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O dano existencial e o necessário reconhecimento de sua autonomia

terça-feira, 16 de abril de 2024

Atualizado em 15 de abril de 2024 12:52

1 - Notas introdutórias

No âmbito do Direito, é sempre digna de relevo a investigação sobre os aspectos que circundam as pessoas naturais, destacando-se, neste domínio, a categoria dos direitos da personalidade, inaugurada de forma expressa no Brasil com a entrada em vigor do Código Civil de 2002. A importância de que se reveste a matéria decorre da própria expressividade dos direitos da personalidade, enquanto projeções da pessoa humana e da dignidade que lhe é inerente.

Direitos da personalidade, como bem indica sua denominação, são os direitos que decorrem da personalidade, preenchendo-a e conformando-a ao primado da dignidade da pessoa humana. Envolvem aspectos físicos e psíquicos, abrangendo, pois, a integridade corporal, intelectual e moral das pessoas, incluindo-se entre eles os direitos à vida, à saúde, à integridade física e psíquica, às liberdades individuais, à privacidade, à imagem, à honra e ao nome, entre outros atributos. Na feliz e sintética definição de Rubens Limongi França,1 os direitos da personalidade, enfim, são "as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos".  

Historicamente, emergiram duas grandes correntes que dividem os estudos sobre os direitos da personalidade: a monista, pela qual haveria um só "direito geral da personalidade", que se abriria para múltiplas proteções, e a pluralista, que preconiza serem vários os direitos da personalidade. O desenvolvimento do direito geral de personalidade teria como fim acobertar as esperadas insuficiências legislativas sobre a disciplina, eis que o ordenamento positivo seria incapaz de regulamentar todo o rol de direitos que tutelam a pessoa em toda a sua complexidade. São estas, a propósito, as críticas que os adeptos da teoria monista dirigem à pluralista: segundo entendem, esta vertente teria abertura insuficiente para dar resposta às constantes exigências de tutela jurídica decorrentes da extrema complexidade humana.2

Constata-se, contudo, que as críticas dirigidas à teoria pluralista não prosperam, quando se considera que os direitos da personalidade não são típicos, havendo outros tantos como a honra, a vida, a liberdade e os direitos de autor, que não foram diretamente contemplados pelo Código Civil brasileiro, embora decorram da Constituição da República e de outras normas jurídicas (como ocorre, no Brasil, com a lei 9.610/98, concernente aos direitos autorais), sem prejuízo de se conceber a existência de direitos da personalidade que não encontram previsão em qualquer norma positivada.

O Código Civil brasileiro, aliás, ao fazer referência à rubrica "direitos da personalidade", enumerando-os em rol meramente enunciativo, terminou por romper com a adoção de um direito geral da personalidade. Com efeito, é perfeitamente admissível exprimir a existência de diversos direitos da personalidade, bastando que se reconheça que sua previsão legislativa não é taxativa, permitindo-se, pois, uma prudente extensão a todas as situações que verdadeiramente contemplem a personalidade e que não correspondam à expressa previsão legal. A tutela da personalidade e da dignidade humana em nada recua ou se torna insuficiente quando se reconhece a elasticidade do rol dos direitos da personalidade, que se expandem tanto quanto seja necessário para resguardar a pessoa e seus valores existenciais.

Na qualidade de direitos subjetivos primordiais à essência dos seres humanos, os direitos da personalidade reclamam a incidência de mecanismos de tutela suficientemente vastos e eficazes para acobertar todo tipo de possíveis transgressões que atentem contra a sua existência. Por isso, para todo e qualquer tipo de ofensa aos direitos da personalidade, deve corresponder a respectiva e cabal reparação. Daí emerge a categoria dos danos imateriais, aqueles que afetam o indivíduo em sua essência, em seus valores, na esfera mesma do seu ser e de seus interesses de cunho existencial, em contraposição àqueles de caráter patrimonial.

No âmbito dos danos imateriais, para além da paradigmática espécie do dano moral, há muito consagrado no sistema normativo pátrio, vêm sendo reconhecidas outras modalidades de danos, a exemplo do estético e do existencial, matéria que interessa em particular para os fins deste escorço. O surgimento de outras categorias de danos imateriais e a defesa de sua autonomia se dá mormente em virtude do reconhecimento de que o dano moral, por mais alargado que seja o campo de sua incidência, não é capaz de abarcar todas as potenciais lesões aos direitos da personalidade e à essência dos indivíduos que os titularizam.

2 - O dano existencial

O dano existencial, consoante exposto, configura uma categoria de dano imaterial, cuja autonomia em relação às demais espécies de danos, inclusive os morais, merece ser devidamente proclamada, com o fito de se atribuir integral reparação a toda e qualquer ofensa aos direitos da personalidade.

Marco Aurélio Bezerra de Melo define o dano existencial "como a perda da qualidade de vida do indivíduo que a partir da lesão sofrida altera ou até mesmo perde a possibilidade de manter as suas atividades cotidianas". Com suporte nesta premissa, o autor admite a subdivisão do dano existencial em duas vertentes: em uma primeira configuração, enquanto o dano à vida de relação, o que se dá quando o ofendido fica privado de poder exercer atividades habituais, como um hobby há muito praticado; em uma segunda perspectiva, como um dano ao projeto de vida, em hipóteses em que a vítima se vê impedida de realizar "as expectativas que tinha acerca de seu futuro", tal como ocorre em relação ao indivíduo que, em virtude da lesão, fica impedido de exercer em definitivo sua profissão.3

Corroborando a ideia de que o dano existencial se manifesta em suas dimensões distintas, ainda que complementares, Elaine Buarque elucida que o dano à vida relacional corresponde a "todo acontecimento que venha a incidir de forma negativa sobre o cotidiano, sobre as atividades normalmente desempenhadas pela
pessoa humana", ao passo que o dano ao projeto de vida abarca "toda e qualquer lesão que venha a comprometer a liberdade de escolha, que possa vir concretamente destruir o que a pessoa lesada idealizou para sua realização enquanto ser humano".4

É preciso salientar, todavia, que a primeira perspectiva tratada pelos aludidos autores há de ser ampliada em sua concepção e nomenclatura, eis que, do ponto de vista da afetação imediata da vida de um indivíduo, tal comprometimento pode lesar não apenas sua vida em relação com os outros, mas também sua vida consigo mesmo, isto é, naquilo que concerne às atividades habituais exercidas pela pessoa mesma, como a sua capacidade de se locomover ou de se alimentar por meio de suas próprias forças. Assim, mais adequado é definir que o dano existencial se caracteriza pelo comprometimento da vida pessoal ou relacional, em uma primeira vertente, e dos projetos existenciais vindouros, na segunda vertente.

Tem-se, pois, que o dano existencial se verifica tanto por meio da ofensa capaz de provocar de imediato uma severa afetação da vida cotidiana de uma pessoa quanto no comprometimento ou na privação dos desígnios que o indivíduo projeta para o seu futuro. Neste derradeiro caso, busca-se compensar a vítima de um dano que se prostrai no tempo e que compromete gravemente a satisfação vindoura das suas potencialidades e a prerrogativa de desenvolver livremente sua personalidade rumo à autorrealização, privado que estará de ser e tornar-se o que bem entender.

A constatação da afetação do modo de viver do indivíduo, por fim, pode se dar por meio da comparação entre o cotidiano por exercido antes e depois da verificação do evento lesivo; assim, será viável atestar de que modo se deu o comprometimento das realizações da vida da vítima.5

3 - A experiência legislativa e jurisprudencial brasileira quanto ao dano existencial

No Código Civil brasileiro de 2002, não restou estabelecida de forma expressa a categoria dos danos existenciais, o que naturalmente não impede que seu reconhecimento eventualmente se dê no âmbito jurisprudencial, como, a propósito, vem paulatinamente ocorrendo ao largo dos últimos anos.

Dada a omissão da legislação civil sobre o tema, coube à CLT consagrar a figura em seu art. 223-B, cujo teor assim dispõe: "causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação". Vê-se, portanto, que o diploma legal em apreço estabeleceu expressa distinção entre a esfera moral e a existencial do indivíduo, o que representa notável abertura de perspectivas para o reconhecimento da autonomia do dano existencial em relação ao dano moral.

O reconhecimento de tal autonomia, contudo, talvez permaneça comprometido, a depender da vindoura reforma ao texto do Código Civil. No momento em que estas notas são redigidas, propõe-se que "o nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social" venha a servir como um dos parâmetros que possam justificar a eventual majoração do valor da reparação atribuída em virtude de um dano imaterial. Parece evidente que o aludido "nível de afetação em projetos de vida" diz respeito à caracterização do dano existencial, que, caso reste aprovada a referida proposta, servirá apenas como suporte à possível elevação do quantum compensatório a ser prestado à vítima.

No âmbito jurisprudencial, tem se destacado a profusão de julgados na seara trabalhista. Cite-se, a título de exemplo, a decisão proferida pelo TRT da 3ª Região, em um caso em que o reclamante, que exercia atividades braçais e era professor de dança, perdeu os movimentos de suas pernas em função de acidente de trabalho. No acórdão proferido, se reconheceu que "o dano existencial pode ser entendido como espécie autônoma em relação ao dano moral, vez que aquele é tido como o dano que prejudica a realização pessoal do trabalhador, piorando sua qualidade de vida". Admitiu-se, ademais, a cumulação das reparações por dano moral e existencial, pois, segundo consignado na decisão, "o dano moral está ligado à angústia, à dor e à humilhação da ocorrência em si de fato, inclusive acidente, enquanto o dano existencial decorre da dificuldade criada para que a vítima possa prosseguir com seus projetos profissionais e pessoais, o que acarreta vazio existencial por ela experimentado".6

No STJ, por sua vez, o caso mais emblemático de dano existencial - ainda que, nesta circunstância, o próprio Tribunal não tenha feito qualquer referência a esta expressão - se verificou em um caso em que um homem passou quase 13 anos preso indevidamente e, durante o cárcere, contraiu tuberculose, além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião. Tendo reconhecido que a vítima "experimentou foi uma 'morte em vida', que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana", a ela foi conferida a indenização de R$ 156.000,00 a título de danos materiais e a compensação no importe de R$ 1.844.000,00 por danos morais.7

Circunstâncias como as acima narradas dão conta de que são frequentes as incidências do dano existencial em casos concretos, ainda quanto esta categoria não venha a ser expressamente reconhecida enquanto tal. O fato de que tal dano se manifesta com notável frequência, todavia, reclama intervenções legislativas e jurisprudenciais cada vez mais incisivas, tudo para que lesões de tal natureza sejam objeto de devida apreciação e reparação.

Referências

BUARQUE, Elaine. O dano existencial como uma nova modalidade de dano não patrimonial: a necessidade da ampliação do princípio da função social da responsabilidade civil e a busca da reparação integral do dano à pessoa. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-22, mai.-ago./2019.

FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito civil, v. 1. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.

LOPEZ, Teresa Ancona. Dano existencial. Revista de Direito Privado. v. 15, n. 57, jan./mar. 2014.

MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O dano existencial na responsabilidade civil. Disponível aqui). Acesso em 03 de abril de 2024.

SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Ed. Coimbra, 1995.

STJ. REsp n. 802.435/PE, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 30/10/2006.

TRT-3 - RO: 00104803520195030043 MG 0010480-35.2019.5.03.0043, Relator: Juliana Vignoli Cordeiro, Data de Julgamento: 28/02/2021, Decima Primeira Turma, Data de Publicação: 01/03/2021.

__________

1 FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito civil, v. 1. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 403.

2 Conforme SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Ed. Coimbra, 1995, p. 516.

3 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. O dano existencial na responsabilidade civil. Disponível aqui). Acesso em 03 de abril de 2024.

4 BUARQUE, Elaine. O dano existencial como uma nova modalidade de dano não patrimonial: a necessidade da ampliação do princípio da função social da responsabilidade civil e a busca da reparação integral do dano à pessoa. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-22, mai.-ago./2019.

5 LOPEZ, Teresa Ancona. Dano existencial. Revista de Direito Privado. v. 15, n. 57, jan./mar. 2014.

6 TRT-3 - RO: 00104803520195030043 MG 0010480-35.2019.5.03.0043, Relator: Juliana Vignoli Cordeiro, Data de Julgamento: 28/02/2021, Decima Primeira Turma, Data de Publicação: 01/03/2021.

7 STJ. REsp n. 802.435/PE, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 30/10/2006.