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Responsabilidade civil e adoção

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Atualizado às 07:40

Quando o tema deste ensaio me foi proposto, iniciei uma reflexão que julgo bastante necessária: o que acontece quando genitores biológicos não desejam mais cuidar de seus filhos? O que ocorre quando por condições financeiras, psicológicas, psiquiátricas, neurológicas, ou até mesmo por experimentarem um desamor profundo, uma falta de vínculo, ou qualquer coisa que o valha, pais e mães não queiram participar do desenvolvimento de seus filhos e desejem lançar mão de sua criação?

É interessante que o mito da mãe amorosa, daquela que é capaz de tudo para ter os filhos consigo, tomou-me de assalto. Entretanto, como dito no início da frase, trata-se de um mito, de uma representação do ideal.

Infelizmente, a fila de crianças esperando por um lar adotivo cresce a cada dia.

Voltando à minha reflexão inicial, os genitores que desejam não mais ter seus filhos em sua companhia não podem, por óbvio, abandoná-los à própria sorte, já que tal fato é tipificado como crime (o abandono de incapaz no artigo 133 do Código Penal e o abandono de recém-nascido no dispositivo seguinte, artigo 134 do referido Diploma Legal).

Possivelmente, os pais biológicos conversarão com parentes próximos, verificando a possibilidade de que tais familiares venham a assumir o que entendem como um fardo.

Talvez entreguem os filhos a vizinhos e conhecidos, ignorando as consequências jurídicas de tal comportamento, fomentando aquilo que se convencionou chamar de "adoção à brasileira".

Por fim, devidamente orientados, buscarão o Estado, que tem o dever de acolher tais pessoas, conforme previsto nos artigos 13, §1º e 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõem sobre a "entrega legal", também apontada como "entrega consciente" dos menores à Justiça da Infância e da Juventude.

Há até quem diga que essa entrega é um verdadeiro ato de amor, daquele que de forma consciente entende que a criança estará melhor se levada aos cuidados do Estado.

Infira-se, que ao receber a criança/adolescente, o Poder Judiciário ainda tentará alocá-la na família extensa, buscando a família substituta de forma excepcional.

Pois bem.

Esses genitores, que buscam a entrega do filho ao Poder Judiciário, não estão sujeitos a qualquer punição. Não terão que pagar aos filhos verba alimentar e não terão que indenizá-los, já que perderão o poder familiar.  

Verdade seja dita, nestes casos de entrega consciente/voluntária/legal, a criança muitas vezes é vista como um erro. É duro, eu sei, e muito me custa falar isso. Mas é a realidade para muitos.

Veja que meu objetivo não é exercer julgamento ético ou moral sobre as atitudes desses genitores. Quero compreender, no âmbito da responsabilidade civil, por que razão tratamos a interrupção do processo de adoção como ilícito civil e somos tão condescendentes com os pais biológicos?

O ponto, talvez, seja justamente o elemento volitivo.

Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um processo rígido de inscrição e avaliação do candidato a adotante. Não se poderia esperar menos, já que o Estado é responsável por aquela pessoa, que será entregue à uma família substituta.

Depois da inscrição na Vara da Infância e da Juventude, os interessados passarão por estudo psicossocial, que tem como condão avaliar se eles têm condições de exercer a maternidade/paternidade responsável. Destaque-se que o artigo 43 do ECA deixa claro que a adoção será deferida se apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.

Como bem ressaltam Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann: "Os motivos legítimos são aqueles que se identificam com a finalidade protetiva da adoção, aqueles ligados ao exercício da paternidade real e dedicados ao desenvolvimento do filho. A criança ou o adolescente não são meios para atender aos desejos e às expectativas individuais, mas sim parte de um plano maior: a formação pessoal e cidadã do adotando. Isso só será possível se os postulantes se descolarem de suas expectativas e adotarem a criança real, aquela que tem sua própria história, suas próprias características e seus próprios desejos.  Feita essa avaliação, os postulantes são inscritos em um programa de preparação para a adoção (...). Cumpridas essas  etapas, o procedimento é encaminhado ao Ministério Público, que analisará a regularidade formal dos autos, podendo ou não requisitar novas diligências e apresentar seu parecer final, o qual será examinado pelo magistrado (art. 197-D da lei 8.069/1990). A decisão judicial de deferimento é o que permite a inscrição dos interessados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)."1

O postulante à adoção, portanto, manifesta não só o seu desejo de adotar, como também se submete a criterioso estudo que culminará em sua inscrição no SNA. Durante esse processo, por razões óbvias, o postulante poderá a qualquer momento manifestar a sua desistência.

Quando o sistema entende que há uma compatibilidade entre o menor disponível para adoção e o postulante, este último é convidado a conhecer a criança ou o adolescente, dando início ao estágio de convivência.

O ECA prevê que o postulante poderá recusar dar início ao estágio de convivência. Entretanto, se fizer isso por três vezes será submetido a nova avaliação.

Entende-se que não há qualquer possibilidade de responsabilização do postulante à adoção neste estágio. Esse é efetivamente o momento de recusar a aproximação ou de desistir de dar continuidade no processo.

Inobstante, em estágios mais avançados do processo, não há como negar a responsabilidade do postulante, já que depois de iniciada a convivência da criança/adolescente com o adotante, não há mais momento propício para a interrupção do processo, já que aquela pessoa em formação já dispensou todas as suas esperanças naquela nova estrutura familiar.

Conforme opina Epaminondas Costa, o estágio de convivência não é um direito instituído em favor dos adotantes, de tal forma a legitimar "devoluções" injustificadas de adotandos. "O estágio de convivência, previsto no art. 46 do ECA, não pode servir de justificativa legítima para a causação, voluntária ou negligente, de prejuízo emocional ou psicológico a criança ou adolescente entregue para fins de adoção, especialmente diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da prioridade absoluta em relação à proteção integral à infância e à juventude."2

Esse também é o entendimento de Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann, com o qual compactuo: "Dentro da ótica de proteção integral que embasa todo o Direito da Infância e da adolescência, o estágio de convivência deve ser compreendido como uma garantia para a criança ou para o adolescente. Ele não é um período de teste com um direito a arrependimento, é um efetivo compromisso com obrigações éticas e jurídicas com o adotando assumidas perante o Poder Judiciário. (...) Como mencionado, em regra, o estágio de convivência acaba com um relatório que trará subsídios para o magistrado decidir sobre a adoção. Entretanto, ele pode findar-se com a desistência da adoção por parte dos postulantes. Tal desistência pode ter sérios reflexos na vida da criança e/ou adolescente, aquela pessoa mais vulnerável e quem o Direito nacional deve proteger com absoluta prioridade."3

Entender a desistência durante o estágio de convivência como abuso de direito abre as portas para a reparação civil, mas deve suscitar muita reflexão.

Trata-se de uma situação em que o "cobertor será sempre curto".

Explico.

Primeiro, a responsabilização pode gerar um afastamento dos possíveis candidatos à adoção, mas se ela não existir, os menores ficarão vulneráveis à desistências injustificadas e vazias. De outro giro, a responsabilização pode fomentar a insistência na manutenção de vínculos entre indivíduos que não estão certos do processo, formando famílias disfuncionais (o que julgo difícil, já que será feito um relatório psicossocial ao final do estágio de convivência, e que pode concluir pela impossibilidade de formação de laços familiares, com a sugestão de retorno da criança ao acolhimento).

Outro ponto que merece ser avaliado: e se houvesse uma indenização previamente definida, ou seja, uma previsão legal de compensação financeira caso o estágio de convivência não desse certo, oferecendo-se uma prévia uma proteção financeira ao menor adotando? À primeira vista parece ser uma solução boa e viável, até que se imagina que alguns postulantes poderiam ver a situação como um escape para todo o processo de adoção, empenhando-se menos do que deveriam para fazer essa situação tão peculiar que é a formação de uma nova família a partir de laços não-sanguíneos, dar certo.

A verdade é que não há nada mais complexo do que atribuir responsabilidade civil a violações de direitos de personalidade ocorridas no campo do Direito das Famílias. Cada situação deve ser avaliada pelo Poder Judiciário, levando-se sempre em consideração o melhor interesse da criança e do adolescente, destinatários de especial proteção do Estado.

Por fim, volto-me para a esdrúxula previsão do artigo 197-E, §5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que contempla a possibilidade da devolução da criança adotada depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. Já me manifestei pela inconstitucionalidade do dispositivo, em face do artigo 227, § 6°, da Constituição Federal de 88, vez que com o trânsito em julgado da sentença, a adoção se torna irrevogável e o adotado passa a ser filho, estendendo-se a ele todos os efeitos legais da filiação, com todos os direitos e qualificações. Permitir a "devolução" seria conferir ao filho adotivo uma condição inferior àquela atribuída ao filho biológico.4

Por essa razão, defendo que, exatamente como ocorre com o filho biológico, o filho adotivo terá o direito de ser colocado na família extensa, devendo o Estado buscar parentes dos pais adotivos para verificar a viabilidade da criança ser mantida naquele seio familiar, exatamente como faria se a criança não pudesse ficar com os pais biológicos.

Se, infelizmente, a criança não encontrar guarida na família extensa, enfrentará a cruel realidade de voltar ao âmbito do cuidado estatal.

No início deste ensaio, refleti sobre a possibilidade da entrega consciente. Pais biológicos que entregam seus filhos ao Estado, por não poderem/desejarem participar de sua criação. Demonstrei que o ato se coaduna com a lei, e que os genitores não sofrem punições ou são responsabilizados por voluntariamente entregarem sua prole ao Poder Judiciário.

Por que os pais adotivos não podem se valer da mesma regra?

Como já dito, na adoção há um elemento volitivo que não se verifica na paternidade/maternidade biológica. O desejo manifesto de ingressar no Sistema Nacional de Adoção, de participar de todas as etapas do processo de adoção, de aceitar o estágio de convivência, de dar continuidade buscando a sentença que constitui o vínculo familiar, torna a "devolução" para o Estado, um ato de abuso de direito, que deve ser rechaçado por meio dos institutos da responsabilidade civil.

"Devolver" significa "coisificar", o que corresponde a evidente violação dos direitos de personalidade daquele sujeito de direitos. E ainda que a compensação pecuniária possa não parecer a solução mais adequada, neste momento, ela é a única que se apresenta.

*Fernanda Orsi Baltrunas Doretto é graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (curso concluído em 1998). Advogada desde 1999. Sócia de Ghenis Viana, Teixeira Gobatto e Baltrunas Doretto Sociedade de Advogados. Possui Mestrado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2002), com a dissertação intitulada "Direito à Imagem" e Doutorado em Direito Civil, também pela Universidade de São Paulo (2008), com a tese "Dano Moral Coletivo". Atualmente é professora dos Cursos de Direito das seguintes instituições: Universidade Paulista (UNIP) e Universidade São Judas Tadeu, bem como é professora convidada da pós graduação da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro do IBDFAM, do IBERC, da AIDDP e Co-Diretora da Revista Brasileira de Direito Civil.

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1 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann. Responsabilidade civil nos casos de desistência de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 128.

2 Estágio de convivência, "Devolução" imotivada em processo de adoção de criança e adolescente e reparação por dano moral e/ou material. Disponível aqui. Acesso em 19/02/2021.

3 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann, 2021, pp. 129 e 130.

4 DORETTO, Fernanda Orsi Baltrunas. Responsabilidade civil nos processos de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 78.