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A aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) como usos e costumes do comércio internacional

quinta-feira, 24 de março de 2022

Atualizado em 23 de março de 2022 18:39

Recentemente, ao julgar a apelação 1017219-07.2017.8.26.0004, o TJ/SP concluiu pela aplicação da CISG - Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, em um processo envolvendo a compra e venda de 5.040 caixas de kiwis, sob o fundamento de que a referida Convenção reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional, do qual as empresas brasileiras participam ativamente. O acórdão merece destaque e uma análise mais aprofundada sob o enfoque do Direito Marítimo, área em que os usos e costumes, como se sabe, possuem bastante relevância.

A CISG, como se sabe, é o conjunto de normas internacionais que regulamentam a formação, interpretação e obrigações referentes a contratos internacionais de compra e venda de mercadorias, sendo aplicável a todos aqueles que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos, quando tais Estados forem Estados Contratantes, exatamente como era o caso do processo acima indicado, envolvendo o comprador localizado no Brasil e o vendedor na Itália. Embora tenha sido elaborada em 1980 em uma Conferência das Nações Unidas sobre o tema, a Convenção só veio a ser ratificada pelo Brasil em 2014, tendo sido promulgada pelo decreto 8.327/14.

Na hipótese do acórdão em exame, a Apelante (empresa italiana) - vendedora dos kiwis - alegou que havia efetivamente celebrado o contrato de compra e venda com a Apelada (empresa brasileira) - compradora das frutas -, sendo que as mercadorias teriam sido embarcadas em um navio no porto de Gênova, na Itália, conforme comprovavam os conhecimentos de transporte marítimo (bills of lading) juntados ao processo pela Apelante. A apelada, por outro lado, negou ter adquirido os kiwis, argumentando, sobretudo, que inexistiria contrato escrito amparando a transação. Assim, alegou que nenhum pagamento seria devido à empresa italiana, negando a existência da transação.

O argumento da apelada de inexistência do negócio jurídico em virtude da ausência de contrato sob a forma escrita prevaleceu em primeira instância. Contudo, ao apreciar os documentos comprobatórios juntados pela apelante, a 32ª câmara de Direito Privado do TJ/SP concluiu pela celebração do contrato de compra e venda de kiwis entre as partes, fundamentando tal conclusão no art. 11 da CISG, que prevê que "[o] contrato de compra e venda não requer instrumento escrito nem está sujeito a qualquer requisito de forma".

Nos termos do voto relator, muito embora a Convenção tivesse sido promulgada após a celebração do negócio jurídico, que ocorreu em 2013, seria o caso de aplicar a norma do art. 11 da CISG como instrumento de "soft law" em Direito Internacional, "uma vez que a mesma, desde 1980, reflete os usos e costumes do direito do comércio internacional". Prosseguindo em sua fundamentação, o acórdão também invocou o art. 113 do CC/02, segundo o qual "[o]s negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".

Dessa forma, ainda que a CISG não fosse imediatamente aplicável ao caso concreto, o Tribunal decidiu que a Convenção poderia corroborar os usos e costumes do direito do comércio internacional, conferindo maior segurança jurídica a hipóteses como a tratada naquele processo. E, com base nisso, considerou os conhecimentos de embarque/transporte (bill of lading) em nome da compradora brasileira, cotejados com o restante do conjunto probatório (como os comprovantes de recebimento da mercadoria pela compradora no porto de Santos), como suficientes para se concluir pela formação e existência do contrato.

Neste aspecto, o acórdão também aplicou os arts. 18(3) da CISG1 e 432 do CC/022 para reforçar a aceitação eficaz da proposta (e consequente formação do contrato) através da prática de atos (independente de manifestação escrita) que indicavam a intenção da apelada/compradora de firmar a compra e venda.

Além disso, o acórdão do julgamento também fez menção a outros julgados proferidos pelos Tribunais pátrios que já decidiram pela aplicação da Convenção em contratos de compra e venda. Notadamente, na apelação 0305428-39.2014.8.24.0038, o TJ/SC aplicou especificamente ao art. 11 da CISG, também reconhecendo que a forma do negócio celebrado prescindia de instrumento formal e reforçando a importância da aplicação uniforme da Convenção pelos Estados brasileiros.

O TJ/RS, por sua vez, ao julgar a apelação 0000409-73.2017.8.21.7000, discorreu sobre a aplicação da CISG como instrumento de "soft law", destacando expressamente que "a Convenção constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias, estando por isso ao alcance dos Juízes nacionais, até mesmo em função da norma do art. 113 do Código Civil, que determina a interpretação dos negócios jurídicos de acordo com os usos e costumes".

Ainda segundo esse último acórdão, a Convenção tem sido qualificada como o "life blood of international commerce [sangue vital do comércio internacional]", já que se trata do mais utilizado instrumento jurídico de regulação da compra e venda internacional de mercadorias, contando com 85 ratificações, incluindo a China, EUA, Japão, Europa Ocidental, América Latina e Sudeste Asiático, regendo, assim, aproximadamente 80% do comércio internacional.

O recente julgado do TJ/SP reforça a aplicação da CISG como instrumento de "soft law" aplicável ao comércio internacional de mercadorias, especialmente por via marítima, mesmo nos casos em que a Convenção não for diretamente aplicável, como na hipótese julgada pelo referido acórdão, em que a compra e venda havia sido firmada antes mesmo da promulgação da CISG pelo decreto 8.327/14. Esse modelo de aplicação da Convenção pode representar, a depender das circunstâncias do caso concreto, uma inovação na forma como os Tribunais brasileiros interpretam e reconhecem negócios internacionais, não apenas no que diz respeito à desnecessidade de forma escrita para celebração do negócio, na forma do art. 11, citado no julgado, mas também nos demais aspectos que abrangem as obrigações assumidas pelos atores do comércio internacional.

No Direito Marítimo, sobretudo, o tema assume especial relevância na medida em que os usos e costumes, como se sabe, são particularmente importantes ao regular as especificidades dos negócios internacionais. A CISG, assim como outras convenções internacionais, tais como os INCOTERMS, tradicionalmente utilizados no comércio marítimo internacional, permite que empresas de diferentes nacionalidades adotem regras uniformes em suas transações, reduzindo a insegurança jurídica das partes. Aplicação da CISG pelos Tribunais brasileiros, desde que realizada de forma criteriosa e atenta às circunstâncias do caso concreto, pode constituir em importante avanço na melhoria do ambiente de negócios e redução dos custos de transação.  

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"(3) Se, todavia, em decorrência da proposta, ou de práticas estabelecidas entre as partes, ou ainda dos usos e costumes, o destinatário da proposta puder manifestar seu consentimento através da prática de ato relacionado, por exemplo, com a remessa das mercadorias ou com o pagamento do preço, ainda que sem comunicação ao proponente, a aceitação produzirá efeitos no momento em que esse ato for praticado, desde que observados os prazos previstos no parágrafo anterior."

2 "Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa."