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Sites de intermediação de compra e venda não precisam fazer prévia fiscalização de produtos anunciados: Como o notário pode atuar na segurança dos negócios online

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Atualizado às 07:49

As facilidades e vantagens da internet são inegáveis, e a conexão digital transformou a maneira de consumir. Produtos e serviços, dos mais simples aos mais sofisticados, estão disponíveis a um clique em sites e aplicativos online. O impacto é tão significativo que estabelecimentos tradicionais migraram para o digital e ao lado deles estão os sites e aplicativos dedicados a intermediar a venda de produtos e serviços ofertados por pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais, por meio da publicação de anúncios com o objetivo de aproximar quem vende de quem compra, denominados marketplaces, de modo semelhante aos antigos (e quase extintos) cadernos de classificados dos jornais ou o shopping center. Para os estabelecimentos tradicionais, as vantagens são a ampliação do leque de ofertas sem a necessidade de estoque, a redução do preço e o acesso para compra a qualquer hora. Para os marketplaces, a superexposição gera alcance a um número maior de potenciais interessados, propiciando a comercialização por profissionais ou não, trazendo praticidade para quem compra, na comparação e escolha dos produtos e preços. Um novo ambiente para o consumo, que está em constante aprimoramento e crescimento, exigindo do comprador cuidados e atenção específicos, pois os riscos do mundo virtual nem sempre são visíveis aos olhos. Por vezes, camuflam-se em anúncios sedutores e irresistíveis, que visam lesar o cidadão, ou se escondem no caminho percorrido pelos bytes, que viajam por roteadores e servidores.

Navegar por sites que intermedeiam a venda é uma experiência que envolve a exposição massiva a ofertas promovidas por anunciantes cadastrados na plataforma. É possível que os anúncios sejam falsos, que os produtos oferecidos sejam falsificados, ilícitos ou sequer existentes. Esquemas de fraude envolvendo a compra e venda de veículos em plataformas online são um exemplo muito comum. Conforme o estudo conduzido pela AllowMe, icarros Itaú, OLX, Unico, Who e Zoop para terceira edição da semana da segurança: "No Brasil, 80 mil pessoas já foram vítimas de golpes online em 2023". O estudo revelou, também, que os golpes mais aplicados são de falso pagamento, invasão de conta e, no terceiro lugar, os anúncios falsos.1 Neste contexto, surgem indagações sobre qual o padrão de comportamento que o cidadão, usuário, consumidor deve adotar, e o que é exigível do provedor de aplicação responsável por viabilizar a publicização dos anúncios. É possível responsabilizar o provedor no caso de um anúncio falso? Existe possibilidade de redução do risco de prejuízo relacionado a anúncio falso nas negociações online?

Antes mesmo da vigência do Marco Civil da Internet, em meados de 2013, a Terceira Turma do STJ enfrentou discussão relativa à propagação da violação de uma determinada marca em site quando do julgamento do REsp 1.383.354/SP. A Corte Superior assentou entendimento de que serviços de intermediação virtual de compra e venda (marketplaces) são caracterizados por proverem espaço para criação de conteúdo, o qual não é gerenciado, organizado ou editado pela plataforma online, razão pela qual não caberia lhe impor a fiscalização preventiva sobre a origem dos produtos postos em circulação. De acordo com o julgado, o serviço é de caráter informativo, promovendo a aproximação de pessoas com interesses comuns e a obtenção do histórico de vendedores e compradores. Por outro lado, foi ressaltado o dever do provedor, de adotar providências para individualização dos anunciantes2. O precedente oferece reflexões interessantes quanto ao dever (ou não) de fiscalização pelos sites e quanto à obrigação de individualização do anunciante infrator.3

Transcorridos dez anos daquele julgamento, o STJ recentemente examinou tema semelhante, agora sob a vigência do Marco Civil da Internet, em caso envolvendo a perpetuação de violações de direitos autorais dentro de uma plataforma online. O AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1.890.786/DF, julgado pela Quarta Turma do STJ, em 30 de outubro de 2023, reafirmou o entendimento de que (a) "não se pode impor aos sites de intermediação de venda e compra a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos anunciados, na medida em que não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado" e que (b) é necessária a indicação precisa do localizador URL do conteúdo ilícito como condição para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da internet.4 O caso concreto envolvia a violação de direitos autorais por meio da oferta de comercialização não autorizada de um curso em plataforma online mantida pelo provedor de aplicação.

O debate convida ao estudo da intersecção entre diplomas legais como a Lei n°. 9.610/98 (direitos autorais), a Lei n°. 9.279/96 (propriedade intelectual), a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), a lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) e a lei 14.711/23 (Marco Legal das Garantias). O texto se aterá a esses dois últimos.

Apenas para evitar equívocos quanto aos conceitos e obrigações legais, convém  distinguir (a) provedor de conexão e (b) provedor de aplicação. O primeiro tem um papel ativo no fornecimento de acesso à internet, estabelecendo a lei o dever de guarda de registros de conexões (art. 13, Marco Civil da Internet), enquanto o segundo oferece seus serviços em rede, tendo o dever de guarda dos registros de acesso das aplicações (art. 15, Marco Civil da Internet). O comércio eletrônico realizado nos marketplaces é feito por provedores de aplicação.5 A distinção é importante, pois, a teor do 18, caput, do Marco Civil da Internet, o provedor de conexão não responde pelo conteúdo gerado por terceiros, diversamente do que acontece com o provedor de aplicação, que poderá ser responsabilizado na hipótese descrita no art. 19, caput, do Marco Civil da Internet.6

Considerando que os sites de intermediação são provedores de conteúdo (portanto, de aplicação), como dito, o STJ tem alinhado seu entendimento no sentido de que é inviável imputar-lhes a prévia fiscalização, visto que não é atividade intrínseca ao serviço prestado. Interessante mencionar que os julgados adotam o critério da diligência média para aferição de responsabilidade, que assim se traduz: a) na dimensão do provedor, pela adoção de providências para individualização do usuário sob pena de culpa in omitendo7, e; b) na dimensão do usuário, pela adoção de cuidados mínimos, considerados normais ou esperados (aqueles exigíveis do homem médio) para garantir o sucesso de sua negociação8.

De acordo com a legislação vigente, a publicação de anúncio online falso e exponencialmente lesivo, somente gera responsabilidade para o provedor de aplicação no caso de não adoção das providências para tornar indisponível o conteúdo após ordem judicial - que deverá conter a identificação clara e específica do conteúdo, conforme o art. 19, do Marco Civil da Internet. A necessidade da ordem judicial se justificaria na garantia de assegurar a liberdade de expressão e a vedação à censura. Todavia, é inequívoco que, quanto mais tempo o anúncio estiver no site, mais pessoas poderão ser suas vítimas. Assim, diante da escolha do legislador, é preciso reforçar os mecanismos de proteção para que golpes ou fraudes não se concretizem. Neste contexto é que entra a lei 14.711/23, trazendo uma novidade capaz de contribuir com a segurança dos negócios online. Trata-se da atuação do tabelião de notas como agente de garantia (escrow agent).

O art. 7-A, § 1º, da lei 14.711/23 prevê a possibilidade de recebimento ou consignação do preço pelo tabelião de notas, que ficará responsável por seu repasse à parte devida depois de constatada a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis. Nas vendas online a utilização do serviço notarial do agente de garantia pode oferecer segurança para quem vende e para quem compra, tendo em vista que o valor permanece sob custódia do tabelião de notas, somente sendo liberado a quem de direito de acordo com as condições negociadas. Com isso, o risco de prejuízo pela não localização do vendedor depois de pagar e não receber, ou pelo recebimento de coisa diversa da esperada, para citar alguns, desaparece. O agente de garantia também afasta a prática lesiva de utilização da plataforma para atrair o negócio e depois levar o interessado para fora dela na hora de fazer o pagamento, o que muitas vezes impossibilita a recuperação do valor pago em conta de terceiro.

Mas não é só isso, para os provedores de aplicação, em razão da responsabilidade de individualização dos anunciantes, a utilização do serviço notarial torna a identificação do cadastrante mais precisa, minimizando os riscos de fraude no cadastro. O que se observa hoje é que para anunciar em sites de marketplace são coletados alguns dados pessoais, sem que haja a conferência, o que certamente não atende (em completo) ao dever de individualização que tem por objetivo evitar que eventuais ilícitos não caiam no anonimato.

Por fim, é preciso advertir que a verificação de cadastros dos usuários transmite maior confiança ao usuário adquirente, contudo, não elimina totalmente riscos de esquemas fraudulentos  - afinal, um usuário verificado, com várias vendas realizadas e feedbacks positivos pode ter sua conta invadida. Além disso, criminosos por vezes se valem de sites falsos (scam websites) para ludibriar usuários, fazendo crer que estão no marketplace que desejavam acessar. Atenção e cuidados por parte do usuário são indispensáveis, sempre.

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1 LUCIO, Amanda. No Brasil, 80 mil pessoas já foram vítimas de golpes online em 2023. 27/10/2023. E-commercebrasil. Disponível aqui. Acesso em: 20 jan. 2024.

2 STJ. REsp n. 1.383.354/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/2013, DJe de 26/9/2013.

3 Por pertinente, é possível referir outros precedentes do STJ que debateram essa matéria. Cf. REsp 1.308.830/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 19.06.2012. No mesmo sentido: AgRg no AREsp 308.163/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 21.05.2013; AgRg no AREsp 137.944/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, DJe de 08.04.2013; e 1.300.161/RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 26.06.2012

4 STJ. AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp n. 1.890.786/DF. Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 30/10/2023, DJe de 3/11/2023.

5 HAIKAL, Victor Auilo. Da significação Jurídica dos conceitos integrantes do art. 5º: [...]. In: Marco Civil da Internet. LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 323.

6 CABELLO, Marcos Antonio Assumpção. Da guarda de acesso à registro de aplicações na internet. In: Marco Civil da Internet. LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 719.

7 STJ, REsp 1193764/SP, rel. Min. Nany Andrighi, j. em 14.12.2010 e REsp 1383354/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 26/09/2013.

8 STJ, REsp n. 1.217.171/RJ, relator Ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 4/8/2020.