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Um novo olhar sobre a forma de cobrança da sobre-estadia e o direito do credor

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Atualizado às 07:25

A sobre-estadia é instituto próprio do direito marítimo e há muito integra a chamada Lex Mercatoria, podendo ser definida como o valor devido quando do atraso na devolução do contêiner, após esgotado o período livre concedido, conhecido como "franquia" ou "free time".

Trata-se de uma espécie de indenização previamente estabelecida, na medida em que seu valor está estabelecido em tabela própria do armador, em geral, de caráter progressivo. 

Assim, considerando que o transportador utiliza-se das unidades de contêiner para realizar seus contratos de transportes, não é demasiado concluir que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico, já que a atividade principal do transportador é vender frete, e frete representa espaço disponível no navio. Em se tratando de navio de carga conteinerizada, indispensável a reutilização do equipamento1.

A controvérsia posta, para delimitação do tema, está na possibilidade ou não da chamada cobrança "à vista" da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do contêiner, sem o seu pagamento. 

Primeiramente, para encaminhamento do raciocínio, convém anotar que inexiste, no caso, como regra, relação de consumo ou parte hipossuficiente.

A relação jurídica é de insumo e não de consumo.

 Sequer haverá de se cogitar de parte hipossuficiente a justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP.

Aqui, as partes estão acostumadas com as práticas comerciais do transporte marítimo de cargas e cientes dos riscos e consequências do negócio.

Não há ingênuos nesse ramo empresarial.

Portanto, estamos a tratar de um contrato empresarial de lucro, sem relação de consumo e sem partes hipossuficientes, a atrair o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil.

Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção mínima na relação jurídica, apenas excepcional.

Repito, por ser importante, está-se diante uma relação empresarial privada e, como regra, imune à intervenção estatal que, se efetivada, estará a desestabilizar toda uma cadeia globalizada e precificada segundos riscos conhecidos e assumidos.

Não há espaço para o que chamo de "Estado Babá".

Afirmado isso em preliminar, digo que, ao meu sentir, é possível a cobrança à vista da sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do período livre contratualmente ajustado entre as partes e independentemente de qualquer ato jurídico do credor para fins de constituição em mora.

A cobrança à vista da sobre-estadia está prevista em lei, mais precisamente no artigo 331, do Código Civil2.

Existindo a obrigação, não tendo sido ajustado pelas partes prazo para pagamento, nem havendo disposição legal em sentido contrário, constitui faculdade do credor exigir o seu pagamento de imediato, sem qualquer ato prévio de constituição em mora ou providência jurídica semelhante.

Nessas condições, é direito potestativo do credor exigir o pagamento imediato, não havendo, na lei, qualquer ato do devedor capaz de obstar ou reduzir essa prerrogativa que assiste ao credor da obrigação.

Aliás, importante destacar o emprego do vocábulo "imediato" pelo legislador, a reforçar ideia da força do direito que assiste ao credor.

Além da previsão legal, também é importante o destaque no sentido de que, no mais das vezes, a cobrança à vista decorre do próprio ajuste de vontades das partes, instrumentalizado no contrato de transporte.

Contratos são celebrados para ser cumpridos.

Portanto, não cumprida a obrigação no prazo ajustado, está em mora o devedor, facultando ao credor exigir o seu pagamento imediato, não representando a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia qualquer hipótese do seu afastamento, permanecendo ela - mora - até a efetiva devolução dos contêiners.

Portanto, penso eu, é incorreto afirmar que houve o que se convencionou propositadamente chamar de "cobrança antecipada" de sobre-estadia, para travestir de ilícito o que é lícito, na medida em que houve tão somente cobrança à vista - imediata nos termos da lei -, em consonância com o disposto no artigo 331, do Código Civil e, eventualmente, com o ajustado em contrato.

Havendo amparo na lei e no contrato, não há recusa injustificada no recebimento dos contêineres sem o pagamento da sobre-estadia.

Por honestidade intelectual com o leitor, cito jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo3 a respeito da possibilidade da cobrança à vista da sobre-estadia, fundada no artigo 331, do Código Civil, e no contrato, porém é possível encontrar outras em sentido contrário a essa mesma tese.

Se o leitor me permitir, ainda sobre esse tema, pretendo ir mais além.

Pretendo lançar ao debate dois institutos de relevo para nossa reflexão, a saber: i) a autotutela, com a proposta de um olhar para o presente; e ii) o abuso do direito, com uma vertente para o direito de ação e seu desvirtuado uso como forma de perpetuar a inadimplência. 

Sobre o primeiro - autotutela -, de saída, repito, que não se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor. Isso porque se coloca o fato descrito, propositadamente, travestido com essa natureza, visando transformar o lícito em ilícito, porém não é disso que se trata. 

Admito que é tênue a linha que separa o exercício regular do direito e o exercício arbitrário das próprias razões, mas não pode ser arbitrário o que decorre de previsão legal e contratual, protegendo a boa-fé do credor da obrigação em detrimento da má-fé do devedor que prefere a inadimplência ao pagamento. 

Ainda que assim não fosse, com os holofotes voltados para um olhar do estado atual das relações sociais, é interessante registrar que a autotutela não se trata de instituto desconhecido do direito brasileiro. 

Veja-se os seguintes casos no Código Civil: i) a legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188); ii) a legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º); iii) a autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único); e iv) o direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434).

Quando falo de olhar para o presente, estou a me referir ao fato de que a inexistência de previsão específica para a situação da sobre-estadia se justifica porquanto as normas citadas são repetições de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga via contêiner com a pujança dos dias atuais, muito menos se cogitava de uma cultura permissiva da inadimplência, invertendo-se os polos da boa-fé.

Interessante é verificar que, na hipótese da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, a retenção, nos termos da lei civil, existe como forma de garantia do pagamento da obrigação assumida. Na hipótese do desforço imediato, nas relações possessórias, a garantia é do direito de posse do bem.

E possível citar, ainda, inúmeras outras relações contratuais atuais que trazem em seu conteúdo previsões típicas de autotutela, a título de exemplo, os contratos bancários, os contratos de locação de veículo e os chamados smart contracts, a revelar a plena aceitação do instituto mesmo sem previsão legal expressa.

Aliás, de arremate, com base nas regras de experiência comum, confira-se o procedimento da locação de veículos, em que as operadoras, de posse prévia do cartão de crédito do locatário, na hipótese de devolução com atraso, cobram "à vista", - de imediato -, os valores dos dias excedidos. Aqui, sequer se cogita de agendamento ou procedimento parecido.

Devolveu com atraso, pagou!

É a autotutela em seu grau máximo. 

No tocante ao segundo ponto - abuso do direito -, afirmo que no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de qualquer mecanismo para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O contratante, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir.

O cumprimento voluntário da obrigação assumida é o caminho natural no universo da boa-fé.

Nem tudo são flores!

Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque, como vetor de conduta, a boa-fé objetiva do artigo 4224, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 1875, do mesmo Código Civil.

Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que "... a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada..."6. Sem destaques no original.

Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil.

Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um "ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito"7. 

É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução.

No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito.

Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir.

No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do contêiner, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial.

A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação.

É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF8. 

Em conclusão, me permito afirmar que:

1- A sobre-estadia é instituto inerente ao direito marítimo;

2- Nas relações decorrentes do transporte marítimo de carga não há, como regra, relação de consumo ou imposição de regras contratuais decorrentes de típico contrato de adesão;

3- A cobrança da sobre-estadia à vista tem previsão legal no Artigo 331, do Código Civil, ainda que não prevista na relação contratual;

4- A cobrança da sobre-estadia pode ter previsão contratual, decorrente do ajuste de vontades das partes quanto à essa forma de cobrança;

5- O instituto da autotutela não é desconhecido do direito brasileiro e está a exigir um novo olhar a partir de novas práticas empresariais e do estado atual das relações sociais;

6- O direito constitucional de ação não pode ser exercido de modo abusivo com vistas à perpetuação da situação de inadimplência;

7- Ao senso de justiça comum, a obrigação é para ser cumprida conforme convencionada, sob pena de violação da boa-fé objetiva.

__________

1 GIBERTONI. Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3ª Edição. 2014. Ed. Renovar. p. 447.

Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.

3 Legitimidade para a causa - Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais Transporte marítimo Autora que é proprietária da carga armanezada nos contêineres de propriedade da ré, sendo parte legítima para pleitear judicialmente a devolução das unidades de armazenamento Preliminar suscitada pela ré afastada. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais Transporte marítimo. Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias Sentença de procedência da ação Pedido de reforma Cabimento Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança Irrelevância na hipótese vertente Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima Pedido obrigacional da autora rejeitado. (TJSP, Apelação Cível nº 1005951-86.2021.8.26.0562, da Comarca de Santos, 23ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, 26 de abril de 2023, Relator Desembargador José Marcos Marrone). Grifei.

4 Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

5 Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

6 Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método.

7 Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva.

8 Artigo 5º... XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.