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O problema da responsabilidade civil das companhias abertas em relação aos sócios à luz das disparidades do tratamento legal internacional

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Atualizado às 07:50

Identificação do problema

As relações comerciais e sociais que se desenvolvem hoje dentro de uma realidade jurídica globalizada faz surgir uma problemática relevante: a inconsistência do tratamento ofertado pelas sociedades anônimas de capital aberto perante seus sócios em um contexto internacional.

As companhias abertas, enquanto entidades com personalidade jurídica própria, possuem obrigações inalienáveis em relação aos seus sócios que, quando ignoradas ou descumpridas, resultam na responsabilização da companhia, cuja magnitude pode variar de acordo com a jurisdição competente, e é justamente aqui que a problemática ganha contornos preocupantes.

A governança corporativa prescreve que os sócios de uma mesma companhia devem ser tratados de forma igualitária. O que se tem observado, no entanto, é a disparidade na forma como os diferentes Estados nacionais tratam a responsabilidade civil das companhias abertas, a desrespeitar o primado do tratamento equânime entre acionistas. Em outras palavras, sócios de diferentes nacionalidades podem encontrar desigualdades de tratamento em caso de conflito.

Dentre as principais razões para esse problema estão a ausência de regulação em âmbito internacional, a constante flexibilização e desrespeito a cláusulas arbitrais, instrumentos que deveriam servir para assegurar previsibilidade e segurança jurídica, além da costumeira falta de transparência por parte das próprias companhias abertas.

A responsabilização civil das companhias abertas sob o prisma internacional torna-se, portanto, um tema de análise urgente e complexo. Exige-se uma avaliação aprofundada e criteriosa, com o objetivo de identificar e propor soluções para os desafios decorrentes das disparidades verificadas nesse ambiente.

Governança corporativa e o tratamento equânime entre acionistas

A Governança Corporativa, caracterizada pela sua versatilidade conceitual, pode ser definida através da tríade princípios-regras-ações, que concede um entendimento holístico ao instituto, pelo qual os princípios constituem a estrutura basilar que subsidia a elaboração das regras, as quais, subsequentemente, orientam as ações a serem executadas1.

Quatro princípios são considerados fundamentais e estão presentes em diversos instrumentos, tanto públicos quanto privados, desde a Sarbanes-Oxley Act ao Código das melhores práticas do IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa2, são elas a transparência, a equidade no tratamento de acionistas, a prestação de contas confiável e a responsabilidade corporativa.

A governança ganha papel relevante, sobretudo atualmente, vez que a regulamentação do mercado, em sua trajetória de democratização e universalização, tem carregado consigo um substrato de inovações normativas e adaptações culturais, dentre as quais se destaca o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, processo que representa uma expressiva alteração no paradigma jurídico, ao incorporar e refletir os princípios e direitos fundamentais expressos na Constituição nos diversos ramos do direito privado.

Esta constitucionalização tem desempenhado um papel crucial na consolidação de um ambiente corporativo mais igualitário e transparente. Ao infiltrar-se na matriz das regulações tradicionalmente privadas, os princípios constitucionais têm a capacidade de influenciar e moldar as normas e regulamentações internas das corporações, promovendo uma harmonização entre os direitos e deveres dos diversos atores envolvidos no mundo corporativo.

A par disso, a equidade entre os acionistas é elemento essencial que permeia todas as dimensões do direito corporativo e pilar indissociável da governança corporativa. A observância a esse princípio contribui para a manutenção da integridade e da justiça no ambiente corporativo, gerando confiança entre os acionistas e, por conseguinte, estabilidade no mercado financeiro.

Tratar de forma equânime os acionistas implica garantir que todos eles, independentemente da quantidade de ações que possuam, sejam respeitados em seus direitos e obrigações. É assegurar que todas as decisões tomadas pela gestão da empresa levem em consideração o bem-estar de todos os seus acionistas, sem favorecer indevidamente um grupo em detrimento de outro, qualquer que seja a classe ou nacionalidade dos sócios.

Essa equidade deve ser visível e palpável em todas as ações e decisões corporativas, desde a distribuição de dividendos até a divulgação de informações relevantes à empresa.

O problema no cenário global e a necessidade de uniformização

Em um mundo cada vez mais globalizado, sobretudo nas estruturas de mercados, torna-se mais complexa a garantia dos princípios da governança corporativa.

No cerne dessa complexidade, a ilustrar a problemática, tem-se o caso da Petrobrás e todos os desdobramentos societários fruto dos escândalos envolvendo a operação Lava-Jato, que fornece um campo fértil para a discussão dos desafios inerentes a garantia de tratamento igualitário entre os acionistas na perspectiva multinacional.

Com uma multiplicidade de demandas judiciais e arbitrais sendo conduzidas simultaneamente em diversos Estados, muitas delas confidenciais, percebe-se que a ideia de equidade e transparência se mostra esquiva, a escancarar a realidade de que estamos diante de uma violação sistemática dos pilares da governança corporativa.

Não há regras uniformes sobre a vinculação dos acionistas à cláusula compromissória e transparência sobre o procedimento arbitral, tampouco coordenação sobre a aplicação das diferentes legislações nacionais no tratamento oferecido ao tema.

Esta lacuna regulatória tem resultado em decisões, a bem dizer, heterodoxas, como a proferida pela Corte de Rotterdam, que recorreu ao critério de proficiência em português para determinar quem estaria submetido à arbitragem perante a CAM da B3. Tal situação demonstra uma desconformidade de tratamento que é flagrantemente inaceitável.

Ao mesmo tempo em que acionistas brasileiros amargam anos a espera de uma reparação pelos danos sofridos, os titulares das mesmas ações adquiridas nos Estados Unidos já foram alcançados por acordo de responsabilidade e reparação civil, e os de outros lugares do mundo recebem tratamento condescendente oferecido pelo tribunal holandês.

Essa situação real demonstra que, longe de ser um mero debate doutrinário, a questão do tratamento igualitário dos acionistas necessita de transformações práticas e tangíveis no mundo corporativo.

Imperativo notar que o movimento em direção a uma maior democratização das relações intrassociais não pode ser contido por meros entraves jurídicos. Como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho, "as relações societárias equilibradas não se acomodam mais na vetusta fórmula que associa exclusivamente o tamanho do risco do aporte realizado no capital social"3.

Não se pode mais considerar apenas a participação acionária como fator determinante no tratamento dos acionistas. Sob o impulso da governança corporativa e das reivindicações dos minoritários, é possível perceber mudanças nas legislações e regulações privadas sobre o tema que visam promover um ambiente mais democrático e inclusivo nas relações societárias, porém, ainda insuficientes e carentes de coordenação global.

Conclusão

A despeito dos avanços obtidos pela democratização das relações societárias e pela emergente constitucionalização do Direito Civil, persistem desafios significativos na efetiva garantia do tratamento equânime entre acionistas, transparência e responsabilidade corporativa.

É evidente que a governança, com seus princípios de transparência, equidade, prestação de contas confiável e responsabilidade corporativa, desempenha um papel fundamental nesse cenário. Entretanto, sua efetividade é limitada em face à ausência de coordenação e uniformização global das regras e princípios corporativos.

O caso da Petrobrás ilustra de forma contundente a complexidade desta problemática, evidenciando que as disparidades no tratamento dos acionistas não são mero fruto de uma análise doutrinária, mas realidades tangíveis que impactam diretamente a confiança e a estabilidade do mercado financeiro.

Portanto, a necessidade de uma abordagem global e uniformizada para a responsabilização civil das companhias abertas é urgente. Torna-se imperativo um maior esforço de coordenação entre os diferentes estados nacionais, visando a implementação de regulamentações harmonizadas e a construção de um ambiente corporativo verdadeiramente democrático e equânime.

__________

1 Na construção da base teórica, utilizam-se as concepções de governança projetadas por: RIBEIRO, Henrique César Melo. Corporate governance versus corporate governance: an international review: uma análise comparativa da produção acadêmica do tema governança corporativa, UFSC, Florianópolis, v. 11, n. 23, p. 95-116, maio/ago. 2014; BOZEC, R. US Market Integration and Corporate Governance Practices: evidence from Canadian companies. Corporate Governance: An International Review, v. 15, n. 4, p. 535-545, 2007;  JESOVER, Fianna; KIRKPATRICK, Grant. The Revised OECD Principles of corporate governance and their relevance to non-OECD countries. Corporate Governance: An International Review, v. 13, n. 2, p. 127-136, 2005;  BAUWHEDE, H. V.; WILLEKENS, M. Disclosure on corporate governance in the European Union. Corporate Governance: An International Review, v. 16, n. 2, p. 101-115, 2008;  CORMIER, Denis et al. Corporate governance and information asymmetry between managers and investors. Corporate Governance, v. 10, n. 5, p. 574-589, 2010;  WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanisms of Governance. Nova York: Oxford University Press, 1996;  MONKS, Robert A. G.; MINOW, Nell. Corporate Governance. United States: John Wiley e Sons, 2011.

2 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das melhores práticas de governança corporativa. São Paulo: IBGC, 2015.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. "Democratização" das Relações entre Acionistas. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 46-55.