenamento jurídico pátrio e não há óbice para que sejam objeto de ato normativo pela Susep com o objetivo de fixar boas práticas e impulsionar a sua penetração no mercado brasileiro. Entre os seus benefícios, cabe destacar a celeridade e a objetividade na prestação da indenização - que independe de apuração do dano na regulação do sinistro -, bem como a mitigação do risco moral do segurado, pois o critério necessário para o gatilho da cobertura (parâmetro ou índice), além de ser modelável, necessariamente deverá ser fortuito.7

Não obstante a discussão relativa à (in)observância do tradicional princípio indenitário, podendo o seguro paramétrico, em alguns casos, ensejar o recebimento pelo segurado de uma indenização maior do que o dano concretizado, vale ressaltar que, na prática, isso já ocorre, excepcionalmente, em outras modalidades, como no seguro de automóvel (imagine-se uma indenização levando em conta o preço médio do mercado, de um automóvel em péssimas condições). Além disso, no âmbito do seguro de vida, não há aplicação do princípio indenitário (art. 789 do CC). 

Retornando a atenção aos seguros paramétricos, mesmo quando o parâmetro previamente fixado pelo segurador não seja atingido, o segurado pode vir a sofrer um dano considerável e não receber nenhuma indenização. Por isso mesmo deve ser afastada a corrente doutrinária que defende a mera presunção relativa do dano, suscetível de prova contrária do segurador, nessa modalidade. Ora, o segurador é mestre de seu ofício e certamente fixará parâmetros que, ao menos na maior parte das vezes, não ensejará o enriquecimento "indevido" do segurado.8

Há, porém, o perigo inverso: a fixação de parâmetros pelo segurador muito raramente alcançáveis, o que retiraria quase todo o conteúdo da garantia dos riscos inerentes ao segurado. Por isso mesmo, é importante que a regulação contenha normas que possam equilibrar a relação entre as partes, sem impedir a célere e praticamente incontestável liquidação do sinistro que caracterizam essa modalidade de seguros, bem como exigindo um bom nível de transparência do segurador sobre como os parâmetros são fixados e examinados nos casos concretos.

*Thiago Junqueira é doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo - Alemanha). Professor do ICDS - Instituto Connect de Direito Social e da Escola de Negócios e Seguros. Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e Parecerista, Sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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1 Sobre o tema, são referências obrigatórias na doutrina brasileira TZIRULNIK, Ernesto (com a colaboração de Alessandro Octaviani). Estudos de Direito do Seguro, Regulação de Sinistro (ensaio jurídico) - Seguro e Fraude. São Paulo: Max Limonad, 1999. pp. 55-124; MARTINS-COSTA, Judith. Boa-fé e regulação do sinistro. In: VII Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho - IBDS. Lei de contrato de seguro: solidariedade ou exclusão? São Paulo: Roncarati, 2018, pp. 201-210; e o recentíssimo e profundo estudo de MIRAGEM, Bruno; PERTERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunais, vol. 1025, março - 2021, pp. 291-324.

2 Para uma análise detalhada dessas novas tecnologias (Big Data, Inteligência Artificial e Internet das Coisas) e seus impactos nas relações securitárias (used base insurance, insurance on demand e P2P insurance) e nos direitos da personalidade dos segurados, confira-se: JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 209 e ss.; GOLDBERG, Ilan. Inovação e disrupção no mercado de seguros. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. O direito Civil na era da Inteligências Artificial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 531 e ss; e, nessa obra citada por último, MIRAGEM, Bruno; PERTERSEN, Luiza. Seguro e inteligência artificial: novo paradigma tecnológico e seus reflexos na causa e na estrutura do contrato de seguro. pp. 490 e ss.

3 Seguiu-se de perto a formulação proposta por MCKINSEY. Claims in the digital age. Disponível  aqui. Advirta-se, por oportuno, que o acesso ao referido endereço eletrônico, bem como aos demais, mencionados em seguida, ocorreram pela última vez em 19 mar. 2021. Sublinhe-se, outrossim, que os trechos originários de idiomas estrangeiros e transcritos no presente estudo foram livremente traduzidos pelos autores.

4 MARTIN, Andre. What is parametric insurace? Disponível aqui. Em bom rigor, não há uma "promessa de cobrir" no seguro tradicional, mas sim a garantia do risco contratualmente delimitado pelo segurador.

5 "Os seguros paramétricos vem aumentando em prevalência em todo o setor de seguros. Fixar pagamentos adiantados pode ser benéfico para alguns clientes em relação aos produtos de seguros tradicionais ao proporcionar maior certeza e rapidez nos pagamentos de sinistros. No Reino Unido, uma seguradora desenvolveu um produto de seguro contra inundações que envolve um pagamento imediato de um montante predeterminado a ser acionado quando a água da inundação atinge uma certa profundidade no sensor instalado pela seguradora na propriedade. Modelos semelhantes são também utilizados em produtos de seguro de atraso e cancelamento de voo, em que a integração com uma alimentação de dados - que fornece diretamente dados sobre o estado do voo - permite o pagamento quase instantâneo de um sinistro no caso de um voo atrasar ou ser cancelado". INTERNATIONAL ASSOCIATION OF INSURANCE SUPERVISORS. Issues Paper on the Use of Big Data Analytics in Insurance. Basel: IAIS, 2020. p. 27.  

6 SOUZA, Pedro Guilherme Gonçalves de. Seguro paramétrico e política pública de defesa de calamidades no cenário nacional. Revista Opinião.Seg, n.º 17, novembro 2019, p. 85.

7 "Um parâmetro ou índice adequado é qualquer medida objetiva que esteja correlacionada com um risco específico e, em última análise, com uma perda financeira para o segurado. Trata-se de um 'índice mensurável' relacionado com um 'cenário'. Por exemplo, chuva relacionada com o atraso de um projeto de construção ou terremoto relacionado com danos no patrimônio físico de uma empresa". MARTIN, Andre. What is parametric insurace? Disponível aqui.

 

8 A principal vantagem dos seguros paramétricos é justamente a automação da liquidação de sinistro, desde que o parâmetro predeterminado seja alcançado, não se entrando na análise de efetivos danos sofridos pelo segurado.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil