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A indenização do dano econômico puro - Parte 1

terça-feira, 23 de abril de 2024

Atualizado às 07:18

Nunca é por demais enfatizar a realidade econômica que subjaz à responsabilidade Civil. Se pelo ângulo estritamente normativo, a reparação integral de danos é associada à literalidade da regra do art. 944 do Código Civil e a repercussão dos pressupostos específicos de uma certa imputação (subjetiva ou objetiva). Nessa primeira barreira, a maior parte dos danos é contida, tendo as vítimas que suportar os próprios infortúnios. 

Parte-se da premissa de que o ordenamento jurídico apenas trasladará danos do demandado ao demandante se houver um nexo de imputação capaz de atribuir o comportamento ao causador do dano, seja ele um ilícito, um dever de custódia ou o risco de uma atividade. 

Por outro lado, em um quadro mais amplo e supralegal, indagar sobre a oportunidade de transferir os danos do ofendido ao patrimônio do ofensor, sempre implicou em vislumbrar qual o sentido que cada sistema jurídico concede à ponderação entre dois vetores: a tutela das vítimas pela reparação integral em contraposição ao casum sentit dominus (ou the loss lies where it falls), aforismos que justificam a limitação da responsabilidade e a não conversão de qualquer prejuízo em dano indenizável. 

Os aplicadores da responsabilidade civil devem ter em mente que em sociedades democráticas e plurais, liberdades individuais e econômicas caminham de braços dados e uma ameaça constante de pretensões reparatórias seria um elemento decisivo de inibição ao exercício de direitos constitucionalmente assegurados. Como a base da responsabilidade civil não é a caridade, e para que os prejuízos sejam deslocados da vítima para alguém, deve haver algum argumento convincente, em uma ordem de adequação e razoabilidade. 

Nesse delicado "malabarismo" entra em cena a figura dos danos econômicos puros. Estudar esse tema não significa trazer à baila um debate doutrinário brasileiro (que aqui é incipiente), porém repercutir uma discussão fundamental em qualquer sistema jurídico sobre as possibilidades e contenções da responsabilidade civil. Em qualquer jurisdição, a reparabilidade da perda econômica pura está no ponto de encontro de questões cruciais, como estas: Esse tipo de interesse deve ser protegido? Se for o caso, por uma questão de política, a recuperação de danos econômicos puros deve ser de domínio principalmente da responsabilidade contratual? Se este não for o caso, até que ponto a responsabilidade extracontratual pode se expandir sem impor ônus excessivos à atividade individual?1 

O dano econômico puro pode ser conceituado como dano que não tenha implicado violação de direitos absolutos - propriedade ou direitos da personalidade - porém direitos meramente patrimoniais. O dano verbera na situação patrimonial global de alguém, sem, entretanto, haver a lesão de um bem absolutamente tutelado. A doutrina que se debruça sobre a matéria admite a sua indenizabilidade apenas em caráter excepcional. 

No particular, aduz CARNEIRO DA FRADA que em um espaço econômico aberto como o mercado, essa exigência especial "prende-se a necessidade de salvaguardar a liberdade de atuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma indiscriminada proteção do patrimônio em sede de responsabilidade civil delitual".2 

Uma primeira dificuldade é que estamos diante de uma conceituação negativa, pois não nos permite compreender no que verdadeiramente consistem em tais danos. Com efeito, nos ordenamentos onde o termo e´ bem reconhecido, a sua explicação costuma ser: "It is loss without antecedent harm to plaintiff 's person or property". A palavra "puro" desempenha um papel central, pois se houver perda econômica que esteja ligada a danos à pessoa ou propriedade do ofendido, então esta última é chamada de perda econômica consequencial e todo o conjunto de danos será indenizável (a perda econômica será um dano parasitário). A perda é recuperável porque pressupõe a existência de lesões físicas, enquanto a perda econômica pura atinge a carteira da vítima e nada mais.3 

Inexiste consenso terminológico e, portanto, encontramos variadas expressões que corresponde a que aqui adotamos, tal como dano patrimonial primário, perda econômica pura (pure economic loss), perda financeira (financial loss) - (bloss, rein ou primaer Vermoegensshaden), pois nunca houve a aceitação de uma definição universal dos danos puramente patrimoniais. 

A celeuma incide diretamente no âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, tendo em vista que em sede de responsabilidade civil obrigacional, seja em outros ordenamentos como no Brasil (art. 389, CC), a obrigação de indenizar reflete o fato jurídico do inadimplemento em sentido amplo, compreendendo a indenização mesmo o dano patrimonial puro, quando se encontre no âmbito da prévia conformação negocial, nos limites da autonomia privada. Todavia, mesmo uma violação a uma situação creditícia não repercute diante de terceiros afetados por danos econômicos puros. 

Vários ordenamentos discutem extensamente as justificativas que levam à exclusão da reparação de danos que não se prendem a posições absolutamente protegidas.

Quer dizer, o dano econômico puro se contrapõe aos chamados danos patrimoniais "consequentes", que são aqueles em que decorrem de uma prévia violação a um direito absoluto, normalmente objeto de indenização. Contudo, não se trata apenas de um discrímen entre tipos de interesse econômicos concretamente dignos de tutela, porém de uma mais ampla verificação sobre os limites entre a responsabilidade contratual e a extracontratual - e suas particularidades - e a possibilidade de uma responsabilidade pela confiança como terceira via que supra tais lacunas. Discutir o dano patrimonial puro também importa em refletir sobre a abrangência da responsabilidade pré-contratual, a operabilidade da eficácia externa de contratos e o âmbito de concretude da boa-fé objetiva e do abuso do direito. 

O direito inglês adota uma atitude geral de reserva perante estes danos. Há o receio de que a responsabilidade possa se estender a uma classe indeterminada de demandantes, em uma quantia indeterminada, colocando um encargo excessivo sobre o demandado.4 Some-se a isto o menor valor que se defere a interesses econômicos em contraposição a direitos da personalidade e ao direito de propriedade, a consideração que muitos danos econômicos puros (pure economic losses) não são custos sociais, porém apenas envolvem a transferência de riqueza de uma parte a outra, o que leva à conclusão que é preferível que esses custos sejam diluídos pela sociedade como um risco econômico em vez de se concentrarem no demandado, exceto se esse riscos foram objeto de alocação contratual, ou mesmo sem haver um contrato, se o causador do dano de alguma maneira assumiu alguma espécie de responsabilidade perante o ofendido.5 

De fato, em países das jurisdições do common law, assim como na Alemanha, Itália e Portugal a controvérsia avulta. Especificamente no BGB nasce a primeira oposição organizada do civil law ao sistema francês da cláusula geral do faute (abrangendo ilicitude e culpa). Nesse distinto sistema de responsabilidade civil, surge a objeção ao ressarcimento dos danos puramente patrimoniais, pois a pretensa ilicitude não se apresenta em um ordenamento que demanda a sua configuração somente diante da violação de direito absoluto. Talvez, como ironicamente já se colocou, a "síndrome da comporta" tenha atingido aqueles sistemas jurídicos em que o acesso à compensação seja balizado por diques de contenção, como na Inglaterra, onde as "causes of action" e precedentes vinculantes restringem determinados danos, ou mesmo na referida Alemanha, onde os interesses protegidos são colocados em caixas distintas e no momento em que irrompe um novo interesse, a síndrome é reativada.6 

Poderíamos arriscar que, salvo raras exceções,7 nossa displicência diante do assunto8 se justifique por dois aparentes motivos: a um, o Código Civil não distingue entre os diferentes tipos de dano; pelo contrário, nossas cláusulas gerais dos artigos 186 e 927 do Código Civil são generosas, abraçando qualquer espécie de dano patrimonial ou extrapatrimonial, incluindo aí danos patrimoniais puros. Especificamente em termos econômicos, tal como no paradigma do Código Francês, nossa cultura católica não aceita com facilidade a possibilidade de alguém obter lucros às expensas da desgraça alheia ("battre monnaie avec ses larmes" ou "making money out of one's tears"); a dois, como não podemos fugir à universal necessidade de evitar a anárquica reparabilidade de qualquer prejuízo - travestido como dano - a contenção de determinadas pretensões indenizatórias se dá via oblíqua de outros pressupostos da responsabilidade civil, sobremaneira a causalidade. 

Ilustrativamente, se por falta de combustível um carro é imobilizado em importante via urbana, provocando um enorme engarrafamento, derivando na perda de compromissos por parte de condutores retidos no trânsito, poderiam estes demandar contra o condutor negligente, seja pela perda de um exame, de um voo ou de possíveis lucros em uma reunião profissional? Em princípio, os tribunais brasileiros afastariam a demanda com base em uma causalidade remota, talvez assumam que conduzir carros em lugares movimentados implique na assunção de um risco, ou, então, caso admitam a reparabilidade, aplicariam a teoria da perda de uma chance para minimizar o montante da indenização. 

Em sentido distinto, em sede de direito comparado as respostas seriam mais diretas. Assim, no direito alemão a recusa à obrigação de indenizar resultaria da exegese das três pequenas cláusulas gerais de responsabilidade civil do BGB,9 ou seja, inexistência de violação de norma de proteção ou conduta ofensiva aos bons costumes. O mesmo se extraí do direito inglês, por não se identificar violação de dever de cuidado por parte do ofensor em relação ao ofendido. Idêntico resultado se afere no Código Civil de Portugal, por não haver violação de norma de proteção, ou de um direito absoluto, sequer se cogitar de um abuso do direito.10 

Contudo, o dano meramente econômico seria ressarcível se o motorista que ficara de transportar certa pessoa ao respectivo destino não tiver comparecido à hora marcada. Aqui não se aplicam as dificuldades suscitadas pois existe relação contratual entre lesante e lesado. A relação preexistente permite operar uma delimitação do círculo dos potenciais credores de indenização, perante os quais o devedor tem de agir com particular cuidado, designadamente evitando infringir obrigações e empregando em sua execução a diligência necessária.11

__________

1 BUSSANI, Mauro; SEBOK, Anthony; INFANTINO, Marta. Common Law and Civil Law Perspectives on Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 143.

2 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Forjar o direito. Coimbra: Almedina, 2019. p. 164.

3 BUSSANI, Mauro; SEBOK, Anthony; INFANTINO, Marta. Common Law and Civil Law Perspectives on Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 145.

4 "Em muitas situações em que a lei francesa permitiu que terceiros reivindicassem em contrato alheio, a única opção de acordo com a lei inglesa é uma demanda de responsabilidade civil, que está sujeita a regras restritivas sobre a recuperação de danos econômicos puras. Por exemplo, quando há contratos para a venda de mercadorias, ao contrário da França, na Inglaterra o comprador final pode apresentar uma reclamação contratual contra sua contraparte direta e não, contra as partes inferiores da cadeia. A opção de recorrer a uma ação delitiva pode ser mais aparente do que real, porque os tribunais se recusam a impor um dever de cuidado quando isso seria inconsistente com a estrutura contratual estabelecida, prejudicando o princípio da privacidade das partes". ROWAN, Solène. The New French Law of Contract. Oxford: Oxford University Press, 2022. p. 170.

5 OLIPHANT, Ken. Basic Questions of Tort Law. In: KOZIOL, Helmut (ed.). Basic Questions of tort law from a comparative perspective. Viena: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 410.

6 MORÉTEAU, Olivier. Basic Questions of tort law from the perspective of the USA. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015. p. 76.

7 FACCHINI NETO, Eugênio. Expandindo as fronteiras da responsabilidade civil: danos puramente econômicos. O autor os conceitua como: "Por dano puramente econômico entende-se aquele prejuízo que não afeta bem tangível de outrem, nem lesiona a integridade psicofísica alheia. Trata-se de dano puramente pecuniário: perda de dinheiro, de vantagem econômica ou aumento de despesas. A expressão "pure" ou "puramente" está a indicar que o tema não abrange aqueles outros danos econômicos que são consequências de um dano a coisas ou à pessoa, como ocorre com a figura semelhante, mas não idêntica, dos lucros cessantes". Revista de Direito Civil Contemporâneo - RDCC, 27, 2021, p. 153.

8 Em texto dedicado a temática no contexto comparativo entre Portugal e outros ordenamentos, Fábio Leite de Farias Brito confessa que "A nossa ideia inicial era a de realizar um estudo comparativo entre a responsabilidade civil extracontratual luso-brasileira, com enfoque sobre a questão dos danos puramente patrimoniais. A ideia, no entanto, foi descartada, pois sob a ótica da responsabilidade civil do direito brasileiro, a questão é praticamente desconhecida". BRITO, Fábio Leite de Farias. Responsabilidade civil por danos puramente patrimoniais. Anais do VII Encontro Internacional do CONPEDI/BRAGA - Portugal - Direito Civil Contemporâneo. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2022. p. 8.

9 O § 823 (1), que responsabiliza aquele que, com dolo ou negligência, lesar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito alheio; b) o § 823 (2), que responsabiliza quem viole uma disposição legal destinada à proteção de outrem; c) o § 826 que responsabiliza quem, dolosamente, provoque danos a alguém atentando contra os bons costumes.

10 Artigo 483º (Princípio geral) "1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

11 VICENTE, Dario Moura. Direito comparado. Obrigações. Coimbra: Almedina, 2017. v. II, p. 432.