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Vulnerabilidade estrutural, Consumer Theories of Harm e Dark Patterns

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Atualizado às 08:38

O reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo (CDC, art. 4º, I) e fator diferenciador da legislação brasileira no âmbito do direito comparado. Trata-se de fundamento dogmático das relações de consumo, premissa que tanto justifica quanto orienta e conforma a proteção dos consumidores a partir da sua base constitucional1 de valorização da pessoa2 e suas normas de ordem pública e interesse social estabelecidas em favor do consumidor. A primeira inovação nesse tema é que com a atualização trazida pela Lei 14.181/2021, uma gradação da vulnerabilidade do consumidor, já reconhecida pela doutrina3, foi incorporada à legislação (a exemplo do disposto no CDC, art. 54-C, IV), preferindo-se a expressão proposta por Bruno Miragem, vulnerabilidade agravada.

No contexto do Mercosul, incorporou-se a noção de hipervulnerabidade de algumas categorias de consumidores. O bloco consagrou um importante passo na defesa do consumidor com a aprovação da Resolução 11/2021, sobre a proteção ao consumidor hipervulnerável, que resolve: "Art. 1° - Considerar como consumidores em situação de hipervulnerabilidade as pessoas físicas com vulnerabilidade agravada, desfavorecidos ou em desvantagem por razão de sua idade, estado físico ou mental, ou circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais que provoquem especiais dificuldades para exercer com plenitude seus direitos como consumidores no ato concreto de consumo que realizarem. A presunção de hipervulnerabilidade não é absoluta e deve ser atendida no caso concreto, em função das circunstâncias da pessoa, tempo e local."4-5 Cada Estado deverá adotar internamente de maneira gradual medidas tendentes a, por exemplo, implementar políticas de orientação, assessoramento, assistência e acompanhamento aos consumidores hipervulneráveis quanto às reclamações no âmbito das relações de consumo, proteger contra publicidade e ofertas enganosas ou abusivas e promover a proteção de dados e intimidade desses consumidores, dentre outras. Instrumentos e mecanismos que reassegurem o equilíbrio nas relações de consumo são imperiosos e consistem, por exemplo, no acesso a meios adequados de resolução de litígios e de facilitação da instrução probatória em favor do consumidor.6 A efetividade da tutela de direitos perpassa a identificação de fatores socioeconômicos que interferem nas relações humanas.

A vulnerabilidade7 não é uma característica reservada aos consumidores, mas um fenômeno social, presente em diversas esferas. Um de seus efeitos é o regime de dependência e a erosão da autonomia. Esses temas são estudados por Martha Fineman, para quem  a vulnerabilidade deve resultar em medidas responsivas do Estado.8 A igualdade que é assegurada pela lei9 ainda não é suficiente para alcançar a efetividade dos seus efeitos nos mercados. Vive-se um cenário de vulnerabilidade estrutural, de dependência recíproca entre agentes e instituições sociais e a sua mitigação perpassa a compreensão de que a noção de homem médio - geralmente imaginado em uma versão "Brooks brothers" do sujeito de direitos - está muito distante da realidade.

Um estudo de Siciliani, Cristine Riefa e Gamper apresenta quatro theories of harm (scam, lemon, schock, subsidy), ou teorias sobre os danos causados aos consumidores, que acentuam a sua vulnerabilidade e demandam providências no âmbito do Direito10. É interessante perceber a gradação feita pelos autores, que bem destacam que parte das pessoas não é suscetível a alguns dos riscos identificados, diferenciando as pessoas mais ingênuas ou com diversas camadas de vulnerabilidade. Essa percepção é especialmente importante para o julgador e para o intérprete da legislação.

A primeira delas é a teoria do golpe, que descreve situações em que consumidores ingênuos são deixados à mercê de fornecedores injustos. Eles não percebem o risco de que o produto ou serviço oferecido possa ser inútil. No esquema, a demanda é totalmente injustificada e os falsários competem para enganar. Os exemplos tradicionais incluem esquemas em pirâmide, falsas loterias ou sorteios de prêmios, ou falsas reivindicações médicas. Nessas situações, o máximo prejuízo financeiro é experimentado por uma categoria de consumidores mais vulneráveis. Nem os consumidores sofisticados nem as empresas justas querem negociar nesses falsos "mercados". Como eles podem evitá-los, não há incentivos suficientes para que empresas injustas melhorem a maneira como operam.

A segunda teoria, do limão (que nos remete aos market for "lemons"11), os consumidores não podem realmente julgar a qualidade do que é oferecido. Isto diz respeito principalmente à falta de experiência ou aos bens de crédito. Consumidores sofisticados e empresas em conformidade com a legislação querem ser ativos no mercado, mas a presença de consumidores ingênuos e empresas injustas pode implicar em riscos à concorrência, por vezes fazendo com que ambos se retirem do mercado. Exemplos tradicionais incluem carros, relógios, serviços de reparos. A assimetria informacional é o fator preponderante nesse contexto, que acentua a vulnerabilidade dos consumidores.

A terceira teoria, do "choque", retrata as diferenças de resultados (e prejuízos) quando consumidores ingênuos e sofisticados são confrontados com o mesmo uso generalizado de práticas enganosas, mas os consumidores sofisticados são capazes de detectar as tentativas dos comerciantes de enganar. Esta teoria do dano se aplica principalmente aos atributos de busca (como preço ou termos e condições). O choque é sentido apenas por consumidores ingênuos que não detectaram a prática desleal e exemplos típicos incluem preços diferenciados e cláusulas contratuais abusivas, inclusive as restritivas de responsabilidade. É nesse contexto que as dark patterns ou práticas deceptivas são alocadas.

Não há uma definição unânime sobre o que são os padrões comerciais deceptivos ou dark patters, que "são usados por algumas empresas online para coagir, dirigir ou enganar os consumidores a tomarem decisões não intencionais e potencialmente prejudiciais."12 Também conhecidas como práticas de design enganosas, as dark patters podem ser descritas como "truques usados em sites e aplicativos que fazem você fazer coisas que você não queria fazer, como comprar ou se inscrever para algo"13. Vários exemplos destas práticas que atraem os consumidores (e não se confundem com de nudges ou técnicas de neuromarketing) são listados por organizações preocupadas com a segurança de ambientes online.14 Estudos mais recentes de dark patters confirmam os efeitos que essa arquitetura de escolhas causa aos consumidores.

O crescente uso de dados pessoais tem acentuado a vulnerabilidade dos consumidores e incrementando os riscos de danos. Os preços personalizados (que utilizam as informações coletadas sobre um consumidor ou um subconjunto de consumidores para oferecer um preço diferente daquele ao qual o consumidor estaria sujeito se tivesse pegado o produto em uma prateleira física) podem colocar uma barreira extra aos consumidores. Se todos os preços são personalizados, há um obstáculo a mais para o consumidor saber quais preços são propostos a outros consumidores e identificar se lhe está sendo cobrado um valor justo ou adequado. Mas as práticas de preços discriminatórios são prejudiciais não apenas aos consumidores, mas também aos fornecedores comprometidos com um tratamento justo no mercado de consumo.

A mera proibição da prática comercial não se revela como medida suficiente para conter os danos aos consumidores de maneira eficaz.15 Da mesma forma, o mero alerta acerca do uso de decisões automatizadas não alcança todos os consumidores.16 A aplicação das sanções administrativas conhecidas no microssistema de defesa dos consumidores em conjunto com as dispostas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018) pode ser um incentivo à conformidade, mas depende da identificação e comprovação da prática comercial abusiva, o que é bastante difícil nos mercados. No relatório da OCDE, sugerem-se como medidas alternativas: exigir que a empresa obtenha a permissão dos consumidores para usar seus dados pessoais para personalizar os preços, informando-os que os preços ou descontos oferecidos são personalizados e como foi calculado (incluindo as informações pessoais que foram usadas para definir o preço). Além disso, sugere-se que a empresa publique um preço uniforme listado para todos os consumidores que desejem optar por não personalizar os preços.17

Por fim, na teoria do "subsídio", há um desequilíbrio do mercado e surge o risco de os consumidores ingênuos serem discriminados pela generalidade dos comerciantes, com consumidores sofisticados se beneficiando dessa exploração. A falta de previsão ou disciplina por parte dos consumidores ingênuos significa que os comerciantes desleais são capazes de cobrar taxas elevadas - muitas das quais os consumidores sofisticados podem evitar -, sendo assim subsidiados por consumidores vulneráveis. Isto inclui, por exemplo, taxas adicionais ou multas.

No Brasil observava-se um subsídio cruzado entre consumidores de maior e menor renda no que concerne as formas de pagamento. A proibição de cobranças de preços diferentes em razão da modalidade de pagamento persistiu até 2017, quando uma medida provisória, posteriormente convertida na Lei n. 13.455/2017, autorizou a diferenciação. Consumidores mais pobres, que não tinham acesso a crédito, pagavam mais por produtos ou serviços em razão dos custos acrescidos pelo amplo uso cartão de crédito por outra parcela da população. Até hoje, no setor bancário, os exemplos são abundantes, a começar pela isenção de inúmeras taxas, tarifas e anuidades com que investidores maiores são beneficiados, o que revela o custo acrescido da pobreza.

Para a mitigação dos efeitos da assimetria informacional aos consumidores, buscam-se ferramentas jurídicas e tecnológicas, que promovam um ambiente de negócios fair by design. A percepção das múltiplas camadas e graus de vulnerabilidade que cometem os consumidores é um convite a todos os leitores desta reconhecida e importante coluna do IBERC para uma reflexão conjunta sobre as nossas pesquisas e políticas.

Referências

ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020.

BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94.

FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004.

FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011).

KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores.

MARQUES, Claudia Lima Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145

MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022.

MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002.

OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online.

OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25.

RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018.

SICILIANI P, RIEFA C, GAMPER H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111.

The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível em: https://darkpatterns.uxp2.com/. Ambos acessados em 20 de março de 2022.

__________

1 MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002.

2 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018.

3 A concepção de hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade exacerbada é explicada nos escritos de Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Cristiano Heineck Schimitt (Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 65.), Marcelo Schenk Duque (O dever fundamental do estado de proteger a pessoa da redução da função cognitiva provocada pelo superendividamento. Revista de Direito do Consumidor, v. 94,  Jul.-Ago., 2014. p. 157-179.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores.

4 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022.

5 A Resolução elenca como hipervulneráveis: "a) ser criança ou adolescente; b) ser idoso, conforme a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos; c) ser pessoa com deficiência; d) ter a condição de pessoa migrante; e) ter a condição de pessoa turista; f) pertencer a comunidades indígenas, povos originários ou minorias étnicas; g) encontrar-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica; h) pertencer a uma família monoparental a cargo de filhas/os menores de idade ou com deficiência; i) ter problemas graves de saúde." (MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível aqui. Acesso em: 25 abr. 2022.)

6 BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94.

7 Conceito multifacetado complexo que comporta diferentes interpretações - conf. KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores.

8 FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004.

9 FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011).

10 Siciliani P, Riefa C and Gamper H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111.

11 Veja: ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020. 

12 OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online.

13 Deceptive Design: formerly darkpattersns.org. Design enganoso: antigamente darkpattersns.org. Disponível aqui.  Acesso em 20 de março de 2022.

14 Veja: The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível aqui. Ambos acessados em 20 de março de 2022.

15 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25.

16 Sobre o tema, veja a tese de doutoramento de Guilherme Mucelin, defendida perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, orientada pela Profª Drª Sandra Regina Martini e intitulada "Direito de validação das decisões individuais automatizadas baseadas em perfis de consumidores".

17 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. In the United Kingdom, under the application of the Consumer Contracts (Information, Cancellation and Additional Charges) Regulations 2013 implementing the Consumer Rights Directive, the sanction for non-disclosure of this information would be breach of statutory duty (Reg 18) and /or breach of contract.)