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Da prescrição intercorrente nas hipóteses de multas impostas pela Receita Federal aos agentes marítimos por supostas infrações na inserção de dados no Siscarga

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Atualizado às 08:56

O presente excerto traz como mote principal a análise acerca da prescrição intercorrente nas hipóteses de multas administrativas impostas pela Receita Federal do Brasil (RFB) aos agentes marítimos por supostas infrações na alimentação de dados no Siscarga (Siscomex - Carga).

Inicialmente, cabe ressaltar que os agentes marítimos sequer possuem legitimidade para responder em nome próprio por infrações decorrentes de eventuais falhas na inserção de dados no Siscarga, na medida em que desempenham tal função na condição de meros mandatários, agindo por conta e risco dos transportadores marítimos.

Nesse aspecto, ressaltamos o ensinamento da autora Carla Gilbertoni:

"O agente marítimo surgiu como mero auxiliar dos capitães dos navios nos portos estrangeiros. Nessa função, apenas facilitava o trâmite e os despachos diante das autoridades locais e dos comerciantes. Com a evolução do comércio marítimo e o aumento da rotatividade das embarcações, passou a praticamente substituir os capitães no tocante às questões técnicas provenientes do negócio marítimo, tornando-se seu representante para atuar em seu nome, por sua conta e nos interesses".

(...)

"Compromete-se o agente marítimo a representar o navio em terra, praticando em nome do armador ou capitão os atos que esse teria de realizar pessoalmente. Vale-se, para isso, de contrato consensual, bilateral e contrato de agenciamento, o agente não exerce controle sobre o armador ou capitão do navio, na qualidade de "mandantes" são quem exercem "poderes" sobre o agente marítimo (mandatário), a partir dos poderes outorgados, conforme contrato de prestação de serviço firmado entre ambos."1

Cabe igualmente ressaltar o esclarecimento feito pela FENAMAR (Federação Nacional das Agências de Navegação Marítima) ao diferenciar agente de carga e agente marítimo:

"A atividade de agenciamento marítimo é uma ocupação cuja origem se perde no tempo e isso porque o transporte pelo mar sempre foi uma das principais formas de troca de mercadorias entre continentes. Ainda hoje, o transporte marítimo de cargas é responsável por cerca de 95% do comércio internacional, segundo a International Chamber of Shipping."1

Com efeito, este também o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca do conceito jurídico de agente marítimo e suas respectivas responsabilidades:

"Este Tribunal Superior, ao apreciar o tema, firmou entendimento de que o agente marítimo, figura específica do direito náutico, atua como mandatário mercantil do armador. Isso porque o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses, em terra, de forma onerosa, e no interesse deste (art. 653 do Código Civil). Assim, a natureza jurídica da relação entre o agente marítimo e armador é de mandato mercantil. Logo, a consequência inarredável é a de que o mandatário, quando age nos limites do mandato, não tem responsabilidade pelos danos causados a terceiros, pois não atua em seu próprio nome, mas em nome e por conta do mandante. Ademais, mesmo que o mandatário aja em desconformidade com o mandato, causando danos pela exacerbação dos seus poderes, sejam eles fraudulentos ou culposos, ainda assim será o mandante quem responderá perante os terceiros lesados, resguardando-se, neste caso específico, o direito de regresso do mandante contra o mandatário" (STJ, REsp nº 1448120-SP, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 03.02.2015).

Como está claro, o agente marítimo atua perante autoridades (incluindo a Receita Federal do Brasil) e terceiros agindo em nome e por conta do armador, nos termos do contrato de agenciamento e respectivo mandato, de sorte que não responde, em nome próprio, por eventuais infrações cometidas na alimentação de dados no sistema da Receita Federal destinados ao controle aduaneiro de embarcações e mercadorias.

No entanto, considerando o expressivo volume de multas administrativas lavradas pela Receita Federal contra agentes marítimos por infrações na alimentação de informações no referido sistema, exsurge a discussão acerca da prescrição intercorrente em tais hipóteses, cuja questão se pretende analisar neste artigo.

Especialmente no ano de 2021, a questão se tornou mais grave e ensejou uma série de discussões a respeito da responsabilização dos agentes marítimos. Na ocasião, alguns agentes, especialmente aqueles que atuam no Porto de Santos, foram penalizados pela RFB com a suspensão de um e até dois dias de atividade, por conta de alegada reincidência no cometimento de infrações na alimentação do Siscarga.

Neste viés, convém discutir o que vem ocorrendo em âmbito aduaneiro a respeito da aplicação da prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal, o que de certa forma impactaria na atuação dos já mencionados agentes marítimos, principalmente quando dos trâmites aduaneiros de importação e exportação de mercadorias.

A prescrição intercorrente é a perda do direito de exigir um direito pela ausência de ação durante certo período no curso de um procedimento. Tem como finalidade o princípio da duração razoável do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

No entanto, de acordo com a Súmula 11 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) "Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal".

O instituto da prescrição intercorrente se verifica quando a parte interessada pelo processo deixa de promover sua movimentação por determinado lapso temporal, de modo que tal efeito pode ser aplicado de ofício pela parte julgadora ou a requerimento da outra parte.

Assim, contesta-se sobremaneira a respeito do entendimento do CARF quanto a alegação de inaplicabilidade da prescrição intercorrente.

Sobre o assunto, destaca-se o entendimento da conselheira do CARF Maysa de Sá Pitombo ao proferir voto no acórdão 3402-008.556, que contraria a anterior decisão do Conselho:

"(...) A existência de regras processuais diferentes dentro do processo administrativo fiscal a depender da matéria em litígio é algo que passou a ser admitido de forma clara dentro deste Conselho com a regra do voto de desempate do artigo 19-E da lei 10.522/02, incluído pela lei 13.988/20, aplicável apenas para o "processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário". Inclusive, com a edição da Portaria ME 260/02, que indica como esse dispositivo deve ser aplicado neste CARF, foi expressamente diferenciado o processo de exigência do crédito tributário das demais espécies de processos de competência do Conselho (dentre as quais os processos de exigência do crédito não tributário em matéria aduaneira)."3

Conclui-se, portanto, que dentro da estrutura nuclear do referido Conselho já existem posicionamentos dissonantes a respeito do assunto. Não por acaso, inúmeros autores entendem que a citada Súmula 11 do CARF é manifestamente contrária ao ordenamento jurídico constitucional, lastreado pelo princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), assim como manifestamente contrária à dois princípios básicos da Administração Pública, quais sejam, os princípios da moralidade e eficiência, de acordo com o que estabelece o art. 37 da Magna Carta.4

Corroborando os pareceres e entendimentos expostos acima, faz-se relevante citar o recente Acórdão nº 5002763-04.2017.4.03.6100 do TRF da 3ª Região, que ao discutir o tema deixou sacramentada a seguinte decisão:

EMENTA. Agravo interno em Apelação Cível. Processual Civil. Aduaneiro. Agente de Carga. Obrigação de Prestar Informações Acerca Das Mercadorias Importadas. Inclusão De Dados No Siscomex Em Prazo Superior ao Permitido Pela Legislação de Regência. Incidência da Multa Prevista No Artigo 728, IV, "E", Do Decreto nº 6.759/09 e No Artigo 107, IV, "E", Do Decreto-Lei nº 37/66. Denúncia Espontânea. Inaplicabilidade. Decadência Não Verificada. Prescrição Intercorrente de Parte do Débito Mantida. Recursos Não Providos.

(...) Nos termos do art. 31, caput, do Decreto 6.759/09, "2. o transportador deve prestar à Secretaria da Receita Federal do Brasil, na forma e no prazo por ela estabelecido, as informações sobre as cargas transportadas, bem como sobre a chegada de veículo procedente do exterior ou a ele destinado."

3. Na singularidade, consta dos autos que a autora, por diversas vezes, registrou os dados pertinentes ao embarque de mercadoria exportada após o prazo definido na legislação de regência, o que torna escorreita a incidência da multa prevista no art. 107, IV, "e", do Decreto- Lei nº 37/66, com a redação dada pela Lei nº 10.833/03.

4. Improcede alegação da autora de nulidade do auto de infração por ausência de provas das infrações, haja vista que a autuação foi feita com base em informações prestadas pela própria empresa no Sistema SISCOMEX.

(...) 6. Também não há prova suficiente que a Administração estaria ferindo a isonomia ao afastar a penalidade aplicada à algumas empresas em situação idêntica à da autora. É certo que alegação e prova não se confundem (...).

7. O princípio da retroatividade da norma mais benéfica, previsto no art. 106, II, "a", do CTN, não tem qualquer relevância para o caso. A uma, pois estamos diante de infração formal de natureza administrativa, o que torna inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional. A duas, pois, de qualquer modo, a hipótese dos autos não se amoldaria ao que previsto no referido art. 106, II, do CTN; a novel legislação (IN RFB nº 1.096/10) não deixou de tratar o ato como infração, nem cominou penalidade menos severa, mas apenas previu um prazo maior para o cumprimento da obrigação.

8. Da mesma forma, não procede o pleito quanto à aplicação do instituto da denúncia espontânea ao caso, vez que o dever de prestar informação se caracteriza como obrigação acessória autônoma; o tão só cumprimento do prazo definido pela legislação já traduz a infração, de caráter formal, e faz incidir a respectiva penalidade.

9. A alteração promovida pela Lei nº 12.350/10 no art. 102, §2º, do Decreto-Lei 37/66 não afeta o citado entendimento, na medida em que a exclusão de penalidades de natureza administrativa com a denúncia espontânea só faz sentido para aquelas infrações cuja denúncia pelo próprio infrator aproveite à fiscalização.

10. Na prestação de informações fora do prazo estipulado, em sendo elemento autônomo e formal, a infração já se encontra perfectibilizada, inexistindo comportamento posterior do infrator que venha a ilidir a necessidade da punição. Ao contrário, admitir a denúncia espontânea no caso implicaria em tornar o prazo estipulado mera formalidade, afastada sempre que o administrado cumprisse a obrigação antes de ser devidamente penalizado.

11. O recurso da União Federal também não merece prosperar, pois, diante da natureza administrativa da infração em questão, é evidente a incidência da prescrição intercorrente prevista no § 1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99 quanto ao débito objeto do processo administrativo nº 10814008859/2007-21. Ressalto que a União, em momento algum, argumenta no sentido da não paralisação do processo administrativo por mais de três anos, limitando-se a questionar a aplicação da norma ao caso concreto.

12. A inovação legislativa mencionada pela agravante (artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002), não se aplica nos autos; o processo administrativo já se encerrou.

13. Decadência rejeitada. Agravos internos não providos."

Destarte, conforme ficou evidenciado em momento oportuno, a prescrição intercorrente é instituto previsto na legislação brasileira e tem como objetivo garantir a celeridade do processo judicial e a terminação daquele em tempo razoável. É o termo utilizado para descrever a situação na qual a parte autora de uma ação perde o direito de exigir judicialmente algum direito subjetivo por conta de sua inércia durante o decurso do processo, propriamente no momento da execução.

Um dos intuitos da prescrição intercorrente é impossibilitar que execuções judiciais aconteçam de forma indefinida, pois extingue-se o direito da parte autora da lide de requerer seu direito, caso este não se vislumbre após certo período.

Conforme foi exposto no acórdão supracitado, será considerado prescrito o procedimento administrativo no qual se constatar inércia da Administração Pública superior a três anos, nos termos do § 1º, do art. 1º, da lei 9.873/99:

 Art.1º, § 1º: Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendendo de julgamento ou de despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.

Portanto, o instituto da prescrição intercorrente no procedimento administrativo, previsto na mencionada lei 9.873/99, implica na perda do poder sancionador por omissão prolongada imputável ao órgão competente.

Desta feita, sempre que ocorrer a inércia no procedimento administrativo, pode-se falar sim em prescrição intercorrente, conforme referido na lei.

Diante do referido julgado, conclui-se que o posicionamento relacionado à inaplicabilidade da prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos, tal como estabelecido na citada Súmula 11 do CARF, não encontra respaldo no Poder Judiciário, conforme aqui exposto.

Em outras palavras, com a devida vênia ao entendimento em sentido contrário, é absolutamente inconcebível a aplicação da Súmula 11 do CARF que prevê a inaplicabilidade da prescrição intercorrente no procedimento administrativo.

Os sistemas nos quais estão baseados o comércio exterior brasileiro, tais como o Siscarga, dentre outros, por estarem resguardados pelos ditames que norteiam o Direito Administrativo e seguirem os preceitos do procedimento aduaneiro,  como previsto no Regulamento Aduaneiro (Decreto-Lei 6.759/09), incluindo-se as hipóteses decorrentes de multas lavradas contra agentes marítimos por eventuais infrações na inserção de dados no Siscarga da RFB, deverão ser  alcançados pela prescrição intercorrente, quando verificada a inércia dos respectivos processos administrativos por período igual ou superior a três anos, restando assegurada, em última análise, a segurança jurídica dos envolvidos.  

__________

1 Carla Adriana Comitre Gilbertoni, Teoria e Prática do Direito Marítimo, p. 175.

2 Cristina Wadner D'antonio e Marcelo Sammarco, Agente marítimo e agente de carga: distinções de fato e de direito, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/359057/agente-maritimo-e-agente-de-carga-distincoes-de-fato-e-de-direito.

3 Lucas Siqueira dos Santos, A prescrição intercorrente no processo administrativo federal e a necessidade de revisão da súmula 11-CARF -pt.2. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/361376/a-prescricao-intercorrente-no-processo-administrativo-federal

4 Idem.