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Ações de reparação por danos concorrenciais e as funções da responsabilidade civil - Breves reflexões

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Atualizado às 09:03

As ações de reparação por danos concorrenciais - popularmente denominadas "ARDCs" por doutrinadores e militantes na área concorrencial - têm sido alvo de bastante atenção e inúmeros debates recentes no Brasil em razão da expectativa quanto ao private enforcement concorrencial no país - i.e., a persecução privada de ilícitos concorrenciais sob o prisma da reparação de danos, alheia ao enforcement do Estado.

Tal expectativa estaria relacionada à ideia de que a reparação privada de danos concorrenciais poderia ser capaz de operar como instrumento dissuasório adicional da prática de infrações à ordem econômica, ao lado das repressões administrativa e criminal, normatizadas, especial e respectivamente, na lei 12.529/2011 ("Lei Antitruste Brasileira") e na lei 8.137/1990.

A despeito de destacarem a - possível - função complementar das ARDCs ao public enforcement concorrencial, os debates a respeito delas não parecem preocupar-se - com o devido cuidado - em analisá-las sob a perspectiva das funções tradicionalmente atribuídas a ações indenizatórias. Ou seja, as discussões a respeito das ARDCs no Brasil não parecem estudar sua(s) exata(s) função(ões) sob o prisma da responsabilidade civil, ficando restritas apenas à sua - eventual - função no âmbito da política antitruste brasileira.

Nesse contexto, o presente artigo visará lançar breves reflexões sobre as ARDCs vis-à-vis as funções reparatória, precaucional e, inclusive, a sancionadora da responsabilidade civil, bem como respectivas implicações.

Para tanto, é importante tecer breves considerações a respeito de cada uma das três referidas funções da responsabilidade civil. Nesse sentido, entende-se que a função reparatória corresponde àquela precipuamente atribuída à responsabilidade civil - i.e., de restabelecimento do equilíbrio econômico-jurídico eliminado em decorrência de um dano, transferindo os ônus materiais impostos pelo respectivo prejuízo ao seu causador. Por sua vez, a função precaucional tem como propósito coibir atividades potencialmente danosas, que exigem medidas antecipadas de diligência a serem tomadas por aquele que desenvolve atividade de risco. Finalmente, a função sancionadora corresponde à aplicação de uma pena civil ao ofensor.1

Sob a perspectiva de tais funções da reparação civil - qualquer que seja sua causa - é que deveria se propor a análise da capacidade dissuasória das ARDCs, sendo importante pontuar que o princípio da prevenção é inerente à atual concepção de responsabilidade civil. Sendo assim, (i) a função reparatória basear-se-ia na prevenção de danos; (ii) a função precaucional, na prevenção de riscos; e (iii) a função sancionadora, na prevenção de ilícitos.2

Considerando tais vertentes da responsabilidade civil no âmbito das ARDCs, e não apenas o eventual potencial dissuasório destas últimas em adição ao public enforcement do Direito Concorrencial, conclusões e desafios se materializam, conforme explorado a seguir.

Primeiramente, é evidente que eventuais danos materiais decorrentes de uma conduta anticompetitiva poderiam, em tese, ser reparados por meio de uma ação indenizatória se comprovados nexo de causalidade e dano, além do próprio ato ilícito. Com isso, consubstanciar-se-ia a função reparatória das ARDCs. Não obstante, é imprescindível ressaltar que a prova de tais danos é indispensável para que a reparação seja deferível e mensurável, devendo aplicar-se a regra geral das ações que têm por objeto a reparação de prejuízos materiais, em conformidade com o art. 373 do Código de Processo Civil ("CPC") sobre atribuição do ônus da prova.

Diante disso e do comando do art. 944 do Código Civil, segundo o qual a indenização se mede pela extensão do dano, o prejuízo material no âmbito de uma ARDC não traz qualquer particularidade ou distinção digna de nota, pois, por absoluta falta de amparo legal, não se admite a sua presunção, além de não ser possível afigurá-lo como consequência automática da eventual prática de ilícito concorrencial - situação em que a eventual indenização, inclusive, seria capaz de originar uma situação de desequilíbrio inter partes.

Por conseguinte, ausente qualquer inovação - por absoluta falta de fundamento jurídico para tanto - no caráter reparatório das ARDCs, as possíveis controvérsias e desafios envolvendo a tal espécie de ações residiriam em torno das funções preventiva e sancionadora da responsabilidade civil. Isso porque a intenção de atribuir-se uma eficácia dissuasória a tal modalidade de ações indenizatórias não seria uma questão trivial, considerando, especialmente: a ausência de legislação específica sobre o tema - a despeito dos esforços recentes em tal sentido -;3 o estágio ainda muito prematuro da respectiva jurisprudência; e, principalmente, as diversas medidas de caráter dissuasório, além da reparação dos danos materiais, que um agente econômico infrator pode suportar.

Considerando a potencialidade ofensiva de infrações à ordem econômica à coletividade, especialmente, de cartéis hardcore - tradicionalmente, entendidos como ilícitos per se pela autoridade antitruste brasileira -, e tendo em vista que o Direito Concorrencial visa tutelar um direito difuso, seria possível defender, por exemplo, a reparação, via uma ARDC, por danos sociais, os quais podem ser entendidos como as "lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral - principalmente a respeito da segurança - quanto por diminuição de sua qualidade de vida."4

Outra hipótese de reparação pelos danos decorrentes de um cartel seria a controvertida indenização por danos morais coletivos.5 Nesse sentido, ressalta-se que o dano moral coletivo vem sendo aplicado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em relação à lesão que afeta, por sua gravidade e repercussão, valores sociais primordiais. A partir desse conceito bastante aberto adotado pela referida Corte, observa-se que poderia ser sustentado que a prática de cartel também poderia ensejar a reparação de um dano moral coletivo, considerando a tutela de valores sociais como bens de titularidade coletiva - na presente hipótese, a ordem econômica. O conceito e sua aplicação, porém, não são pacíficos na doutrina, posto que, para alguns, a titularidade dos direitos subjetivos tutelados na reparação pelo prejuízo imaterial seria da coletividade, enquanto, para outros, não há possibilidade de uma lesão extrapatrimonial afetar uma comunidade abstratamente considerada, maquiando-se o instituto da responsabilidade civil para que seja aplicada, na verdade, uma pena civil.6

Este ponto é extremamente relevante se considerado o efeito dissuasório que se pretende atribuir às ARDCs, dissuasão que, por sinal, estaria relacionada às funções precaucional e punitiva da responsabilidade civil. Isso porque a aplicação de uma sanção exige uma previsão legal específica, sob pena de se violar o princípio constitucional da legalidade, já que punições exigem lei anterior que as defina. No caso de condutas anticompetitivas, especialmente do cartel, não há previsão legal que permita aplicar uma pena civil, a qual estaria caracterizada na hipótese de o valor fixado a título de condenação exceder a extensão dos danos efetivamente aferidos.

Há que se destacar, sobre essa questão, o PL 11.275/2018 (originado do Projeto de Lei do Senado 283/2016), o qual prevê a possibilidade de exigir a restituição em dobro pelos danos materiais decorrentes do cartel e pretende alterar, assim, o art. 47 da lei 12.529/2011. Algumas ponderações críticas são necessárias sobre tal proposta legislativa, já que a função ressarcitória tem como propósito o reequilíbrio econômico afetado pelo dano, e não exatamente um propósito sancionador, de tal sorte que o dispositivo alterado poderia impor algumas incoerências sistêmicas, se consideradas as funções da responsabilidade civil e sua aplicação. Poder-se-ia até mesmo ponderar sobre as vedações ao enriquecimento sem causa, que tanto preocupam os julgadores ao fixarem o quantum indenizatório, até porque o ressarcimento material é medido de acordo com a extensão do prejuízo.

Outro ponto bastante sensível sobre a eficácia das funções precaucional e punitiva das ARDCs está relacionado à existência de sanções paralelas aplicadas às condutas anticompetitivas, especialmente a cartéis, em âmbitos administrativo e penal. A existência de punições reiteradas poderia se agravar caso o ressarcimento pelos prejuízos materiais decorrentes da infração ocorrerem em dobro, especialmente considerando que os consumidores podem ajuizar individualmente suas ações indenizatórias.

Assim, cumular-se-iam (i) a sanção administrativa, aplicada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, (ii) a punição criminal, a pedido do Ministério Público, e (iii) as sanções civis - seja por meio da tradicional função pedagógica da responsabilidade civil, seja por meio da fixação de uma pena civil específica em detrimento do agente econômico -, que se concretizariam por meio de ações para reparação dos danos coletivos ou individuais.

Ainda que o cartel possa ser entendido como uma das mais graves infrações à ordem econômica, o risco de impor um regime de overdeterrence a infrações de tal natureza não deveria ser entronizado no ordenamento jurídico brasileiro sem maiores ponderações e preocupações. Especificamente no caso das ARDCs, cuja popularização pode ser relevante ao private enforcement, a proporcionalidade das sanções também deve ser resguardada e promovida.

Com efeito, já há instrumentos jurídicos associados à responsabilidade civil que permitem a concretização de suas funções punitiva e precaucional, como ações coletivas por danos morais ou por danos sociais, que seguem rito previsto na lei 9.327/1996, bem como outras normas, especialmente em matéria civil, como os próprios art. 47 da Lei nº 12.529/2011 e os arts. 186 e 927 previstos no Código Civil, os quais, além de aplicáveis para a reparação dos danos materiais decorrentes de infrações à ordem econômica, estruturam o sistema de reponsabilidade civil, que deve manter-se coeso e equilibrado, independentemente da natureza do dano a ser indenizado, prevenido ou punido.

*Luiz Fernando Santos Lippi Coimbra é sócio de Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Contratos pela Escola Paulista de Direito.

**Beatriz de Figueiredo Coppola é advogada em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharela em Direito e Mestranda em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo de São Franciso. Licence en Droit de l'Université Jean Moulin - Lyon III.

 

***André Santos Ferraz é advogado em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Mestrando em Direito na Universidade de Brasília - UnB. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Bacharel em Ciências Econômicas pela UnB e em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub.

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1 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

2 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33.

3 Cita-se, por exemplo, o Projeto de Lei do Senado nº 283/2016, autuado como Projeto de Lei nº 11.275/2018 na Câmara dos Deputados.

4 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma Nova Categoria de Dano na Responsabilidade Civil: O dano social. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 19, 2004, p. 216.

5 FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Responsabilidade Civil por Danos Concorrenciais: A indenização em dobro e a não solidariedade dos infratores previstas no PLS 283/2016. Revista de Defesa da Concorrência, v. 7(1), pp. 131-159, 2019.

6 ROSENVALD, Nelson. O Dano Moral Coletivo como uma Pena Civil. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coords.). Dano moral coletivo. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 117-119.