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A importância da metodologia do dano corporal na perícia

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Atualizado às 07:38

Em respeito aos princípios que norteiam os fundamentos da hermenêutica, não se pode prescindir dos alicerces históricos para se compreender o presente e prenunciar o futuro. Nesse intuito, as reminiscências da Medicina Legal surpreendem pela habitualidade com que se tratava a questão da reparação do dano corporal, já nos primórdios da história da humanidade.

O objetivo desse trabalho é fazer uma reflexão sobre a relevância das regras de unificação de parâmetros de avaliação do dano à pessoa. Mas, por enquanto, são iniciativas puramente doutrinais, sem qualquer escopo restritivo.

As doenças e as dores nasceram juntamente com o homem. Por isso, desde seu primeiro momento de racionalidade os tratou de predispor os meios necessários para combater ambos os males1. Desde os primórdios preveem-se sanções para os casos de culpa relativa ao dano à pessoa.

As primeiras constatações que temos de sua origem histórica procede da Tábua de Nippur, chamada também de Lei de Ur Namur, primeiro barema também chamado de tabela de reparação de dano corporal que tem uma data de aproximadamente 2.500 a 3.000 anos a.C. Durante o período Babilônico, o Código de Hammurabi2 passou a reger todos os aspectos da vida civil.

Atualmente, os profissionais médicos em geral, quando se referem a lesões ou danos pessoais, do ponto de vista médico/odontológico, consideram isso como qualquer alteração anatômica ou funcional do corpo, que devem diagnosticar, tratar, reabilitar e prevenir. No entanto, a lesão não deve ser tratada somente do ponto de vista estritamente da área da saúde, mas do ponto de vista médico-legal, assim, pertencendo ao direito.

O mosaico dos sistemas legais é desconcertante e nossa sociedade cada vez mais se valendo dos seguros, ainda não conseguiu montar os fragmentos dispersos para construir um direito unificado e global de danos pessoais. Ou pelo menos um estudo mais abrangente para tentar solucionar as incoerências e as lacunas para tentar melhor remediá-las3.

A responsabilidade civil sempre foi entendida como um mecanismo de transferência de danos de um agente para uma vítima em decorrência de um comportamento ilícito culposo. O princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que muitas vezes se converte em utopia, restando ao direito trabalhar com possibilidades aproximativas ou conjecturais4.

E pensando igual ao ilustre Professor Nelson Rosenvald, ao invés de uma ideia de uma reparação integral vamos pensar em uma melhor reparação da vítima. Mas para que isso aconteça, precisamos de remédios compensatórios para aquele caso em concreto5.

Estes danos à pessoa podem se definir como destruição, inutilização ou deterioração que sofre a pessoa em relação a seu estado anterior, tanto em seus bens extrapatrimoniais como patrimoniais, ou também como o conjunto de consequências que tem sobre a pessoa a lesão ou afecção de sua integridade psicofísica, que pode ser de caráter econômico, moral, familiar, penal, laboral, dentre outros6.

A perícia médico-legal comporta enfoques próprios a cada interesse de ressarcir. Assim, ensejará visões diferentes, numa mesma lesão, na dependência do procedimento judicial cível, trabalhista ou penal. Procurará fornecer aos operadores do Direito os elementos técnicos referentes ao ramo jurídico perquirido.

Oliveira Sá (1992) ao referir-se ao posicionamento do Instituto de Medicina Legal de Coimbra comenta sobre a experiência portuguesa:7.

O teor dos quesitos, mesmo quando adequados e responsáveis, que as preocupações dos quesitantes nem sempre abrangem todos os parâmetros possíveis de expressão e valorização médico-legal do dano.

Mas independentemente dessa limitação de base a metodologia é a perfeita negação duma verdadeira e correcta peritagem médico-legal - é a peritagem espartilhada, por chavetas, do sim ou não, aberta à resposta seca, em jeito de atestado. Com a agravante de serem possíveis quesitos perfeitamente desajustados ingénua ou intencionalmente, impondo forçosamente uma dada resposta que desinserida do contexto doutrinário que a legitima pode ser explorada para lhe atribuir um significado que não é correcto. Com a agravante suplementar de poderem aparentar dissonância e inconsequência pericial as respostas a quesitos diferentes (ou semelhantes) na "guerra" de quesitos entre o réu e a vítima. Bem ao contrário a verdadeira e necessária peritagem médico-legal supõe integração e globalidade quer no exame quer no relatório. Este tem que ser mesmo um relatório médico-legal, isto é, completo e com justificação de todas as posições e opções assumidas conclusivamente. (p. 69-70).

Não esquecendo que a reparação do dano corporal implica uma dupla abordagem médica e jurídica, e que é necessária à colaboração do perito e do juiz, deve-se vislumbrar as informações que o primeiro pode dar ao segundo para esclarecer sobre a importância e extensão do prejuízo reparável, para esse autor os parâmetros de valorização médico-legal do direito civil são os danos temporários e os danos permanentes8, compatível com nosso ordenamento jurídico, nos termos dos arts. 944, 949, 450 e 951 do CC/2015.

As perícias, por razões de equidade e justiça, deverão obedecer a parâmetros uniformes de apreciação e valoração, independentemente do perito em causa e do local onde ocorre a avaliação, por isso é necessária uma harmonização dos critérios de avaliação do dano corporal para atender esse objetivo de uniformização. Por essa razão, tem-se vindo a observar crescente interesse no estabelecimento de parâmetros técnico-científicos e incessante procura de métodos suficientemente objetivos para assegurar a unificação possível das avaliações e, consequentemente, das compensações.

Béjui-Hugues e Bessières-Roques informam que na França no final da década de 1950 os peritos faziam menção a diversos baremas previstos na legislação de acidentes de trabalho. Esse panorama se modificou em 1959 com uma coletânea de decisões que enfatizou o caráter definitivo da avalição no direito civil. A avaliação da sequela no direito civil leva em consideração os resultados e a afetação funcional da lesão, independente da condição social. Já no direito do trabalho, são levados em consideração a afetação da capacidade profissional e a diminuição do desempenho do trabalhador. A partir desse estudo a avaliação dos danos no direito do trabalho distancia-se dos parâmetros de avaliação do direito civil. Em 1959, O "Concour Médical" publica um "Barème indicatif des invalidités en droit commum", uma espécie de coleções de decisões escrita pelo Dr. Pierre Arrivot9.

Na busca de uma evolução convergente, foi adotado pelo Comitê de ministros do Conselho da Europa em 14 de março de 1975 a Resolução 75-7 (relativa à reparação dos danos em casos de lesões corporais e morte). A evolução comum dessa mentalidade se manifestou nos inúmeros simpósios sobre a reparação dos danos pessoais, que buscavam a convergência de uma metodologia de avaliação de danos aplicáveis a todos. Essa Resolução Conjunta tenta remediar as disparidades nos sistemas nacionais de reparação de danos pessoais. Essa Resolução é marcada pela distinção do que chamamos hoje de danos patrimoniais e extrapatrimoniais10.

  O "Guide barème européen d'évaluation des atteintes à l'intégrité physique et psychique", foi desenhado por um grupo de trabalho formado por peritos médicos de seis países da União Europeia com maior tradição no uso dos baremas para a indenização dos danos corporais; foram os seguintes: da Alemanha, Walter Streck; da Bélgica, Pierre Lucas; da Espanha, César Borobia; da França, Hélène Béjui-Hugues; da Itália, Marino Bargagna e de Portugal Duarte Nuno Vieira. A apresentação da Recomendação se realizou em Trèves - Alemanha em junho de 200011.

A definição Déficit Funcional Permanente, ou Alteração da Integridade Psicofísica que resultou do consenso europeu no Congresso de Trèves e atualizado em junho de 2020 é o seguinte:

Redução definitiva do potencial físico, psico-sensorial ou intelectual resultante de uma alteração da integridade anátomo-fisiológica: medicamente constatável e como tal apreciável por um exame clínico apropriado, completado pelo estudo dos exames complementares realizados; à qual se juntam os fenômenos dolorosos e as repercussões psicológicas normalmente associadas à alteração sequelar descrita, assim como as consequências na vida diária habitualmente e objetivamente associadas a essa alteração. (tradução nossa)12.

O objetivo da publicação desse barema é tratar de harmonizar dentro de um sistema de indenização de danos corporais ocasionados por acidentes de circulação, as sequelas derivadas desses e também para os casos de enfermidades. Um objetivo secundário é que pode ser utilizado na responsabilidade civil pelos profissionais sanitários.

A finalidade desta estimativa numérica é a reparação dos prejuízos não econômicos utilizando uma convenção que tem por base princípios organizados e lapidados pelas decisões judiciais e pela doutrina, considerando ainda a cultura e os costumes regionais distintos para que ocorra uma adequada harmonização, fazendo com que as noções sejam aceitas por todos13.

Os baremas visam mostrar uma descrição minuciosa das múltiplas situações, frequentemente complexas, que as lesões podem parecer. Esta característica é comum entre os baremas, porque sua utilização visa confrontar os déficits funcionais e as sequelas, com as porcentagens recomendadas, para em seguida se optar por um valor que se acredite ser justo, de acordo com a situação individual do caso.

Em 2010 a Commission de Réflexion sur l'Évaluation et l'Indemnisation du Dommage Corporel (COREIDOC) publicou orientações sobre "La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe, bilan 2010" esse modelo, redigido em 2010 e atualizado em 2019, inclui várias proposições, entre as quais uma nomenclatura dos parâmetros de danos indenizáveis, e representa a conceitualização das decisões atuais. Confirma, ainda, a distinção entre danos patrimoniais e extrapatrimoniais, temporários e permanentes14.

A meta do mencionado relatório é a unificação da nomenclatura e a reparação do dano corporal, favorecendo um tratamento igualitário das vítimas e instaurando a segurança jurídica.

Pierre Lucas disse em uma conferência que os juristas definiam os conceitos e os peritos imputavam, objetivavam e quantificavam, sem ultrapassar os limites de suas competências. Ao perito cabe quantificar os danos da pessoa humana que são constatáveis ou explicáveis pela medicina. O perito explica e quantifica aquilo que ele constata e mede, permanecendo técnico, abstendo-se de sua íntima convicção. Ele não quantifica o que não mede, apenas diz o que é ou não admissível pela medicina. E nem sempre há sempre uma perfeita adequação entre o quadro jurídico e a complexidade do ser humano. A função do perito é a quantificação dos danos da pessoa humana constatáveis ou explicáveis pela medicina15.

É fundamental que os peritos e/ou assistentes técnicos detenham informações suficientes para manter a uniformidade de condutas na prática pericial, adotando uma metodologia que garanta que cada uma das lesões que afetam corpo humano seja valorada e quantificada de forma equivalente.

Portanto, o barema espanhol, francês, português, italiano, dentre outros estudados pela comunidade europeia e em consonância com nossa legislação, no que tange a quantificação do dano corporal, é a maneira mais justa de uma melhor reparação da vítima, permanecendo o mais fiel possível aos elementos verificáveis e que personalizam o dano, sem fazer adição de subjetividades do ferido, do perito e do julgador. Seu uso deve acompanhar, obrigatoriamente, uma explicação à parte.

Mas, um barema é somente uma ferramenta de medida, permitindo ao perito de se referenciar, mas ele não deverá ser, em nenhum caso, um manual de patologia sequelar, nem um compêndio de metodologia de avaliação. Ele não pode esconder a insuficiência de competência do perito, qualquer que seja a situação e a origem de sua missão.

Os parâmetros de avaliação pericial não necessitam estar baseados em legislação positivada, mas sim, basear-se onde estas matérias já levam mais um século de intensa reflexão doutrinária, de concretização prática e de contínua evolução científica e metodológica.

A prova pericial ao quantificar o dano deve estar sustentada por conceitos científicos ex legis que são atualizados conforme a evolução da sociedade.

__________

1 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. rev. e atual. à luz do novo Código Civil, com acréscimo doutrinário e jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2003. cap.2, p. 45-53.

2 BOUZON, E. O código de Hamurabi. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1980. cap.1, p. 7-17.

3 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012. p. 43.

4 RESENDE, Roberta. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. Migalhas, [S. l.], n. 5.434, 15 set. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022.

5 CONCEITOS fundamentais de Direito Civil: responsabilidade civil. Por: Nelson Rosenvald. Belo Horizonte: Nelson Rosenvald, 23 set. 2020. 1 vídeo (54 min.). Disponível aqui. Acesso em: 12 set. 2022.

6 HERNANDEZ CUETO, Claudio. Valoración médica del daño corporal. Barcelona: Ed Masson, 2001.

7 OLIVEIRA SÁ, Fernando Manuel de. Clínica médico-legal da reparação do dano corporal em Direito Civil. Coimbra: APADAC, 1992.

8 ROUSSEAU, Claude; FOURNIER, Claude. Précis d'évaluation du dommage corporel en droit commun. Paris: Association pour l'Etude de la Réparation du Dommage Corporel, 1989.

9 BÉJUI-HUGUES, Hélène; BESSIÉRES-ROQUES, Isabelle. Précis d'évaluation du dommage corporel. 4. ed. Paris: L'argus de L'assurance, 2009. 

10 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Le droit du dommage corporel et la personne humaine. In: LAMBERT-FAIVRE, Yvonne; PORCHY-SIMON, Stéphanie. Droit du dommage corporel: systèmes d'indemnisation. 7. ed. Paris: Dalloz, 2012; p. 41. 

11 BOROBIA, César. Valoración del daño corporal: legislación, metodología y prueba pericial médica. Barcelona: Masson, 2006. 520 p. 

12 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. De I'atteint à I'intégrité physique et psychque (AIPP) au déficit fontionnel permanente (DFP). Paris: AREDOC, jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 2022 ago. 2022.

13 BOUCHARDET, Fernanda Capurucho Horta. A valoração do dano corporal nas reclamações de responsabilidade extrapatrimonial. 59f. Monografia (Graduação em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2022.

14 ASSOCIATION POUR L'ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL. La nomenclature des postes de préjudice de la victime directe Bilan 2010. Paris: AREDOC, Dec. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22 ago. 2022.

15 LUCAS, Pierre. Problèmes connexes à l'harmonisation européenne de l'évaluation des attentes à la personne humaine. Avellino: Istituto di Cultura Germânica, 2004.