A transformação digital no registro de imóveis brasileiro e a reforma do art. 194 da lei 6.015/73
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado em 17 de dezembro de 2025 11:03
Sumário executivo
A reforma do art. 194 da lei 6.015/73, pela lei 14.382/22, institui a transição completa do sistema registral para um ecossistema digital. A nova regra universaliza a digitalização de todos os títulos, que são devolvidos ao apresentante, com arquivamento exclusivamente digital, redefinindo a fé pública. Este modelo é sustentado pelo decreto 10.278/20 (padrões técnicos), pela lei 14.063/20 (assinaturas eletrônicas) e consolidado pelo provimento 149/24 do CNJ (operacionalização via SERP). A implementação enfrenta desafios de infraestrutura e segurança, enquanto a jurisprudência debate a flexibilização do formalismo versus a indispensabilidade da qualificação registral.
1. Fundamentos técnicos: O decreto 10.278/20
1.1 O paradigma da equivalência legal
O decreto 10.278/20 constitui a pedra angular da digitalização no Brasil, estabelecendo os requisitos técnicos para que "os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais". Seu âmbito de aplicação é amplo, cobrindo documentos produzidos tanto por entidades públicas quanto por particulares para comprovação perante terceiros.
1.2 Requisitos gerais de digitalização
O art. 4º do decreto estabelece que os procedimentos de digitalização devem assegurar cinco pilares fundamentais:
- Integridade e confiabilidade do documento digitalizado;
- Rastreabilidade e auditabilidade dos procedimentos;
- Emprego de padrões técnicos para garantir qualidade de imagem e legibilidade;
- Confidencialidade, quando aplicável;
- Interoperabilidade entre sistemas informatizados.
1.3 Padrões técnicos mínimos
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Tipo de Documento Original |
Resolução Mínima |
Cor |
Formato de Arquivo* |
|
Textos impressos, sem ilustração, P&B |
300 dpi |
Monocromático |
PDF/A |
|
Plantas e mapas |
600 dpi |
Monocromático |
PNG |
É exigido que qualquer compressão de arquivo seja realizada sem perda de dados.*
1.4 Sistema de metadados
O decreto estabelece um sistema abrangente de metadados obrigatórios, funcionando como uma "certidão de nascimento" digital:
Para todos os documentos:
- Assunto, autor, data e local da digitalização;
- Identificador único, responsável pela digitalização;
- Título, tipo documental;
- Hash (checksum) da imagem para verificação de integridade.
Para documentos de entidades públicas (adicionais):
- Classe (plano de classificação), Data de produção do original;
- Destinação prevista e Prazo de guarda.
2. Marco regulatório das assinaturas eletrônicas: Lei 14.063/20
2.1 Classificação das assinaturas eletrônicas
A lei 14.063/20 estabeleceu o marco regulatório para as assinaturas eletrônicas no Brasil, definindo três tipos com níveis crescentes de segurança:
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Tipo |
Características |
Aplicação Registral |
|
Simples |
Identificação básica do signatário |
Não aceita |
|
Avançada |
Identificação do signatário + detecção de alterações |
Aceita com restrições |
|
Qualificada |
Certificado digital qualificado + dispositivo qualificado |
Aceita integralmente |
2.2 Assinatura eletrônica qualificada
Segundo o art. 4º, inciso III da lei 14.063/20, a assinatura eletrônica qualificada é aquela que "utiliza certificado digital qualificado e é criada por dispositivo de criação de assinatura eletrônica qualificado". As assinaturas qualificadas e avançadas garantem autenticidade, integridade e não repúdio dos documentos eletrônicos.
3. A transformação do art. 194: Lei 14.382/22
3.1 Revolução paradigmática
O epicentro da revolução digital no sistema registral brasileiro é a alteração do art. 194 da lei 6.015/73, que inverte completamente a lógica do arquivamento, substituindo a guarda física obrigatória pela desmaterialização digital como regra universal.
3.2 Análise comparativa das redações
- Redação original:
- Arquivamento físico restrito a "títulos de natureza particular apresentados em uma só via".
- Foco na preservação institucional de documentos privados.
- Nova redação (lei 14.382/22):
- "Os títulos físicos serão digitalizados, devolvidos aos apresentantes e mantidos exclusivamente em arquivo digital".
- Abrange "todos os títulos físicos", eliminando distinções e universalizando o procedimento.
Essa mudança representa uma alteração filosófica fundamental: o cartório deixa de ser um repositório físico de originais para se tornar um gestor de representações digitais com fé pública.
3.3 As três inovações fundamentais
Conforme observado por Abelin, Chalhub e Viale, a reforma introduz três inovações principais:
- Universalização do arquivamento digital: O procedimento se aplica a todos os títulos registrados, abandonando a distinção prévia entre documentos públicos e particulares.
- Devolução obrigatória dos originais: Após a digitalização, a via física deve ser devolvida ao apresentante com as devidas certificações, eliminando a necessidade de múltiplas vias.
- Dependência de regulamentação técnica: A plena implementação depende de regulamentação específica da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ.
3.4 Incorporação das exigências de assinatura eletrônica
A lei 14.382/22 incorporou ao sistema registral as exigências de assinatura eletrônica:
- Lei 6.015/73 (Art. 17, § 1º): "O acesso ou o envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet, deverão ser assinados com o uso de assinatura avançada ou qualificada".
- Lei 11.977/09 (Art. 38): "Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada".
4. Regulamentação do CNJ: Provimento 149/24
4.1 Consolidação do ecossistema digital
O provimento 149/24 do CNJ, com as alterações do provimento 180/24, estabelece as diretrizes para a recepção de títulos e documentos por via eletrônica, consolidando o novo ecossistema.
4.2 Recepção eletrônica obrigatória
Modalidades diferenciadas:
- Tabeliães: Meios que comprovem autoria e integridade.
- Oficiais de Registro: Preferencialmente o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP) ou sistemas próprios que garantam autoria e integridade.
4.3 Definições de títulos eletrônicos
- Títulos nato-digitais: Documentos gerados eletronicamente, incluindo documentos públicos/particulares em PDF/A com assinatura eletrônica qualificada/avançada, certidões eletrônicas, documentos desmaterializados e documentos judiciais obtidos por acesso direto.
- Títulos digitalizados com padrões técnicos: Aqueles que seguem os critérios do Decreto nº 10.278/2020, podendo utilizar assinatura eletrônica qualificada ou avançada.
4.4 Mecanismo de controle
Mesmo com a recepção eletrônica obrigatória, o oficial ou tabelião pode exigir a apresentação do documento original em caso de dúvida sobre autenticidade e integridade, podendo requerer providências ao juiz competente.
4.5 Seção II - Da recepção de títulos e documentos por via eletrônica (texto corrigido do provimento)
Art. 208. Os oficiais de registro e os tabeliães deverão recepcionar diretamente títulos e documentos nato-digitais ou digitalizados, observado o seguinte: (redação dada pelo provimento 180, de 16/8/2024) I - a recepção pelos tabeliães de notas e de protestos ocorrerá por meio que comprove a autoria e integridade do arquivo; (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) II - a recepção pelos oficiais de registro ocorrerá por meio: (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) a) preferencialmente, do SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos e dos sistemas que o integram (especialmente os indicados nos incisos I a III do § 1º do art. 211 deste Código); ou (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) b) de sistema ou plataforma facultativamente mantidos em suas próprias serventias, desde que tenham sido produzidos por meios que permitam certeza quanto à autoria e integridade. (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024)
§ 1º Consideram-se títulos nato-digitais, para todas as atividades, sem prejuízo daqueles previstos em lei específica: (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) I - o documento público ou particular gerado eletronicamente em PDF/A e assinado, por todos os signatários (inclusive testemunhas), com assinatura eletrônica qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e registrais (art. 17, §§ 1º e 2º, da lei 6.015/1973; art. 38, § 2º, da lei 11.977/09; art. 285, I, deste Código); (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) II - o documento público ou particular para o qual seja exigível a assinatura apenas do apresentante, desde que gerado eletronicamente em PDF/A e assinado por aquele com assinatura eletrônica qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e registrais (art. 17, §§ 1º e 2º, da lei 6.015/1973; art. 38, § 2º, da lei 11.977/09; art. 285, I, deste Código); (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) III - a certidão ou o traslado notarial gerado eletronicamente em PDF/A ou XML e assinado por tabelião de notas, seu substituto ou preposto; (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) IV - os documentos desmaterializados por qualquer notário ou registrador, gerados em PDF/A e assinados por ele, seus substitutos ou prepostos com assinatura qualificada ou avançada; (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024) V - cartas de sentença, formais de partilha, cartas de adjudicação, os mandados de registro, de averbação e de retificação, obtidos na forma do inciso I ou por acesso direto do oficial do registro ao processo judicial eletrônico, a requerimento do interessado; (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024)
§ 2º Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278, de 18 de março de 2020, inclusive os que utilizem assinatura eletrônica qualificada ou avançada admitida perante os registros públicos (art. 17, §§ 1º e 2º, da lei 6.015/1973; art. 38, § 2º, da lei 11.977/09; art. 285, I, deste Código). (incluído pelo provimento 180, de 16/8/2024)
Art. 209. (revogado pelo provimento 180, de 16/8/2024)
Art. 210. Os oficiais de registro ou tabeliães, quando recepcionarem título ou documento digitalizado, poderão exigir a apresentação do original e, em caso de dúvida, poderão requerer, ao juiz, na forma da lei, providências para esclarecimento da autenticidade e integridade. (redação dada pelo provimento 180, de 16/8/2024)
5. Vulnerabilidade probatória e cessção da fé pública
5.1 Nova dinâmica probatória
A digitalização introduz vulnerabilidade para documentos particulares, conforme o CPC:
- Art. 428: A fé de um documento particular cessa quando sua autenticidade é impugnada, até que se comprove sua veracidade.
- Art. 429, II: Em caso de impugnação de autenticidade, o ônus de provar a veracidade recai sobre a parte que produziu o documento.
5.2 Flexibilização controlada
O art. 38 da lei 11.977/09 prevê que o CNJ poderá admitir a assinatura avançada em atos que envolvam imóveis, permitindo uma flexibilização controlada conforme a natureza e o valor do ato.
6. Jurisprudência emergente
6.1 Manutenção da qualificação registral (TJ/SP)
A apelação 1004739-62.2017.8.26.0047 reafirmou que a origem digital de um título não afasta a necessidade de qualificação registral. O oficial deve continuar realizando o exame técnico-jurídico para verificar o cumprimento de todos os requisitos legais.
6.2 Flexibilização jurisprudencial (STJ)
No REsp 2.159.442/PR, a ministra Nancy Andrighi reconheceu a validade de um título assinado eletronicamente via plataforma não credenciada na ICP-Brasil, desde que o método permita comprovar autoria e integridade, criticando o "excessivo formalismo".
7. Gestão e preservação digital
7.1 Princípios arquivísticos
A lei 8.159/1991 define gestão documental como o conjunto de procedimentos técnicos desde a produção até o arquivamento. No meio digital, inclui a gestão de formatos, a migração tecnológica e a preservação de metadados.
7.2 Organização em dossiês
No ambiente eletrônico, os documentos são organizados em dossiês (protocolos, matrículas, registros auxiliares, processos registrais), constituindo a unidade arquivística fundamental.
7.3 Preservação digital
O armazenamento deve proteger contra alteração e acesso não autorizado, garantir a indexação por metadados e considerar os riscos de obsolescência tecnológica. Documentos sem valor histórico devem ser guardados pelos prazos de prescrição ou decadência dos direitos.
8. Impactos e desafios de implementação
8.1 Transformações imediatas
- Investimento em infraestrutura: Equipamentos de digitalização, sistemas de armazenamento seguro e plataformas de gestão documental.
- Capacitação profissional: Treinamento em padrões técnicos, gestão de metadados, segurança da informação e preservação digital.
- Nova dinâmica de responsabilidade: Deslocamento da guarda física para a garantia da integridade digital, criando uma responsabilidade compartilhada entre a serventia e o usuário.
8.2 Desafios estratégicos
- Segurança da informação: Adequação integral à LGPD e proteção contra ameaças cibernéticas.
- Interoperabilidade: Harmonização de padrões e efetiva implementação do SERP para a coesão do sistema nacional.
- Sustentabilidade: Gestão de custos operacionais e manutenção tecnológica contínua.
9. Considerações finais
A reforma do art. 194 consolida uma evolução legislativa coerente (leis 14.382/22, 14.063/20 e decreto 10.278/20), estabelecendo a supremacia do documento digital e redefinindo a fé pública registral. O sucesso desta transição depende da superação de desafios de infraestrutura, segurança e interoperabilidade, além de um equilíbrio jurisprudencial entre inovação e formalismo. Cabe aos registradores imobiliários protagonizar essa mudança, utilizando a tecnologia para fortalecer a segurança jurídica, alicerce do sistema registral brasileiro.

