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A responsabilidade contratual nas relações locatícias imobiliárias urbanas em tempo de coronavírus

terça-feira, 27 de abril de 2021

Atualizado às 07:53

Aspectos gerais: Vive-se nos últimos tempos envolvido em uma pandemia sem precedentes. Quase 400 mil pessoas já perderam a vida, somente no Brasil.  As pessoas encontram-se submetidas ora ao medo, ora à reflexão. Às vezes só impera a desinteligência. Muitos passaram a viver em completo isolamento social. O motivo disso se chama COVID-19. Estados e municípios determinaram o fechamento de escolas, comércio, indústria, serviços e inúmeras outros estabelecimentos. Quando a suspensão das atividades não é integral, há regras de limitações. Setores do turismo, hoteleiro, eventos e entretenimento são os mais prejudicados. Critérios nem sempre objetivos foram utilizados. Diante disso as empresas começaram a conviver com a diminuição e/ou até a falta total de faturamento com grandes dificuldades para honrar os compromissos. Muitos perderam o emprego ou tiveram sua remuneração e carga horária limitada. Qual o impacto do tema no mercado locatício imobiliário?

De pronto, tal ocorrência legitima caso claro de caso fortuito ou força maior  (art. 393/CC). O fator COVID-19 está além de qualquer álea imaginável, pelo que se configura caso fortuito (em se tomando como origem o vírus) ou de força (em se tomando como origem a ação humana de transmitir). Os elementos desse fortuito externo são a necessariedade e a inevitabilidade, presentes no caso. Não se faz necessária a prova de que o COVID-19 se constitui nessa espécie de fortuito, pois há uma   presunção simples de que isso afeta todos as pessoas. Porém, há a necessidade de demonstração da medida em que o locatário é afetado, no caso concreto.

A interpretação do problema deve se dar à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade. E no âmbito contratual da autonomia privada, boa-fé, equilíbrio contratual e da função social e econômica.   

As relações locatícias configuram-se execução de trato sucessivo. Significa dizer que o equilíbrio previsto no momento da contratação deve ser mantido durante toda a relação contratual.

Além disso, deve-se destacar a relevância dos princípios da livre iniciativa e do direito social à moradia, esse último com especial destaque na locação residencial. Logo, tanto a locação empresarial como a residencial devem cumprir uma função maior, de natureza magna, a primeira como instrumento efetivo da livre iniciativa; a segunda como meio efetivo para se garantir o direito social à moradia.  A ideologia desses princípios norteia as soluções sugeridas.

Sugestões para a solução do problema: Além da conciliação, meio adequado para qualquer assunto de natureza patrimonial, as demais soluções dependem do fato concreto:    

a) atividade proibida ou suspensa: a aplicação se dá de pleno direito, ou seja, haverá supressão do aluguel ou diminuição de seu valor, ainda que nesse último tópico possa ser necessário o arbitramento judicial. O ponto essencial desse tópico é a aplicação dos artigos 22, I e III1 da lei do inquilinato, em que não se aplica o princípio da alocação equivalente dos riscos. O risco corre por conta do locador. Res perito domino.

Essas obrigações são essenciais ao contrato de locação, cabendo ao locador garantir o uso do imóvel durante a locação de forma a servir ao fim a que se destina. Essa finalidade é a residencial ou não residencial. Se não residencial e estabelecida a atividade específica no contrato (comércio, loja de móveis, escritório de advocacia, etc.) é essa a obrigação do locador. Ou seja, se ele locou para comércio de roupas, não se obriga a garantir o uso para outra atividade que não aquela. Diferentemente, se constou genericamente, haverá a necessidade de se demonstrar o efetivo prejuízo.

Se a locação for mista, deverá ser considerada a atividade preponderante ou, ainda, os efeitos parciais ou totais sobre a locação. 

Mais detidamente, o primeiro ponto, a ser levado em conta, é se a obrigação principal do locador, ou seja, dar à coisa o fim hábil a que se destina e mantê-la durante a locação esta finalidade, foi cumprida. Ao passo que o dever principal do locatário é de pagar o aluguel e acessórios decorrentes da locação. É importante destacar que no âmbito da locação o princípio da exceptio non adimpleti contractus só vale para o locatário.  

Se a atividade do locatário foi encerrada, definitiva ou provisoriamente, por ordem legal, ou por vontade própria, em determinadas circunstâncias, em razão da pandemia, o locador não poderá exigir o pagamento do aluguel, ou somente pode fazê-lo de maneira parcial, conforme o caso. Vale aqui a máxima latina, res perit domino, a coisa perece para o seu proprietário. Em se tratando de locação não residencial, duas podem ser as hipóteses. A primeira é quando o contrato de locação assevera: locação para fins não residenciais ou locação para fins comerciais. Quando se tem essa assertiva, significa dizer que o locador se obrigou a entregar o imóvel não para uma finalidade especifica, mas para uma atividade geral. Às vezes a finalidade não residencial ou comercial está especificada, restaurante, panificadora, comércio de móveis. Aqui se tem uma outra circunstância: o locador se obrigou não só ao fim comercial, mas para uma determinada finalidade. Então os efeitos são mais severos: obriga-se o locador pela possibilidade de desenvolvimento da própria atividade. Isto também quando se está diante de uma locação mista, ou seja, naquelas circunstâncias em que haja preponderância de uma locação (residencial ou não residencial), mas se exerce a outra. Então já se tem uma situação diferenciada em que a prioridade é a locação residencial, mas pode ter algum efeito na atividade não residencial. Se em razão desta pandemia, o locatário pretenda entregar as chaves com o encerramento da locação, não há incidência de multa, porque ele não está descumprindo o contrato, ao contrário, quem estaria descumprindo o contrato, por motivo de força maior, seria o locador.

Não é necessário a propositura de medida judicial para tal fim, pois a regra se opera de pleno direito. Pelo dever da boa-fé recomenda-se que o locatário comunique o locador, mediante o uso de qualquer meio idôneo. Comunicando ou não, poderá opor essa circunstância se for demandado pelo não pagamento. Não, porém, se as partes convencionaram algum desconto ou isenção por determinado período ou mesmo diferirem o pagamento para período futuro.

 Quando o locatário não esteve privado por completo do uso do imóvel, a inexigibilidade não será completa e necessitará de exame das circunstâncias e da extensão dos limites que ele, locatário, restou privado do uso da coisa.  

  Se o locador não poderia exigir o aluguel se ao firmar o contrato de locação tivesse por objeto atividade proibida, é evidente que também não poderá fazê-lo se a proibição é superveniente.

É dever do credor colaborar para diminuir os danos do devedor. Isso deve ser considerado nas tratativas, bem como reconhecido pelo juiz ao decidir a matéria. É o chamado dever de mitigar a perda, oriundo do dever anexo de proteção2.

b) redução do valor de mercado do imóvel locado: revisão contratual por alteração das condições de mercado (arts. 19, 68, b, LI): se, em razão da pandemia, o   locativo passa a ser desproporcional, o locatário poderá propor a ação revisional, visando conduzi-lo ao valor atual do mercado. Essa revisional tem uma peculiaridade específica, pois está restrita ao período em que haja uma divergência entre o valor de mercado e o valor do locatício ligado ao Corona Vírus. Sendo excepcional a situação, não é exigível o prazo de três anos contados do contrato ou do último acordo entre as partes.

A eficácia do novo aluguel deve se dar a partir do momento do ajuizamento da ação, pela peculiaridade, e não da citação, como estabelece a lei.  

c) revisão e/ou resolução por onerosidade excessiva (arts. 317 e 478 CC):   todo estabelecimento comercial, ao assumir o compromisso de pagamento de um aluguel, leva em conta os custos operacionais, pois seu objetivo é o lucro.  Isso, em geral, é   uma questão interna do locatário, irrelevante para o locador. Em uma pandemia os custos operacionais aumentam, ou ao menos ficam iguais, e o faturamento reduz barbaramente. Então, isto permite uma análise de toda atividade do locatário. Tem que se demonstrar que há uma excessiva onerosidade, ou seja, um sacrifício desmedido. Então ele poderá propor a revisão do contrato por onerosidade excessiva, motivada pela pandemia (fortuito externo), ação esta que para ter um resultado efetivo deverá contemplar um pedido de tutela provisória. Não é necessário que haja uma alteração no valor de mercado do imóvel. O importante é que as condições econômico-financeiras do locatário se alteraram em razão da pandemia. Em isto acontecendo, os riscos devem ser suportados igualmente pelas partes, o que se chama de alocação dos riscos.  

O locador tanto pode concordar em revisar o contrato se o pedido for de resolução, como pode pleitear a resolução, sem culpa das partes, se o pleito for de revisão. O instrumento para tanto é a reconvenção.

Na ação de revisão por onerosidade excessiva o que está em questão são os efeitos gerados pela pandemia na vida econômica do locatário. Isso pode possuir um caráter reflexo. Por exemplo, o locatário está com seu estabelecimento comercial fechado em razão da pandemia e, por causa disso, passa a encontrar dificuldades em pagar a locação do seu imóvel residencial.

Assim, em se tratando de locação residencial pode-se utilizar da revisional locatícia ou da revisão por onerosidade excessiva. Na locação não residencial, como já referido, poderá o aluguel ser inexigível quando o imóvel não estiver à disposição do locatário. Isto pode ser por ordem legal em que o imóvel possa estar fechado, desde que o locador tenha se obrigado àquela atividade. Se, porém, a atividade foi encerrada em razão de outras circunstâncias, não será possível a demanda. A onerosidade não pode ser decorrência do risco do negócio, mas sim excessiva, relevante. Esse desequilíbrio deve ser dividido entre as partes, ou seja, aqui o risco não corre por conta do locador. 

A eficácia da medida deve se dar desde o ajuizamento. Se o locatário já se encontrava em mora, deverá depositar o valor em atraso por ocasião do ajuizamento da ação. 

Shopping centers: Esses centros comerciais foram amplamente afetados haja vista o afluxo normal e intenso de pessoas que por lá circulam, sobretudo nas praças de alimentação, centro de eventos, corredores, locais adequados para a disseminação mais intensa do vírus. 

Quem abre um estabelecimento nesses centros comerciais e busca ali desenvolver suas atividades empresariais, locando imóvel para tanto, o faz exatamente por causa do mix de lojas, do apelo da circulação de pessoas e do grande afluxo de pessoas que lá devem ir, enfim de toda a estrutura do empreendimento. O objetivo do locatário situa-se muito além do seu espaço físico. O regular funcionamento de todas as lojas é de interesse de cada lojista. Assim, durante o período em que as lojas estiveram fechadas o aluguel não é devido, inclusive em seu valor mínimo. Tampouco os demais encargos como condomínio e fundo de promoção, salvo o pagamento da res sperata, normalmente chamada de luvas. Se houve limitação horária ou de dias para as atividades, a regra continua sendo a mencionada, com redução dos alugueres e encargos, proporcionalmente. O risco do empreendimento é do empreendedor e não pode ser transferido ao lojista. Por outro lado, se o fechamento for determinado por descumprimento de regras de segurança sanitária de parte do empreendedor, esse será responsável pela indenização dos prejuízos do lojista. 

O lojista, conforme o caso, pode também se valer da revisional locatícia ou ainda da demanda atinente à revisão contratual por onerosidade excessiva, neste caso com divisão proporcional aos riscos.  

Conclusão: este tema desafia uma visão inovadora do fenômeno jurídico.     Não se pode usar formas clássicas para resolver um problema que é inédito. O jurisdicionados necessitam de respostas rápidas, pois carecem de solução imediata.  Os olhos do operador jurídico devem considerar que essa pandemia é única, não sendo possível usar as mesmas soluções de problemas semelhantes, porque nunca houve situação análoga.  O que se espera é que haja uma pacificação dos problemas de forma a evitar o encerramento de inúmeras atividades, preservando-se os empregos e mantendo-se as moradias.

*Carlyle Popp é mestre em Direito Público pela UFPR. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná, da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Conselho Editorial da Juruá Editora, do Instituto de Direito Privado, da ALUBRA e do IBERC.   Foi professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (mestrado) do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) até 2012. Advogado Sócio de Popp Advogados Associados. Ex-professor da PUC/PR. É escritor. Coordenador e colaborador das antologias Instruções à Cortázar: homenagem de cronópios, famas e esperanças. Juruá Editora, 2014.

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1 Art. 22. "O locador é obrigado a: I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao fim a que se destina; (...); III - manter, durante a locação, a forma e o destina do imóvel".

 

2 SITTA, Thiago Souza & LIMA, Ianara Cardoso. COVID-19: impactos nos contratos de locação comercial. Migalhas de peso. 13.04.2020.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil