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Dano indireto e contrato

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Atualizado às 08:24

A imediatidade, como elemento do dano, possui íntima conexão com o nexo causal, pois os prejuízos indenizáveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do fato gerador (art. 403, CC). Estabelecida a indenizabilidade dos prejuízos que forem consequência direta e imediata do evento danoso, passa-se a discutir a extensão da obrigação de indenizar no que concerne a outros prejuízos mediatos ou indiretos. Busca-se estabelecer um limite para os prejuízos indenizáveis, pois uma aplicação irrestrita do princípio da reparação integral poderia gerar uma situação absurda. A necessidade de fixação de limites fica bastante clara quando se analisam os danos indiretos ou mediatos, também chamados de prejuízos reflexos ou por ricochete.1

Deveras, sempre ressaltamos a tensão entre o princípio da reparação integral mediante a proteção jurídica dos bens do lesado, em oposição à necessidade de tutelar a liberdade de atuação do lesante, que merece harmonização não apenas na seleção de quais são os danos ressarcíveis e o seu valor, mas também o número dos titulares à compensação. A final, a vida em comunidade seria inviável se todos os prejuízos econômicos oriundos de contatos sociais fossem suscetíveis de indenização.

Se a segurança jurídica clama pelo brocardo "the loss lies where it falls", a regra geral é que apenas são reparáveis os danos causados ao titular dos bens imediatamente atingidos pelo fato danoso, e não os de terceiros. Porém, como já se reconheceu em outro sistema, essa é uma asserção cuja concretização prática transporta especiais dificuldades. Por um lado, as que decorrem da natural imprevisibilidade do fato ilícito que não permite delimitar com facilidade os sujeitos que podem vir a situar-se em cada um dos polos da relação obrigacional; por outro as dificuldades atinentes à variabilidade das situações geradoras da responsabilidade aquiliana que impede a antecipação segura da natureza ou da amplitude das consequências danosas que lhes podem ser imputadas.2

No dano indireto, reflexo, ou por ricochete, ocorre um prejuízo em virtude de um dano sofrido por outrem. O evento não apenas atinge a vítima direta, mas, reflexamente, os interesses de outra pessoa. Daí a expressão ricochete, que significa o dano sofrido inicialmente por um, que acaba por repercutir em outro, pelo fato de haver alguma ligação entre este e aquele. De outro modo, PETEFFI DA SILVA conceitua o dano indireto ou reflexo como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.3

Por consequência, a lesão de uma pessoa comporta um potencial de afetação de bens jurídicos encabeçados por outras pessoas. Ou seja, uma lesão simultânea de posições jurídicas de várias pessoas aparece em primeira linha como ato consubstanciador de violação dos direitos da personalidade de uma delas (lesado direto). Contudo, tal violação pode ser acompanhada da violação de posições jurídicas de outras pessoas (lesados indiretos) em virtude do nexo juridicamente relevante que entre elas exista. No entanto, em virtude da proeminência do ataque ao bem jurídico pessoal daquele que sofre a lesão corporal, a violação dessas outras posições nem sempre mereceu destaque.4

Em uma perspectiva clássica e atomizada da responsabilidade contratual, a legitimidade para a invocação dos efeitos derivados do contrato é circunscrita às pessoas dos contraentes, como corolário da eficácia relativa ou da relatividade dos contratos. A síntese dessa compreensão se encontra nas regras relativas ao descumprimento contratual em sentido amplo, nos artigos 389 a 420 do Código Civil. Em princípio, por mais que da inexecução resultem danos para terceiros à relação obrigacional, estes estariam de mãos atadas, exceto nas hipóteses de obrigações impostas por normas imperativas ou razões de ordem pública, sendo uma das mais notórias a possibilidade de o consumidor lesado demandar contra fornecedores com os quais não pactuou diretamente.5

Dentre os titulares de deveres de proteção, incluem-se terceiros - estranhos à relação obrigacional - que estão expostos aos riscos de danos pessoais ou patrimoniais oriundos da execução de um determinado contrato. Seriam os "contratos com eficácia de proteção para terceiros", em que caberia ao terceiro, vítima, a percepção de uma indenização, não em razão de uma violação de algum dever de prestar advindo da relatividade contratual (pois este seria específico das partes), mas em virtude de ter sido ofendido em sua integridade psicofísica ou econômica, o que desencadeia a pretensão de reparação de danos, com fundamento no descumprimento de deveres laterais pelas  partes, consistentes na inobservância do necessário cuidado e proteção perante a sociedade que os circunda.

Ao permitir que a responsabilidade civil englobe terceiros lesados pelo descumprimento de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato de cuja formação não participaram, devemos assumir que o princípio pelo qual os efeitos do contrato só se produzem inter partes deverá ser interpretado de forma que, no conceito de "oponibilidade obrigacional", incluam-se pessoas que não consentiram na formação do negócio jurídico, mas que estão sujeitas a ser por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social. A flexibilização do princípio da relatividade dos efeitos contratuais, propicia uma nova etapa de desenvolvimento teórico e prático de danos reflexos.

As temáticas do "terceiro ofendido" e do "terceiro ofensor" foram exaustivamente referidas no capítulo alusivo à responsabilidade contratual. Danos indiretos irrompem em ambas as manifestações do princípio da função social dos contratos. No que tange ao terceiro ofendido, o devedor é o causador do dano e a vítima indireta é estranha à relação contratual. Isto ocorre cotidianamente quando a vítima falece em virtude de um erro médico, traduzido como inadimplemento do contrato de prestação de serviços médicos, estendendo-se à outras hipóteses de tutela externa do crédito. No tocante ao terceiro ofensor, no qual alguém estranho ao vínculo, causa o inadimplemento de contrato entre vítima direta e vítima indireta, também há espaço para desenvolvimento dos danos reflexos em situações onde a vítima indireta sofre prejuízos em decorrência do inadimplemento, motivado por ação ou omissão de terceiro, de um contrato que possuía com a vítima direta.6

Aqui, em linha complementar, indagamos se no espaço de autonomia privada que lhes é inerente em contratos simétricos, as partes podem pactuar pela exclusão do ressarcimento do "dano indireto", mediante cláusulas de limitação de responsabilidade, no bojo de relações civis e empresariais. Com PINTO MONTEIRO, em que medida esse dano é acessível ao acordo das partes? A final, tratar do problema da validade das cláusulas de responsabilidade civil requer indagar se ela poderá ser objeto de convenções antecipadas quando as pessoas que receiam poder a sua atividade vir a ser fonte de danos acordar previamente com os presumíveis lesados a disciplina de sua eventual responsabilidade.7

No horizonte brasileiro, examinando os três incisos do art. 421-A,8 a autonomia privada viabiliza que, em contratos paritários interempresariais e intercivis, os contratantes envidem uma gestão de riscos, precavendo-se contra eventuais vicissitudes ao longo do iter obrigacional, estabelecendo a equação econômica que fundamenta a correspectividade do contrato. A Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) revigorou a autodeterminação em termos de primazia de soluções consensuais em detrimento da heteronomia judicial, valorizando a alocação de riscos. Seguindo a noção de Enzo Roppo do contrato como vestimenta das operações econômicas, o art. 421-A captura um redimensionamento do sentido de contrato, que não mais se exaure no negócio jurídico bilateral que lhe deu origem, convertendo-se em uma "atividade contratual", realidade em permanente construção. Assim, é lícito às partes a delimitação consensual das esferas de responsabilidade para que possam se precaver contra eventuais vicissitudes. O contrato passa a ser tido como um instrumento jurídico posto à disposição das partes para a alocação de riscos economicamente previsíveis, para hoje e para o futuro. Com a gestão de riscos, as partes convertem a causa abstrata do contrato em uma causa concreta. Assim, mal ou bem gerido, o risco superveniente não ensejará intervenção externa sobre o que se convencionou. Diversamente da causa abstrata, consiste a causa concreta no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico, sendo esse um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta é correlata ao exercício da liberdade econômica.

Se estivermos diante de bem jurídico de índole meramente privada e natureza disponível, o lesado poderá dispor de um eventual montante indenizatório. Isso significa que, se por um lado há vedação de convenções limitativas ou exoneratórias de responsabilidade por culpa grave e dolo, lado outro, pode haver restrição voluntária a indenização de danos indiretos inter partes. A determinação ex ante dos danos indenizáveis reduz os custos de transação ex post associados a dificuldade de qualificação e quantificação dos danos para litígios, somando incentivos ao cumprimento das obrigações pelas partes.

Entretanto, se assumimos o conceito de dano indireto, como sinônimo de dano reflexo ou dano por ricochete, o contexto jurídico muda de figura. A final, na apuração da legitimidade de terceiros pleitearem indenização por danos causados em uma relação da qual não fazem parte, não faria sentido as partes delimitarem cláusula de exoneração de responsabilidade para danos indiretos, permanecendo resguardado o terceiro lesado pelo dano indireto, posto amparado na responsabilidade extracontratual. Ora, quando se cogita da exclusão de responsabilidade perante terceiros pelo dano indireto, não visualizamos lesão à direito de crédito pregresso, porém relação jurídica derivada da violação de um dever geral de abstenção, quadrante infenso à autonomia privada.

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1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 174-175.

2 GERALDES, Antônio Santos Abrantes. Temas da responsabilidade civil, Indemnização dos danos reflexos, Coimbra: Almedina, 2007. v. II, p. 15.

3 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul.-dez. 2012.

4 PEDRO, Rute Teixeira. Os danos não patrimoniais (dito) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco (coord.). Responsabilidade civil: cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 216.

5 Art. 18 CDC: "Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas".

6 Paradigmática neste sentido a decisão da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconhecendo-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos.

7 MONTEIRO, Antonio Pinto. Dano e acordo das partes. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil: 50 anos em Portugal e 15 anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 22.

8 Art. 421-A CC: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".