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O valoroso trabalho da Comissão de Reforma do Código Civil brasileiro: Perspectivas para o direito de danos

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Atualizado às 08:08

Começarei perguntando: o que é a reputação? Eis a verdade: o que nós chamamos de reputação é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos. Não sei se em toda parte será assim. No Brasil é. Nada mais pornográfico, no Brasil, do que o ódio ou a admiração1.

O Código Civil Brasileiro de 2002 é um notável exemplar da segunda onda codificatória2, cuja marca distintiva é o emprego de textos normativos intencionalmente indeterminados. É um Código, portanto, que não aspira à completude e à perpetuidade. Antes, nasce ciente de sua incompletude, despido das pretensões caras ao Século XIX.

Os enunciados normativos deliberadamente indeterminados que pululam no Código Civil Brasileiro são, a um só tempo,

  1. signos de um certo pragmatismo legislativo,
  2. compromissos interinstitucionais com a coerência do Direito e
  3. antídotos contra o envelhecimento precoce.

Quer dizer:

  1. consistem em opções pela viabilidade do trabalho legislativo, pelo enxugamento dos custos de oportunidade e de decisão por ele envolvidos3;
  2. oportunizam a interpenetração entre as atividades de construção dos enunciados normativos e de interpretação-aplicação das normas jurídicas, sob o pálio da Ordem Constitucional4; e
  3. permitem, justamente por isso, a perpetuação de soluções abertas às contingências da vida nas sociedades contemporâneas, em vez de prescrições datadas.

Isso não significa, entretanto, que o Código tenha nascido pronto e perfeito. Bem ao contrário: ao lado das virtudes que exibe orgulhosamente, acumula vícios congênitos e problemas aplicativos revelados ou surgidos durante seus primeiros vinte anos de vigência. Demais disso, no célebre dizer de Luiz Edson Fachin, "o Código se faz, não nasce feito"5.

Nesse diapasão, uma reforma ampla e abrangente, por ocasião do festejo da abertura da terceira década do diploma civil brasileiro, é bem-vinda. Dessarte, a iniciativa da presidência do Senado Federal ao editar o ATS 11/2023 e nomear a "Comissão de Juristas Responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil" se mostra induvidosamente oportuna.

O mesmo se pode dizer sobre os trabalhos da Comissão até o momento. Sob a batuta dos Ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, bem assim dos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, a Comissão se subdividiu em eixos temáticos e conduziu incontáveis reuniões internas e audiências públicas. Com isso, calcorreou contribuições de juristas dos quatro cantos do País, de modo a estruturar, sob o crivo da comunidade especializada, uma proposta abrangente e sistemática de reforma, a qual virá a subsidiar a elaboração de um futuro Projeto de Lei.

A despeito de seu indiscutível mérito e da preocupação em ouvir a fazer valer a voz da comunidade jurídica brasileira, os trabalhos da Comissão de Reforma do Código têm recebido ataques de diversos setores da literatura e da imprensa. Alguns, animados pelo benfazejo espírito crítico da Academia, contribuem e valorizam o trabalho da Comissão - o qual será, depois e evidentemente, discutido e votado no Congresso Nacional. Outros, com sói acontecer em debates dessa magnitude, parecem ter motivações menos nobres. Mesmo com espaço nos meios de comunicação, não bastam para convincentemente lançar dúvidas sobre a reforma que começa a se esboçar.

Na ambiência do Direito de Danos, alguns temas contemplados pela Comissão de Juristas merecem especial destaque:

  1. o zelo da subcomissão com a correção de atecnias da redação original do Código Civil, sobretudo no que toca aos nexos de causalidade e imputação e.g. em matéria de excludentes de responsabilidade, com a proposta de substituição das expressões "culpa da vítima" e "culpa de terceiro" por "fato da vítima" e "fato de terceiro"6;
  2. o cuidado com a sistematicidade do Direito, com o reavivamento de pontes e marcos divisórios com os regimes de responsabilidade civil existentes na legislação esparsa, bem assim com a incorporação ao texto legal de figuras consolidadas no acervo de decisões dos Tribunais;
  3. o prudencial redesenho da responsabilidade por danos, com ênfase às funções que lhe são inerentes - a despeito da contemplação expressa de uma função punitiva, a qual, na leitura deste autor, extrapola os limites da responsabilidade no Direito Civil7; e
  4. o refinamento dos enunciados intencionalmente indeterminados presentes no Código mediante incorporação de parâmetros decisórios claros, em prol da promoção da segurança jurídica - compreendida desde o prisma da coerência normativa, que junge as concepções fracionárias da calculabilidade, confiabilidade, controlabilidade e cognoscibilidade celebradas pela literatura8.

A abordagem desse conjunto temático pela Comissão de Reforma, sem prejuízo de outros tópicos que, aos olhos de outrem, pareçam de igual ou maior relevância, é de extraordinário valor para a maturação das perspectivas de melhoria do Código Civil de 2002. Mormente à vista de sua integração às técnicas legislativas empregadas pelo texto hoje em vigor e ao potencial de reforço à segurança jurídica de cuja carência tanto se reclama. Isso sem que se fale, evidentemente, das contribuições dirigidas aos demais setores do governo jurídico das relações entre particulares, os quais são objeto de outras colunas deste portal.

O trabalho da Comissão, dessarte, não pode ser diminuído e certamente não cederá diante das reações negativas que inspirou. Oxalá as sementes lançadas pela Comissão de Reforma germinem, brotem e vicejem. O Direito Civil Brasileiro só tem a ganhar.

_______________

1 RODRIGUES, N. Memórias: a menina sem estrela. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 153.

2 Sobre o tema, v. PEDRÓN, A. P. La segunda condificación. In: CENTRO DE ESTUDIOS REGISTRALES. Seguridad Jurídica y Codificación. Madrid: J. San José S.A., 1999.

3 V. POSCHER, R. An intentionalist account of vagueness: a Legal perspective. In: KEIL, G. e POSCHER, R. (Orgs.). Vagueness and Law: Philosophical and Legal perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 75 e 88.

4 Essa problemática foi abordada alhures, em ARNT RAMOS, A. L. Responsabilidade por danos e segurança jurídica. Curitiba: Juruá, 2018, p. 191.

5 FACHIN, L. E. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 56.

6 A literatura não hesita em denunciar a impropriedade do emprego das expressões "culpa da vítima" e "culpa de terceiro", face a situação das excludentes de responsabilidade no locus do nexo de causalidade - para o qual o elemento subjetivo é irrelevante - e não no do nexo de imputação - no qual os fatores de atribuição culpa, risco e outros critérios normativos são protagonistas. A propósito, v. CUNHA FROTA, P. e BRITO DA COSTA, J. P. Fatores fático-jurídicos obstativos da causalidade jurídica: as interrupções e a inexistência do nexo causal na responsabilidade civil e consumerista - fato da vítima, fato de terceiro e caso fortuito e de força maior. REDES, v. 5, n. 1, 2017.

7 Neste ponto, seja facultado remeter a ARNT RAMOS, A. L. As fronteiras internas do Direito das Obrigações e a Responsabilidade por Danos. In: CAUMONT, A., ORSELLI, H., CATALAN, M., ZENI DE SÁ, P. (Orgs.). Mitos e rupturas no Direito Privado contemporâneo. Londrina : Toth, 2023.

8 V. ARNT RAMOS, A. L. Segurança jurídica e indeterminação normativa deliberada: elementos para uma Teoria do Direito (Civil) contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2021, passim.