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Antes e depois x direito à imagem: análise da divulgação de fotos de pacientes por profissionais da medicina e da odontologia

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Atualizado às 09:14

1 Introdução

Nos últimos anos tem-se visto um aumento na busca por tratamentos faciais e corporais. Ao mesmo tempo, observa-se que os profissionais da saúde, notadamente, para fins deste artigo, da medicina e da odontologia, têm se dedicado bastante a métodos e técnicas de harmonização facial e corporal, seja para fins estéticos ou por motivos de saúde ou funcionais.

Em tempos de hiperexposição nas redes sociais, em que se fala em tom de brincadeira que "só vale se postar", médicos e dentistas demonstram anseios pelo direito de divulgar resultados de tratamentos nas mídias sociais como forma de publicizar os procedimentos e técnicas que colocam a disposição dos pacientes, deparando-se com conflitos éticos e legais no que concerne à violação de direitos da personalidade e suposta mercantilização da profissão. Ambos os conselhos se manifestaram a respeito.

2 O atual estado da arte sobre divulgação de fotos de pacientes no Conselho Federal de Medicina

O Conselho Federal de Medicina (CFM) enfrentou a matéria na resolução 2.126/15, que altera a resolução 1.974/2011, e estabelece critérios para a propaganda em medicina. Esta última norma, inclusive, dispõe, acertadamente, em seu texto que a publicidade médica deve ter fins educativos, diferenciando-se de anúncios de produtos e práticas comerciais. 

Com efeito, a vida e o corpo humanos não são mercadorias, assim como não devem ser mercantilizados os cuidados com a pessoa. Reside aí a diferença entre se falar em "preço" e "valor" quando se faz menção ao ser humano na concepção kantiana de dignidade1.

A res. 2.126/15 estabelece, na exposição de motivos, preocupação com o que chamou de "mudança avassaladora" ocasionada pelos avanços tecnológicos das mídias sociais, que passaram a permitir postagens imediatas, muitas vezes feitas por impulso, sem a necessária reflexão sobre abordagens e consequências, e que vieram a ocasionar "uma avalanche de demandas" nos conselhos ético-profissionais da área médica. Desta feita, considerando, inclusive, a proteção constitucional à vida privada, honra, e imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88), alterou o art. 13 da res. 1.974/11 para inserir a proibição à publicação de imagens de "antes e depois" de procedimentos.

Mais do que isso, para garantir que os fins estabelecidos nas normas de ética médica sejam cumpridos, estabelece que a publicação reiterada de imagens de "antes e depois" por pacientes e terceiros, bem como elogios repetidos com frequência devem ser investigados pelos Conselhos Regionais de Medicina. A regra é clara no sentido de trazer um tratamento voltado a impossibilitar que a norma seja burlada de maneira indireta.

Em que pese as não raras publicações de resultados de antes e depois de procedimentos que se pode ver nas redes sociais, e eventuais decisões favoráveis à prática de publicidade por médicos em juízo de primeira instância, o CFM tem logrado êxito e reverter decisões desse tipo em segunda instância e segue firme na defesa das normas éticas. Todavia, o tema está longe de ser pacificado e, não obstante nossa opinião em sentido contrário, considerando o risco que pode representar a mercantilização da saúde e uma eventual corrida em busca de resultados prometidos por profissionais2, é possível que haja mudanças de entendimento, a exemplo do que aconteceu no Conselho Federal de Odontologia.

3 Análise da Resolução 196/2019 do Conselho Federal de Odontologia

O Conselho Federal de Odontologia (CFO), historicamente, dispunha de tratamento similar ao aplicado pelo Conselho Federal de Medicina no que diz respeito à publicidade. Do mesmo modo que o CFM, o CFO também rechaça a mercantilização da profissão e traz disciplina ética contrária a ver o paciente como "fatia de mercado". O ser humano é muito mais do que isso.

No entanto, recentemente, o CFO, por meio da Resolução 196/2019, adotou posicionamento mais moderado a respeito da divulgação de fotos e resultados de tratamentos odontológicos nas redes sociais por profissionais da odontologia.

Com efeito, a norma de 2019 considera o destaque que as mídias sociais têm conquistado como canais de divulgação dos temas mais diversos, dentre os quais se incluem temas e trabalhos odontológicos. Diante disso, considera imperiosa a "necessidade de se regulamentar os critérios de uso de expressões, imagens e outras formas que impliquem na divulgação da odontologia, dos cirurgiões-dentistas e dos tratamentos odontológicos".

Observa-se, portanto, que diante da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de evitar a utilização das redes sociais para divulgar imagens de diagnósticos e resultados, o CFO preferiu atender aos apelos da classe e disciplinar a matéria. Apesar das críticas, pertinentes, à época, no sentido de que a Resolução 196/2019 seria incompatível com o Código de Ética Odontológica, que só permite a publicação de imagens de "antes e depois" para fins acadêmicos, não se pretende analisar esta abordagem no presente artigo. Pretende-se, aqui, analisar especificamente a tutela de direitos da personalidade na norma em comento.

A esse respeito, mister ressaltar que a redação da Res. 196/2019 do CFO, ainda na parte dos "considerandos", reconhece que o direito à imagem é tutelado no ordenamento jurídico brasileiro com o status de direito fundamental pela Constituição Federal, e também pelo art. 20 do Código Civil, que disciplina a necessidade de autorização para divulgação da imagem de terceiros.

Percebe-se, pois, que apesar do risco de mercantilização da profissão, o CFO permite a divulgação de autorretratos e de imagens de "antes e depois", mas desde que haja prévia e expressa autorização do paciente no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme dispõe os arts. 1º e 2º:

Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.

[...]

Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.

(Grifos nossos)

Cumpre ressaltar que, conforme disciplina o artigo 3º da mesma resolução, a exceção de publicações científicas com a devida autorização, é vedada a publicação de fotos e vídeos do transcurso ou realização dos procedimentos odontológicos.

 Ocorre que, apesar da Resolução do CFO ser muito clara sobre a necessidade de autorização prévia e expressa do paciente no TCLE, aparentemente muitos profissionais estão desconsiderando a segunda parte dos dispositivos supracitados (arts. 1º e 2º), além de desconsiderar completamente o artigo 3º da Resolução, posto que não são raras as ocasiões em que se observa divulgação de fotos e vídeos produzidos durante a realização de procedimentos.

4 A proteção do direito à imagem no ordenamento jurídico brasileiro

É compreensível que o profissional se sinta envaidecido ou orgulhoso ao final de um trabalho bem sucedido, mister quando se traz satisfação pessoal ou maior e melhor qualidade de vida ao paciente, quando o procedimento, para além de resultados estéticos, tinha por objetivo corrigir distúrbios funcionais, como dificuldade de mastigação ou alterações na fala corrigidos após tratamentos ortodônticos e cirurgias ortognáticas. Todavia, por mais que o profissional se sinta "autor" daquele corpo ou, no caso dos cirurgiões dentistas, daquela face, não é de uma pintura ou escultura que se está a falar.

O médico ou dentista não é autor de uma obra de arte sobre a qual detém os direitos autorais e, consequentemente, possibilidade de divulgar os resultados conforme sua vontade. Trata-se, o paciente, de uma pessoa, de um ser humano com valores ontológicos e cuja existência, em sua completude, é digna de respeito. Os direitos da personalidade que estão postos em tela, portanto, são outros, dizem respeito aos direitos de imagem daquele(a) que está se submetendo ao tratamento médico ou odontológico.

Na lição do professor Paulo Lôbo, o direito à imagem se trata da reprodução da figura humana no todo ou em parte, cuja exposição não autorizada é repelida3. De fato, a Constituição Federal de 1988 tutela o direito à imagem na qualidade de direito fundamental, no art. 5º, X, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

(Grifos Nossos)

Cumpre salientar, ainda, que o Código Civil atual cuidou dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21, tratando especificamente do direito à imagem no art. 20, onde resta claro que a divulgação ou reprodução da imagem de terceiros só é permitida se autorizada. Fala-se aqui da imagem externa da pessoa (retrato ou efígie), uma vez que a imagem atributo é tutelada pela garantia constitucional de proteção à honra.

A partir da análise dos dispositivos da CF/88 e do Código Civil de 2002, compreende-se que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a divulgação não autorizada de fotos do paciente é passível de indenização por dano moral.

Concorda-se com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald quando eles afirmam que decorre o dano moral da "simples e objetiva violação a direito da personalidade"4. Com efeito, a Constituição brasileira de 1988 tratou de ambos os institutos em conjunto no art. 5º, inciso X. Deve-se concluir, com Paulo Lôbo, que a "interação não é ocasional, mas necessária" (LÔBO, 2001, pág. 79). Observa-se que os "direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, possuem a mesma natureza do dano moral, também não patrimonial"5.

Corroborando com este entendimento, a súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça disciplina que: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais".

5 Conclusões

Em suma, eventuais permissões de divulgação de imagens de pacientes por normas éticas de conselhos profissionais só podem acontecer em consonância com o que disciplina a lei (Código Civil) e a Constituição Federal. Eventual permissão de divulgação de imagens de diagnóstico e resultado pelo CFM, notadamente fotos de "antes e depois", devem se adequar à proteção legal e constitucional, respeitando o direito de escolha do paciente, que deve autorizar expressamente em TCLE.

A resolução 196/19 do CFO está adequada ao que diz o texto Constitucional e o CC/2002, uma vez que a divulgação de "antes e depois" só é permitida mediante autorização prévia do paciente em TCLE. Os profissionais, portanto, devem se adequar à resolução caso queiram utilizar fotos de pacientes para divulgar seus métodos e técnicas nas redes sociais, sendo a divulgação não autorizada passível de indenização por dano moral decorrente de violação de direito à imagem.

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*Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa é doutora e mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, com realização de estágio doutoral no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal da Paraíba. Associada do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Presidente do Instituto Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil Constitucional (IDCC). Advogada. Conselheira Estadual da OAB-PB. Secretária-Geral da Rede de Advogadas em Sororidade da OAB-PB.

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1 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.

2 O perigo existe, sobretudo, em relação ao fato de que produto ou serviço prestado é realizado em um ser humano. O resultado é incerto, posto que o corpo humano não é uma ciência exata e nem sempre os resultados de uma pessoa se replicarão ipsis literis em outra.

3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

4 Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241

5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80.

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Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80.