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Os tribunais e a fixação da indenização por danos morais: reflexões a partir de um caso - Parte I

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Atualizado às 09:44

Os meios de divulgação do mundo jurídico noticiaram amplamente um julgamento no qual o Superior Tribunal de Justiça, numa situação considerada excepcional, majorou valor de indenização por danos morais fixado nas instâncias inferiores. Num caso bastante sensível (em 2007, um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta), o Superior fixou o quantum indenizatório, antes estabelecido em R$ 60.000,00, em R$ 300.000,00 (R$ 150.000,00 para esposa e R$ 150.000,00 para a filha da vítima).

O subscritor desde já registra (i) que concorda com a decisão de mérito - o aumento do valor indenizatório - pelas peculiaridades do caso e diante do conteúdo da decisão reformada; e, especialmente, (ii) o seu absoluto respeito a todos os envolvidos no caso, cuja dor e sofrimento são evidentes. A íntegra do acórdão do STJ não foi ainda publicada, mas o iter processual merece reflexão, com o único objetivo de colaboração para a melhoria da ciência do direito aplicada à prática forense.

O caso foi cheio de idas e vindas e chama a atenção. O 1º Grau havia fixado os danos morais em R$ 120.000,00 para cada uma das autoras da ação, além de outas condenações (danos materiais e pensionamento aos familiares da vítima). O tribunal estadual diminuiu esse valor, condenando o réu a pagar R$ 30.000,00 para cada uma delas. Com a decisão do Superior, a indenização total, no que interessa a estas reflexões (o valor do dano moral), diminuiu de R$ 240.000,00 para R$ 60.000,00 e depois aumentou para R$ 300.000,00.

No 1º Grau, o Juízo fixou a indenização em R$ 120.000,00 levando em conta "a gravidade do dano, a sua repercussão, as condições sociais e econômicas do ofendido e do ofensor, o grau de culpa e a notoriedade do lesado, além de constituir-se em um caráter punitivo, para que o seu ofensor não mais pratique o mesmo ato lesivo, sem, contudo, dar ensejo ao enriquecimento ilícito da vítima".

O Tribunal anulou a sentença por defeito de fundamentação: o Juízo anterior não teria apreciado a alegação - ou tese - de culpa concorrente (o comportamento da vítima teria tido influência no ato ilícito, o que deveria repercutir na condenação de responsabilidade civil).

Foi proferida nova sentença na qual o Juízo afirmou que "ademais, havendo ou não havendo traição, tal fato por si só, não confere o direito de se ceifar a vida de outrem ou muito menos serve como cláusula excludente de ilicitude". O valor indenizatório foi mantido (R$ 240.000,00 para as duas autoras, em iguais proporções).

As autoras recorreram para fazer incluir na condenação uma indenização para despesas com tratamento psicológico (é dizer: não impugnaram o valor da indenização pelo dano moral, demonstrando estarem satisfeitas com o valor). O réu apelou, insistindo na sua tese e pedindo a diminuição da indenização moral.

O Tribunal acolheu a tese do réu da ação, e, por conta de "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima" reduziu o valor da indenização para R$ 30.000,00 para cada uma das autoras.

As autoras (esposa e filha da vítima) passaram a disputar com o réu o valor da indenização e o caso aportou no STJ por Recursos Especiais de ambas as partes (os Especiais não foram admitidos, mas o STJ converteu os Agravos respectivos). As autoras pretendiam alterar o termo final do pensionamento e aumentar o valor da indenização; o réu pretendia diminuir ainda mais a indenização por danos morais. O julgamento dos recursos foi monocrático.

O Recurso Especial das autoras recebeu parcial provimento: foi alterado o acórdão estadual para fixar novo termo final da pensão devida à filha da vítima, mas, no que toca ao quantum indenizatório do dano moral, o Especial foi desprovido porque, entre outros fundamentos, a Súmula nº 7 impediria a análise da tese da culpa concorrente. A decisão consignou:

Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária

O Recurso Especial do réu foi desprovido, também com fundamento na Súmula n. 7 do STJ. A decisão, coerentemente, repetiu as palavras do julgamento que negara provimento ao Especial das autoras:

Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária.

As autoras agravaram, alegando não serem aplicáveis os óbices sumulares que, pela decisão, impediriam a revisão do quantum. Elas pediram o restabelecimento do valor  da indenização fixado no 1º Grau (R$ 120.000,00 para cada uma) ou, ao menos, metade desse valor (R$ 60.000,00 para cada uma). O réu interpôs dois agravos: em um, invocando a Súmula nº 7 para impedir o conhecimento do Especial das autoras, atacou a parte do decisum que alterara o termo final do pensionamento; em outro, atacou a decisão que desproveu seu pleito de maior diminuição no valor da indenização.

Os três agravos foram afetados para julgamento pelo colegiado. A turma, em julgamento acontecido em 26/10/2021 decidiu alterar o valor da indenização. Segundo notícia do Migalhas, no julgamento o relator ministro Marco Bellize registrou a gravidade do caso e majorou os danos morais para R$ 120.000,00 e a ministra Nancy Andrighi sugeriu subir o valor para R$ 150.000,00, pela gravidade do caso. O julgamento se deu por unanimidade:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO.

7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência.

8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30.000,00 (trinta mil reais) viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso.

A íntegra do acórdão não foi disponibilizada, mas o julgamento envolve alguns pontos sensíveis e importantes, tanto do ponto de vista da prestação jurisdicional como da reflexão doutrinária. Permito-me indicar alguns (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da Súmula nº 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação.

Tudo isso é importante para a reflexão teórica, tudo isso é importante para a efetividade do Direito, tudo isso é importante para a atuação do advogado na condução do caso. Com a publicação da íntegra do acórdão, os temas serão aprofundados na Parte II.

*Eroulths Cortiano Júnior é pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Advogado em Curitiba/PR.