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Responsabilidade civil dos laboratórios por resultados equivocados

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Atualizado às 07:33

O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, no dia 18 de maio de 2022, decidiu de forma monocrática pelo não provimento do AREsp 2.087.249-RS1, mantendo incólume a decisão do TJRS que não considerou como defeituosa a prestação do serviço do laboratório que forneceu resultado equivocado para Hepatite C, em razão da existência de advertência para complementação do exame.

Constou na fundamentação da decisão que a inserção de informação clara e precisa no exame quanto à necessidade de confirmação do resultado obtido por intermédio de outros exames, especialmente pelo diagnóstico médico, impede a configuração do defeito, uma vez que os resultados obtidos não são "conclusivos".

Com o não provimento do AREsp foi interposto AgInt no Agravo em Recurso Especial 2.087.249-RS, que foi distribuído à Relatoria do Ministro Antônio Carlos de Ferreira que, igualmente, manteve a decisão monocrática recorrida, a qual foi acompanhada em unanimidade pelos demais Ministros da Quarta Turma, no dia 29 de agosto de 2022.

A nova decisão do STJ demonstra o acolhimento ao entendimento antigo do TJRS, no sentido de não admitir a existência de defeito em exame laboratorial equivocado, quando constar advertência expressa para a confirmação do resultado por intermédio de outros exames.

Esse novo entendimento da Quarta Turma é contraposto ao entendimento que prevalece há mais de vinte anos no STJ, capitaneado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar2, quanto à configuração do defeito nos resultados laboratoriais equivocados, ou seja, o mero equívoco no resultado configura defeito na prestação de serviços do laboratório de análises clínicas, mas isso não significa o dever de indenizar, pois exige a presença dos pressupostos.

A divergência de entendimentos quanto à configuração do defeito e consequente falha na prestação dos serviços é justamente o que se pretende discutir no presente artigo.

É pacífico o entendimento do STJ sobre a relação contratual de resultado e de consumo entre o laboratório e o consumidor; a incidência da responsabilidade subjetiva quanto a apuração de possível responsabilidade do médico Patologista que laudar o exame clínico; incidência da responsabilidade objetiva do laboratório por danos causados aos consumidores em qualquer fase da prestação dos serviços, com a aplicação do artigo 14 do CDC3; bem como a possibilidade de indenização por dano moral, desde que efetivamente comprovado o dano pelo consumidor4.

O parâmetro legal é o CDC e a segurança do serviço é determinante na configuração do defeito, como estabelece o artigo art. 14, § 1°5: "o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido" (grifos nossos).

Contudo, salvo comprovação por parte do prestador de serviços quanto à inexistência de defeito, responsabilidade exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 14, § 3°), o laboratório será responsabilizado objetivamente quando configurar um defeito, haja vista tratar-se de inversão ope legis, como bem destacou o Ministro Marco Buzzi, na decisão monocrática proferida em abril de 2022, no Recurso Especial 1.979.899 - SP6.

Por outro lado, a falha pela ausência ou deficiência da informação transmitida ao consumidor em qualquer uma das fases contratuais, também viola a segurança do serviço prestado e configura um defeito nos termos do que dispõe o CDC, no art. 14: "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos" (grifos nossos).

Dessa forma, quando o laboratório não adverte o consumidor no exame quanto à necessidade de complementação de outros exames e análise médica para confirmação do resultado, ou mesmo não especifica qual a metodologia utilizada para obtenção do resultado apresentado no laudo, teremos uma hipótese de insegurança ao consumidor, pela ausência ou deficiência das informações, configurando igualmente o defeito na prestação dos serviços do laboratório.

Obviamente que a informação correta e precisa é imprescindível para garantir a segurança do consumidor quanto ao serviço laboratorial prestado. No entanto, não se trata de uma excludente da responsabilidade, mas mera atenuante, como explicava o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao asseverar no seu julgado: "[...] ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada".

Como consta no CDC, a informação é uma das formas de configuração do defeito e não uma excludente da responsabilidade objetiva do laboratório. Portanto, caso esse entendimento permaneça, os prestadores de serviço laboratorial poderão inserir uma cláusula padrão nos laudos, como subterfúgio para violar uma obrigação prevista em lei (art. 14, CDC) e unânime no STJ, até então.

No mais, os erros em exames laboratoriais serão ainda mais tolerados após a fundamentação constante do novo julgado, que consignou: "a toda evide^ncia, a ressalva constante do laudo, sugerindo a realizac¸a~o de exame confirmato'rio, permite que se conclua que resultados falso positivos podem ocorrer com certa freque^ncia em exames dessa natureza" (grifos nossos).

A ressalva de eventual necessidade de exame complementar não pode ser justificativa para escusa de "erro grosseiro" (REsp 1.979.899 SP)7. Não podemos confundir complementação de exames e análise diagnóstica pelo médico com erro de resultado.

O resultado de exames laboratoriais ou de imagem equivocado é antigo na sociedade e, mesmo com todo o avanço da tecnologia, ainda nos deparamos com constantes resultados errados ou divergentes, que são atribuídos pelos prestadores dos serviços aos equipamentos, à metodologia, à falta de conclusividade dos exames, entre outros.

Nesse sentido, o Presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial no biênio 2018/2019, analisou os exames laboratoriais e erros de diagnóstico em 2017, demonstrando o importante papel dos exames laboratoriais no diagnóstico dos pacientes, por corresponderem a 70% dos dados utilizados pelos médicos. Entretanto, mesmo com esse grau de importância, destacou que muitos estudos norte-americanos revelaram que 13,6% dos casos de erros nos exames decorreram da falha na interpretação e 14,7% estão relacionados a falha nos processos de diagnóstico.

Ao mesmo tempo, concluiu, com base no relatório do Institute of Medicine (IOM): "[...] o sistema de trabalho e a cultura existentes na assistência à saúde não favorecem o processo de diagnóstico, que é tido como resultante de um esforço colaborativo e envolve cooperação entre membros de uma mesma equipe e entre diferentes profissionais, podendo ocorrer em consequência de erro humano ou de erro sistêmico"8, portanto, entendeu que é necessária uma cultura organizacional de cooperação entre Radiologistas e Patologistas, que valorize a discussão, visando reduzir o índice de erro nos exames laboratoriais.  

Entretanto, independentemente da causa do resultado de um exame laboratorial ou de imagem equivocado, quando isso ocorre, claramente temos uma falha na prestação desse serviço, pouco importando para o consumidor o que foi determinante para a ocorrência desse fato.

Por outro lado, mesmo que se tenha uma falha na prestação dos serviços, isso por si só não tem o condão de configurar um defeito, nos termos do decidido pelo STJ e, muito menos de desencadear o dever de indenizar, como erroneamente nos deparamos em demandas, sem o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, especialmente o dano, como bem analisou o Ministro Raul Araújo, no Recurso Especial 1.556.253-RJ9.

Como regra, para existir o dever de indenizar dos laboratórios por resultados equivocados, será necessário o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil objetiva, ou seja, conduta defeituosa, dano e nexo de causalidade. Diante de todo o contextualizado, resta a análise do dano efetivo e real capaz de desencadear o dever de indenizar.

Nesse contexto, temos que a lesão poderá ser patrimonial ou extrapatrimonial, que se apresentará através de um tratamento, uma hospitalização, um prolongamento da hospitalização ou mesmo o sofrimento brutal ocasionado pelo resultado equivocado ou pela forma como a informação foi transmitida, especialmente na hipótese de doenças graves, entre outros.

No caso em comento, relativo ao AREsp 2.087.249-RS, constou na fundamentação: "é imperioso enfatizar, ainda, que a demandante na~o comprovou ter sofrido qualquer prejui´zo advindo do resultado laboratorial, o^nus que lhe cabia, nos termos do artigo 373, I, do CPC, e do qual na~o se desincumbiu a contento. Nesse cena´rio, na~o havendo provas do suposto dano moral sofrido, tampouco de ato ili´cito cometido pela parte demandada, consubstanciado na falha na prestac¸a~o do servic¸o laboratorial, na~o ha´ como acolher o pleito autoral de indenizac¸a~o por danos morais".

Efetivamente, no caso analisado, a parte consumidora não sofreu qualquer dano moral. Isso porque, imediatamente após o recebimento do resultado falso positivo de Hepatite C, procurou a sua médica, que solicitou a realização de novo exame, tendo em vista a inexistência de sintomas compatíveis com a doença diagnosticada no exame laboratorial. Com isso, pouco tempo após o exame falso positivo, obteve o resultado correto, que indicou a inexistência de doença.

Em razão de todo o exposto, se conclui que a consumidora não realizou nenhum tratamento e não teve qualquer prejuízo decorrente do laudo laboratorial errado. Contudo, restou configurado o defeito no serviço, em que pese a inexistência de dano, reforçando o entendimento consolidado do STJ.  

__________

1 STJ, AREsp. 2.087.249-RS, Min. Humberto Martins. J. 18.05.22. DJe.18.05.22. Disponível aqui.

2 STJ, REsp. 401.592- DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar. J. 16.05.2002. DJe.02.09.2002. RESPONSABILIDADE CIVIL. Laborato´rio de ana´lises cli´nicas. HIV. Responsabilidade do laborato´rio que fornece laudo positivo de HIV, repetido e confirmado, ainda que com a ressalva de que poderia ser necessa´rio exame complementar. Essa informac¸a~o e´ importante e reduz a responsabilizac¸a~o do laborato´rio, mas na~o a exclui totalmente, visto que houve defeito no fornecimento do servic¸o, com exame repetido e confirmado, causa de sofrimento a que a paciente na~o estava obrigada. Ale´m disso, o laborato´rio assumiu a obrigac¸a~o de realizar exame com resultado veraz, o que na~o aconteceu, pois os realizados depois em outros laborato´rios foram todos negativos. Recurso conhecido e provido. Disponível aqui. 

STJ, REsp 1.653.134/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3 T, J. 17.10.2017, DJe 23.10.2017; REsp 1.700.827/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 05.11.2019, DJe 08.11.2019; REsp 1.426.349/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 11.12.2018, DJe 02.02.2019; REsp 1.386.129/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3 T, J. 03.10.2017, DJe 13.10.2017; REsp 1.071.969/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4 T, J. 02.02.2010, DJe 01.03.2010; 

4 STJ, AREsp 1.185.944/GO, Decisão monocrática da Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, J. 04.12.2017, DJe 04.12.2017 

5 BRASIL. Lei 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido.

6 STJ, REsp. 1.979.899-SP, Rel. Min. Marco Buzzi. J.04.04.22. DJe.04.04.2022. Disponível aqui.

7 SHCOLNIK, Wilson. Exames laboratoriais e erros diagnósticos. Publicado em 21.11.2017, Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial. Disponível aqui.  Acesso em: 18.09.22.    

8 STJ, REsp. 1.556.253-RJ, Min. Raul Araújo. J.24.09.19. DJe.24.09.19. Disponível aqui.

CVS - SP. Portaria n. 13, de 04 de novembro de 2005, do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo,  que aprova NORMA TE´CNICA que trata das condic¸o~es de funcionamento dos Laborato´rios de Ana´lises e Pesquisas Cli´nicas, Patologia Cli´nica e Conge^neres, dos Postos de Coleta Descentralizados aos mesmos vinculados, regulamenta os procedimentos de coleta de material humano realizados nos domici´lios dos cidada~os, disciplina o transporte de material humano e da´ outras provide^ncias. Disponível aqui.