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IA e medicina: Transparência, supervisão e responsabilidade

terça-feira, 15 de abril de 2025

Atualizado em 14 de abril de 2025 12:05

O uso de novas tecnologias se traduz como uma necessidade contemporânea. O próprio CFM estabelece no Código de Ética que é dever do médico desenvolver suas atividades conforme a melhor técnica e tecnologia disponível em benefício do paciente. Nesse cenário, o uso de inteligência artificial representa uma conquista inegável de como as novas tecnologias podem colaborar com o exercício da medicina.

A resolução CFM 2.381/24 normatiza a elaboração e a clareza dos documentos médicos, considerando a importância da comunicação eficaz entre médicos e pacientes para garantir a autonomia dos assistidos. Dentre os aspectos centrais trazidos pela norma, o que se observa é a preservação da autonomia do paciente e garantia de um processo de consentimento esclarecido eficaz e legítimo.

Observando a norma citada, o CFM buscou regulamentar os diversos tipos de documentos médicos como laudos, relatórios, pareceres, solicitação de exames, atestados e declarações. Ocorre que, apesar do detalhamento dos tipos de documentos existentes, o Conselho Federal de Medicina não tratou das formas de expedição e potencial limites para o exercício da IA em sua construção.

Logo, não há hoje uma orientação clara sobre o uso da IA, em que pese haver uma preocupação do CFM sobre sua incorporação no cotidiano médico, visto que foi criado o Departamento de Inteligência Artificial do CFM, coordenado pelo conselheiro Federal Jeancarlo Cavalcante - 3º vice-presidente e representante do Rio Grande do Norte, e ter criado uma pesquisa sobre o uso de inteligência artificial na medicina1

O ponto que se propõe discutir é o dever de transparência e extensão da responsabilidade do médico pelo uso de inteligência artificial na elaboração de documentos e na construção do processo diagnóstico.

Conforme estudo desenvolvido por Densen, o conhecimento médico demorava 50 anos para dobrar em 1950, caindo para 3,5 anos em 2010 e apenas 73 dias em 20202, de forma que o médico precisaria dedicar 29 horas por dia para absorver todas as novas informações3. Dentro desse cenário, o domínio tecnológico e uso da inteligência artificial tem o poder de reduzir verdadeiras via crúcis e também reduzir o trabalho burocrático realizado pelo médico.

Ocorre que o uso da tecnologia e o volume de informação tratado levanta três grandes questões: 

  • Qual o limite para uso da IA na medicina?
  • Qual a responsabilidade pelo uso da IA na medicina?
  • Há um dever de informação sobre o uso da IA?

Sobre os questionamentos formulados, é prudente destacar que a IA é uma ferramenta à disposição do profissional da medicina. Não substitui o médico, é apenas um instrumento que deve ser incorporado ao exercício profissional sem representar uma substituição do profissional físico pelo profissional "virtual". Assim como um exame médico tradicional, o médico deve se guiar pelo seu raciocínio clínico combinado com os achados durante o processo diagnóstico. Enquanto instrumental, o uso da IA deve ser supervisionado pelo médico, uma vez que, ao fim e ao cabo, a responsabilidade pelo ato profissional não pode ser transferida para uma inteligência artificial. A IA não pode ser usada como muleta para o médico, mas como instrumento complementar do ato médico. 

Considerando que o ato médico continua sendo praticado pelo profissional, a IA enquanto instrumento, assim como o médico, não tem o dever de acertar o diagnóstico, porém a IA, diante das informações disponibilizadas, não pode alucinar ou, caso alucine, o profissional tem o dever de supervisionar para evitar vieses e manifestações esdrúxulas. Apesar dos avanços rápidos, a IA ainda tem limitações, podendo falhar em reconhecer certos padrões, interpretar informações que dependem de contexto e levar em conta fatores emocionais que podem também influenciar a saúde do paciente e seu diagnóstico4.

Manifestações médicas, com o auxílio ou não da IA, devem estar dentro de um escopo do possível para fins de afastar a responsabilidade profissional. Ou seja, deve ser demonstrado um raciocínio clínico coerente, ainda que não gere conclusões verdadeiras. Nesse sentido, Reá-Neto destaca que:

Entretanto, o uso do raciocínio lógico não é uma garantia de conclusões verdadeiras. A lógica possui regras úteis para processar as informações clínicas na busca de uma solução adequada para o problema clínico, mas não integra nenhuma segurança de que as informações clínicas e suas interpretações estão corretas. A lógica estuda somente as formas de raciocínio e, não, os seus conteúdos. O médico necessita obter, analisar, sintetizar e avaliar adequadamente informações clínicas precisas e acuradas para, depois, processá-las de forma lógica. Somente assim ele estará próximo do raciocínio correto e da decisão certa.5  

Desta forma, a obrigação de meio e responsabilidade subjetiva dos profissionais de saúde exigem, para fins de responsabilização profissional, que a alucinação, seja esta virtual ou humana (erro profissional tradicional), gere uma realidade dissonante entre o quadro clínico do paciente e o potencial diagnóstico realizado ou documento elaborado.

A Associação Médica Americana recomenda diretrizes que podem servir de auxílio aos médicos no uso seguro da IA na sua prática clínica, são elas: é fundamental que a tecnologia seja segura, eficaz e baseada em evidências científicas; a sua adoção deve considerar a adequação ao contexto clínico, em especial ao perfil da população atendida; por fim, é necessário que a IA contribua de forma concreta para a melhoria dos resultados clínicos6. Uma análise dessas diretrizes deve ser realizada periodicamente pelo profissional médico que usa a tecnologia. 

Por outro lado, há um dever de transparência de que os atos e documentos médicos foram influenciados pela incorporação do uso da IA. O ganho de eficiência, potencial eficácia diagnóstica e celeridade do ato médico devem ser acompanhados da informação de que o médico utilizou a IA como instrumental na sua atuação.

O processo de consentimento se traduz como um processo dialógico construído entre médico e paciente. De acordo com o CFM:

As informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer. O paciente deve ter condições de confrontar as informações e os esclarecimentos recebidos com seus valores, projetos, crenças e experiências, para poder decidir e comunicar essa decisão, de maneira coerente e justificada.  

Ocorre que o paciente precisa saber a origem das informações para ele repassadas, sob pena do processo de consentimento ser parcial e, por vezes, viesado. Os pacientes devem ser informados sempre que a tecnologia for empregada em seu tratamento, incluindo quais dados serão coletados, bem como as formas de uso, tratamento e proteção dessas informações. Ao obter o consentimento para a utilização da IA, promove-se a participação ativa dos pacientes nas decisões relacionadas ao seu próprio cuidado em saúde7

Em não raras as situações, foi observado que o uso da IA na saúde pode acentuar desigualdades8, que podem ser observadas sob no mínimo duas óticas: se por um lado os algoritmos, ao serem alimentados com dados históricos que reflitam desigualdades de acesso aos serviços de saúde ou estereótipos sociais, podem reproduzir ou amplificar estas discrepâncias9, por outro lado a própria estrutura de implantação dessas tecnologias pode evidenciar desigualdades socioeconômicas e territoriais.10 

Desta forma, o médico pode e deve usar a IA como instrumento otimizador do exercício médico, notadamente por se traduzir como uma tecnologia disponível em benefício do ser humano. Porém, esse uso deve ser responsável, transparente e, sobretudo, crítico. Diagnósticos, condutas ou documentos elaborados com o auxílio da IA não são infalíveis, de modo que o profissional da medicina, para não responder civilmente pelo mau uso tecnológico ou por eventuais alucinações tecnológicas precisa supervisionar os atos da IA e, diante das sugestões propostas, refletir sobre a verossimilhança dos dados extraídos. Paralelamente, para que o processo de consentimento informado seja válido, é ainda fundamental que o paciente seja informado sobre o uso da IA, sob pena de termos um processo de consentimento deficiente.

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1 Disponível em https://portal.cfm.org.br/noticias/departamento-de-inteligencia-artificial-do-cfm-intensifica-trabalhos-para-aprimorar-a-pratica-medica-no-brasil e https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-inicia-pesquisa-sobre-o-uso-de-inteligencia-artificial-na-medicina. 

2 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American clinical and climatological association, v. 122, p. 48, 2011.

3 PARANJAPE, Ketan et al. "Short keynote paper: mainstreaming personalized healthcaretransforming healthcare through new era of artificial intelligence. IEEE Journal Of Biomedical And Health Informatics, v. 24, n. 7, jul. 2020. 

4 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024.

5 RÉA-NETO, A. Raciocínio clínico--o processo de decisão diagnóstica e terapêutica. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 44, p. 301-311, 1998.

6 American Medical Association. AMA Principles for Augmented Intelligence (AI) Development, Deployment and Use. Chicago: AMA, 2023.

7 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024.

8 NORORI, Natalia et al. Addressing bias in big data and AI for health care: A call for open science. Patterns, v. 2, n. 10, 2021; ABRÀMOFF, Michael D. et al. Considerations for addressing bias in artificial intelligence for health equity. NPJ digital medicine, v. 6, n. 1, p. 170, 2023 e AGARWAL, Ritu et al. Addressing algorithmic bias and the perpetuation of health inequities: An AI bias aware framework. Health Policy and Technology, v. 12, n. 1, p. 100702, 2023.

9 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024.

10 SMALLMAN, Melanie. "Multi scale ethics - Why we need to consider he ethics of AI in healthcare at diferent scales". Science and Engineering Ethics, v. 28, n. 63, 2022.