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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Continuaremos o tema tratado na anterior coluna. II. O histórico da lei 13.838/19 (PLC 120/17, PL 7790/14 CD) que dispensa a anuência dos confrontantes Como já afirmado, todos os imóveis rurais passaram a ser obrigados, dentro do prazo estipulado pelo Poder Executivo, a ter uma descrição georreferenciada com base no Sistema Geodésico Brasileiro. Acontece que averbar, na matrícula, uma descrição perimetral representa uma forma de retificação da matrícula, a atrair a aplicação das regras procedimentais pertinentes. Afinal de contas, essas regras procedimentais destinam-se a impedir que a retificação da matrícula termine por prejudicar direitos de terceiros confrontantes. Basta imaginar alguém que pretenda averbar uma descrição georreferenciada do seu terreno abrangendo uma área que - no entendimento do vizinho - pertence a este. Antes do georreferenciamento, como a matrícula carregava uma descrição perimetral imprecisa, inexistia certeza tabular acerca de quem seria o efetivo proprietário da referida área. Por esse motivo, a retificação da matrícula - que abrange a averbação da descrição georreferenciada - poderia ser realizada por meio de um procedimento judicial (art. 212 da LRP) ou de um procedimento extrajudicial (art. 213, LRP). Na prática, qualquer que fosse o procedimento adotado, os vizinhos confrontantes haveriam de ser convocados a se manifestar, tendo em vista o risco de a retificação avançar sobre áreas deles. No caso do procedimento extrajudicial de retificação - o qual é utilizado na maioria absoluta dos casos e que se dá perante o Cartório de Registro de Imóveis -, é obrigatório o consentimento do vizinho confrontante com a descrição georreferenciada que se pretende averbar na matrícula, consentimento esse que pode ser tácito em razão do seu silêncio por 15 dias a partir da sua notificação (art. 213, §§ 2º a 4º, LRP1).  Caso o vizinho apresente uma impugnação fundamentada, o registrador notificará o requerente e o engenheiro subscritor da planta e do memorial descritivo para se manifestarem em 5 dias. Não obtido o consenso, o procedimento será remetido para a via judicial, na forma dos §§ 5º e 6º do art. 213 da LRP2. E não há como ser diferente. Dispensar o consentimento do vizinho confrontante, ainda que tácito, é ameaçar a segurança jurídica com eventual usurpação de áreas dos confrontantes. A exigência de consentimento do confrontante para a retificação da matrícula em razão da averbação da descrição georreferenciada foi vista como um entrave burocrático por muitos proprietários rurais. É que, em muitas situações, os vizinhos confrontantes discordavam sem um justo motivo. Em outras, era difícil localizar os vizinhos. Criticava-se que a lei partia de uma presunção de má-fé do proprietário, presumindo que ele haveria de usurpar áreas vizinhas por meio da descrição georreferenciada. Alegava-se que era preciso eliminar a exigência de consentimento do confrontante. Defendia-se que, na eventualidade de alguma área vizinha ser indevidamente abrangida, o caminho seria o vizinho servir-se dos meios judiciais cabíveis para proteção de sua área. Brandia-se que, na prática, como todos os proprietários rurais são obrigados a fazer o georreferenciamento, esse tipo de usurpação não ocorreria, visto que o risco de sobreposição de área é praticamente nulo. A hipótese acima só haveria de acontecer de modo excepcional, envolvendo apenas os vizinhos morosos que - apesar da determinação legal - ainda não haviam promovido a atualização da descrição perimetral de seus imóveis rurais. Por essa razão, esses setores acabaram provocando o Parlamento para dispensar o consentimento dos confrontantes nessa hipótese. Foi daí que surgiu, na Câmara dos Deputados, PL 7.790, de 2014 (tombado como Projeto de Lei da Câmara nº 120, de 2017, no Senado Federal). A referida proposição foi exitosa e transformou-se na lei 13.838, de 4 de abril de 2019. Houve, porém, um problema de eficácia na referida norma: ela não foi expressa em relação à dispensa de consentimento do confrontante no curso do procedimento de retificação. Não fez nenhuma menção ao art. 213 da LRP, que trata desse procedimento. Ela, na verdade, apenas acresceu o § 13 ao art. 176 da LRP estabelecendo que, para a inserção da descrição georreferenciada do imóvel na matrícula, era dispensada a anuência do confrontante e era suficiente a declaração de respeito das confrontações pelo requerente. Esse texto deu ensanchas a duas principais interpretações conflitantes: (1) a de que a dispensa de consentimento se estendia aos casos de retificação extrajudicial em qualquer caso; e (2) a de que essa extensão só se daria no caso de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais. Essa segunda interpretação - que restringe o efeito prático da nova lei - foi a que prevaleceu no âmbito do CNJ por meio da Recomendação nº 41, de 02/07/2019 - CNJ, in verbis: Art. 1º RECOMENDAR aos registradores de imóveis que, nas retificações previstas no art. 213 da lei 6.015/73, provenientes de georreferenciamento de que trata a lei Federal 10.267/2001, dispensem a anuência dos confrontantes nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações, nos termos no art. 176, §§ 3º e 4º, c/c o § 13 da lei 6.015/73, alterada pela lei 13.838, de 4 de junho de 2019. Com essa interpretação restritiva, a iniciativa legislativa ficou esvaziada na prática. O entendimento que acabou prevalecendo nos cartórios foi o de que, se houver uma matrícula já com a descrição georreferenciada averbada e se o proprietário quiser divida-la (desmembramento ou parcelamento) ou aglutiná-la com outra também já georreferenciada (remembramento), a anuência dos confrontantes seria dispensada. Trata-se de uma situação raríssima e em relação ao qual inexistia qualquer problema social, pois as matrículas de origem já veiculavam a descrição georreferenciada. Se, porém, houver uma matrícula com descrição antiga, a inserção da descrição georreferenciada dependeria de anuência do confrontante. Essa hipótese é a mais recorrente e é a que gera queixas dos proprietários rurais. Diante desse esvaziamento prático da lei 13.838, de 2019, o Poder Executivo reagiu, editando a Medida Provisória nº 910, de 2019. Esse diploma urgente incluiu, no próprio art. 213 da LRP, a dispensa do georreferenciamento no próprio procedimento de retificação extrajudicial destinado à inserção da descrição georreferenciada: era o § 17 do art. 213 da LRP3. Com esse texto, não havia mais dúvidas: a dispensa de anuência foi estendida para qualquer caso de inserção da descrição georreferenciada, independentemente de se envolver divisão ou reunião de imóveis. Todavia, a referida Medida Provisória caducou, sem ser convertida em lei, de maneira que o supracitado § 17 do art. 213 da LRP perdeu eficácia. Daí se segue que, atualmente, prevalece, no âmbito dos cartórios, a interpretação que infertilizou, na prática, o art. 176, § 13, do art. 176 da LRP. Logo, a dispensa de anuência dos confrontantes não alcança os casos que efetivamente geram queixas dos proprietários rurais: as hipóteses de inserção inédita da descrição georreferenciada na matrícula dos imóveis. III. Conclusão Ao nosso sentir, não convém dispensar o consentimento dos confrontantes quando da inserção da descrição georreferenciada em razão dos riscos de usurpação de áreas vizinhas. Precisamos atentar para o fato de que, na realidade registral brasileiras, uma enxurrada de matrículas com descrições antigas forma um nevoeiro de imprecisões: nenhum engenheiro consegue, apenas com base na sua leitura, desenhar a poligonal no mapa. Dispensar a convocação dos confrontantes para se manifestar acerca do memorial descritivo com o georreferenciamento é incitar as usurpações de áreas vizinhas e causar um ambiente de insegurança jurídica potencialmente nocivo ao mercado. Empresas e cidadãos que comprarem imóveis rurais confiando na descrição perimetral da matrícula estarão vulneráveis a perder áreas diante de reivindicações de vizinhos confrontantes em eventuais procedimentos judiciais. O sistema imobiliário não pode ser um campo minado para terceiros adquirentes, com graus elevados de insegurança dos direitos. A sociedade e o mercado reclamam por previsibilidades, segurança e clarezas das situações jurídicas, o que desaconselha tentativas de defenestrar os confrontantes do procedimento de inserção da descrição georreferenciada nas matrículas. Seja como for, caso se queira promover essa dispensa, o caminho é legislativo: deve-se editar uma norma igual ou semelhante àquela contida na extinta Medida Provisória nº 910, de 2019. A outra via seria eventual tentativa de provocar o Conselho Nacional de Justiça para mudar a interpretação estampada na Recomendação nº 41, de 02/07/2019 - CNJ, o que seria uma via pouco promissora. Temos de, porém, sempre estar atento para um fato: a higidez da descrição perimetral dos imóveis na tábua registral é, na verdade, a garantia sine qua non de um ambiente negocial seguro, previsível e estável. Formalidades, por vezes, são vacinas contra o caos e a insegurança jurídica. __________ 1 Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação:       (...) § 2o Se a planta não contiver a assinatura de algum confrontante, este será notificado pelo Oficial de Registro de Imóveis competente, a requerimento do interessado, para se manifestar em quinze dias, promovendo-se a notificação pessoalmente ou pelo correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação do Oficial de Registro de Imóveis, pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la.         § 3o A notificação será dirigida ao endereço do confrontante constante do Registro de Imóveis, podendo ser dirigida ao próprio imóvel contíguo ou àquele fornecido pelo requerente; não sendo encontrado o confrontante ou estando em lugar incerto e não sabido, tal fato será certificado pelo oficial encarregado da diligência, promovendo-se a notificação do confrontante mediante edital, com o mesmo prazo fixado no § 2o, publicado por duas vezes em jornal local de grande circulação.   § 4o Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar impugnação no prazo da notificação.  2 § 5o Findo o prazo sem impugnação, o oficial averbará a retificação requerida; se houver impugnação fundamentada por parte de algum confrontante, o oficial intimará o requerente e o profissional que houver assinado a planta e o memorial a fim de que, no prazo de cinco dias, se manifestem sobre a impugnação. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004) § 6o Havendo impugnação e se as partes não tiverem formalizado transação amigável para solucioná-la, o oficial remeterá o processo ao juiz competente, que decidirá de plano ou após instrução sumária, salvo se a controvérsia versar sobre o direito de propriedade de alguma das partes, hipótese em que remeterá o interessado para as vias ordinárias.        3 § 17.  São dispensadas as assinaturas dos confrontantes, previstas no inciso II do caput, quando da indicação das coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional fixada pelo Incra, bastando a apresentação de declaração do requerente interessado de que respeitou os limites e as confrontações. (Incluído pela Medida Provisória nº 910, de 2019) (Vigência encerradaq)
Introdução Neste artigo, demonstrar-se-á que nenhum novo direito real foi criado, ao contrário do que se extrai de uma leitura superficial da recentíssima Lei nº 14.620/2023, batizada como Lei do Novo Programa Minha Casa, Minha Vida - NPMCMV. Na verdade, os direitos oriundos da imissão na posse são apenas um epíteto do velho direito real de propriedade. Indicaremos os desdobramentos práticos disso, inclusive sob o aspecto registral, além de expor o motivo da atecnia legislativa. Cenário normativo A recente lei 14.620/2023, batizada como Lei do Novo Programa Minha Casa, Minha Vida - NPMCMV, supostamente criou um novo direito real: os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. Fê-lo mediante acréscimo de mais um inciso ao art. 1.225 do Código Civil (CC), dispositivo que lista os direitos reais no Brasil. Confira-se: Art. 1.225. São direitos reais: (.) XIV - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.  Preocupado em garantir que esse supostamente novo direito real pudesse ser objeto de garantias hipotecária e fiduciária, o novo diploma não hesitou em ser textual mediante acréscimo de inciso ao art. 1.473 do CC (que arrola os bens hipotecáveis) e ao § 1º do art. 22 da lei 9.514/1997. Confiram-se os referidos preceitos: Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca: (...) XI - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.      "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:   (...) V - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão; (...)"  Essa movimentação de criação de um novo direito real já havia sido ensaiada em 2015, com a Medida Provisória nº 700, que havia promovido as mesmíssimas inserções legais acima. Todavia, o referido diploma urgente caducou. Do ponto de vista registral, desde 19991, a imissão provisória na posse pelo ente desapropriante já é prevista como ato jurídico objeto de registro no Cartório de Imóveis por força do art. 167, item "36', da lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos - LRP). Em 2009, a Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida (Lei nº 11.977/2009) confirmou isso mediante inserção do § 4º ao art. 15 da Lei de Desapropriação por Interesse Público (decreto-lei 3.365/1941). Confira-se:  LRP Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.             I - o registro: (...) 36). da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e respectiva cessão e promessa de cessão; (...)       Decreto-lei 3.365/1941 Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens; § 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito: (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956) a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel. (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956) § 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias. (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956) § 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória. (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956) § 4o  A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente.       Certamente por conta de resistências enfrentadas perante Cartório de Imóveis, os entes atuantes no mercado imobiliário seguiram provocando o legislador a avançar na disciplina legal. Em 2010, por meio da Medida Provisória nº 514/2010 (posteriormente convertida na Lei nº 12.424/2011), foi expressamente permitido ao ente desapropriante promover a abertura da matrícula da área expropriada sem necessidade de apuração da área eventualmente remanescente em eventual matrícula atingida parcialmente, desde que se trate de área urbana ou de expansão urbana. Trata-se do § 8º do art. 176 da LRP, que assim dispõe: Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.                 (...) § 8o  O ente público proprietário ou imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso poderá requerer a abertura de matrícula de parte de imóvel situado em área urbana ou de expansão urbana, previamente matriculado ou não, com base em planta e memorial descritivo, podendo a apuração de remanescente ocorrer em momento posterior. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)  Além disso, ainda por meio da supracitada norma de 2010, deixou-se claro o cabimento da fusão de matrículas de imóveis contíguos objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante no contexto de regularização fundiária ou de programas habitacionais, tudo por meio da introdução do inciso III e do §§ 2º e 3º ao art. 234 da LRP (os quais vieram a ser modificados posteriormente). As alterações acima, porém, não foram suficientes para desobstruir as necessidades registrais dos procedimentos de desapropriação. Em 2015, por meio da Medida Provisória nº 700/2015, que acresceu o art. 176-A à LRP, tentou-se disciplinar o registro da aquisição originária da propriedade com foco nas hipóteses de desapropriação, eliminando embaraços registrais (como a exigência de memorial descritivo para área remanescente de matrícula parcialmente atingida). Igualmente, estendeu-se o regime jurídico-registral da desapropriação para as cessões ou promessas de cessão de direitos oriundos da imissão provisória da posse. Mas essa Medida Provisória caducou. Em 2021, reiterou-se, com sucesso, essa pretensão. A Lei de Ferrovias (Lei nº 14.273/2021) acresceu novamente o art. 176-A à LRP, renovando a disciplina desburocratizante acima do registro da aquisição originária da propriedade com olhos principalmente nas situações de desapropriação. E, também, passou-se a contemplar as hipóteses de cessão ou promessa de cessão de direitos oriundos de imissão provisória, a exemplo da nova redação dada aos incisos III do art. 235 da LRP. Toda essa odisseia normativa para dar respaldo registral à desapropriação desaguou no cenário normativo atual desenhado pela recentíssima Lei do NPMCMV. De um lado, a formalização registral da imissão provisória decorrente de desapropriação está cristalizada no art. 176-A da LRP. Esse preceito desonera o ente desapropriante de medidas como apuração de remanescente de áreas de matrículas parcialmente atingidas (art. 176-A, § 2º, LRP). Também flexibiliza o princípio da especialidade objetiva, "passando pano quente" diante de eventual divergência das descrições perimetrais da área desapropriada em relação à descrição constante de matrículas (art. 176-A, § 4º-A, LRP). Além disso, essas regras desburocratizantes foram estendidas para outras formas de aquisição originária, como o usucapião, e também para o registro da concessão de uso especial para fins de moradia, tudo com olhos em facilitar a formalização de ações de regularização fundiária ou de políticas habitacionais (art. 176-A, § 5º, IV, LRP). Confira-se o texto atual do referido preceito: Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 1º  A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 2º  As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para esse fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 3º (VETADO).    (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência § 4º  Se a área adquirida em caráter originário for maior do que a constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 4º-A. Eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)  De outro lado, está claro o cabimento da fusão de matrículas contíguas de imóveis objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante ou de cessionários ou promitentes cessionários, desde que se trate de área urbana (ou de expansão urbana) e de programas habitacionais ou de regularização fundiária. É o art. 235, III e §§ 2º e 3º, da LRP:  Art. 235 - Podem, ainda, ser unificados, com abertura de matrícula única: (Incluído pela Lei nº 6.216, de 1975). (...) III - 2 (dois) ou mais imóveis contíguos objeto de imissão provisória registrada em nome da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou de suas entidades delegadas ou contratadas e sua respectiva cessão e promessa de cessão. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) (...) § 2o  A hipótese de que trata o inciso III somente poderá ser utilizada nos casos de imóveis inseridos em área urbana ou de expansão urbana e com a finalidade de implementar programas habitacionais ou de regularização fundiária, o que deverá ser informado no requerimento de unificação. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011) § 3º Na hipótese de que trata o inciso III do caput deste artigo, a unificação poderá abranger matrículas ou transcrições relativas a imóveis contíguos àqueles que tenham sido objeto da imissão provisória na posse. (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021) Vigência  Enfim, o cenário normativo atual pode ser resumido da seguinte maneira: a) consideram-se como direitos reais os direitos oriundos de imissão provisória na posse por conta de desapropriação bem como os direitos de cessionários e promitentes cessionários (arts. 1.225, XIV, CC); b) esses direitos são hipotecáveis e alienáveis fiduciariamente em garantia (art. 1.473, XI, CC; e art. 22, § 1º, V, da Lei nº 9.514/1997); c) é cabível o registro da imissão provisória na posse em favor do ente desapropriante bem como dos direitos de cessionário ou de promitente cessionário (art. 167, I, "36", LRP; e art. 15, § 4º, Decreto-Lei nº 3.365/1941). d) o registro da aquisição originária por desapropriação e usucapião bem como o registro da concessão de uso especial para fins de moradia está disciplinado no art. 216-A da LRP, indicando as hipóteses em que se deverão abrir novas matrículas e flexibilizando o princípio da especialidade objetiva ao dispensar a apuração de área remanescente e relevar divergências de descrições perimetrais (art. 216-A, LRP). e) a fusão de matrículas objeto de imissão provisória na posse no contexto de programas habitacionais ou de regularização fundiária em áreas urbanas ou de expansão urbana é permitida e alcança também hipóteses de cessionários ou promitentes cessionários de direitos oriundos da imissão provisória (art. 235, III, §§ 2º e 3º, LRP). Análise crítica: a atecnia utilitarista da lei  Todo esse cenário normativo desenhado em torno dos direitos oriundos da imissão provisória na posse em favor do ente desapropriante foi, na verdade, impulsionado pelo interesse utilitarista de remover obstáculos registrais que eram opostos à formalização de desapropriações e de regularizações fundiárias. Acontece que esse ímpeto finalístico acabou traçando um percurso tortuoso do ponto de vista da dogmática civilista, o que reclamará da doutrina e da jurisprudência certo esforço malabarista para repelir riscos jurídicos. De fato, apesar de haver expresso texto legal, é atécnico afirmar que os direitos oriundos da imissão provisória são direitos reais. É que, no caso de desapropriação, o momento da imissão na posse marca a aquisição originária da propriedade pelo ente desapropriante. Eventual registro posterior no Cartório de Imóveis não tem eficácia constitutiva, mas apenas declaratória. Trata-se de uma exceção ao princípio da inscrição (segundo o qual os direitos reais nascem com o registro na matrícula do imóvel, conforme arts.1.227 e 1.245 do CC2). Não importa se essa imissão foi deferida em sede de tutela provisória, tal qual autorizado no rito da ação de desapropriação, especificamente no art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365/1941. As etapas posteriores do procedimento de desapropriação são essencialmente para discutir se a indenização paga pelo ente desapropriante foi ou não quantificada corretamente. Em suma, o ente desapropriante deposita em juízo o valor de indenização que reputa justo e, ato contínuo, já pode obter a imissão provisória na posse. Ao ingressar na posse do bem, o ente desapropriante já se torna proprietário do bem. Já é titular, portanto, do direito real de propriedade. Não há necessidade de nenhum reconhecimento judicial posterior. Lembre-se de que, no caso de "desapropriação indireta", a lógica é similar. No momento em que o ente desapropriante "invade" o imóvel e passou a ocupá-lo, há a aquisição originária da propriedade. Só sobrará ao particular discutir judicialmente o valor devido a título de indenização. A famosa ação de desapropriação indireta destina-se basicamente a essa discussão. Não se discute aí a titularidade do bem! Portanto, por aí já se vê a atecnia grave em afirmar que seriam direitos reais "os direitos oriundos da imissão provisória na posse". Não se trata de direitos reais autônomos, e sim de direito real de propriedade do ente desapropriante. Consideramos, portanto, ter havido gravíssima atecnia em ter acrescido ao art. 1.225 do CC os direitos oriundos da imissão provisória na posse como um novo direito real. Cabe à doutrina e à jurisprudência reagir hermeneuticamente, chamando à ordem a manobra legislativa. Por essa razão, entendemos que os "direitos oriundos da imissão provisória na posse" bem como os direitos de eventual cessionário ou promitente cessionário não são direitos reais autônomos, mas apenas direitos reais de propriedade. Uma utilidade prática disso é que as regras relativas ao direito real de propriedade previstas no Código Civil, como os arts. 1.228 ao 1.232 do CC, são plenamente aplicáveis. Igualmente, podem-se considerar dispensável a previsão de que "os direitos oriundos da imissão provisória na posse" são hipotecáveis ou alienáveis fiduciariamente em garantia. Isso, porque o direito real de propriedade sobre imóvel já abarca essas espécies de garantias reais. Outrossim, a previsão de abertura de matrículas na hipótese de imissão provisória em áreas total ou parcialmente divergentes das constantes de matrículas já abertas é desnecessária, pois isso já decorre do que deve ser aplicado em qualquer situação de aquisição de direito real de propriedade. Em suma, do ponto de vista técnico, o mais adequado teria sido que o legislador simplesmente houvesse esclarecido que a imissão provisória na posse pelo ente desapropriante implica a aquisição originária do direito real de propriedade e houvesse fixado as regras desburocratizantes de sua preferência. Resta, porém, saber: por que o texto legal acabou descarrilando dos trilhos da dogmática e ziguezagueou na disciplina dos ditos "direitos oriundos da imissão provisória na posse"? A resposta é uma postura utilitarista dos players públicos e privados que atuam na prática imobiliária. Diante de notas devolutivas de alguns cartórios de imóveis e ante as divergências de entendimento entre os registradores de imóveis, esses players acabaram movimentando o Poder Legislativo para editar normas muito textuais, ainda que em sacrilégio à dogmática civilística. Consideramos não apenas censuráveis, mas também perigosas, essas pisadas trôpegas no tratamento dos institutos jurídicos. Isso, porque, ao sair dos trilhos, abre-se espaço para teses jurídicas indesejadas, que podem frustrar os objetivos do legislador. Além disso, normas do status técnico e científico como o Código Civil não deveriam sofrer "intervenções cirúrgicas" do legislador com tanta facilidade. É preciso haver muita reverência e cuidado nisso, porque, ao contrário das demais leis, o Código Civil é marcado por uma sistematização e cientificidade construída ao longo de milênios de desenvolvimento do Direito Civil. Não é à toa que os anteprojetos de Código Civil sempre foram desenhados por juristas de alto porte. O caso em tema enfileira-se com outros de inoculações atécnicas de dispositivos no Código Civil, a exemplo do equivocado emprego do termo "posse direta" na usucapião familiar (art. 1.240-A, Código Civil) e da indevida inclusão dos "fundos de investimento" como uma espécie de condomínio no âmbito do livro de Direito das Coisas do Código Civil. Seja como for, o fato é que à doutrina e à jurisprudência resta interpretar a lei de modo a alinhá-la à correta natureza jurídica dos institutos jurídicos, atraindo o regime jurídico pertinente. In casu, concluímos: a Lei do NPMCMV não criou nenhum direito real novo, apesar de ter engordado a lista do art. 1.225 do CC. Ela, na verdade, apenas fez referência ao direito real de propriedade na hipótese de este ser adquirido por meio da desapropriação (mais especificamente quando da imissão provisória na posse). O inciso XIV do art. 1.225 do CC deve ser lido como uma hipótese meramente declaratória e indicativa do próprio direito real de propriedade. O legislador, nesse ponto, confundiu a causa de aquisição do direito real de propriedade com o próprio direito real. A imissão provisória na posse é apenas a causa jurídica de aquisição do direito real de propriedade, à semelhança do usucapião (que, com o transcurso do tempo de posse ad usucapionem, faz nascer o direito real de propriedade de modo originário para o usucapiente). É, pois, atécnico afirmar que os "direitos oriundos da imissão provisória na posse" são uma nova categoria de direito real, assim como seria atécnico asseverar o mesmo em relação aos "direitos oriundos do usucapião". Na verdade, esses direitos oriundos da imissão provisória na posse são apenas epítetos do velho e consagrado direito real de propriedade. __________ 1 A origem foi a lei 9.785/1999 e, posteriormente, a Lei nº 12.424/2011 (fruto da conversão da Medida Provisória nº 514/2010). 2 Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (...) Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2 o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.
I. Noções gerais do georreferenciamento e histórico normativo  Um dos maiores problemas efetivos na definição de direitos reais sobre terrenos (especialmente os rurais) é a descrição perimetral da área no Cartório de Imóveis. Por conta das limitações da própria topografia no passado, essa descrição era feita com certa imprecisão, levando em conta marcos precários e a linguagem pouco técnica. Aliás, as próprias medidas eram imprecisas. É icônica, por exemplo, a imprecisão com a qual, por exemplo, se media uma légua no passado: "O medidor enchia seu cachimbo, acendia-o e montava no cavalo, deixando que o animal marchasse ao passo; quando o cachimbo se apagava, acabado o fumo, marcava uma légua" Fonte: Um sertanejo e o sertão, p. 167, cit. por José Antonio da Costa Porto, Sistema Sesmarial no Brasil. Brasília: UnB, 1978, p. 761. A propósito, citamos um exemplo de uma descrição precária constante da matrícula de imóvel objeto de um processo judicial2: "Uma propriedade rural denominada Fazenda Ribeirão de São Pedro e Ribeirão Claro, situado no município de São Pedro do Turvo, desta Comarca, com 152,00 alqueires paulistas iguais a 367,84 ha, mais ou menos, contendo benfeitorias, confrontando com Alfredo Tavantes, Guerino Maitan, Ribeirão Claro, Ribeirão São Pedro, Zeferino José de Andrade e Vicente de Andrade, Recadastrada no Incra sob nº 628.123.000.884 - área total 367,8, módulo 64,4, nº de módulos 5,71 e fração mínima de parcelamento 25,0."  Note como é absolutamente imprecisa a descrição dessa área. É inviável, com base nessa descrição, desenhar, no mapa, o perímetro correspondente ao supracitado imóvel rural. A evolução das técnicas de topografia chegou ao georreferenciamento. Trata-se de técnica capaz de dar as coordenadas geográficas de um imóvel com altíssimo grau precisão, levando em conta o Sistema Geodésico Brasileiro3. Na prática, essa descrição georrefenciada utiliza uma linguagem ininteligível ao leigo por conta de sua tecnicidade, mas permite ao técnico desenhar, no mapa, a poligonal pertinente. Eduardo Augusto, um dos registradores brasileiros mais brilhantes na matéria, alertava o seguinte acerca da necessidade de a matrícula conter uma descrição poligonal precisa: A leitura da descrição tabular permite que qualquer agrimensor ou matemático consiga efetuar exatamente o mesmo desenho do imóvel, sem nunca tê-lo visto em mapas, fotos e sem conhecer sua real localização.4  No plano normativo, a lei 10.257, de 28 de agosto de 2001, é o principal marco do georreferenciamento no âmbito do Cartório de Imóveis, especificamente para imóveis rurais. A referida norma, entre outras disposições, passou a exigir que, dentro de um prazo a ser fixado pelo Poder Executivo, a descrição dos imóveis rurais nas matrículas fosse feita com base na técnica do georreferenciamento, com base no Sistema Geodésico Brasileiro. Fê-lo por meio do art. 176, §§ 3º e 4º, da Lei de Registros Públicos - LRP (Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973)5. Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema. _____________ 1 Fonte: https://mundogeoconnect.com/2011/arquivos/palestras/roberto_tadeu_teixeira-retificacao_irib_incra.pdf. 2 Disponível: https://portaldori.com.br/2022/10/28/registro-de-imoveis-negativa-de-averbacao-de-georreferenciamento-precariedade-da-descricao-tabular-insercao-de-coordenadas-georreferenciadas-que-depende-de-previa-retific/. Publicado: 28 de outubro de 2022. 3 Para aprofundamento, ver: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3138/tde-08112005-081539/publico/Cap_3-SGB.pdf. 4 Disponível em: https://mundogeoconnect.com/2011/arquivos/palestras/roberto_tadeu_teixeira-retificacao_irib_incra.pdf. 5 Veja os referidos dispositivos (que ainda hoje estão em vigor): "Art. 176. ............................................ § 1o .................................................... .......................................................... II - ..................................................... ....................................................... 3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: a - se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; (...) § 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica - ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais. § 4º A identificação de que trata o § 3o tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo."(NR)
O Agronegócio é um dos setores econômicos mais relevantes do Brasil, sendo responsável, do ponto de vista econômico, por quase 30% (trinta por cento) do Produto Interno Bruto brasileiro. A cadeia produtiva agrícola e pecuária brasileira movimentou em 2020 cerca de R$ 1.98 trilhão de reais1, e, apesar das oscilações, as cifras permanecem altas. Esse setor econômico envolve atividades fundamentais para o crescimento do país e para desenvolvimento social, já que engloba desde as commodities exportadas até a produção dos alimentos consumidos pelas famílias brasileiras. Essa pujança econômica da produção rural brasileira, contudo, não está imune a riscos consideráveis. O agronegócio, diferentemente de outros setores, depende necessariamente de ciclos biológicos e está intimamente ligado ao risco da agrariedade.2 Isto significa dizer que além de eventuais riscos econômicos e financeiros, como oscilações de preços no mercado externo e variações cambiais, a produção agrária também pode ser afetada por riscos naturais, como problemas climáticos, pestes e infestações ou insucesso de safras. Esses riscos inerentes ao Agro elevam a importância da existência de um mercado de crédito bem estruturado e de fácil acesso, com oportunidades de financiamento da produção a baixos custos de transação. Para tanto, se afigura fundamental que o sistema de garantias atrelado aos financiamentos seja seguro e eficaz, já que permite uma redução significativa dos custos envolvidos e principalmente dos juros cobrados.3 Esse movimento de reforço do sistema de garantias dos financiamentos voltados ao agronegócio tem se intensificado nos últimos tempos, e ganhou um novo capítulo com a edição, em 20 de julho de 2022, da lei 14.421/224, decorrente da conversão da medida provisória 1.104/22. O diploma legal, que está prestes a completar 1 anos, estabelece a alteração de diversas outras leis relacionadas com o sistema de garantias dos financiamos voltados ao agronegócio, procurando dar maior segurança e eficácia por meio da simplificação de procedimentos de emissão de documentos de garantia e do respectivo registro, ampliação dos agentes financiadores e dos legitimados a obter tais financiamentos e aperfeiçoamento de fundos garantidores e de investimento. Além disso, a lei procura potencializar dois tipos de garantias vinculados diretamente ao agronegócio: o penhor rural e o novel instituto do patrimônio rural em afetação. O presente artigo tem por objetivo analisar, de forma breve, as principais alterações trazidas pela lei 14.421 de 2022 do ponto de vista registral. Modernização do regime do Penhor Rural O penhor rural é modalidade especial de penhor previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro nos artigos 1.438 e ss do Código Civil e a regulamentação e os procedimentos são estipulados em leis esparsas. Ele comporta duas espécies que variam de acordo com as coisas empenhadas, sendo o penhor agrícola aquele no qual o objeto compreende máquinas e equipamentos da agricultura a colheitas, frutos e animais de serviço5 e o penhor pecuário que abrange os animais que integram a atividade agropastoril e leiteira.6 A principal característica desse tipo de penhor especial está no fato de ele se dar de forma não possessória, permitindo que o devedor (via de regra, o produtor rural) ofereça em garantia bens que permanecerão em sua posse.7 Diferentemente do penhor comum, no penhor rural o credor não recebe a coisa empenhada, que permanecerá no controle do produtor rural, permitindo que ela seja integralmente utilizada no desenvolvimento da atividade agrária. O penhor rural, em razão dessa característica, possui uma grande potencialidade de aplicação, pois permite que o produtor rural ofereça uma garantia real por meio da afetação de coisas inerentes à sua atividade. O produtor rural pode empenhar tanto coisas já existentes, como as "máquinas e instrumentos de agricultura", os "frutos acondicionados ou armazenados" ou "os animais que integram a atividade", quanto bens futuros como "colheitas pendentes, ou em via de formação". Pensando nessa grande utilidade do instituto, a lei 14.421/22 veio propor uma modernização no regime desse penhor especial, procurando trazer mais eficiência para as leis que regulamentam os instrumentos financeiros aos quais o penhor será vinculado. Neste sentido, a norma, por exemplo, altera disposições da lei 492/37 (que regula o penhor rural e a cédula pignoratícia), do decreto-lei 167/67 (que dispõe sore os títulos de crédito rural) e da lei 8.299/94 (que instituiu a cédula de produto rural). Em relação à primeira lei, a alteração traz modernidade para o contrato de penhor rural ao permitir que, quando celebrado por escritura particular, ele seja celebrado por assinatura eletrônica. Em relação ao último diploma mencionado, a mudança objetivou um aperfeiçoamento do objeto do penhor vinculado à CPR (Cédula de Produto Rural). Ampliou-se o rol de bens que podem ser enquadrados como "produtos rurais" para incluir aqueles resultantes da cadeia agroindustrial e os insumos de produção e comercialização. Além disso, também há uma ampliação do rol dos legitimados a emitir a CPR e modernização dos meios de celebração e registro do penhor, que passam a admitir a assinatura eletrônica. Mas as maiores contribuições da lei 14.421/22 para o regime do penhor rural decorrem das alterações realizadas no decreto regulamentador dos títulos de crédito rural. Em primeiro lugar, porque a partir da vigência da lei a constituição de penhores subsequentes passa a ser mais simples e eficaz, bastando a celebração de um novo penhor cedular em grau subsequente. Ademais, a eventual prorrogação da garantia por subsistência dos bens passa a dispensar a averbação na margem do registro. Da mesma forma, a eventual prorrogação da garantia decorrente da prorrogação do vencimento da dívida não mais dependerá da lavratura de termo aditivo, sendo eficaz após a mera anotação desta no instrumento do crédito. Como apontado, essas alterações são relativamente simples do ponto de vista procedimental, mas tem o mérito de possibilitar uma modernização do regime de constituição e registro do penhor rural que traz maior segurança e eficácia para essa garantia real tão importante para o setor do agronegócio. Aperfeiçoamento do regime do Patrimônio Rural em Afetação O patrimônio rural em afetação é um novo tipo de garantia previsto no ordenamento jurídico brasileiro a partir da promulgação da chamada Lei do Agro (13.986/2020). Segundo a própria lei, no seu artigo 7º, esse instituto permite que o proprietário do imóvel rural afete a integralidade ou a fração desse imóvel em garantia de um débito. A técnica da afetação permite ao titular de um patrimônio ou acervo patrimonial segregar uma parte dele com o propósito de estabelecer um regime garantidor específico em favor de credores.8 Essa interessante técnica de garantia9, contudo, foi instituída pela Lei do Agro com certos problemas procedimentais e dúvidas sobre a sua abrangência, em especial pelas controvérsias em torno da sua natureza jurídica. Eles, contudo, parecem solucionados com o advento da lei 14.421/22, que traz definições importantes sobre a matéria e consequentemente aperfeiçoamento do regime legal do patrimônio rural em afetação. Neste sentido, o diploma ora em análise adicionou dois novos parágrafos ao já mencionado art. 7º da Lei do Agro para estipular (i) que o patrimônio rural em afetação tem natureza real, constituindo um direito real de garantia sobre o bem afetado; (ii) não se confunde com a alienação fiduciária em garantia de imóvel, mas deve observar as regras procedimentais estipuladas pelo Código Civil e pela lei 9.514/97 quanto ao regime de excussão do patrimônio. Além disso, por meio da alteração do art. 9º da Lei do Agro, a lei 14.421/22 soluciona as dúvidas que pairavam sobre a forma de constituição dessa nova garantia real do agronegócio. Assim, resta esclarecido que o patrimônio rural em afetação será constituído por meio de requerimento do proprietário de registro da garantia na matrícula do imóvel, sendo essencial a descrição do imóvel ou da fração do imóvel afetado. Para tanto, também foi alterado o art. 167 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), com a inclusão do patrimônio de afetação como direito registrável na matrícula do imóvel, solucionando-se assim um problema burocrático e operacional que persistia. Tais alterações permitem o aperfeiçoamento do regime dessa nova técnica de garantia, com natureza real, que possui uma enorme relevância no setor do agronegócio. Por meio da instituição do patrimônio rural em afetação o produtor que seja proprietário de um imóvel rural pode obter financiamentos e investimentos oferecendo não só a totalidade da sua propriedade (como ocorre na alienação fiduciária e na hipoteca), mas de uma fração dela. Essa garantia estabelecida sobre a fração afetada terá natureza real, o que possibilita uma maior eficiência em sua eventual excussão (ou seja, na utilização do bem para pagamento da dívida) e deverá ser registrada na matrícula do imóvel, o que traz a segurança e reduz os custos de transação do financiamento. Mudanças de Regras e procedimentos de Fundos do Agronegócio A lei 14.421/22 também trouxe alterações relevantes nos fundos de investimento ou de garantia vinculados ao Agronegócio por via de reformas na lei 8.668/1993 e na Lei do Agro. Por um lado, a partir de uma alteração no artigo 20-A da lei 8.668/93, foi ampliado o rol de destinatários dos investimentos realizados no Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (FIAGRO)10. Com isso, qualquer sociedade que explore atividade ou qualquer ativo financeiro emitido pelas pessoas jurídicas inseridas na cadeia produtiva do agronegócio podem ser destinatários dos recursos do FIAGRO, que anteriormente estava restrito àqueles participantes da cadeia produtiva agroindustrial. Ademais, os recursos desses fundos podem ser aplicados em direitos creditórios imobiliários relativos a imóveis rurais, ativos financeiros, títulos de securitização, FIDCs, entre outros instrumentos financeiros emitidos por produtores inseridos na cadeia do agronegócio. Por outro lado, por meio de alterações nos artigos 1º, 3º e 6º da Lei do Agro, foram aprimorados as regras e os procedimentos relacionados com o Fundo Garantidor Solidário (FGS)11, que tem como objetivo a garantia das operações financeiras e dívidas decorrentes da atividade empresarial rural por meio da participação de pelo menos dois devedores e um garantidor. A primeira das modificações é a exclusão do âmbito de abrangência do FGS do financiamento para implantação e operação de infraestruturas de conectividade rural. A segunda é clarificação quanto à estrutura e procedimento do FGS, que será composto por duas cotas sem limitação de valores, sendo uma primária de responsabilidade dos credores e outra secundária de responsabilidade do garantidor. Por fim, a terceira esclarece e sistematiza as disposições essenciais do estatuto do FGS, que precisa prever, entre outras coisas, a forma de constituição do fundo, a sua administração, as taxas a serem pagas, a forma de utilização dos recursos e a gestão dos ativos. Conclusão Como visto, o setor do Agronegócio, ao mesmo tempo que tem inegável protagonismo econômico, está permeado de riscos que muitas vezes dependem da busca pelos produtores rurais de financiamento ou investimento externo. Em razão disso, se afigura essencial a existência de um mercado de crédito robusto e com custos reduzidos, que por sua vez acaba dependendo de um sistema de garantias seguro e eficiente. Nos últimos anos o legislador brasileiro tem se preocupado com esse ponto, e buscado a simplificação e modernização do sistema de garantias do agronegócio. Esse movimento ganha mais um capítulo com a edição da lei 14.421/22. Esse artigo buscou demostrar de forma simples e objetiva as principais disposições trazidas pela lei, destacando três regimes que foram aperfeiçoados. Neste sentido, evidenciou-se que a mencionada lei, buscou dar um maior dinamismo e segurança ao penhor rural, clarificar dúvidas sobre o patrimônio rural em afetação e alterar algumas regras e procedimentos do FIAGRO e do FGS. Acredita-se que são alterações que possuem relevância e que podem servir para um maior fortalecimento do mercado de crédito do agronegócio por meio do reforço do sistema de garantias. _____________ 1 Como mostra a pesquisa Panorama do Agro realizada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA): https://cnabrasil.org.br/cna/panorama-do-agro. 2 Conceito bastante trabalhado pela doutrina agrarista brasileiro que pode ser conferido em: DE MATTIA, Fábio. Métodos e conteúdo do direito agrário. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 93, p. 135-225, 1998, p. 174-175. 3 Tal ponto já foi demonstrado pelo Prêmio Nobel de economia George Akerloff no seu célebre artigo "The Market for "Lemons": Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. (Aug., 1970), p. 488-500." 4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14421.htm 5 Brasil. Código Civil. Art. 1.442. Podem ser objeto de penhor: I - máquinas e instrumentos de agricultura; II - colheitas pendentes, ou em via de formação; III - frutos acondicionados ou armazenados; IV - lenha cortada e carvão vegetal; V - animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola. 6 Brasil. Código Civil. Art. 1.444. Art. 1.444. Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios. 7 Como destaca RENTERIA, Pablo. Penhor e Autonomia Privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 189-190. 8 Segundo ensinamento de KÜMPEL, Vitor Frederico. Patrimônio de afetação e a Cédula Imobiliária Rural. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/354999/patrimonio-de-afetacao-e-a-cedula-imobiliaria-rural. 9 Denominada recentemente de supergarantia: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/371366/o-sistema-de-credito-rural-brasileiro-e-o-patrimonio-rural-em-afetacao. 10 Cujo regime e particularidades são bem esclarecidas por: CALCINI, Fábio Pallaretti; BURANELLO, Renato. Fiagro: relevância e necessidade de tratamento fiscal específico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/direito-agronegocio-fiagro-relevancia-necessidade-tratamento-fiscal-especifico. 11 Sobre o FGS em sua versão original veja: REIS, Marcus Vinícius de Carvalho Rezende. O fundo garantidor solidário. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/06/23/fundo-garantidor-solidario/.
O recente Provimento 141/CNJ veio regulamentar as disposições da lei 14.382/22 relativas à união estável, dando nova redação ao Provimento 37/CNJ e trazendo muitas inovações. No presente artigo trataremos da questão da exigência ou não de pacto antenupcial quando da conversão da união estável em casamento, apresentando recente decisão proferida pela MMa. Juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG. Sobre a escolha do regime de bens que vigorará no casamento, o Código Civil estabelece a necessidade de pacto antenupcial quando a escolha do casal for de regime de bens diverso do legal. O regime legal no Brasil desde a Lei do Divórcio, que entrou em vigor em 27/12/1977, é a comunhão parcial de bens, podendo ser o caso também de a lei estabelecer a separação obrigatória de bens. O Código Civil determina1 que poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer regime de bens, sendo que, quanto à forma, será reduzida a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública nas demais escolhas. Já no art. 1.653, o Código estabelece que é nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento. O tema abordado neste artigo envolve a conversão da união estável em casamento, procedimento no qual a celebração é dispensada e que tem por fundamento legal o disposto no art. 226, § 3º, da Constituição da República2, segundo o qual, para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável como entidade familiar3, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A determinação constitucional foi regulamentada pelo art. 8º da lei 9.278/964 e pelo art. 1.726 do Código Civil5. A forma administrativa de conversão da união estável em casamento, que se dá mediante requerimento feito pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil, não foi disciplinada pelo Código Civil, mas a Lei nº 9.278/96 não foi revogada no que se refere ao procedimento administrativo, razão pela qual permanece a opção. No que se refere à conversão da união estável em casamento, o Provimento 37/CNJ, na nova redação, inovou, dispensando em certos casos o pacto antenupcial. O art. 9º-D, § 1º, do referido provimento estipulou que a "conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário." O § 2º do mesmo artigo esclarece que somente será exigido pacto antenupcial quando na conversão for adotado novo regime, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido. Entendemos que a mesma regra da comunhão parcial se aplica aos casos de separação obrigatória de bens, ou seja, os nubentes manifestarão ciência, em termo, de que o regime legal está sendo aplicado. O § 5º do art. 9º-D, do Provimento 37/CNJ, ordena que o regime de bens a ser indicado no assento de conversão de união estável em casamento, quando a opção for por manter o mesmo regime escolhido quando da união estável, deverá ser o mesmo consignado em um dos títulos a seguir indicados: I - sentenças declaratórias do reconhecimento da união estável; II - escrituras públicas declaratórias de reconhecimento da união estável; III - termos declaratórios de reconhecimento de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. Assim, desde a publicação do Provimento nº 141/CNJ, somente esses títulos são hábeis a definir o regime de bens na união estável, e esses títulos têm força de pacto antenupcial quando o regime de bens escolhido na convivência tiver sido diverso do regime legal e os nubentes optarem pela manutenção do regime no casamento. Se houver opção por outro regime no casamento, diferente daquele que vigorou na união estável, deverá ser lavrado pacto antenupcial6, sendo recomendada pelo provimento a partilha de bens7. Caso concreto foi apresentado à Exma. Sra. Juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte. Casal que já vivia em união estável e que já tinha, por escritura pública, definido que o regime naquela união seria o da separação consensual de bens, requereu que, na conversão, fosse mantido o mesmo regime, sem apresentar pacto antenupcial. Foi suscitada dúvida pelo Registrador Civil, posto que o atual Código de Normas de Minas Gerais ainda exige o pacto antenupcial8. A MMa. Juíza, em decisão publicada em 20 de junho de 2023, interpretando o provimento 37/CNJ, proferiu a seguinte sentença9: É certo que o Código Civil estabelece a obrigatoriedade de realização de pacto antenupcial no caso de opção dos nubentes por regime de bens diverso do legal, o que aqui se verifica. Todavia, não há como ignorar que, em face da edição da lei 14.382/22, que tratou da conversão da união estável em casamento, o CNJ publicou o recente provimento 141, justificando-o, dentre outros motivos, para "facilitar aos companheiros a declaração de existência da união estável, a sua conversão em casamento", estabelecendo, de forma clara e objetiva que: Art. 9º-D. O regime de bens na conversão da união estável em casamento observará os preceitos da lei civil, inclusive quanto à forma exigida para a escolha de regime de bens diverso do legal, nos moldes do art. 1.640, parágrafo único, da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil). § 1º A conversão da união estável em casamento implica a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto antenupcial em sentido contrário. § 2º Quando na conversão for adotado novo regime, será exigida a apresentação de pacto antenupcial, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido. Ora, a regulamentação previu que somente será exigido pacto antenupcial no caso de conversão de união estável em casamento "se for adotado novo regime" e se não for ele o legal - comunhão parcial de bens. No caso em tela, os nubentes firmaram escritura de união estável em 11/4/23 e nela estabeleceram como regime da relação deles o da separação e bens, pretendendo, agora, manter o mesmo regime, de modo que, nos termos daquele Provimento, não se faz mesmo necessário firmar o pacto, já que não estão alterando o regime anteriormente estabelecido. Aliás, seria mesmo muito preciosismo e um ônus desnecessário para o cidadão, obrigá-lo a firmar escritura pública para nela estabelecer o que já está estabelecido em idêntico instrumento. É certo que a ausência do pacto poderia acarretar problemas futuros em especial no caso de transação imobiliária pelos nubentes, mas, para tal, basta a informação no assento de casamento de que o pacto foi suprido, nos termos do art. 9º-D, do provimento 141/23 do CNJ, pela escritura pública de união estável. Perfeita a sentença, que, reconhecendo a exceção prevista na nova norma expedida pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, afastou a necessidade de pacto antenupcial, apenas no caso da conversão da união estável em casamento em que mantido o regime anterior, diverso do regime legal. Em conclusão, se já existente sentença, escritura ou termo fixando regime de bens diverso do legal para a união estável e esse mesmo regime anteriormente escolhido for mantido quando da conversão da união estável em casamento, não será necessária a lavratura de pacto antenupcial. Como bem afirmou a MMa. Juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG, "o pacto foi suprido, nos termos do art. 9º-D, do provimento 141/23 do CNJ", pelo título no qual foi escolhido regime de bens para a união estável. ______________ 1 BRASIL. Código Civil. Art. 1.640, parágrafo único. Disponível em: planalto.gov.br. Acesso em 20 jun. 2023. 2 Estabelece o mencionado art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 3 Não houve alteração da redação do art. 226, § 3º da Constituição da República, que continua mencionando a união estável "entre o homem e a mulher", mas o Supremo Tribunal Federal - STF, maio de 2011, deu interpretação constitucional no sentido de que há união estável na convivência contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, com o objetivo de constituição de família. Ver Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF  nº 132 e Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 4277. 4 O art. 8º da Lei nº 9.278/96 assim determina: Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio. 5 O art. 1.726 do Código Civil tem a seguinte redação: Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil. 6 CORREGEDORIA do Conselho Nacional de Justiça. Art. 9º-D, § 2º do Provimento nº 37 com a redação dada pelo Provimento 141. Disponível em cnj.jus.br. Acesso em: 20 jun. 2023. 7 CORREGEDORIA do Conselho Nacional de Justiça. Art. 9º-A, §§ 3º e 5º do Provimento nº 37 com a redação dada pelo Provimento 141. Disponível em cnj.jus.br. Acesso em: 20 jun. 2023. 8 TRIBUNAL de Justiça de Minas Gerais. Provimento Conjunto nº 93/2020. Disponível em tjmg.jus.br. Acesso em: 20 jun. 2023. Assim determinam os arts. 586, V e 592: Art. 586. O requerimento de habilitação para o casamento consignará: [...]  V - a opção pelo regime de bens a ser adotado, com declaração da data e do serviço notarial em cujas notas foi lavrada a escritura pública de pacto antenupcial, quando o regime não for o da comunhão parcial ou o obrigatoriamente estabelecido;  Art. 592. A escolha de regime de bens diverso do regime legal deverá ser precedida de pacto antenupcial, devendo ser juntado aos autos da habilitação traslado ou certidão da escritura pública, fazendo-se constar no termo de casamento e nas posteriores certidões expressa menção do fato. 9 PIRES, Maria Luíza de Andrade Rangel Pires. Processo nº 5129737-56.2023.8.13.0024. Procedimento de dúvida. Publicado em 20 jun. 2023. Disponível em: pje.tjmg.jus.br. Acesso em: 20 jun. 2023.
Ao lançar a semente ao solo, o agricultor possui justa expectativa em relação aos efeitos esperados, não obstante o tempo de cultivo e a qualidade do fruto lhe sejam desconhecidos. Por vezes, sequer a árvore é certa, mas há ali um conjunto de elementos que permitem antever certo resultado final. Assim, o plantio da semente de maçã leva a crer que naquele solo nascerá uma macieira, mas não há certeza de que esta produzirá maçãs. Caso produza, incerto é o tempo que levará para tanto, bem como desconhecidas são as intempéries que ocorrerão no percurso, e que impactam na qualidade do fruto colhido. Daí o emprego de técnicas diversas para produção e colheita do fruto almejado, com razoável expectativa da qualidade resultante. Esse introito serve apenas para indicar que nem sempre no Direito se extrairá a melhor compreensão da norma em sua primeira leitura, e pode mesmo demorar algum tempo para que a melhor interpretação seja extraída do texto de lei. Não por outro motivo, o arcabouço normativo prevê a independência jurídica dos Oficiais de Registro (artigo 28 da lei Federal 8.935/1994), necessária para extrair do texto o fruto esperado e possível. A recente lei Federal 14.421/2022 introduziu modificações em legislações voltadas ao agronegócio, destacando-se para o que importa as inovações na lei Federal 8.929/1994, que instituiu a Cédula de Produto Rural. Em seu artigo 12, parágrafo 4º, previu a lei Federal 8.929/1994 a competência do Oficial de Registro de Imóveis para registrar "A alienação fiduciária em garantia de produtos agropecuários e de seus subprodutos", assim entendida nos termos do artigo 8º daquela lei. Uma primeira leitura - expectativa extraída ao simples lançar da semente ao solo - poderia indicar a competência do Oficial de Registro de Imóveis para registrar apenas as alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos decorrentes das emissões de CPRs. Será essa a melhor interpretação? Da aparente controvérsia sobre a competência registral Tal qual o fruto incerto da semente da macieira, a competência registral nem sempre exsurge claramente do texto legal. Isso não significa, contudo, que a lei não a defina. Nesse sentido, importante notar que a Lei Federal nº 14.421/2022, ao dar nova redação ao parágrafo 4º do artigo 12 da lei Federal 8.929/1994, veio a introduzir claramente regra de competência acerca dos registros das alienações fiduciárias sobre produtos agropecuários e seus subprodutos, suprindo omissão decorrente das alterações introduzidas pela lei Federal 13.986/2020. Note bem que a redação anterior do citado parágrafo 4º previa que "A CPR, na hipótese de ser garantida por alienação fiduciária sobre bem móvel, será averbada (sic) no cartório de registro de títulos e documentos do domicílio do emitente", característica essa de bem móvel não aplicável necessariamente aos produtos agropecuários ou seus subprodutos. Isso não significa que a norma era inócua, uma vez que o artigo 5º da lei Federal 8.929/1994 passou a admitir a constituição de qualquer tipo de garantia para amparar as obrigações decorrentes de CPR - incluindo, por certo, as garantias que têm por objeto bem móvel. A especificação no parágrafo 1º do artigo 8º da Lei Federal nº 8.929/1994, por introdução feita pela lei Federal 13.986/2022, já apontava tratamento diferenciado às alienações fiduciárias de produtos agropecuários e seus subprodutos, sem, contudo, indicar-lhes o registro de competência. Essa ausência expressa implicava na competência do Oficial de Registro de Títulos e Documentos, por força do parágrafo único do artigo 127 da lei Federal 6.015/1973, que a ele atribui os chamados registros residuais. Com a nova redação dada pela Lei Federal nº 14.421/2022 ao parágrafo 4º do artigo 12 da Lei Federal nº 8.929/1994, o legislador evidenciou a competência natural do Oficial de Registro de Imóveis para registrar garantias que decorram do vínculo do bem ao solo, sem afastar um milímetro a competência do Oficial de Registro de Títulos e Documentos, que se encontra arrimada no artigo 1.361, parágrafo 1º, cc artigo 129, item 10, da lei Federal 6.015/1973, na redação dada pela lei Federal 14.382/2022, que prevê a ele ser atribuída a alienação fiduciária sobre coisa móvel infungível. Disso decorre a impossibilidade jurídica do Oficial de Registro de Títulos e Documentos vir a ter competência para registro de alienações fiduciárias sobre coisa móvel fungível? Absolutamente. Caso o legislador venha a prever espécie de alienação fiduciária que abarque outros tipos de coisas móveis fungíveis, que não produtos agropecuários e seus subprodutos, sem indicar expressa competência registral, esta será do Oficial de Registros de Títulos e Documentos, mas não por força do artigo 129, item 10, da lei Federal 6.015/1973, mas em razão do citado parágrafo único do artigo 127 da Lei dos Registros Públicos -LRP, que versa sobre o chamado registro residual. Em suma, a alienação fiduciária é de competência do Oficial de Registro de Títulos e Documentos (i) por expressa previsão legal, como ocorre na hipótese do parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil, caso em que se aplica a regra do item 10 do artigo 129 da LRP, ou (ii) por omissão da lei, caso em que se aplica o parágrafo único do artigo 127 da lei Federal 6.015/1973. Cumpre salientar que a mesma Lei Federal nº 14.382/2022 incluiu o parágrafo 2º ao artigo 129 da lei Federal 6.015/1973 para expressamente dizer que o caput daquele artigo, no qual incluso os registros das alienações fiduciárias de bens móveis, "não se aplica ao registro e à constituição de ônus e de gravames previstos em legislação específica", o que reforça o entendimento de que as alienações fiduciárias sobre produtos agropecuários e seus subprodutos, previstas em lei especial, não têm desaguadouro natural no Registro de Títulos e Documentos. Aqui, dois pontos devem ser ressaltados, por serem fundamentais. O Código Civil, no mesmo capítulo que atribui ao Registro de Títulos e Documentos a competência sobre registro de alienações fiduciárias sobre coisas móveis infungíveis, desde que não sejam veículos (artigo 1.361, parágrafo 1º, do Código Civil), disciplina: a) em seu artigo 1.367, que "A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial" daquele Estatuto Civil, que versa disposições gerais sobre penhor, hipoteca e anticresce, com a nota de que o penhor sobre bens móveis descritos naquele Título X possuem competência bem caracterizada: penhor comum, penhor de direitos e títulos de crédito e penhor de veículos, registro em Títulos e Documentos (artigos 1.432,1.452 e 1.462); penhor rural, industrial e mercantil, registro em Registro de Imóveis (artigos 1.438 e 1.448); e b) em seu artigo 1.368-A, que "As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições" do Código Civil "naquilo que não for incompatível com a legislação especial". Portanto, e em primeiro lugar, da simples leitura dos dispositivos citados, percebe-se que não é a natureza intrínseca de bem móvel, seja fungível ou infungível, consumível ou não, que determina ser um título registrável no Registro de Títulos e Documentos ou no Registro de Imóveis, mas a efetiva opção legislativa. Segundo, e não menos importante, é que expressamente o artigo 1.368-A do Código Civil aponta que "As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais", sendo nesse contexto analisada a alienação fiduciária de produtos agropecuários e seus subprodutos, prevista em lei especial. A principal - e quiçá única - questão que se põe minimamente controversa, portanto, não é a competência do Oficial de Registro de Imóveis para os registros das alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos, mas se tal competência fica adstrita às hipóteses em que tais garantias decorram de CPRs. Não parece ser esse o entendimento adequado, especialmente agora que a interpretação - o fruto - das múltiplas e recentes alterações legislativas está mais madura. Da competência dos registros de imóveis para registro das alienações fiduciárias de produtos agropecuários e seus subprodutos A questão da competência registral acerca dos registros das alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos, para além de aspectos teóricos importantíssimos, revela inegável urgência prática, estando na ordem do dia do mercado em geral e dos Oficiais de Registro em particular. O tema, candente, foi objeto de disputado painel no 3º Encontro dos Registradores de Imóveis do Estado de São Paulo, que teve palco em Ribeirão Preto/SP, nos dias 16 e 17 de junho de 2023. Como dito no início, uma primeira leitura levaria o intérprete à conclusão de que apenas os registros das alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos decorrentes de CPRs estariam na órbita de competência dos Oficiais de Registro de Imóveis. Contudo, uma leitura atenta indica que o legislador, ao elaborar as Leis Federais nºs 13.986/2020 e 14.421/2022, claramente optou por dar tratamento distinto às alienações fiduciárias de produtos agropecuários e seus subprodutos, assemelhando-as ao quanto já regula a lei sobre o penhor rural e o penhor mercantil. Bastaria o simples silêncio do legislador para que as alienações fiduciárias de produtos agrícolas e seus subprodutos não tivessem qualquer tratamento diferente. Uma vez que o artigo 5º da lei Federal 8.929/1994 consignou que "A CPR admite a constituição de quaisquer tipos de garantia previstos na legislação", restaria sem sentido distinguir aquelas alienações fiduciárias. Se assim o fez, é porque tratamento diferenciado desejava lhes conferir. Interessante notar que desde a introdução do parágrafo 1º do artigo 8º da lei Federal 8.929/1994 pela lei Federal 13.986/2020, os congressistas fizeram questão de apontar que as alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos se sujeitam "às disposições da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo que não for contrário ao disposto" naquela lei. Não faz sentido sistêmico, pois, que as regras insertas naquele artigo 8º e em seus parágrafos, que formam verdadeiro microssistema de garantia fiduciária de produtos agropecuários e seus subprodutos, apliquem-se apenas às hipóteses de sua concessão em CPR. Em excelente artigo, Fábio Ribeiro dos Santos e Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro1, inaugurando o debate sobre esse importante tema, também compreenderam o surgimento de um microssistema, contudo, aparentemente vocacionado exclusivamente ao crédito rural. Com brilhantismo, pontuaram: Nada obstante a complexidade da matéria no cenário contemporâneo, buscando a segurança jurídica das relações sociais e o máximo de efetividade das normas jurídicas, missão primeira do Direito, é possível sedimentar a existência de verdadeiro microssistema de tutela do crédito rural. Embora não haja codificação ou consolidação normativa específica para a matéria, é certo que nenhuma dessas leis extravagantes deve ser interpretada de maneira isolada, como eixo próprio de significados e sentidos. Impõem-se a teoria do diálogo das fontes, na qual todas essas normas - partes integrantes de um microssistema próprio - devem interagir como verdadeiros vasos comunicantes; não sendo possível concluir aprioristicamente por sua incidência autônoma em determinada relação jurídica. Dito de outro modo, as leis que regulam o crédito rural revestem-se de verdadeira camada porosa que permite a conexão de dispositivos legais regrados em outros diplomas legais da mesma natureza e com idêntica finalidade. Não há, pois, divergência essencial em relação àqueles autores, mas apenas a compreensão de que se está diante de um tipo específico de propriedade fiduciária (artigo 1.368-A do Código Civil), regulada por lei especial, e passível de ser aplicada a variada gama de operações, não se limitando aquelas decorrentes do crédito rural. Mas é importante notar que, para além da incongruência sistêmica, o próprio legislador, quando quis, expressamente indicou as garantias aplicáveis estritamente às CPRs. No artigo 5º da lei Federal 8.929/1994, ao admitir a concessão de quaisquer tipos de garantia, evidentemente autoriza o uso também das alienações fiduciárias sobre produtos agropecuários e seus subprodutos, mas não restringem seu uso às hipóteses de emissões de Cédulas de Produto Rural. Aqui, importante perceber que o parágrafo 1º do inciso 12 da lei Federal 8.929/1994 informa que "a hipoteca, o penhor rural e a alienação fiduciária sobre bem imóvel garantidores da CPR serão levados a registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia" (destaque e grifo nossos). Por sua vez, o parágrafo 4º do artigo 12 da lei Federal 8.929/1994 não informa, tal qual o parágrafo 1º, que está a tratar do uso das alienações fiduciárias sobre produtos agropecuários e seus subprodutos como garantidores de CPR, o que reforça a tese de que se trata de introdução de verdadeiro sistema destinado - mas não limitado - à garantia das operações decorrentes do agronegócio. Na verdade, trata-se de regulação, por lei especial, de espécie de alienação fiduciária (artigo 1.368-A do Código Civil), que deverá produzir seus amplos efeitos, uma vez que não restringidos pelo legislador. Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus. Uma vez utilizadas para amparar operações decorrentes da concessão de crédito rural - não só em CPR -, a cobrança de emolumentos referentes a essas alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos deverão observar as regras insertas no parágrafo 2º do artigo 2º da Lei Federal nº 10.169/2000. Caso, contudo, a constituição da garantia não esteja "ligada a crédito rural concedido em atividade fim", no Estado de São Paulo deve se aplicar integralmente a Lei Estadual nº 11.331/2002 (Processo CG nº 2021/20723, da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, entre outros). Dos bens sujeitos às alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos A princípio, é na própria Lei Federal nº 8.929/1994 que se encontra o que se entende por produtos agropecuários e seus subprodutos para que sejam alienados fiduciariamente. Havendo necessidade de colmatar lacunas, desde que não conflite com o disposto na Lei Federal nº 8.929/1994, por expresso comando legal (parágrafo 1º do artigo 8º da citada lei), buscará o Oficial de Registro de Imóveis no Código Civil e no Decreto-lei nº 167/1967 o amparo necessário para compreender quais bens se caracterizam como produtos agropecuários e seus subprodutos para fins de alienação fiduciária suscetível de registro no Registro de Imóveis. Muito comum se perguntar se tratores, arados, caminhonetes, entre outros, são bens móveis ou veículos para fins de alienação fiduciária, com deslocamento da competência, portanto, para o Oficial de Registro de Títulos e Documentos ou para o órgão de registro de veículos (artigo 1.361, parágrafo 1º, do Código Civil). A questão é sempre tormentosa, pois o câmbio dos produtos agropecuários em subprodutos parece indicar ora a natureza de bem imóvel ora de bem móvel. Porém, parece que a questão não se resolve com a mera categorização como bem imóvel ou bem móvel, havendo razoáveis argumentos para um lado ou para outro. Como antes apontado, convém mais verificar o que a lei entende como objeto de inscrição em um ou outro registro. Assim, por exemplo, não obstante um trator ou um arado sejam de per si considerados bens móveis, por opção do legislador ingressam no Registro de Imóveis quando objeto de penhor agrícola (artigo 1.442, inciso I, do Código Civil). Partindo dessa premissa, o próprio parágrafo 1º do artigo 8º da Lei Federal 8.929/1994 nos dá os parâmetros e os limites. Os parâmetros, quando indica que são objeto da alienação fiduciária os produtos agropecuários e seus subprodutos; os limites, quando informa que "poderá recair sobre bens presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não, cuja titularidade pertença ao fiduciante, devedor ou terceiro garantidor, e sujeita-se às disposições previstas na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo o que não for contrário ao disposto nesta Lei" (destaques e grifos nossos) Em outras palavras, para os estritos fins de alienação fiduciária de produtos agropecuários e de seus subprodutos, indiferente a natureza móvel do bem, se fungível ou infungível, consumível ou não, ou mesmo se existente no presente ou apenas potencialmente no futuro. E a própria Lei Federal 8.929/1994 explicita no parágrafo 2º do artigo 1º, com a redação dada pela Lei Federal 14.421/2022, o que são produtos rurais, in verbis: Art. 1º Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas. [...] § 2º Para os efeitos desta Lei, produtos rurais são aqueles obtidos nas atividades: I - agrícola, pecuária, florestal, de extrativismo vegetal e de pesca e aquicultura, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico, inclusive quando submetidos a beneficiamento ou a primeira industrialização; II - relacionadas à conservação, à recuperação e ao manejo sustentável de florestas nativas e dos respectivos biomas, à recuperação de áreas degradadas, à prestação de serviços ambientais na propriedade rural ou que vierem a ser definidas pelo Poder Executivo como ambientalmente sustentáveis;  III - de industrialização dos produtos resultantes das atividades relacionadas no inciso I deste parágrafo; IV - de produção ou de comercialização de insumos agrícolas, de máquinas e implementos agrícolas e de equipamentos de armazenagem. Caso ainda remanesça dúvida, deve o Oficial de Registro de Imóveis se socorrer do Código Civil, especialmente das disposições referentes aos bens objeto de penhor agrícola (artigo 1.442), de penhor pecuário (artigo 1.444) e de penhor mercantil (artigo 1.447), bem como do decreto-lei 167/1967 (artigos 15, 55 e 56). Dúvida frequente consiste na possibilidade de dar em garantia fiduciária os veículos automotores, ainda que utilizados na atividade agrícola. Não obstante possam ser dados em alienação fiduciária, deverão ter registro na repartição competente para licenciar veículos, como resulta da expressa disposição contida no artigo 1.361, parágrafo 1º, do Código Civil, e da aplicação da regra de penhor rural inserta no artigo 56, parágrafo único, do decreto-lei 167/1967. Conclusão Resumidamente, possível concluir que a competência registral acerca de alienações fiduciárias de produtos agropecuários e de seus subprodutos, assim entendidos aqueles previstos no artigo 1º, parágrafo 2º, da Lei Federal 8.929/1994, nos artigos 1.442, 1.444 e 1.447 do Código Civil, e nos artigos 15, 55 e 56 do decreto-lei 167/1967, é do Oficial de Registro de Imóveis e, independentemente do título que institua tais garantias, devem ser objeto de registro no Livro nº 3 - Registro Auxiliar, do Oficial de Registro de Imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia (artigo 1.368-A do Código Civil, cc artigo 8º, parágrafos 1º a 3º, e artigo 12, parágrafo 4º, da Lei Federal 8.929/1994). Quando referidas alienações fiduciárias estiverem ligadas à concessão de crédito rural destinado a atividade fim, sujeitar-se-ão os respectivos emolumentos sujeitos às regras previstas no parágrafo 2º do artigo 2º da lei Federal 10.169/2000. __________ 1 SANTOS, Fábio Ribeiro dos; RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da competência registral da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários no Ofício de Registro de Imóveis. Migalhas, 2023. Disponível aqui.
Desde o advento da então Medida Provisória nº. 1.085/21, hoje convertida na lei 14.382/22, uma questão tem desafiado os operadores jurídicos do mercado imobiliário. Trata-se da chamada "assinatura eletrônica avançada" que, nos termos do art. 17, §1º, da Lei de Registros Públicos, e art. 38, caput e §2º, da lei 11.977/2009, ambos alterados pela Lei 14.382/22, passou a ser admitida no Registro de Imóveis conforme regulamentação a ser dada pelo e. Conselho Nacional de Justiça1. A matéria foi novamente ventilada na MP 1.162/23, que reformulou o "Programa Minha Casa, Minha Vida" e inseriu o art. 17-A na Lei das Assinaturas Eletrônicas (14.063/20), prevendo expressamente a possibilidade de utilização das assinaturas avançadas por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário e os partícipes de seus contratos, dotando, aparentemente, tal específica previsão, de eficácia plena perante o registro imobiliário, independentemente de ulterior regulação. Pois bem, definida pela Lei de Assinaturas Eletrônicas (14.063/20) a partir do uso de certificados "não emitidos dentro da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira", a assinatura eletrônica avançada teria três características, quais sejam: "a) estar associada ao signatário de maneira unívoca; b) utilizar dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; c) estar relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior seja detectável". Apresentar-se-ia, então, como alternativa média entre a assinatura eletrônica simples, a qual permite qualquer tipo de dado capaz de identificar o signatário do documento, como, por exemplo, um mero e-mail cadastrado, e a assinatura eletrônica qualificada, aquela regulada dentro da ICP-Brasil pela MP 2.200-2/01, com todos os requisitos elaborados e fiscalizados pelo ITI e seu Comitê Gestor. Os aspectos eminentemente jurídicos, pertinentes à estrutura e função do sistema notarial e registral em confronto com a novidade, parecem já ter sido adequadamente expostos em diversos textos de autores cuja autoridade suplanta, em muito, qualquer maior pretensão de contribuição destes articulistas, tendo sido apontado que a utilização da assinatura avançada poderia "subverter primados basilares do regime jurídico (...) especialmente a fé pública"2, dar "'à raposa (...) a chave do galinheiro.", com "prejuízos graves e injustificados aos consumidores"3  e ser capaz de criar um "caminho tortuoso, incerto e pouco confiável de fomento à monetização da especulação em detrimento à confiança das relações reais com sérias repercussões, especialmente, para o cidadão comum."4 O presente texto tem outro viés e visa chamar a atenção para uma vivência prática que já tem contraposto interesses de consumidores e de players do mercado em contratações cada vez mais fáceis e rápidas que parecem se anunciar também para o sistema imobiliário. Assim, em relação a outro mercado de crédito - este já bastante ágil, com crédito "na hora" -, algumas situações envolvendo assinatura digital têm afrontado os operadores do direito que atuam na esfera consumerista, sobretudo quando presentes consumidores "hipervulneráveis", os quais, além da natural vulnerabilidade do consumidor, possuem ainda outros tipos de vulnerabilidade, como a social-econômica ou a etária frente à nova economia digital. Trata-se da contratação facilitada do crédito direto ao consumidor, em especial na modalidade "consignado", que apresentou inúmeras dificuldades nos últimos anos, justamente em decorrência de sua contratação digital rápida. Assim, em 2021, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) firmou compromisso com a Febraban e a Associação Brasileira de Bancos para aplicar com maior rigor punições a bancos infratores de recomendações sobre a concessão de crédito ao consumidor, sendo que o "uso de tecnologias como reconhecimento facial para garantir consentimento do consumidor esteve entre os pontos debatidos".  A propósito, foram aplicadas multas milionárias para pelo menos três instituições bancárias por "abusividades cometidas na oferta e contratação de empréstimos consignados"5. Foi apurado que uma boa parte de tais contratos possuía assinaturas fraudadas, as quais se tornaram possíveis justamente pela facilitação dada pelas assinaturas digitais. Toda a fraude "começa na assinatura", e, "como haveria pouca conferência e os processos são eletrônicos", elas "costumam passar sem contestação por bancos"6. Segundo o Presidente da Associação Nacional dos Profissionais e Empresas Promotoras de Crédito e Correspondentes no País (Aneps), a assinatura frágil, sem certificação digital adequada, constituiria um verdadeiro "nascedouro de fraudes". Ainda, segundo a Senacon, a reclamação por empréstimos consignados aumentou em mais de 100% no ano de 2021, sendo que "Os principais problemas indicados pelos consumidores referentes a crédito consignado são os seguintes: a) cobrança por serviço/produto não contratado/não reconhecido/não solicitado; b) dificuldade para obter boleto de quitação ou informações acerca de cálculos, pagamentos, saldo devedor; c) não entrega do contrato ou documentação relacionada ao serviço; d) cobrança indevida/abusiva para alterar ou cancelar o contrato; e) portabilidade não efetivada; f) margem consignável: bloqueio/ contestação; g) SAC: Dificuldade para cancelar o serviço."7 (grifo nosso) Conforme procedimentos sancionadores instaurados justamente para a averiguação de tais práticas de assinaturas facilitadas sem a devida qualificação da parte e de sua vontade, a Senacon sublinhou que os casos, em geral, "envolvem uma qualidade especial de consumidores: os idosos. Eles merecem atenção especial quanto à sua proteção, em razão da sua condição de hipervulnerabilidade frente à contratação dos empréstimos consignados e a sua propensão a se tornar um consumidor superendividado. Ademais, é importante destacar que esses consumidores merecem, ainda, uma proteção mais especial no âmbito da economia digital, pois normalmente encontram dificuldades adicionais para utilizar bens e serviços oferecidos em meio eletrônico, se comparados com o resto da população."8 Ora, a contratação do chamado crédito consignado rápido se utilizaria de informações como a própria selfie, fornecida espontaneamente pela vítima induzida por falsários, ou mesmo obtida de grandes bancos de dados comprados de data brokers ilegais a partir de grandes vazamentos9. Nesse aspecto, não custa lembrar que para adentrar a qualquer edifício de escritórios hoje, deixamos corriqueiramente uma selfie e um documento de identificação, justamente dados que "a) estão associados ao signatário de maneira unívoca;" e "b) podem ser utilizados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo". A questão se torna ainda mais dramática quando se tem em conta que as próprias instituições financeiras, em si, muitas vezes não praticam qualquer ilícito na concessão do crédito, vez que os dados são obtidos por criminosos em decorrência de ato da própria vítima ou de terceiros. Em outras palavras, o consumidor lesado não conseguiria qualquer ressarcimento da própria instituição financeira, se constituindo o fato em verdadeiro "fortuito externo"10. E essa facilidade da burla do sistema de assinatura, mesmo que contando com a utilização de biometria pelo reconhecimento facial, parece decorrer do fato de que embora tenhamos adotado a definição, quase literal, da Uncitral para as assinaturas avançadas11, não adotamos as regulações recomendadas para as entidades certificadoras, as quais, de acordo com os artigos 9º e 10, deveriam observar diversas medidas estritas de segurança, como, por exemplo, recursos humanos, sistemas e procedimentos adequados com auditoria por um corpo independente. Essas medidas de segurança somente existem no Brasil para a assinatura eletrônica qualificada, conforme os procedimentos normatizados pelo ITI dentro da ICP-Brasil. Nesse sentido, uma assinatura avançada hoje, no país, pode observar adequadamente a legislação vigente sem possuir um grande grau de confiabilidade mantido por uma fiscalização e arcabouço regulatório satisfatório, os quais precisamente só existem para a assinatura qualificada. É por tal razão que o Estado da Paraíba, por exemplo, editou a Lei nº. 12.027/21, a qual exige a assinatura física de idosos em contratos de operação de crédito. A lei foi impugnada por ADIN proposta pela "Confederação Nacional do Sistema Financeiro", sob o argumento de que a restrição seria discriminatória e anacrônica, mas mantida pelo e. Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento de que a norma "limita-se a assegurar que o cliente idoso tenha ciência dos contratos que assina e que seja seu o desejo de efetuar determinada contratação. É, portanto, matéria afeta ao direito do consumidor". Conforme o relator, Min. Gilmar Mendes, "os dispositivos em questão não interferem no objeto do contrato pactuado, mas destina-se a garantir o direito à informação dos consumidores idosos do Estado da Paraíba, bem como a assegurar seu consentimento informado."12 É justamente de segurança e consentimento informado que se trata. Veja-se que logo após as novas leis sobre assinatura eletrônica no Registro de Imóveis, já se publicizou a intenção de contratação de crédito imobiliário por reconhecimento facial - uma das possibilidades da nova assinatura, já que, como informado, a "selfie" teria as três características antes citadas para classificar a assinatura como avançada -, reduzindo o prazo para liberação de recursos "de 25 dias para apenas 10 dias", sendo possível, ainda, "quando a documentação está em ordem, chegar a fazer o processo em só três dias"13. Ora, por regulamentação do Banco Central14, a liberação de recursos em financiamentos imobiliários somente pode ser realizada após a constituição da garantia, o que significa dizer que no prazo de só três dias, se encontram amalgamados a eventual conferência da documentação, suposta leitura e compreensão do contrato, sua efetiva formalização e assinatura, encaminhamento e análise registral e, finalmente, a própria constituição da garantia para liberação dos valores. É de se imaginar que sob a rubrica da "assinatura por reconhecimento facial", na verdade, foram empenhados os créditos não só da assinatura em si, mas de todo o processo de documentação, formação e qualificação da vontade. Ora, se há 3 - ou mesmo 10 - dias para todo o processo acima descrito, quantos minutos haveria de reflexão e qualificação da vontade do consumidor antes de tomar o empréstimo que possivelmente será o maior passivo de sua vida?15 Cabe frisar que 80% (oitenta por cento) dos atendimentos do NUDECON-PR (Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do Paraná) - cifra que se repete com pouca variação em praticamente todo o país - têm como objeto reclamações de consumidores idosos sobre vício na contratação de empréstimos consignados, sendo a principal delas a inexistência de informações claras, precisas e adequadas sobre o contrato, especialmente sobre a taxa efetiva dos juros e encargos. Que se dirá do tempo de reflexão e explicação necessários para auferir adequado consentimento em relação a sistemas de amortização (SAC? Price? Etc), taxas de juros e atualização (pré-fixado, IPCA+ etc), em um contrato garantido pela própria moradia do consumidor? A questão do tempo de reflexão não parece burocrática para instituições financeiras de países como a Alemanha e o Japão, nos quais, por lei, é obrigatório aguardar um período que varia de duas semanas a até um mês antes de se poder formalizar efetivamente a garantia de empréstimos, com disposições que determinam, por exemplo, o recebimento antecipado da minuta da escritura pelo consumidor final ou uma pré-declaração de vontade anterior à formalização do negócio pelo garantidor. A velocidade do crédito e a facilidade de sua formalização pretendida pela assinatura "rápida e digital" remetem a uma passagem que parece ter ficado esquecida num passado não tão distante. Nas exatas palavras do Relatório Final da Comissão Nacional sobre as Causas da Crise Financeira nos Estados Unidos ("Crise do Subprime/2008"): "For example, lenders have relied on "robo-signers" who substituted speed for accuracy by signing, and sometimes backdating, hundreds of affidavits claiming personal knowledge of facts about mortgages that they did not actually know to be true. One such "robosigner," Jeffrey Stephan of GMAC, said that he signed 10.000 affidavits in a month- roughly 1 per minute, in a 40-hour workweek-making it highly unlikely that he verified payment histories in each individual case of foreclosure."16 Quiçá, reduzir o prazo de liberação de recursos de 3 dias para 1 minuto, assinando 10.000 contratos por mês, seja uma melhoria ainda maior do sistema...mas para quem? A situação envolvendo o fólio real ganha ainda mais dramaticidade quando se tem em conta que as fraudes envolvendo empréstimos em conta costumam ser percebidas rapidamente, uma vez que a disponibilização ou subtração de valores na conta de suas vítimas dificilmente se faz sentir em prazo superior a um mês. Por outro lado, as fraudes imobiliárias podem demorar anos para serem detectadas, uma vez que não é costume retirar certidões de matrículas de imóveis que estão em nome de seu proprietário e que não foram por ele mesmo objeto de qualquer negociação. Ademais, uma vez que o registro não tem poderes jurisdicionais para a declaração da nulidade ou inexistência dos negócios eventualmente fraudulentos, a sua descoberta levará ao inevitável e delongado caminho processual contencioso, com possíveis anos de espera até que o imóvel possa ser novamente regularizado e devolvido ao mercado sem qualquer apontamento. Em síntese, na esteira da redução de formalidades pretendida pela nova legislação, o novo sistema de assinatura digital trará com certeza uma alavancagem para as operações de crédito, mas se a forma é protetiva, alguém virá a pagar essa conta. __________ 1 Embora o tema do presente texto se refira especificamente ao uso de assinaturas avançadas, todos os argumentos podem ser levados, com uma preocupação ainda mais profunda, para o provimento 94/2020 do e. CNJ que, em época de pandemia, e, portanto, supostamente transitório, autorizou o oficial de registro a receber qualquer tipo de documento digital ou digitalizado conforme "seu prudente critério", tendo sua vigência estendida indefinidamente, independentemente do término da pandemia. 2 CAMPILONGO, C. F. Fé pública, segurança jurídica e assinatura digital. 18.05.2022. Acesso em 12.06.2023. 3 MARQUES, C. L.; MIRAGEM, B. A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. 02.05.2022. Disponível aqui. Acesso em 12.06.2023. 4 CAMPOS, R. CNJ e a construção da confiança digital. 14.11.2022. Disponível aqui. Acesso em 12.06.2023. 5 Disponível aqui. Acesso em 13.06.2023. 6 Disponível aqui. Acesso em 13.06.2023. 7 V. Nota Técnica Senacon/MJ nº. 17/2022. 8 Notas Técnicas Senacon/MJ 35/2021 e 28/2021 9 Ranking no qual o Brasil apareceu como o 12º do mundo em 2022. V. aqui. Acesso em 13.06.2023. Ademais, a intricada questão sobre a responsabilidade em relação a tais vazamentos, conforme tratado em TERRA, A. de M. V. Hackeamento de dados pessoais e responsabilidade do fornecedor: releitura do CDC pela óptica da LGPD. 09.07.2021. Disponível aqui Acesso em 20.06.2023 10 V. Zuliani, E. S. Responsabilidade dos Bancos diante da súmula 479 do STJ. Disponível aqui. Acesso em 13.06.2023. 11 V. Art. 6.3 da Lei Modelo. Disponível aqui. Aceso em 13.06.2023 12 V. aqui. Acesso em 13.06.2023. 13 "Santander quer reduzir para 10 dias concessão de crédito imobiliário com uso de leitura facial". Estadão, 14.03.2023. Disponível aqui. Acesso em 12.06.2023 14 Art. 9º da Resolução Bacen 4.676/2018. 15 Em outro viés, o tema já foi por nós tangenciado em O risco Americanas, o casamento adiado e o instrumento particular. 10.03.2023. Disponível aqui. Acesso em 12.06.2023 16 Financial Crisis Inquiry Comission. The Financial Crisis Inquiry Report. Jan/2011. p. 436.
É ou não possível que o casal se reconcilie após a lavratura da escritura pública de divórcio ou o trânsito em julgado da sentença de divórcio? A resposta é, a nosso sentir, positiva, desde que não tenha ocorrido o registro da sentença ou da escritura no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Se já tiver ocorrido esse registro, a única via para reatar a união é por meio de um novo casamento. É que o divórcio, enquanto mudança do estado civil, só ultrapassa o plano da eficácia no momento do registro da sentença ou da escritura no RCPN, de modo que, só a partir daí, é que o estado civil de casado se transmuda. Antes disso, a eficácia da sentença ou da escritura pública de divórcio - ao menos em relação à mudança do estado civil - não chega a constituir um novo estado civil (art. 32, lei 6.515/1977). Antes do registro, o ato apenas tem eficácia inter partes e, por isso, pode ser objeto de "distrato" pelas partes. O ato não espraiou efeitos para além do casal, pelo que pode ser "abortado" mediante uma "distrato". Após o registro, o ato já terá assumido eficácia erga omnes com a mudança do estado civil e, por isso, já não pode mais ser objeto de "distrato". Caberá às partes casar de novo, se quiserem retornar ao estado civil de casado. O "distrato" do divórcio deverá observar o princípio do paralelismo da forma, por aplicação analógica do art. 472 do Código Civil. No caso de escritura pública de divórcio, a perda de seu efeito deverá ocorrer por meio de uma escritura firmada por ambos os consortes. Já no caso de uma sentença de divórcio já transitada em julgado, o caminho é ambos os consortes, por simples petição nos autos, pedir ao juiz que torne sem efeito a sentença de divórcio: a sentença aí não faz coisa julgada material, mas apenas formal.
No caminho da desjudicialização que estamos trilhando no Brasil, buscando dar efetividade às demandas da Sociedade, deixando para o Judiciário apenas o que realmente precisa de pronunciamento judicial, a lei 14.382, de 27 de junho de 2022, fruto da conversão da Medida Provisória nº 1.085/21, inseriu o art. 216-B na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), trazendo a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, que é requerida, processada e deferida perante o Cartório de Registro de Imóveis, similarmente ao que hoje já acontece com a usucapião extrajudicial. Apesar do brilhantismo da lei 14.382/22 ao trazer mais uma possibilidade de resolução célere e eficaz perante os Cartórios, o artigo 216-B foi econômico ao prever a adjudicação compulsória extrajudicial, gerando uma série de discussões envolvendo o instituto. E um importante ponto de debate é onde o procedimento de adjudicação compulsória deve começar: no Registro de Imóveis ou no Tabelionato de Notas? A parte deve ir primeiro no Tabelionato de Notas, para lavrar a ata notarial, que é requisito obrigatório previsto no inciso III, do §1º, do artigo 216-B, e então protocolar o requerimento de adjudicação no Registro de Imóveis devidamente instruído com o respectivo ato notarial? Ou, o procedimento deve começar no Registro Imóveis, com a prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o título de propriedade para a efetiva prova e caracterização do inadimplemento? A questão proposta tem vinculação e passa pela análise dos requisitos da adjudicação compulsória extrajudicial previstos nos incisos II e III, do §1º, do artigo 216-B, que para melhor didática e compreensão do leitor, transcrevemos a seguir: § 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos; (...) II - prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;   III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;    Com efeito, o inciso III, do §1º, do artigo 216-B, prevê que ata notarial feita perante o Tabelião de Notas deve conter a prova do pagamento do preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade. Já o inciso II prevê que a prova efetiva do inadimplemento é caracterizada pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos. Tanto o inciso II, quanto o inciso III, tratam da premissa fundamental da adjudicação compulsória: o inadimplemento daquele que deve outorgar ou receber a escritura pública. E esta premissa está intimamente ligada à questão que vamos enfrentar: o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial começa no Tabelionato de Notas, com a lavratura da ata notarial, ou começa no Registro Imóveis, com a prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o título de propriedade para a efetiva prova do inadimplemento? Tal discussão, de onde deve iniciar o procedimento, está ancorada em dois pontos centrais: a (im)prescindibilidade da notificação extrajudicial para caracterização do inadimplemento de outorgar ou receber o título de propriedade na ata notarial e no custo deste ato notarial para o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial. Vamos ao primeiro. Para caracterizar o inadimplemento na ata notarial, é necessária a notificação extrajudicial daquele que tem a obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade ou caberiam outros meios de prova? Se feita previamente tal notificação através do Registro de Título e Documentos, antes de iniciado o procedimento perante o Ofício Imobiliário, é necessária nova notificação feita pelo Registrador de Imóveis, diante do texto do inciso II, que prevê que é ele quem detém competência, seja por si ou delegada ao RTD, para notificar e efetuar a prova do inadimplemento? O Rio Grande do Sul, entendendo que a notificação extrajudicial para a prova do inadimplemento precisa ser feita pelo Ofício Imobiliário ou delegada por ele ao RTD, em observância aos princípios do devido processo legal e do contraditório, e entendendo que a notificação é imprescindível para caracterizar o inadimplemento na ata notarial, emitiu Nota conjunta da Diretoria nº 01/2023, envolvendo a Associação dos Notários e Registradores do Rio Grande do Sul (ANOREG/RS), o Colégio Registral do Rio Grande do Sul, o Instituto de Registro Imobiliário do Rio Grande do Sul (IRIRGS) e o Colégio Notarial do Brasil - Seção Rio Grande do Sul, sugerindo aos associados que o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial inicie no Registro de Imóveis com o protocolo e a autuação do respectivo requerimento (petição inicial), contendo o pedido de notificação extrajudicial a ser dirigida a quem deve outorgar a escritura pública ou recebê-la, para que assim o faça,  bem como em qual tabelionato o notificado deverá comparecer em caso de concordância com o pedido. De acordo com a Nota, não havendo manifestação do notificado, o Oficial do Registro de Imóveis certificará que ficou caracterizado o inadimplemento e, de posse desta certidão, poderá o promitente vendedor ou comprador solicitar ao Tabelião a lavratura da ata notarial para dar prosseguimento ao rito do procedimento. De outro lado, diz a Nota, caso o notificado expressamente concorde com o pedido, caberá ao Registrador conceder o prazo de 15 (quinze) dias úteis para a lavratura da escritura pública de efetivação da promessa de compra e venda com a transmissão da propriedade plena do imóvel, podendo ser prorrogado o prazo mediante pedido justificado dos interessados, suspendendo-se o procedimento e a sua prenotação até a conclusão das formalidades legais e da apresentação no protocolo da referida escritura pública. Percebam um detalhe importante: no Rio Grande do Sul, o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial só prossegue havendo silêncio do notificado. Se, de outro lado, a resposta à notificação for a concordância daquele que tem a obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade, o caminho será a escritura pública de compra e venda e o encerramento do procedimento de adjudicação compulsória. Já em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Amazonas e, mais recentemente, no Rio Grande do Norte, a concordância expressa do notificado implica na continuidade do procedimento de adjudicação compulsória. Nestes Estados, o silêncio importa em anuência tácita1, enquanto a "concordância" importa em anuência expressa do notificado com o pedido de adjudicação compulsória. Vejamos, à título de exemplo, o que diz o Código de Normas do Rio de Janeiro: Art. 1263. A notificação dos requeridos poderá ser feita pessoalmente pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado. (...) § 5º. O consentimento expresso poderá ser manifestado pelos titulares de direitos reais a qualquer momento, por documento particular com firma reconhecida ou por instrumento público, sendo para isso prescindível a assistência de advogado. § 6º. A concordância poderá ser manifestada ao escrevente encarregado da intimação, mediante assinatura de certidão específica de concordância que lavrará no ato. Deixando para outro momento a discussão que envolve qual caminho é mais adequado após a concordância do notificado, se é a escritura pública de compra e venda e ou a continuidade do procedimento de adjudicação, o fato é que no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Amazonas e no Rio Grande do Norte, a ata notarial pode ser feita em primeiro lugar, iniciando a adjudicação no Tabelionato de Notas, sem que isto ocasione qualquer prejuízo econômico para a parte. Adentramos aqui, portanto, no segundo ponto: o custo da ata notarial para o procedimento de adjudicação compulsória. Assumindo que ata notarial de adjudicação compulsória tem conteúdo econômico, o que defendemos, o receio de muitos é que, uma vez feita a ata notarial antes de protocolado o requerimento no Registro de Imóveis e havendo concordância do requerido após sua notificação pelo Ofício Imobiliário, o requerente seria onerado duplamente, com a ata notarial e com a escritura pública de compra e venda. Contudo, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Amazonas e no Rio Grande do Norte, o custo com a ata notarial não implicará em novo custo com a escritura pública de compra e venda, pois, conforme já dito, nestes Estados, a concordância do notificado implica na continuidade do procedimento de adjudicação e não na sua remessa para a via ordinária do artigo 108 do Código Civil. Neste sentido, aliás, o Rio Grande do Norte, no novíssimo Provimento 243, de 31 de maio de 2023, foi taxativo ao prever que a ata deve ser feita antes de iniciado o Procedimento no Registro de Imóveis, em dois artigos, a saber: Art. 502. (...) III - ata notarial previamente lavrada por tabelião de notas de livre arbítrio da parte interessada, quando tratar-se de constatação da mera documentação, sem necessidade de deslocamento até o local do imóvel; e,  Art. 507. O pedido da adjudicação compulsória será indeferido pelo oficial de registro de imóveis quando: I - ausência da ata notarial, que deverá ser lavrada por tabelião de notas antes da protocolização do requerimento perante o registrador de imóveis competente. Iniciado o procedimento no Tabelionato de Notas, com a ata notarial, remanesce ainda uma questão: como caracterizar o inadimplemento sem a prévia notificação extrajudicial? Ao encontro do que defendeu a Professora Letícia Faria, em palestra sobre o tema, entendemos que o legislador, ao utilizar as palavras "prova" no inciso II e "caracterização" no inciso III, quis diferenciar os dois momentos. E a notificação extrajudicial foi exigida para a "prova" do inadimplemento, mas não para sua "caracterização" na ata notarial. Assim, entendemos que a caracterização do inadimplemento na ata notarial não requer obrigatoriamente a notificação extrajudicial, podendo ser feita de inúmeras outras formas, valendo-se da essencial fé pública do tabelião. Entendemos que é possível comprovar as tentativas que o requerente fez de obter a escritura através da transcrição na ata notarial das mensagens trocadas entre as partes, de e-mails, de carta AR. Além disto, o tabelião pode ele mesmo tentar ligar para o requerido, orientando-o quanto à necessidade da escritura e das consequências de sua não realização, dando de tudo fé na ata. Vejam, o papel do tabelião na adjudicação compulsória extrajudicial é crucial. Como assessor imparcial das partes, ele tem influência importante no desfecho e na segurança do procedimento, atestando o real óbice à correta escrituração da transmissão da propriedade e evitando que a via administrativa da adjudicação compulsória se torne causa para burlar o direito civil, notarial e registral e tributário. E, para isto, definitivamente, a notificação extrajudicial não é imprescindível. De qualquer sorte, é importante deixar claro que, se acaso feita a prévia notificação extrajudicial pelo Registro de Títulos e Documentos para a caracterização do inadimplemento na ata notarial, antes de iniciado o procedimento no Registro Imobiliário, não poderá ser dispensada a notificação feita pelo Oficial de Imóveis, por si ou através de delegação ao RTD, por expressa previsão legal do artigo 216-B e em atendimento aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Em conclusão à questão objeto deste artigo, podemos dizer que o local onde o procedimento de adjudicação compulsória deve começar, se no Tabelionato de Notas ou no Registro de Imóveis, dependerá do tratamento que os Estados e o CNJ2 derem à resposta à notificação prevista no inciso II, do §1º, do artigo 216-B: se na concordância expressa do requerido, o procedimento de adjudicação compulsória perante o Registrador Imobiliário continuar seu curso até decisão final do Oficial (deferimento ou indeferimento), a ata notarial pode ser feita previamente, sem qualquer onerosidade adicional ao requerente; de outro lado, se a concordância do requerido levar à forma tradicional de transmissão da propriedade, à escritura pública de compra e venda, no caminho que o Rio Grande do Sul sugeriu, de fato, nos parece mais adequado que o procedimento inicie no Registro de Imóveis. É importante dizer, contudo, que a escolha de qual caminho seguir, a menos até que seja publicada norma estadual (Corregedorias) ou federal (CNJ) em sentido contrário, é da parte e de seu advogado. Com exceção do Rio Grande do Norte, que foi taxativo ao dizer que o procedimento deve iniciar com a ata, os outros Estados ficaram silentes em relação à esta questão. Nada impede, portanto, que, mesmo no Rio Grande do Sul, tendo em vista a Nota Conjunta ser apenas uma sugestão, o requerente inicie com a ata notarial, assumindo os riscos disto decorrentes. __________ 1 Provimento 243/23 da CGJ do Rio Grande do Norte. Art. 505. Caso o requerido compareça ao cartório, a notificação poderá ser feita pessoalmente pelo oficial de registro de imóveis ou preposto. (...) §4º. Na notificação deverá constar expressamente a informação de que o transcurso do prazo de 15 (quinze) dias úteis, sem manifestação do titular do direito sobre o imóvel, implicará em anuência presumida ao pedido de reconhecimento extrajudicial da adjudicação compulsória. 2 Até a data da elaboração deste artigo, o CNJ não havia publicado Provimento relativo à adjudicação compulsória extrajudicial.
A aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados nos cartórios tem gerado polêmicas e uma das principais, sem dúvida, é as certidões. Não é por acaso. A expedição de certidões por notários e registradores é atribuição prevista no artigo 6º da lei 8.935/94 e no artigo 19 da lei 6.015/73, respectivamente. São as certidões as responsáveis por suscitar o aparente conflito entre a publicidade e o direito fundamental à proteção de dados pessoais. Muitas dúvidas são levantadas, e a implementação normativa geralmente impacta no modo de proceder cotidiano dos agentes notariais e registrais. Embora privacidade e intimidade fossem protegidas originariamente pela Constituição Federal, a proteção de dados pessoais passou a integrar o rol de direitos e garantias fundamentais ao cidadão a partir da promulgação da Emenda Constitucional 115/2022. De acordo com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD, "a importância dos direitos à privacidade e proteção de dados estar elencado no artigo 5º da Constituição Federal é que os direitos fundamentais são garantias com o objetivo de promover a dignidade humana e de proteger os cidadãos. O direito à privacidade e à proteção de dados pessoais é essencial à vida digna das pessoas, principalmente nesse contexto de total inserção na vida digital.1"  O reconhecimento específico da proteção dos dados pessoais como direito fundamental busca garantir que as condições para desenvolvimento da construção da personalidade estejam protegidas. Para Ingo Sarlet e Giovani Agostini Saavedra, "as várias novas tecnologias, que ampliam as possibilidades de exposição, troca e tratamento de dados, somente serão legítimas se não desnaturarem a base do Direito, que é a autodeterminação livre, que se expressa por meio da vontade"2. O direito à proteção de dados pessoais pode ser associado a alguns princípios e direitos fundamentais de caráter geral e especial, como o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito geral de liberdade e os direitos à privacidade e à intimidade. Para Ingo Sarlet, o fundamento constitucional que mais se aproxima ao da proteção de dados pessoais é "o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, radicado diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito geral de liberdade".3 Na nova concepção da digital person, a proteção dos dados pessoais está relacionada ao livre desenvolvimento e determinação da personalidade, diretamente vinculada à proteção da personalidade, porém autônoma, enquanto direito fundamental relacionado à privacidade entendida em seu conceito clássico do the right to be left alone. Com o objetivo de tutelar a garantia fundamental à proteção dos dados pessoais, a lei 13.709/18 estabeleceu que as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e mais dez princípios, entre eles o da finalidade, adequação e da necessidade. A própria lei, no artigo 6º explica o significado de cada um deles. O princípio da finalidade determina que o tratamento dos dados pessoais tenha um propósito legítimo, específico e explícito, que precisam ser informados ao titular. O princípio da adequação se relaciona à compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas, de acordo com o contexto. E o princípio da necessidade, também denominado de princípio da minimização, limita o tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com a abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados. Esses três princípios estão interligados pelo princípio da proporcionalidade. Enfrentar esta polêmica pode ser uma oportunidade especial de distinguir noções e separar conceitos básicos, o que, ao final, facilitará sobremaneira a atuação cotidiana dos serviços notariais e registrais resultando em mais segurança e proteção social. Como será demonstrado, o conflito entre os direitos de proteção aos dados pessoais e a publicidade (registral e das formas notariais) é, de fato, apenas aparente, e isso decorre das dimensões distintas entre a publicidade notarial e registral, e da necessidade de conjugação dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados com o direito de acesso a informações sob a guarda dos notários e registradores. Iniciando pelos notários, o inciso II do artigo 6º da Lei 8.935/94 dispõe que compete a eles "intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo". Historicamente, os tabeliães de notas exercem a função de redatores e conservadores dos documentos que consignam a manifestação da vontade dirigida a criar, modificar ou extinguir direitos. Como consequência da atribuição de guarda e conservação dos documentos, está a expedição de cópias fidedignas do conteúdo desses instrumentos públicos. Os artigos 217 do Código Civil e 425, II do Código de Processo Civil determinam que as certidões extraídas dos instrumentos arquivados pelo tabelião terão a mesma força probante que os originais. Nestes documentos constam, pelo menos, três modalidades distintas de dados: os pessoais (geolocalização, endereço, número de documentos privados, dados fiscais, dados bancários, entre outros, que inclusive poderão ser sensíveis), os referentes ao próprio negócio jurídico (dados que descrevem a forma de criação, extinção e modificação de direitos) e os incidentais (dados que eventualmente sirvam à conservação de informações relevantes atuais ou a serem comprovadas no futuro, tais como consensos compartilhados sobre temas, declarações recíprocas, condições especiais de realização do ato/negócio).  O instrumento é público porque redigido e conservado por um agente público - que é o notário, também incumbido de expedir as certidões, e é preciso ressaltar que a lei não diz a quem essas certidões se destinam, diferentemente do que acontece com as certidões expedidas por registradores públicos. A Lei de Registros Públicos - Lei 6.015/73, em seus artigos 16 e 17, assim dispõe: Art. 16. Os oficiais e os encarregados das repartições em que se façam os registros são obrigados: 1º a lavrar certidão do que lhes for requerido; 2º a fornecer às partes as informações solicitadas. Art. 17. Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. (...) Uma primeira leitura dos dispositivos já revela que a extensão da publicidade registral é muito mais ampla do que a notarial. Registradores públicos são obrigados a lavrar certidões do que lhes for requerido (objeto mais amplo) e a fornecer às partes as informações solicitadas (não apenas dos atos de registro em sentido amplo por eles praticados). Na sequência, o legislador deixa expressa a certeza de que a publicidade registral se destina a qualquer pessoa, que, sequer precisará informar o motivo ou o interesse do pedido (ponto sobre o qual se pode levantar dúvidas a partir da vigência da necessária proteção de dados e dos direitos fundamentais, mas que não tratarei neste momento). De outro lado, é importante repetir que em momento algum a lei 8.935/94 determina a expedição de certidões pelo notário a qualquer pessoa, tampouco existe previsão legal do fornecimento de certidão de outras informações que estejam sob a guarda do notário, o que limita o objeto das certidões aos atos protocolares. Até aqui, as diferenças já são notáveis. Isso porque a publicidade notarial atua em plano distinto do da publicidade registral. Ela é requisito de validade de certos atos jurídicos, conforme dispõe o artigo 104, III, do Código Civil. Nas oportunidades em que houver a forma pública exigida pela lei, como por exemplo nos artigos 108 e 1.653 do Código Civil, o instrumento terá que ser redigido por agente público - o notário. A regra geral dos atos e negócios jurídicos entre particulares é a liberdade de conformação. A forma pública é exceção, diante do princípio da liberdade de forma consagrado no artigo 107 do Código Civil, e a publicidade notarial recai sobre a forma do negócio jurídico, porque compõe o seu núcleo de instrumentalização para acessar ao plano da validade do ato. Não há dúvidas quanto à existência, o plano de atuação da publicidade notarial é o da validade. Pelo instrumento público, pessoas, físicas ou jurídicas, privadas ou entes públicos, criam, modificam ou extinguem direitos subjetivos de natureza pessoal, cujos efeitos jurídicos se irradiam inter partes. (Para fins de adequação técnica, esclarece-se que os direitos reais exigirão título e modo para fazer frente aos planos de existência, validade e eficácia). Totalmente distinto é o âmbito de incidência da publicidade registral, que pode atuar sobre os dois outros planos, como elemento integrativo do suporte fático. Somente se pode afirmar a existência do direito subjetivo apontado se cumpridas as formalidades específicas de lei para isso, o que inclui o registro. Exemplo disso, é o direito real sobre os bens imóveis que somente ocorre mediante o registro do título junto ao Registro de Imóveis, e a própria existência da pessoa jurídica, que depende do registro no Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou no Registro Público de Empresas Mercantis. Ademais, opera em outro plano, o da eficácia, mais precisamente, pois, capaz de agregar uma eficácia extraordinária ao ato jurídico. Da publicidade registral decorre a oponibilidade, o efeito erga omnes, tornando o ato jurídico cognoscível a todos, e por isso é pressuposto o seu acesso ilimitado. É certo que o registrador público também é agente público, afinal, o artigo 236 também define a sua atividade como pública, delegada e com exercício em caráter privado. Então, é possível afirmar que para os registradores públicos a publicidade assume uma função tríplice, atuando no plano da existência, da eficácia e garantindo a presença do Poder Público no ato de registro. Entendida a diferença entre as publicidades, não é descabido afirmar que a expedição de certidões de que trata o artigo 6º da Lei 8.935/94 se destina às partes que figuram no instrumento público, não havendo sequer previsão de fornecimento a outras pessoas. Se até bem pouco tempo essa ideia parecia não fazer sentido, pois na prática o fornecimento de certidões sempre se deu de modo indistinto e sem questionamentos por notários e registradores, a Lei Geral de Proteção de Dados trouxe uma nova dimensão à questão, que precisa ser compreendida por todos que participam do sistema extrajudicial, principalmente diante do novo procedimento que se impõe para o fornecimento de certidões pelos notários. Não se pode associar a expedição de uma cópia do inteiro teor (possível de ser entregue às partes ou aos seus procuradores) com o fornecimento da certidão adequada à LGPD. Esta última constitui-se verdadeiro serviço novo da atividade notarial, criado e exigido pela LGPD, porque envolve custo operacional novo, estrutura nova e procedimento específico para avaliação e validação, verificando se é possível ou não, e em quais limites pode ser expedida a certidão requerida pela parte. Por ser expediente novo, vai precisar ser regulada pelo Conselho Nacional de Justiça e Corregedorias, a fim de que se atualize a tabela de emolumentos com a previsão do procedimento, pois não se trata de uma simples certidão. Não é, e nem pode ser confundida como tal. Considerando que expedir certidões - devidamente adequadas à LGPD -  é uma operação de tratamento de dados pessoais, pois por meio dela os dados do titular são transmitidos, compartilhados, distribuídos, utilizados, para citar algumas das operações previstas no artigo 5º, a partir da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados, um novo procedimento para expedição de certidões de adequação se torna imperioso para atender ao disposto no artigo 21 do Provimento CNJ n. 134/2022: Art. 21. Na emissão de certidão o Notário ou o Registrador deverá observar o conteúdo obrigatório estabelecido em legislação específica, adequado e proporcional à finalidade de comprovação de fato, ato ou relação jurídica. Parágrafo único. Cabe ao Registrador ou Notário, na emissão de certidões, apurar a adequação, necessidade e proporcionalidade de particular conteúdo em relação à finalidade da certidão, quando este não for explicitamente exigido ou quando for apenas autorizado pela legislação específica. Daí decorre, seguramente, que a expedição de certidões como antes se fazia, somente será possível aos titulares de dados, ou aos seus procuradores. Quaisquer outros requerimentos, não são meras certidões, mas requerimento específico ao notário de um procedimento especial, que exige análise, validação de fundamentos materiais pelos quais se requer o acesso aos dados pessoais e, após isso, adaptação à LGPD, eventualmente omitindo dados pessoais e incidentais, para então ser extraída a certidão adequada. O custo operacional para realização deste processo é completamente diferente da extração simples de certidões e vai precisar ser fixado pelos órgãos competentes, a partir da compreensão de que há um processamento envolvido, com avaliação de razões e atividades artesanalmente realizadas pelo notário, com comprometimento de tempo de funcionário devidamente especializado e qualificado. A adoção de um procedimento específico sempre que as certidões não forem expedidas para os próprios titulares a quem os dados se referem, ou seu representante, vai muito além de um novo termo ou nova designação para tratar das certidões. De fato, há uma verdadeira mudança de paradigma, no sentido de que não devem ser admitidos dados pessoais irrelevantes transitando na sociedade da informação, com potencial à violação de direitos fundamentais. Quando Conselho Nacional de Justiça dispõe que cabe ao registrador ou ao notário, na expedição de certidões, apurar a adequação, necessidade e proporcionalidade de particular conteúdo em relação à finalidade da certidão, está determinando que o pedido de certidão de um ato lavrado no tabelionato de notas deve instaurar um procedimento, que como tal, desenvolve-se em pelo menos quatro etapas distintas: Etapa 1 - Requerimento escrito pela parte interessada, que deverá ser identificada e deverá informar os motivos (justificativa) pelo qual deseja ter acesso ao conteúdo do instrumento público. Etapa 2 - Análise do pedido pelo tabelião ou seu preposto, para verificar, mediante a aplicação dos princípios da finalidade, da necessidade e da adequação quais informações constarão da certidão a ser expedida. Etapa 3 - Tratamento do documento originário, a fim de que a certidão a terceiros não contenha dados excessivos ou desproporcionais às finalidades contidas na solicitação. Etapa 4 - Expedição da certidão adequada, observados os limites da Lei Geral de Proteção de Dados. Isso não significa que terceiros estranhos ao ato notarial estão impedidos de ter acesso ao conteúdo, mas que deverão identificar-se e justificar o seu pedido, demonstrando interesse jurídico em sentido lato e permitindo que o notário forneça apenas os dados necessários à finalidade indicada, nada a mais e nem a menos. Tem-se um verdadeiro procedimento novo: protocolo, instauração do procedimento, avaliação do pedido, tratamento do documento originário e expedição da certidão. E isso significa dizer que é evidente que o novo procedimento exigirá tempo e atenção do notário maiores do que a expedição de certidão aos próprios titulares de dados, que pode ser inclusive por cópia reprográfica do ato arquivado no livro, ou impressão do ato arquivado eletronicamente. Em conclusão, de forma a atender a lei 10.169/2000, deverão ser previstos emolumentos para este procedimento, com valores que correspondam ao efetivo custo operacional elevado e à adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados. Afinal, é consenso que a Lei Geral de Proteção de Dados não veio para impedir o desenvolvimento de nenhuma atividade econômica, mas para tutelar uma garantia fundamental de todo cidadão, que é a proteção de seus dados pessoais. __________ 1 Proteção de Dados Pessoais agora é um direito fundamental. Disponível aqui. (Acesso em 01.06.2023) 2 Sarlet, Ingo Wolfang e Saavedra, Giovani Agostini. Proteção de Dados e Inteligência Artificial: Perspectivas Éticas e Regulatórias. RDP, Brasília, Volume 17, n. 93, 33-57, mai/jun.2020, p. 39. Disponível aqui. (Acesso em 4 junho 2023) 3 Sarlet, Info Wolfgang. O Direito Fundamental à Proteção de Dados Pessoais na Constituição Federal Brasileira de 1988. Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na área jurídica, n. 01, 2021, online. Disponível aqui. (Acesso em 4 junho 2023)
A lei 13.097/2015 disciplinou expressamente as exceções à aplicação do rol de inoponibilidades previstas nos incisos de seu art. 54. Dispõe o § 1º do art. 54 que não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel. Excetua apenas os arts. 129 e 130 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. Indagação que se formou diante desse quadro legislativo foi a possibilidade de oponibilidade de débitos fiscais não inscritos na matrícula imobiliária perante terceiros de boa-fé. A dúvida envolve a existência de antinomia entre as normas do art. 185 do Código Tributário Nacional (CTN) e o art. 54 da lei 13.097/2015. Essa indagação foi analisada em artigo produzido por Ricardo Gruber e Eduardo Arruda Alvim. Os autores, após detida análise da teoria das antinomias normativas, concluíram que o parágrafo único do art. 54 da lei 13.097/2015 (transformado atualmente em parágrafo primeiro) trouxe como exceções à obrigatoriedade de prévia averbação na matrícula do imóvel apenas duas hipóteses: 1) os casos de ineficácia decorrentes da Lei de Falências e 2) os atos que se constituem independentemente do registro (usucapião e transmissão causa mortis).1 Como apontado no referido artigo, a exposição de motivos da Medida Provisória 656/2014, que deu origem à lei 13.097/2015, explicitou que era objetivo do legislador diminuir a assimetria informacional e, por decorrência, extinguir a necessidade de diligências a diversos órgãos para a formação de um juízo informacional acerca de determinado bem imóvel.2 Ao analisar a finalidade declarada da Lei, é possível concluir que, caso o legislador desejasse incluir os débitos fiscais como exceção ao rol de inoponibilidades dos incisos do art. 54 da lei 13.097/2015, teria feito tal exceção expressamente. A admissão de exceções legislativas esparsas à norma específica registral, que disciplina os casos de oponibilidade de direitos ao credor de boa-fé, é totalmente contrária ao escopo do novo regramento legislativo, qual seja, fortalecer a existência do registro de imóveis como um fórum que reúna todas as situações jurídicas relevantes de um dado imóvel. Deixada de lado a questão da existência de antinomias aparentes, já bem trabalhada no artigo citado, abordaremos o tema sob a perspectiva da Análise Econômica do Direito. A AED é um sistema de referência que tem se apresentado como uma excelente opção interpretativa para direcionar decisões judiciais ou administrativas, em especial, após a entrada em vigor do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). O direito, sendo sistema que se relaciona com a economia, pode produzir resultados melhores a partir de relações socioeconômicas eficientes, sendo a eficiência3 um critério geral viável para aferir se uma norma jurídica lato sensu (incluídas as decisões judiciais) é desejável ou não. É preciso ter em conta que a oponibilidade que deriva direta e exclusivamente da lei e apenas da lei, sem decorrer da efetiva publicação da informação em um fórum único de fácil e possível acesso aos interessados, gera uma alocação ineficiente de recursos, afastando-se de uma situação Pareto-ótima4. Antonio Pau Pedrón alerta que a oponibilidade que deriva apenas da lei somente beneficia o titular do crédito, ao contrário da oponibilidade que deriva efetivamente de uma publicidade registral, que beneficia tanto o titular do crédito quanto o terceiro interessado5. É inegável que, ao se exigir de determinado agente econômico, titular de um crédito, a prática de um ato de publicização para que tal posição jurídica adquira oponibilidade, colocamos esse agente em uma situação desvantajosa. Nesse caso, a escolha de como alocar os recursos para que se alcance uma situação de maior eficiência para todos os agentes envolvidos não pode ser resolvida apenas com a eficiência de Pareto. Até mesmo Richard Posner, que fundamentou a sua eficiência econômica em bases paretianas, defendia o uso da complementação teórica de Kaldor-Hicks em decisão de casos judiciais.6 Pelo critério de Kaldor-Hicks, as alocações eficientes não são apenas aquelas Pareto-ótimas (em que nenhum dos agentes perde alguma vantagem), mas também as situações nas quais os ganhos totais dos transatores são maiores que as perdas ocorridas. Assim, é possível realizar uma transferência da medida dos agentes que ganham para a medida dos agentes que perdem, de modo a atingir uma situação que se aproxime da eficiência paretiana. Com isso, a utilidade prática do conceito de eficiência de Pareto é viabilizada pela complementação teórica de Kaldor-Hicks. No âmbito da AED, o valor procurado na eficiência é relacionado com a ideia de bem-estar social, sendo uma referência da agregação do nível de utilidade para cada agente de determinada sociedade, em razão das consequências de determinada razão política, jurídica ou social.7 Nesse ponto, vale citar a lição de Robert J. Brent,8 em obra dedicada exclusivamente ao estudo das análises de custo-benefício em sociedades. O autor traz um exemplo didático e ilustrativo que demonstra como introduzir questões distributivas em uma análise de custo-benefício. Tal autor propõe uma hipótese em que se considere a existência de duas comunidades que serão afetadas por determinada proposição. De um lado, temos pessoas mais carentes (P) e, de outro, pessoas mais abastadas (R). A renda de cada um desses grupos é representada por YP e YR, respectivamente. Temos que a renda total da economia será dada por W = YP + YR. Desse modo, as alterações na renda são denotadas por ?W = ?YP + ?YR, onde ? representa variação. Vamos considerar que a proposição aumente a renda do grupo de pessoas carentes. Os benefícios B são dados por B = ?YP. Ao mesmo tempo, a renda do grupo R cai em função da proposição. Nesse caso, os custos da proposição podem ser dados por C = ?YR. A análise de custo-benefício simples utiliza o critério ?W = B - C9 para decidir se a proposição traz benefícios líquidos para a sociedade. Na realidade, agora temos que ?W = B - C = ?YP - ?YR. Podemos definir os pesos para cada grupo como sendo aP e aR, e a variação da renda seria dada por: ?W = aP×B - aR×C = aP×?YP - aR×?YR onde os pesos aP e aR denotam a utilidade marginal social da renda para cada um dos grupos. Vale dizer que aP > aR, pois o grupo P dá mais valor a ganhos incrementais de renda do que o grupo R (hipótese de utilidade marginal social da renda decrescente). Nesse caso trazido por Brent, a análise de custo-benefício tem dois objetivos primordiais: (1) alcançar a eficiência analisando todos os custos e benefícios; e (2) atingir maior igualdade, que seria alcançada dando pesos diferentes aos grupos que são afetados pelas medidas. Esse tipo de análise pode ajudar a justificar proposições que transfiram renda de um grupo para outro carente.10 No Green Book do Reino Unido, percebe-se claramente a aplicação desse tipo de análise de custo-benefício. O Green Book é um documento publicado pelo Tesouro sobre como avaliar políticas, programas e projetos. Também fornece orientação sobre o desenho e uso de monitoramento e avaliação antes, durante e depois da implementação. Desde 2011, propõe que se use como peso para tomadas de decisão a razão entre a renda das famílias e a renda mediana. Assim, famílias com renda mais baixa teriam ponderação maior, enquanto famílias mais abastadas teriam ponderação menor.11 Feitas essas considerações, é possível utilizarmos essa análise de custo-benefício para decidirmos se faz sentido, sob o ponto de vista econômico, aplicar a interpretação de que o art. 185 do CTN deve se sobrepor ao art. 54 da lei 13.097/2015, ou seja, gerando a oponibilidade do crédito tributário não inscrito aos transatores imobiliários de boa-fé. Vamos supor que o gasto total do fisco brasileiro com a averbação de seus créditos tributários na matrícula imobiliária seja X (situação em que se afasta a aplicabilidade do art. 185 do CTN frente ao art. 54 da lei 13.097/2015). Assumamos que o custo social de se realizar uma compra e venda num ambiente em que se tenha de proceder a uma due diligencie em todas as esferas da fazenda pública do país seja Y. Vamos assumir que o custo social de se exigir que o fisco averbe seus créditos seja W, onde W = Y-X. Ou seja, a decisão de exigir que o fisco averbe seus créditos perante o ofício imobiliário para que possa opô-los ao contratante de boa-fé apenas se aproximará de uma situação paretiana se W resultar em um número positivo. Quer-se dizer que, sob o ponto de vista econômico, o custo social de se exigir a comunicação creditória do fisco para o ofício imobiliário deve ser inferior ao custo social de se exigir que todo contratante proceda a pesquisas perante todas as esferas do fisco para que possa realizar uma transação imobiliária segura. Ainda que os custos de consultar uma certidão e publicizar a informação sejam idênticos, os adquirentes precisariam providenciar certidões negativas de inscrição em dívida ativa perante a União, os estados, o Distrito Federal (DF) e os municípios. Tendo em vista a quantidade de municípios no Brasil, providenciar Certidões Negativas de Débitos (CND) em todos eles é economicamente inviável. Assim, a exigência de averbação dos débitos na matrícula resolveria um grande problema de assimetria informacional, trazendo segurança para as contratações imobiliárias. Embora não seja simples transformar a fórmula sugerida em números efetivos, é possível estimar que a exigência de averbação dos créditos por parte do fisco seja menos onerosa que a imposição de ônus a todos os agentes que realizem um contrato que envolva bens imóveis no Brasil. Recente alteração legislativa inclusive facilitou o acesso da informação de débitos fazendários aos ofícios imobiliários, tendo sido introduzido o art. 20-B na lei 10.522/2002, com a previsão de que o fisco pode averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora. A utilização de comunicação por via eletrônica facilita o fluxo de informações e diminui os custos da fazenda. Observa-se que, após o decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 194, firmou-se o posicionamento de que a União é isenta do pagamento de emolumentos em cartório, o que geraria para a Fazenda Nacional um custo zero com a averbação da CND, restando apenas o custo com a promoção de automatização do fluxo de informações para os cartórios. Para as demais fazendas, ainda que seja pago por elas o valor de um ato de averbação da CND, tal custo é inferior à exigência de que todos os contratantes imobiliários do país façam due diligences em todas as esferas fazendárias no momento da aquisição de um imóvel. Toda a problemática apontada neste artigo foi investigada em recente estudo de nossa autoria12, onde tivemos a oportunidade de analisar o Recurso Especial (REsp) nº 1.141.990-PR de 2010. Naquele julgado de 2010, restou assentado que, após a vigência da Lei Complementar 118/2005, a simples alienação de bens pelo sujeito passivo de débito tributário inscrito em dívida ativa, sem a reserva de meios para a sua quitação, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução.13 Concluímos pela necessidade de revisão do julgado, em especial pela pela novel redação da lei 13.097/2015, que, como dito, não previu a oponibilidade de débitos tributários não inscritos perante o terceiro de boa-fé, reafirmando a necessidade de publicização de tais débitos (necessidade que, em nossa opinião, já existia anteriormente no ordenamento brasileiro). Aguardávamos a alteração de entendimento do Superior Tribunal de Justiça e foi com espanto que acompanhamos o recente resultado do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial número 1.141.990 - PR, em que se reconheceu a oponibilidade de créditos tributários contra terceiro de boa-fé, ainda que não houvesse inscrição de tais débitos na matrícula do imóvel. Colhe-se do voto proferido pelo Excelentíssimo Ministro relator a seguinte passagem: Logo, não há como afastar a presunção de fraude, com amparo na Súmula 375 do STJ, quando se tratar de Execução Fiscal, em que há legislação específica, qual seja, o art. 185 do CTN, na redação dada pela LC 118/2005, cujo escopo não é resguardar o direito do terceiro de boa-fé adquirente a título oneroso, mas sim de proteger o interesse público contra atos de dilapidação patrimonial por parte do devedor, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas. Data máxima vênia, não há como defender que a vulneração de nosso sistema registral e o sepultamento da defesa do terceiro de boa-fé (e por consequência do princípio da confiança que ilumina nosso ordenamento jurídico) serve à satisfação das necessidades coletivas, conforme apontou o acordão em comento. Parece-nos que as interpretações que concluem pela imposição do crédito tributário, a todo custo e contra todos, mesclam os conceitos de interesse público primário e secundário do Estado. Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que o interesse público é o "interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social", que não se confunde com a soma dos interesses individuais. Entretanto, o autor alerta que, se esse conceito não for devidamente elaborado, corre-se o risco de vislumbrar "um falso antagonismo entre o interesse da parte e o interesse do todo, propiciando-se a errônea suposição de que se trata de um interesse a se stante, autônomo, desvinculado dos interesses de cada uma das partes que compõem o todo."14 O administrativista ensina que o interesse público não é senão "a dimensão pública dos interesses individuais".  O referido autor aponta que nem todo interesse do Estado e das demais pessoas de Direito Público interno se confunde com o interesse público. Surge daí a diferenciação levada à efeito pelo jurista italiano Renato Alessi - com fundamento nos estudos de Carnelutti e Picardi - entre interesses primários e secundários do Estado. Os interesses do Estado que coincidem com o interesse público são os interesses primários; por outro lado, aqueles interesses particulares, individuais, que o Estado possui - da mesma forma que uma pessoa jurídica qualquer - são interesses secundários15.  Exemplo clássico de interesse secundário do Estado é a defesa de seu enriquecimento e de seu patrimônio. Assim, a arrecadação de tributos, ou diminuição de despesas é bem definida pela doutrina como um interesse secundário que muitas vezes se opõe ao interesse coletivo, ou primário. Por exemplo, o pagamento de uma indenização i'nfima nas desapropriações atende ao interesse secundário, por certo, mas desatende ao interesse primário16.  Nota-se que o julgado em analise claramente posicionou o interesse público secundário em um patamar de importância mais elevado que o interesse público primário. Não há como negar que a manutenção de um sistema registral confiável e livre de ônus ocultos atende ao interesse primário do Estado e, portanto, da coletividade. A interpretação levada à cabo pelo Superior Tribunal de Justiça coloca o nosso sistema registral em uma cápsula do tempo e o leva de volta ao sistema oitocentista, período das hipotecas ocultas, época em que a informação registral não possuía a eficiência dos tempos atuais. Além da mescla de conceitos, o julgado trata o Código Tributário Nacional como uma verdadeira ilha, completamente apartada da lógica do ordenamento jurídico. Interpretou-se a codificação tributária sem levar em conta a extensão eficacial dos atos publicados no registro imobiliário. A decisão parece desconsiderar todo o esforço doutrinário e legislativo que tem se envidado há quase dois séculos para que o registro de imóveis brasileiro se consolide como instituição capaz de pôr fim à assimetria funcional entre agentes econômicos. A interpretação vulnera a posição do Brasil como uma país economicamente seguro, com sistema registral forte e capaz de atrair investimentos imobiliários agasalhados pelo princípio da confiança. Inserir a semente da insegurança jurídica em nosso sistema, para que a Fazenda não tenha o trabalho de levar suas informações ao registro imobiliário é desconsiderar o real interesse primário de nosso Estado e premiar a ineficiência.  Esperemos que essa seja uma decisão isolada e que o Superior Tribunal de Justiça, como Tribunal da Cidadania, reveja esse posicionamento, e volte, como é tradicional na referida corte, a homenagear os princípios cardeais de nosso ordenamento, como a boa-fé, a presunção de confiança, coroando assim o interesse público primário do Estado. __________ 1 ALVIM, Eduardo Arruda; GRUBER, Rafael Ricardo. Segurança jurídica dos negócios imobiliários versus fraude a execução: ônus dos credores e ônus dos adquirentes de bens no Direito Civil e tributário brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 44, n. 291, maio 2019, p. 107. 2 "58. O Projeto de Medida Provisória visa também adotar o princípio da concentração de dados nas matrículas dos imóveis, mantidas nos Serviços de Registro de Imóveis. 59. Atualmente, a operação de compra e venda de um imóvel é cercada de assimetria de informação. De um lado, o vendedor tem informações mais precisas sobre sua própria situação jurídica e financeira e sobre a situação física e jurídica do imóvel. Do outro lado, o comprador e o financiador não possuem, de pronto, essas informações, devendo buscá-las em fontes fidedignas. [.] 63. Seja pelo custo de realizar a totalidade das citadas consultas, seja pelo tempo que seria despendido para sua efetivação, ou ainda pela inexequibilidade de tal medida, os potenciais compradores dos imóveis e mesmo as instituições financeiras que os financiam e, consequentemente, os utilizam como garantia ao financiamento concedido, restringem-se, na grande maioria das vezes, a realizar consultas nos órgãos que guardam uma relação geográfica mais próxima com o imóvel. 64. Ou seja, por desconhecimento ou economicidade, os agentes deixam de trabalhar com a totalidade das informações necessárias para aferir o risco e, consequentemente, o efetivo preço da transação e as consolidam com um "vácuo informacional", que possibilita, no futuro, a contestação ou reversão da operação. A concentração dos atos na matrícula do imóvel pode ajudar na mitigação deste "vácuo informacional". 65. Trata-se de procedimento que contribuirá decisivamente para aumento da segurança jurídica dos negócios, assim como para desburocratização dos procedimentos dos negócios imobiliários, em geral, e da concessão de crédito, em particular, além de redução de custos e celeridade dos negócios, pois, num único instrumento (matrícula), o interessado terá acesso a todas as informações que possam atingir o imóvel, circunstância que dispensaria a busca e o exame de um sem número de certidões e, principalmente, afastaria o potencial risco de atos de constrição oriundos de ações que tramitem em comarcas distintas da situação do imóvel e do domicílio das partes." (MANTEGA, Guido et al. EMI nº 00144/2014. Brasília, DF: MF; MJ; MTE; MDIC; BACEN, 12 set. 2014. In: BRASIL. Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação [.], e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2015].). 3 O termo eficiência se relaciona com uma regra de maximização da utilização de riquezas e do bem-estar social, no âmbito da Teoria Econômica. A noção de eficiência compreendido pela AED, passa pelo entendimento do ótimo de Pareto ou da eficiência de Pareto. POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 11. 4 Desse modo, a eficiência de Pareto é uma relação de equilíbrio entre a utilidade total que a fruição de um recurso proporciona para a coletividade (bem-estar social) e a utilidade que o uso desse mesmo recurso proporciona para cada um dos agentes individualmente considerados. Assim, o ponto ótimo dessa eficiência se dá quando a distribuição de recursos ocorre, mantida a maximização do bem-estar social, sem reduzir recursos de outro. A situação pareto-ótima é aquela em que é possível realocar recursos de maneira a melhorar a situação de um agente econômico, sem piorar a situação de outro. GAROUPA, Nuno; PORTO, Antônio Maristrello. Curso de Análise Econômica do Direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 61 5 PEDRÓN, Antonio Pau. La publicidade registral. Madrid: Colegio de Registradores de la Propiedad Mercantile y Bienes Muebles, 2001, p. 298. 6 POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 42. 7 POSNER, Richard Allen. Economic analysis of law. 7th. ed. Austin: Wolters Kluwer, 2007, p. 19. 8 BRENT, Robert .J. Handbook of Research on Cost-Benefit Analysis. Northampton: Edward Elgar, 2009, p. 142-159. 9 Ou seja, a variação da renda total da economia é igual ao ganho dos pobres menos a perda dos ricos. 10 TABAK, Benjamin Miranda. A análise econômica do direito: proposições legislativas e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, [s. l.], v. 52, n. 205, p. 321-345, jan./mar. 2015, p. 330. 11 HM TREASURY. The Green Book: Central Government Guidance os Appraisal and Evaluation. London: The National Archives, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 17 jul. 2021. (Cf. p. 97: Distributional weighting). 12 Disponível aqui. 13 Em julgados anteriores ao REsp nº 1.141.990-PR, deve-se apontar que o STJ havia se posicionado pela presunção relativa da fraude a` execução fiscal (REsp nº 751.481-RS). Em relação a veículos, entendia o tribunal que apenas a inscric¸a~o da penhora no DETRAN tornava absoluta a assertiva de que a constrição e' conhecida por terceiros (REsp nº 810.489-RS). No mesmo sentido, em relação a imóveis, somente se somente se presumia fraudulenta a alienação se realizada posteriormente ao registro da penhora ou arresto (REsp 892.117-RS). 14 BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo. 27. ed. Sa~o Paulo: Malheiros, 2010. p. 59. 15 ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo. 4a ed. Milano: Giuffrè, 1978. p. 229. t. I. I soggeti attivi e l'esplicazione della funzione amministrativa, p. 232-233. 16 OLIVEIRA, Jose' Roberto Leme Alves de Cadernos Juri'dicos da Escolha Paulista da Magistratura, Sa~o Paulo, ano 20, no 47, p. 151-164, Janeiro-Fevereiro/2019.
Introdução Em razão dos milhões de processos contenciosos que assolam o país, e o crescente protagonismo dos cartórios extrajudiciais na prática de atos anteriormente privativos do Poder Judiciário, percebe-se no cotidiano forense uma redução dos procedimentos de jurisdição voluntária. Estes estão elencados na seção de mesmo nome (arts. 719 a 725 do Código de Processo Civil), bem como nas seções subsequentes, que lidam com os procedimentos especiais de jurisdição voluntária (i.e: o procedimento de divórcio consensual, previsto aos arts. 731 e 732 do Código de Processo Civil). Ainda assim, os procedimentos de jurisdição voluntária do Código de Processo Civil possuem relevância na atividade jurisdicional, como se constata dos inúmeros processos dessa natureza em trâmite pelos tribunais nacionais, em especial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão encarregado em uniformizar e interpretar a legislação infraconstitucional. Acentuando a relevância dos procedimentos de jurisdição voluntária, encontra-se nessa seção o art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, que dispõe que "O juiz não é obrigado a seguir o critério da legalidade estrita, podendo adotar ao caso a solução que reputar mais oportuna e conveniente". Esse (curioso) artigo de lei desponta-se como uma anomalia legal no texto do Código de Processo Civil, cujas repercussões práticas na atividade judicante serão objeto desta seleção de textos. Uma exceção ao princípio da legalidade estrita em prol de outros objetivos constitucionais O vernáculo não deixa dúvidas: a redação do artigo configura exceção ao princípio da legalidade estrita, positivado ao art. 5º, II, da Constituição Federal.   Uma leitura rasa do dispositivo poderia levar o intérprete à conclusão de que se trata norma inconstitucional, eis que seria inconcebível cogitar que lei infraconstitucional abstratamente apontasse por uma exceção de legalidade, sob pena de arbítrio judicial. Ocorre que uma leitura teológica - à luz dos princípios norteadores da Carta Magna - revela que o artigo não padece de vício de inconstitucionalidade: o ordenamento jurídico nacional, ao menos desde 1988, é guiado também outros comandos da Constituição Federal, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, apontado como um dos valores norteadores do país (art. 1º, III, e os incisos do art. 5º da Constituição Federal). O Direto Processual Civil segue nesta linha, motivo pelo qual - há muito - a doutrina e jurisprudência entendem pela existência um direito processual civil constitucional, cujas normas legais, além de não afrontarem o texto constitucional, devem ser interpretadas conforme este1. Sendo assim, como enunciam as normas fundamentais do Código de Processo Civil e as normas da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), a atividade judicante deve aplicar a norma, tendo como norte os valores constitucionalmente previstos, em especial, o da dignidade da pessoa humana, definido pelo Prof. Flávio Tartuce como "superprincípio" ou "princípio dos princípios"2. O doutrinador, ao apontar a influência da Constituição Federal no Direito Processual Civil, ressalta a posição privilegiada do princípio da dignidade da pessoa humana na atividade judicante: Pontue-se, por oportuno, que a dignidade humana passa a compor expressamente outro dispositivo do Código de Processo Civil, o seu art. 8º, segundo o qual, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência3. É dizer que o juiz, em qualquer circunstância, ao constatar pela violação de direitos fundamentais por abstrata prescrição legal, deverá aplicar a lei atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da LINDB, e art. 8º do Código de Processo Civil). Além disso, em casos de omissão da lei, o juiz deverá decidir a demanda conforme a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4º da LINDB). A própria lei, portanto, demanda que o juiz se não limite, nos hard cases, a (tão somente) aplicar sua "letra fria", mas exerça a atividade judicante à luz dos preceitos constitucionais, nos termos que melhor atenderão aos interesses individuais e coletivos em jogo. Afinal, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, havendo conflito entre a legalidade e a dignidade da pessoa humana, prevalece-se esta última. Na mesma linha, mas de forma expressa, o legislador, em casos de jurisdição voluntária, ao ponderar os interesses abstratamente envolvidos (pretensão individual do jurisdicionado versus texto legal), conferiu ao magistrado a prerrogativa de aplicar ao caso a solução que reputar mais oportuna e conveniente (art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil). Evidentemente, trata-se de tarefa que demanda prudência e responsabilidade pelo magistrado, que deverá ponderar os princípios em jogo para positivar os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, do (efetivo) acesso à justiça e da eficiência da Administração Pública, que também se apresentam normas fundamentais do Código de Processo Civil (arts. 3º, 4º e 6 do Código de Processo Civil). A aplicação do artigo ao Direito Notarial e Registral: formação e retificação de nome social O direito ao nome, formado pelo prenome e sobrenome, está garantido ao art. 55, caput, da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), bem como ao art. 16 do Código Civil. Em conjunto com a personalidade subjetiva do indivíduo e seus traços físicos únicos, o nome social é um dos elementos centrais da personalidade humana, garantindo a proteção da dignidade da pessoa humana e pleno acesso à cidadania4.   Tal como seus traços físicos, ao ser humano inexiste a prerrogativa de escolher seu nome civil de antemão. Assim, eventual inadequação do nome (seja o prenome, agnome ou sobrenome), poderá causar danos graves aos seus direitos da personalidade, o que representa violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não outro motivo, em seu artigo 57, a Lei de Registros Públicos permite a alteração do nome em determinadas hipóteses legais. Como exemplos, pode-se citar os pedidos para inclusão de sobrenome de parentes por razão de socioafetividade, (i.e: inclusão do sobrenome de padrasto ou madrasta), e alteração de sobrenome em caso de divórcio ou separação judicial (art. 57, parágrafos 2º e 8º da Lei de Registros Públicos, respectivamente). Além disso, há entendimento jurisprudencial e doutrinário que, com referência explícita ou implícita da regra do art. 723, parágrafo único, do Código Processo Civil, permite a alteração ou registro de nome fora das hipóteses previstas ao art. 57 da Lei de Registros Públicos em casos excepcionais, sendo a jurisprudência do STJ dividida na questão, como será abaixo tratado. O caso do jovem "Samba", e a acertada reconsideração do Oficial de Registro O primeiro exemplo divergirá em parte do escopo deste texto, mas servirá para demonstrar, por meio de ilustre caso, o atual trâmite extrajudicial do processo de registro de nome, e as difíceis decisões tomadas pelos oficiais de registros, que - respeitadas suas competências - se encontram em posição similar aos magistrados que julgam pedidos dessa natureza.    No caso do filho do compositor Seu Jorge, o pedido de registro do prenome "Samba" foi formulado perante o cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do 28º Subdistrito de São Paulo. Com a negativa de registro por parte do delegatário sob a alegação que se tratava de nome "incomum", os genitores, evitando judicializar a questão5, ofereceram pedido de reconsideração informal ao Registrador. Este acolheu o pedido e permitiu o registro do nome sob a seguinte justificativa: "Diante das razões apresentadas, que envolvem a preservação de vínculos africanos e de restauração cultural com suas origens, assim como o estudo de caso que mostrou a existência deste nome em outros países, formei meu convencimento pelo registro do nome escolhido"6. Na visão deste colunista, a decisão encontra-se acertada, eis que, ainda que incomum, o nome "Samba" (música considerada patrimônio imaterial deste país) não possui potencial vexatório, o que não configura violação ao artigo 56 da Lei de Registros Públicos. O contexto social e familiar deve ser levado em consideração: trata-se do filho de um dos influentes e compositores brasileiros, cuja identidade subjetiva (ao menos, em seus primeiros anos de vida) está inegavelmente atrelada ao trabalho artístico de seu pai. Evidentemente, diante dessas circunstâncias, o tratamento social desse peculiar nome deverá ser considerado, minimizando o risco de que Samba sofra constrangimentos ou humilhações ao longo de sua vida7. Ademais, a decisão está em linha com a doutrina moderna, devendo-se presumir que os genitores - responsáveis legais por seus descentes até a maioridade civil - escolherão os nomes destes com as melhores das intenções, em linha com seus valores pessoais e familiares8. No caso, nas palavras do Registrador, os genitores do jovem Samba, optaram por nome civil que reputaram como prestigioso às origens ancestrais do genitor do registrando. De qualquer modo, não se trata-se de situação irreversível: caso o jovem Samba desaprove seu peculiar prenome, terá a oportunidade de alterá-lo, de forma imotivada e diretamente em cartório extrajudicial, quando da maioridade, nos termos do art. 56, § 1º, da Lei de Registros Públicos9. Por fim, como foi noticiado, em que pese a possibilidade de formulação do pedido por meio extrajudicial em razão da alteração promovida pela lei 14.382/2022, os pedidos de alteração imotivada de nome civil também são formulados (e deferidos) judicialmente, demonstrando a relevância do Poder Judiciário em casos de jurisdição voluntária10. O caso do Recurso Especial nº 1.962.674/MG, e a menção explícita ao art. 723, parágrafo único, do CPC Como primeiro exemplo de cases judicializados no STJ que, com base no artigo 723, parágrafo único do Código de Processo Civil, permitiu-se a retificação de nome nos cartórios de registro de pessoas naturais, analisa-se o acórdão proferido pela Terceira Turma do STJ, no julgamento Recurso Especial nº 1.962.674/MG, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze. Em síntese, versou o caso acerca de pleito de professor universitário que requereu a inclusão em seu registro civil do sobrenome de sua avó materna, com o objetivo de evitar constrangimentos, em virtude da existência de homonímia com réus em ações penal. Ao dar provimento para o recurso especial, o Min. Relator expressamente fez uso da regra do art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, expondo que, em que pese a ausência de previsão de legal, diante das repercussões negativas associadas ao seu nome, seria razoável permitir inclusão do sobrenome da avó materna. Trata-se de coerente decisão que prestigia os princípios constitucionais que amoldam o sistema de justiça, haja vista ser presumível a violação à dignidade da pessoa humana com os contratempos decorrentes da confusão com seu "xará ficha-suja" (ie: a impossibilidade de emissão de certidão negativa de antecedentes criminais por indivíduo homônimo de réu em processos criminais)11. Este excerto do voto condutor merece transcrição: "Por se tratar de um procedimento de jurisdição voluntária, o Juiz não é obrigado a observar o critério de legalidade estrita, conforme dispõe o art. 723, parágrafo único do CPC/15, podendo adotar no caso concreto a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, por meio de um juízo de equidade, o qual, na espécie demanda reconhecer a possibilidade de retificação de registro. A retificação do nome está inserida no âmbito da autonomia privada, sendo que, na espécie, além de afastar o constrangimento suportado pelo requerente, não há nenhuma ofensa à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas"12. Neste caso, sem ofensa à segurança jurídica e à ordem pública, com responsabilidade e proporcionalidade, o STJ, pelo uso do art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, permitiu sanar questão que causava transtorno ao jurisdicionado. Alteração de prenome por transexuais: o exemplo do REsp nº 1.860.640/SP Outro exemplo marcante é o Recurso Especial nº 1.860.640/SP, de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, da Terceira Turma do STJ. Com efeito, ainda que não tenha expressamente feito referência ao artigo 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, o julgado é dotado de fundamentação que merece destaque. O recurso em questão discutiu possibilidade de alteração de prenome e o designativo de sexo no registro civil, por parte de transexuais, independentemente da alteração do sexo biológico (leia-se: a conhecida cirurgia de redesignação sexual13).  Em seu voto condutor, o Ministro Relator, após dissecar a importância do nome social para formação da personalidade do indivíduo, apontou que: "O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar'14. Percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça, em que pese não ter explicitamente feito menção à regra do art. 728, parágrafo único, do Código de Processo Civil, permitiu que fosse alterado o nome de indivíduo transexual para nome de outro sexo inobstante a ausência de realização de cirurgia de redesignação sexual, prestigiando-se, assim, a autônomiaa da vontade e a dignidade da pessoa humana. Como visto em outros tópicos15, serventias extrajudiciais não ficaram de fora. Seguindo a jurisprudência citada do STJ, determinadas Corregedorias Gerais de Justiça autorizam que indivíduos autodeclarados não-binários alterem prenome e gênero, para "não-binarie" diretamente nas serventias extrajudiciais (i.e: Provimento nº 16/2022 da CGJ/RS). O caso do Romero Brit(t)o: a decisão no REsp 1.729.402/SP Contudo, há outras célebres decisões do Tribunal Superior que foram julgadas de modo distinto. Um exemplo marcante é o caso do artista brasileiro Romero Brito, julgado em última instância pelo STJ no Recurso Especial 1.729.402/SP, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, da Quarta Turma. Em síntese, o caso analisou "a possibilidade de alteração de patronímico, especificamente a duplicação de consoante ("t") em um dos apelidos de família do autor ("Brito"), deduzida com fulcro na necessidade de conciliação da assinatura artística". Nesse sentido, a despeito do acórdão ter corretamente apontado que o direito ao nome configura garantia ao livre desenvolvimento da personalidade devendo "refletir o modo como o indivíduo se apresenta e é visto no âmbito social", o pleito do artista foi rechaçado, sendo mantido, por maioria de votos, o acórdão recorrido.   É o que se verifica deste trecho do acórdão: "Na hipótese dos autos, a modificação pretendida altera a própria grafia do apelido de família e, assim, consubstancia violação à regra registral concernente à preservação do sobrenome, calcada em sua função indicativa da estirpe familiar, questão que alcança os lindes do interesse público. (...). Todavia, a utilização de nome de família, de modo geral, que extrapole o objeto criado pelo artista, com acréscimo de letras que não constam do registro original, não para sanar equívoco, mas para atender a desejo pessoal, não está elencado pela lei a render ensejo à modificação do assento de nascimento"16. Nessa ordem de ideias, o voto vencedor concluiu que "a discrepância entre a assinatura artística e o nome registral não consubstancia situação excepcional e motivo justificado à alteração pretendida"17. Com o devido respeito, o contexto deste artigo aponta que a decisão enseja respeitosas críticas. Além da ausência de risco à segurança jurídica, ordem pública e à estirpe (identificação) registral com o acréscimo de um (t) em seu sobrenome, que continua rigorosamente com a mesma etimologia e sonoridade, o pleito do artista é justificado pela notoriedade de seu nome, que assina valiosas obras de artes mundo afora. Com efeito, o fato de ser mundialmente conhecido como Romero Britto, possui o condão tornar a nova grafia parte de seu nome, em substituição ao seu nome (prenome e sobrenome) original. É dizer que, a despeito de parecer mero capricho de um artista, o nome utilizado para grafar suas obras, tornou-se parte de sua identidade subjetiva, configurando uma indevida limitação aos seus direitos da personalidade a negativa da alteração pretendida. E, por ser uma questão íntima e subjetiva, no âmbito da autodeterminação e autonomia privada, não cabe a terceiros a presunção de que determinada mudança não teria influência no pleno exercício de sua cidadania e dignidade da pessoa humana. Sem risco à segurança das relações, o impedimento de alteração do nome pretendida se assemelha à absurda situação de se impedir que individuo realize procedimento estético sob a alegação de se trata "mero desejo pessoal".   Por fim, no específico caso do artista, cumpre apontar que o art. 57, parágrafo primeiro, da Lei de Registros Públicos, permite a averbação de nome abreviado usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional. A aplicação analógica desse artigo, à luz da doutrina contemporânea acerca da formação do nome civil, reforça o cabimento do malsucedido pleito do artista. Assim, com devido respeito, a resposta do STJ neste caso, na contramão prestígio à autonomia da vontade, não se coaduna com os citados preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, o (efetivo) acesso à justiça e da eficiência da Administração Pública. O (recentíssimo) caso "Solange Souza Reis", e a decisão do STJ no REsp 1.729.402/RJ Por fim, deve-se mencionar o recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.927.090/RJ, pela 4ª Turma do STJ que, por maioria de votos, negou provimento ao recurso especial de Solange Souza Reis. Esta, com amparo no artigo 109 da lei 6.015/1973, ajuizou ação postulando a alteração de registro civil para que seu nome passasse a constar como "Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado", nome de origem indígena pelo qual a requerente se identifica, e é identificada por terceiros18. No mesmo sentido do caso "Romero Brit(t)o", o entendimento vencedor na 4ª Turma, nos termos do voto do Min. Raul Araújo, que divergiu do Min. Relator Luis Felipe Salomão, apontou pela ausência de hipótese legal (ou justificado motivo) que permitiria alteração do prenome, ressaltando a mudança requerida não estava prevista no rol do art. 57 da Lei de Registros Públicos. Conquanto seja interessante apontar a mudança de posicionamento dos Ministros19, nesta visão deste colunista, deve-se prevalecer-se o entendimento do voto vencido, que se encontra no mesmo sentido deste texto. O Ministro Relator, ao dar provimento ao recurso especial para permitir a alteração de nome civil para o nome de origem indígena, expressamente mencionou o art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil: "Sob essa ótica, o artigo 8º do CPC - uma das normas fundamentais do processo civil - preconiza que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos da República previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição de 1988) e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Dessume-se que as exceções ao princípio da imutabilidade do nome enumeradas na Lei de Registros Públicos são meramente exemplificativas, revelando-se cabida a incidência do parágrafo único do artigo 723 do CPC, segundo o qual, nos procedimentos de jurisdição voluntária (a exemplo do pedido de retificação do registro civil), o magistrado não é obrigado a observar o critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, mediante juízo de equidade"20. O voto vencido está em linha com a doutrina e julgados que apontam pela natureza exemplificativa do rol do art. 57 da Lei de Registros Públicos. Esse entendimento, como visto no caso do REsp 1.860.649/SP, permite a alteração de sobrenome em casos excepcionais (fora das hipóteses legais), em que a mudança pretendida seja motivada, seja por elementos subjetivos (ie: o constrangimento enfrentado por indivíduo transexual ao ter que se identificar com seu nome original) ou por elementos objetivos (ie: a impossibilidade de emissão de certidão negativa de antecedentes criminais por indivíduo homônimo de réu em processo criminal).   Em reforço, não se trata de alteração de nome para fim escuso ou mero capricho, mas genuína manifestação de cidadã que, conforme apontam os elementos dos autos, há muito se identifica (e assim é identificada por terceiros) com o nome indígena. Como no caso Romero Brit(t)o, comprovado o elemento subjetivo que fundamenta o pedido de alteração, inexistindo risco à segurança jurídica e aos direitos de terceiros, deve o Poder Judiciário permitir a alteração de nome nos termos pleiteados21. Neste país complexo, incerto e com vasta população, não seria exagero supor que uma pesquisa pela jurisprudência dos tribunais pátrios demonstraria centenas de situações semelhantes, que poderiam ser resolvidas, com responsabilidade e proporcionalidade, pelo uso do art. 723, parágrafo único, do CPC. Conclusão  Como visto, há paradigmáticos cases judicializados no STJ, que - com base nos citados princípios constitucionais aliados à aplicação (expressa ou implícita) do artigo 723, parágrafo único do Código de Processo Civil permitiu-se a retificação de nome registro civil. Em outros casos, o STJ adotou posição divergente, não permitindo a retificação de nome no registro civil nos termos requeridos. Respeitadas as diferenças hermenêuticas, vale observar que os dois precedentes citados são da 4ª Turma do STJ, que parece adotar posição mais rígida do que a 3ª Turma. Conquanto este colunista, pelos motivos expostos, filia-se doutrinariamente à posição adotada nos julgados da 3ª Turma, a divergência entre os colegiados deve ser rapidamente resolvida pelos instrumentos cabíveis na legislação processual22.    __________ 1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I - Das Normas Processuais Civis e da Função Jurisdicional, Editora Saraiva, pág. 25. 2 TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil, Editora Forense, São Paulo, 2018, pág. 27. 3 TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil, Editora Forense, São Paulo, 2018, pág. 29. 4 "O nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito da personalidade, também compreende um interesse público, pois é o modo com que o indivíduo é identificado perante a sociedade" REsp nº 1.860.649/SP, 3ª Turma do STJ, Min. Rel. Ricardo Villas Boas Cueva, j. 12.05.2020. 5 Nos termos do (novo) art. 55, § 1º e 2º da Lei de Registros Públicos. 6 Conferir aqui. Acesso em 29.04.2023. 7 Um interessante exemplo é família Gracie, percursora do Jiu-Jitsu brasileiro: quase todos seus inúmeros integrantes possuem nomes incomuns que começam com as letras "R" ou "K" (ex: Renzo, Rorion, Kron, Kyra, Relson, Reylson etc). Não há notícia de alteração nome por qualquer integrante, demonstrando que a identidade familiar relativiza o tratamento social e aceitação individual do prenome pela sociedade e o nomeado, respectivamente.   8 SCHREIBER, Anderson. Comentários aos arts. 1º ao 79. In: SCHREIBER, Anderson. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 22. 9 Esse procedimento foi criado com a mudança da Lei de Registros Públicos por parte da Lei nº 14.382/2022, que criou o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP): "A grande novidade da norma passa a ser a extrajudicialização da troca do prenome, perante o Cartório de Registro Civil, o que vem em boa hora e sem necessidade de motivação. A título de exemplo, pessoa pode pedir a alteração para um prenome segundo o qual é conhecida no meio social, uma vez que sempre rejeitou o seu nome registral, escolhido por seus pais, o que é até comum na prática. Há, contudo, uma limitação, pois a alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas uma vez, e a sua desconstituição dependerá de sentença judicial" (ELIAS, Carlos E. Elias e TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema de Registros Públicos. 1ª ed. Editora Forense. São Paulo p. 64). 10 Com base em nova lei, TJ-SP autoriza mudanças de nomes sem motivação. Acesso em 29.04.2023.. 11 É verdade que nesse caso é possível, a depender do sistema do tribunal, diferenciar os indivíduos por meio de buscas pelo CPF ou outros documentos de identificação. De toda forma, no mundo prático, é presumível o prejuízo decorrente. Há também outros possíveis prejuízos, como dificuldades nas concessões de vistos, indevido bloqueio cautelar de bens etc. 12 STJ. REsp nº 1.962.674/MG, Min. Rel. Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, julgado em 24.05.2022. 13 O primeiro precedente data de 2009: A 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.008.398, deu provimento ao recurso de uma mulher transgênero que, após a cirurgia de transgenitalização, buscava alterar o gênero e o nome registrados em sua certidão de nascimento. 14 Trecho do acórdão do Recurso Especial nº 1.860.649/SP, Min. Ricardo Villas Bôas Cuêva, Terceira Turma, j. 6.02.2020. 15 É o caso da possibilidade de realização de inventário extrajudicial em que pese a existência de testamento, que será tema do próximo artigo desta coletânea de textos. 16 REsp n. 1.729.402/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14.12.2021. 17 REsp n. 1.729.402/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14.12.2021. 18 O acórdão foi divulgado poucos dias antes do envio da publicação deste artigo, mas com tamanha repercussão para a matéria em comento, sua menção tornou-se indispensável. 19 Trecho do voto vencido do Min. Raul Araújo no REsp n. 1.729.402/SP. "Não acho que possamos, numa época em que se tem mitigado tanto esses princípios relacionados aos cuidados com os registros públicos nos nomes civis das pessoas, erguer uma barreira, uma dificuldade ou algo intransponível ao atendimento dessa singela pretensão deduzida perante o Judiciário". 20 Recurso Especial nº 1.927.090/RJ, pela 4ª Turma do STJ, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, Relator para acórdão Min. Raul Araújo 21 Afinal, nos termos de magistral voto da Ministra Nancy Andrighi, propício para conclusão deste texto, "conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem a atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros". REsp 1.873.918/SP, Min. Rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma do STJ, j. 2.3.2021. 22 Conquanto este colunista não enxergue o preenchimento de todos os requisitos para instauração de Incidente de Assunção de Competência (IAC), a divergência poderá ser dirimida por julgamento de recurso especial repetitivo ou embargos de divergência.
"...conhecendo o que os que esto leerem que nom screvo do que ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido". (Dom DUARTE I, 1391-1438. Livro da Ensinança do Bem Cavalgar toda Sela). Introdução Toda reforma institucional tem uma história. O SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos não foge à regra. Este organismo artificial, resultado de tour de force empreendido por agentes do mercado financeiro e de capitais1 e de representantes do setor imobiliário - apoiados por alguns registradores, impulsionados pelo Ministério da Economia - desde cedo despontou no cenário legislativo no afã de reformar o sistema registral, reconvertendo-o segundo modelos, referências e matrizes alienígenas - como o notice-based registry, sobre o qual muito já se falou2. A partir 2017 iniciaram-se várias tentativas de transformar o tradicional sistema registral pátrio em algo novo, moderno, ágil, eficiente, barato. Um novo Registro. O paradigma que primeiro se insinuou foi a criação de um ente privado centralizado de prestação de serviços de registro e informação - numa palavra, em uma entidade registradora "registral", a exemplo dos modelos recomendados por organismos internacionais e que vicejaram por aqui3. Sob o pálio da "modernização" do sistema registral, as tentativas de reforma foram se sucedendo até que, finalmente, elas vieram consagradas, parcial e imperfeitamente, na lei 14.382/2022. Alguns registradores se inclinariam a esta iniciativa de modo muito entusiasmado, sem que o assunto fosse posto em amplo debate com a sociedade e especialistas4, como se verá ao longo destas páginas. Aliados a representantes de centrais de serviços eletrônicos compartilhados de vários estados brasileiros, os registradores deram impulso às reformas legais que culminaram no SERP5. Há duas grandes vertentes identificáveis no cerne destas reformas: (a) a criação de uma central de serviços notariais e registrais (o que se consumou com a repristinação do art. 42-A incrustrado na lei 8.935/1994) e (b) criação do SERP, com a figuração de central nacional de registros públicos, criada à imagem e semelhança das matrizes alienígenas, exequíveis pela assimilação de novas tecnologias econômico-financeiras, como a segregação patrimonial e mobilização do crédito (securitização), aliadas a novas ferramentas de comunicação e informação próprias de plataformas digitais. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Por parte do Governo, desempenhou importante papel o IMK - Iniciativa de Mercado de Capitais, lançado pelo Banco Central em parceria com outras instituições. [mirror]. Veremos em detalhe na parte II deste trabalho o papel do IMK na MP 992/2020. 2 Vide defesa do modelo em ABELHA. André. CHALHUB. Melhim Namem. VITALE. Oliver. Org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos - Lei 14.382 de 27 de junho de 2022 comentada e comparada, p. 7, n. 2 et seq. 3 UNCITRAL. V. UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York: UN, 2010. Vide especialmente pp. 110, passim. 4 Ainda agora, no Congresso Nacional, no âmbito dos debates e discussões relacionados à tramitação da MP 1.162/2022, civilistas firmaram em 19/5/20223 a Carta Aberta de Civilistas dirigida ao relator, Dep. FERNANDO MARANGONI, em que criticam a utilização dos extratos no processo de registração. 5 Como veremos mais à frente em detalhes, o processo de reforma da LRP ganhou impulso com a provocação dos próprios registradores em parceria com setores do Governo Federal. Indico o dossiê que retrata o processo de discussão interna: Dinamização do crédito - índice. Acesso aqui.
O presente artigo, de forma sucinta, irá abordar o crescente em ativos digitais, vulnerabilidade de sua segurança no que tange a custódia das senhas, apresentando, portanto, como sugestão o uso do Testamento Cerrado lavrado por Tabelião de Notas como substituição às carteiras de custódias privada. Os ativos digitais, como criptomoedas, tokens e NFTs, estão em constante crescimento, principalmente nos últimos anos. De acordo com o site Statista, o valor do mercado das criptomoedas chegou a quase US$ 3 trilhões em março de 2022. Esse aumento é resultado da crescente aceitação e adoção desses ativos como alternativas de investimento e pagamento. Ocorre que, com o aumento do valor dos ativos digitais também tem sido acompanhado pelo crescente perda e roubo de senhas. De acordo com a empresa de segurança digital CipherTrace, em 2021 as perdas em ocorrência de roubos de criptomoedas atingiram um valor recorde de US$ 4,5 bilhões. Isso reforça a importância de se adotar medidas de segurança eficazes para proteger a senha dos ativos digitais. O armazenamento de senhas de ativos digitais é um assunto de extrema importância na atualidade. Diversas fontes alertam para os riscos envolvidos nesse processo. Segundo a revista Forbes, os ataques cibernéticos estão cada vez mais sofisticados, e uma senha fraca pode ser facilmente quebrada por hackers. Além disso, se uma senha for armazenada em um local vulnerável, ela pode ser facilmente roubada ou comprometida. Outra fonte relevante é o site Security Boulevard, que ressalta a importância de se usar senhas complexas e únicas para cada ativo digital, bem como evitar o armazenamento de senhas em dispositivos não seguros ou em serviços de armazenamento em nuvens suspeitas. Também é recomendado o uso de gerenciadores de senhas aguardando, que criptografam as senhas e protegem os dados armazenados. O site da empresa de segurança digital Kaspersky destaca que, além dos riscos associados ao armazenamento de senhas, também é importante ter cuidado com a exposição de senhas em redes públicas de Wi-Fi e com o compartilhamento de senhas com terceiros. Por fim, o portal TechRadar lembra que o armazenamento de senhas deve ser tratado com devida importância, pois a perda de senhas pode levar à perda de ativos digitais valiosos, como criptomoedas e contas bancárias. Como alternativa, têm-se as carteiras frias e quentes, as quais são duas opções comuns para armazenar senhas de ativos digitais, cada uma com suas vantagens e proteção. As carteiras frias, também conhecidas como carteiras de hardware, são dispositivos físicos que armazenam como senhas offline, o que torna mais seguro contra ataques virtuais. Já as carteiras quentes, como as carteiras de software, são aplicativos instalados em dispositivos conectados à internet, o que pode aumentar o risco de invasões. Segundo a revista Forbes, as carteiras frias são uma opção mais segura para armazenar senhas de criptomoedas e outros ativos digitais de valor elevado, como ouro digital, pois evitam o risco de ataques virtuais. No entanto, elas podem ser mais difíceis de usar e transportar, o que pode ser um inconveniente para alguns usuários. Além disso, também não é difícil de cair nas mãos de pessoas mal-intencionadas. Já as carteiras quentes são mais práticas e acessíveis, mas encorajadas mais cuidado e atenção por parte dos usuários para evitar a exposição de senhas a invasores. A empresa de segurança digital Kaspersky alerta para a importância de se escolher carteiras de espera e manter os dispositivos protegidos com antivírus e outras medidas de segurança. Em resumo, as carteiras frias e quentes são opções para armazenar senhas de ativos digitais, e cada uma tem suas vantagens e desvantagens. É importante avaliar cuidadosamente as necessidades e os riscos de cada usuário antes de escolher a melhor opção.  Por outro lado, a sugestão apresentada que oferece maior segurança é fazer uso do Testamento Cerrado. O testamento cerrado é elencado pelo Código Civil como uma das modalidades ordinárias de testar, ao lado do testamento público e do testamento particular, conforme o artigo 1.862, inciso II. Também denominado "Testamento Místico" ou "Testamento Secreto", seu caráter diferenciador das demais modalidades consiste no fato de que seu conteúdo é sigiloso e confidencial, até mesmo das testemunhas instrumentárias e do próprio Tabelião de notas que o aprova. Além disso, é a única modalidade testamentária pela qual podem se valer as pessoas surdas-mudas, desde que tenham escrito o testamento de próprio punho, conforme artigo 1.873 do Código Civil. Embora de pouca incidência prática, mostra-se um importante documento que pode ser utilizado para armazenar senhas de ativos digitais de forma segura. Sua elaboração envolve duas fases. Na primeira, denominada cédula testamentária, o testamento é escrito pelo testador (ou por outra pessoa a rogo, exceto se o testador for surdo-mudo) e devidamente assinado. Numa segunda fase, denominada de auto de aprovação, deve ser entregue a um tabelião de notas na presença de duas testemunhas. Após receber o testamento, o tabelião de notas passa a lavrar o auto de aprovação na própria cédula testamentária ou em documento anexo se não houver espaço e, após a leitura do mesmo perante todos os presentes, será assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião de notas. Em seguida, o tabelião passará a coser o testamento em um envelope adequado e lançará em seus livros de notas um termo que autenticará, com fé pública, a data e a existência do referido testamento. Cumpre ressaltar, mais uma vez, que o conteúdo do testamento cerrado permanece oculto até mesmo para as testemunhas e para o tabelião, que apenas assinam o auto de aprovação.  O conteúdo do documento confidencial e por isso é um documento que pode ser utilizado para armazenar senhas de ativos digitais de forma segura. Somente pode ser aberto após a morte do testador e em condições específicas. Ao incluir senhas de ativos digitais no testamento cerrado, os usuários podem garantir que suas informações sejam mantidas seguras e protegidas após a morte. Além disso, os destinatários designados no testamento terão acesso às informações necessárias para gerenciar as contas e ativos do testador. É importante ressaltar que o testamento cerrado é um documento legalmente reconhecido em vários países, incluindo o Brasil. No entanto, é essencial garantir que o testamento seja preparado corretamente e siga todas as leis e regulamentações perfeitas. Embora o testamento cerrado seja uma opção segura para armazenar senhas de ativos digitais, é importante considerar também como medidas de segurança, duas forma de fazê-lo: 1) entregar ao Tabelião o testamento cerrado contendo em seu conteúdo a senha propriamente dita. Neste hipótese nem o Tabelião tem acesso a senha; 2) entregar ao Tabelião o testamento cerrado indicando em seu conteúdo o local com que a senha estará custodiada ex:(cofre bancário ou local semelhante) indicando também, no próprio testamento, qual pessoa que poderá ter acesso ao cofre bancário e a forma de se identificar à autoridade custodiante. Em conclusão, o testamento cerrado pode ser uma ótima opção segura para armazenar senhas de ativos digitais, desde que seja preparado corretamente e siga as leis.  __________ Lira, RBS, & Borges, RM (2018). O testamento digital como forma de legado. Anais do Simpósio Brasileiro de Direito do Consumidor, 4(1), 244-258. Carvalho, M. (2018). As tecnologias da informação e comunicação no direito: a (in) aplicabilidade do testamento digital no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito das Tecnologias da Informação e Comunicação, 10(1), 29-40 Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002), art. 1.876. FORBES. As senhas estão mortas: como o mundo está se movendo além delas. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. KASPERSKY. Como armazenar suas senhas com segurança: práticas recomendadas e erros comuns. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. BULEVARD DE SEGURANÇA. How to Keep Your Passwords Safe: Best Practices for 2021. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. TECHRADAR. Como armazenar senhas com segurança: dicas e truques. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  FORBES. O que é uma carteira de hardware de criptomoeda? Por que você precisa disso. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023. KASPERSKY. Como armazenar criptomoedas com segurança: dicas sobre carteiras Bitcoin e muito mais. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  Referência: STATISTA. Capitalização de mercado da criptomoeda de janeiro de 2013 a março de 2022. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.  IReferência: CIPHERTRACE. Cryptocurrency Anti-Money Laundering Report, Q4 2021. Disponível aqui. Acesso em: 26 mar. 2023.
Incorporou-se em nosso léxico o termo "desjudicialização", como sinônimo de demanda, ação ou procedimento que outrora somente poderia ser resolvido ou presidido pelo Poder Judiciário, mas que, atualmente, pode ser resolvido de forma alternativa, sem a participação da Justiça. A Meta nº 9 para o Poder Judiciário, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e aprovada para os anos de 2020 e 2021, por exemplo, estabelece que os Tribunais devem "realizar ações de prevenção e desjudicialização de litígios [...]". De acordo com o glossário da Meta, desjudicializar significa "reverter a judicialização excessiva a partir da prevenção, localizando a origem do problema e encontrando soluções pacíficas por meio de técnicas de conciliação ou mediação com atores do sistema de justiça, sem que cause impacto no acesso à justiça. A palavra desjudicialização tem natureza qualitativa e não quantitativa".1           O chamado fenômeno da "desjudicialização" é, pois, a solução que visa promover a resolução de conflitos sem que haja a compulsoriedade do ingresso de ação perante a esfera judicial, já tão sobrecarregada. Esse fenômeno pode ser visto na utilização de métodos alternativos de solução de conflitos (mediação, conciliação e arbitragem) e na transformação de procedimentos exclusivos do Poder Judiciário em procedimentos judiciais facultativos, como sói ocorrer com diversos procedimentos que podem ter seu direito integrado no âmbito das serventias extrajudiciais (tabelionatos e registros públicos). Ocorre que, em qualquer caso, o que temos não é a extinção do poder do Estado-Juiz de resolver certas demandas, o que, inclusive seria inconstitucional, em face do princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional, que estabelece que "nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída do Poder Judiciário" (art. 5°, XXXV, CF). Em outras palavras, não temos uma "DESjudicialização" propriamente dita, visto que, a despeito de expressão recentemente consagrada pela doutrina e até por atos normativos infralegais, não existe tecnicamente uma retirada, exclusão ou cancelamento do poder de ação do Judiciário, mas sim o compartilhamento da competência/atribuição de processar, presidir e/ou julgar determinadas demandas. O prefixo des- é apresentado na literatura linguística como um prefixo polissêmico - apresenta tanto um significado de negação quanto de reversão nos itens lexicais a que se adjunge. Ele indica negação, separação ou cessação de algo. Como o compartilhamento de atribuições/competências sobre uma mesma matéria ou demanda não elimina, abole ou cancela a atuação do Poder Judiciário, nos parece que a multicitada palavra "desjudicialização" (prefixo des- + radical e sufixo judicialização) tem sido utilizada, desavisadamente, de forma incorreta, visto que não constitui tecnicamente uma semântica adequada. Explico: se uma demanda ou processo é "desjudicializado", podemos afirmar que negamos ou cessamos (des-) a judicialização (competência ou ato de decisão do Poder Judiciário) em relação a essa demanda ou processo, o que, como vimos, no sistema brasileiro sequer pode ocorrer, por força do princípio da ação ou princípio da inafastabilidade do poder judiciário (art. 5º, XXXV, da CF). O sentido correto da palavra desjudicialização deve ficar restrito ao fato específico de retirar um processo judicial do Poder Judiciário para que seja decidido ou solucionado na via extrajudicial (fora do Poder Judiciário). É dizer: a palavra "desjudicialização" serve para explicar o ato jurídico stricto sensu, de natureza civil, da saída de um processo do Judiciário para ser realizado em outra via. Exemplo: ação judicial de usucapião que tramitava perante um Juiz de Direito, no fórum, cujo processo foi solicitado o arquivamento, e posteriormente é protocolada no Cartório de Registro de Imóveis, perante o Oficial de Registro. Isso é desjudicializar... É um ato específico! Repise-se, a palavra "desjudicialização" não explica o fenômeno da criação de vias alternativas extrajudiciais, as quais não excluem a competência do Poder Judiciário. Logo, não DESjudicializa! A esse fato jurídico stricto sensu, de natureza administrativa, devemos nominar corretamente de "EXTRAJUDICIALIZAÇÃO", visto que não exclui nem cancela o fenômeno da "judicialização", sendo a outra face da mesma moeda. Quando a legislação assim o permite, o jurisdicionado ou usuário do serviço pode eleger, optar voluntariamente, por sponte própria, se vai se valer da via judicial ou da via extrajudicial, motivo pelo qual - insisto - não estamos diante de um fenômeno de desjudicialização, até mesmo porquanto o princípio da inafastabilidade da jurisdição é garantia constitucional e cláusula pétrea (art. 5º, XXXV c/c art. 60, par. 4°, da CF). Assim, até como forma de deferência à advocacia extrajudicial e aos serviços notariais e registrais, nos parece mais adequado tratarmos a possibilidade de utilização de procedimentos extrajudiciais como forma alternativa de solução de conflitos ou como opção instrumental à jurisdição voluntária como fenômeno de "extrajudicialização", abandonando o termo semanticamente incorreto, que utiliza o prefixo -des. Pare de desjudicializar o que não pode ser desjudicializado e comece a falar corretamente: o nome certo é EXTRAJUDICIALIZAÇÃO! Amigo migalheiro! Enfim, terminamos a nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. Obrigado por me acompanhar nos cinco capítulos dessa nossa jornada. Espero que eu tenha proporcionado - ao menos um pouquinho - de descontração e tenha contribuído para vosso conhecimento jurídico, histórico e social sobre os cartórios brasileiros. Avante! Para acompanhar os cinco capítulos, acesse a coluna aqui. __________ 1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Meta 9: implantação da agenda 2030. Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2023.
Nesta edição da seção oficinal, destacamos um tema delicado: cobrança de custas e emolumentos devidos pelo processamento de usucapião extrajudicial em que a parte se declara hipossuficiente e sem condições financeiras de arcar com as despesas emolumentares. Avulta o fato de que, desistindo do processo extrajudicial, a parte distribuiu ação judicial em que se deferiu a assistência judiciária. No transcurso do processo registral, o interessado houve por bem desistir da via extrajudicial buscando, em seguida, a propositura da ação - distribuída à Vara de Registros Públicos de São Paulo. Ato subsequente, apresentou requerimento expresso para desistência do procedimento de usucapião extrajudicial anteriormente prenotado na Serventia. Assim se fez. Entretanto, ao processar o pedido, o patrono da interessada foi informado de que deveria arcar com o pagamento dos emolumentos, redarguindo, o patrono, que não procederia ao pagamento "já que a parte não teria condições para arcar com o pagamento emolumentar por insuficiência econômica". Usucapião extrajudicial. Emolumentos - desistência do processo O valor dos emolumentos devidos pelo processamento do pedido acha-se previsto no inciso II do artigo 26 do Provimento CNJ 65/2017, que dispõe: "Art. 26. Enquanto não for editada, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, legislação específica acerca da fixação de emolumentos para o procedimento da usucapião extrajudicial, serão adotadas as seguintes regras: I - (omissis) II - no registro de imóveis, pelo processamento da usucapião, serão devidos emolumentos equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro e, caso o pedido seja deferido, também serão devidos emolumentos pela aquisição da propriedade equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro, tomando-se por base o valor venal do imóvel relativo ao último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou ao imposto territorial rural ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado. Parágrafo único. Diligências, reconhecimento de firmas, escrituras declaratórias, notificações e atos preparatórios e instrutórios para a lavratura da ata notarial, certidões, buscas, averbações, notificações e editais relacionados ao processamento do pedido da usucapião serão considerados atos autônomos para efeito de cobrança de emolumentos nos termos da legislação local, devendo as despesas ser adiantadas pelo requerente". No Estado de São Paulo ainda não existe expressa previsão de cobrança de emolumentos para o processamento da usucapião extrajudicial. Busílis da questão O Sr. Advogado, tomando ciência da necessidade de recolhimento da taxa de registro, indicou que não arcaria com as despesas do processamento frustrâneo da usucapião em virtude de se tratar pessoa economicamente hipossuficiente. No processo de usucapião judicial distribuído  teria sido deferido o benefício da justiça gratuita e que, ipso facto, tal decisão alcançaria os atos pretéritos praticados pela Serventia Extrajudicial. Os interessados que se utilizam dos serviços notariais e de registro são considerados contribuintes pela lei paulista de emolumentos (art. 2º da Lei 11.331/2002). Já o Oficial do Registro é sujeito passivo por substituição (art. 3º). Nestas condições, com a desistência expressa do pedido, restaria a necessidade de cobrança dos valores emolumentares devidos e o recolhimento das parcelas devidas à Administração, sob pena de responsabilidade do registrador.  Nos casos de hipossuficiência econômica - qual será o critério aplicável? Entendemos que não há isenção. Em primeiro lugar, inexiste previsão legal ou normativa para deferir a isenção de custas e emolumentos quando a parte voluntariamente desiste do pedido de usucapião extrajudicial. As hipóteses de isenção se acham previstas no artigo 9º da Lei de Custas e Emolumentos paulista Artigo 9º - São gratuitos: I - os atos previstos em lei; II - os atos praticados em cumprimento de mandados judiciais expedidos em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, sempre que assim for expressamente determinado pelo Juízo. Não podendo arcar com as despesas, a parte pode promover ação judicial de usucapião e "fazer jus a assistência jurídica integral e gratuita, garantida constitucionalmente, caso comprove insuficiência de recursos (artigo 5º, inciso LXXIV, da CF)"1. O CNJ já enfrentou caso análogo e decidiu inexistir norma que conceda gratuidade nos casos de usucapião extrajudicial, relevando o fato de o STF ter reconhecido a natureza tributária dos emolumentos (taxa)2. Neste diapasão, eventual isenção somente poderá ser veiculada por meio de lei específica nos termos do § 6º do art. 150 da CF: "Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g." O CTN igualmente estabelece que se interpreta literalmente a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenções (inc. II do art. 111 do CTN). Como vimos, não há na lei estadual (nem no Provimento CNJ 65/2017) qualquer hipótese de isenção para o processamento da usucapião extrajudicial - nem para os casos de desistência. Consulta - art. 29 da Lei Paulista 11.331/2002 Diante do exposto, em vista da faculdade concedida aos Oficiais de Registro para veicular dúvida acerca da cobrança de emolumentos (art. 29 da Lei Estadual 11.331/2002), formulou-se pedido para que o r. Juízo pudesse decidir se é devida ou não a cobrança dos emolumentos pelo registro do processamento do pedido - especialmente no caso específico em que a interessada declara ser economicamente hipossuficiente. A MM. Juíza titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo apreciou o tema proposto e decidiu inexistir hipótese de isenção de emolumentos na lei e atos normativos baixados tanto pelo CNJ, quanto pela Corregedoria estadual. E o fez com base no seguinte: A doutrina3 e a jurisprudência4 consagraram o entendimento que os emolumentos representam hipótese de taxa, espécie de tributo. Em virtude da natureza jurídica dos emolumentos, eventual isenção somente poderá ser veiculada por lei específica, conforme dispõe expressamente o § 6º do artigo 150 da Constituição Federal. Não há previsão de gratuidade na lei de emolumentos paulista (Lei Estadual nº 11.331/02) acerca de emolumentos relativos  ao processamento de usucapião extrajudicial). Somente são gratuitos os atos assim previstos na dita lei e aqueles praticados em cumprimento de decisão judicial expressa sobre a gratuidade5. Quando se tratar de parte interessada economicamente hipossuficiente, deve promover ação judicial de usucapião e comprovar que faz jus à gratuidade (artigo 5º, inciso LXXIV, da CF). O Conselho Nacional de Justiça deixou bastante clara a necessidade de previsão legal específica para a gratuidade de emolumentos no processamento da usucapião extrajudicial6. Da r. decisão se destaca o seguinte extrato: "No caso concreto, porém, o que se vê é que a parte optou por iniciar procedimento administrativo de usucapião, arcando com os emolumentos cobrados antecipadamente. Somente após algum tempo, noticiou a propositura de ação judicial de usucapião e requereu desistência do expediente extrajudicial, defendendo a isenção de custos em razão de sua hipossuficiência econômica ter sido reconhecida na ação em questão. Este contexto não se enquadra na hipótese regulada pelo artigo 98, inciso IX, do Código de Processo Civil: não se trata de ato registral necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício da justiça gratuita foi concedido. Em verdade, a decisão judicial que concedeu a gratuidade à parte interessada foi proferida apenas em 15 de julho de 2022, quando já iniciado o procedimento extrajudicial e após o requerimento de sua desistência (fls.06/24, 160 e 202/203). Note-se que a decisão em questão não traz qualquer previsão sobre extensão da gratuidade concedida ao processamento da usucapião extrajudicial (artigo 9º, inciso II, da Lei Estadual 11.331/02)". Posteriormente, não se conformando com a decisão prolatada no processo administrativo de consulta, a parte recorreu à Corregedoria Geral de Justiça. Confirmando a decisão da ilustre magistrada, manteve o entendimento esposado pelo registrador. Assim se acha ementada a r. decisão: Pedido de providências - registro de imóveis - consulta - emolumentos - usucapião extrajudicial - desistência - ajuizamento de ação de usucapião - alegada concessão de benefício da gratuidade em processo judicial - emolumentos - natureza de taxa - cobrança devida - impossibilidade de concessão da benesse na via administrativa sob pena de ofensa ao princípio da legalidade - adequação do cálculo elaborado pelo oficial que bem observou o disposto no art. 26, II, do Provimento CNJ 65/2017 - parecer pelo desprovimento do recurso7. No bojo do processo de recurso, no r. parecer oferecido pela magistrada, Dra. LETICIA FRAGA BENITEZ, revelam-se novos elementos trazidos à balha. Extraio o seguinte trecho: "No caso telado, conquanto tenha sido concedida genericamente a gratuidade processual nos autos do processo de usucapião, certo é que a benesse não pode ser estendida ao Serviço Extrajudicial, sem ordem específica, com a finalidade de se obter isenção de emolumentos no pedido de usucapião administrativo em que foi formulada a desistência. E não se está a dizer que a recorrente não é merecedora da gratuidade; mas apenas que a benesse não poderá ser formulada diretamente ao Registrador e tampouco concedida na via administrativa". Lembrou parecer da lavra do magistrado JOÃO OMAR MARÇURA, aprovado pelo Desembargador LUIZ TÂMBARA, em caso oriundo do 5º Registro de Imóveis da Capital: "REGISTRO DE IMÓVEIS Gratuidade da Justiça Concessão pelo Juiz Corregedor Permanente no âmbito administrativo. Inadmissibilidade. Isenção de taxa. Necessidade de previsão legal. Recurso provido para revogar a concessão. (.) Respeitado o entendimento do ilustre corregedor permanente, a isenção depende de lei expressa e, no caso dos autos, têm-se a incidência conjugada do artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal e do artigo 9º, II, da Lei Estadual 11.331/2002, de sorte que a isenção só haveria por ordem judicial, assim entendida aquela emanada de processo judicial e não administrativo, como ocorreu nestes autos. A razão de ser da Lei Estadual é clara, ou seja, visa a eficácia dos atos judiciais que se projetam no registro imobiliário"8. Com isso encerra-se a questão no âmbito administrativo. Em síntese, "inexistente disposição na lei Estadual 11.331/2002 sobre a cobrança de emolumentos no processo de usucapião extrajudicial". Deve-se observar a regra instituída pelo art. 26, do Provimento CNJ 65/2017, que assim dispõe: "Art. 26. Enquanto não for editada, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, legislação específica acerca da fixação de emolumentos para o procedimento da usucapião extrajudicial, serão adotadas as seguintes regras: II- no registro de imóveis, pelo processamento da usucapião, serão devidos emolumentos equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro e, caso o pedido seja deferido, também serão devidos emolumentos pela aquisição da propriedade equivalentes a 50% do valor previsto na tabela de emolumentos para o registro, tomando-se por base o valor venal do imóvel relativo ao último lançamento do imposto predial e territorial urbano ou ao imposto territorial rural ou, quando não estipulado, o valor de mercado aproximado"9. Consulte a íntegra das decisões: 1VRPSP - Processo 1082322-85.2022.8.26.0100, j. 16/8/2022, Dje 16/8/2022, dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui.  CGJSP - Processo 1082322-85.2022.8.26.0100, São Paulo, dec. de 18/4/2023, Dje 26/4/2023des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso aqui. __________ 1 Processo 1061112-12.2021.8.26.0100, São Paulo, j. 16/6/2021, Dje 22/6/2021, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui. 2 PP 0005833-62.2019.2.00.0000, Santa Catarina, j. 10/9/2021, DJ 15/9/2021, rel. EMMANOEL PEREIRA. Acesso aqui. 3 CARVALHO. Paulo de Barros. Natureza jurídica e constitucionalidade dos valores exigidos a título de remuneração dos serviços notariais e de registro. Parecer exarado na data de 5/6/2007 a pedido do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo - SINOREG. Acesso aqui. 4 STF ADI n. 1.444-PR, j. 12/2/2003, DJ 11/4/2003, Rel. Min. Sydney Sanches. Acesso aqui. 5 Lei 11.331/2002, art. 9º. "São gratuitos: I os atos previstos em lei; [...] II - os atos praticados em cumprimento de mandados judiciais expedidos em favor da parte beneficiária da justiça gratuita, sempre que assim for expressamente determinado pelo Juízo". 6 CNJ - Pedido de Providências 0005833-62.2019.2.00.0000, j. 10/9/2021, Dje 15/9/2021. Rel. EMMANOEL PEREIRA. Acesso aqui. 7 Processo CG 1082322-85.2022.8.26.0100, decisão de 18/4/2023, Dje 26/4/2023, Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso aqui. 8 Processo CG 710/2003, São Paulo, decisão de 12/8/2003, DJ de 22/8/2003, Corregedor Geral Des. LUIZ TÂMBARA. Acesso aqui. Esta decisão se originou do Quinto Registro e o recurso tirado contra a decisão da 1VRPSP pode ser consultada aqui.    9 Provimento CNJ 65/2017, de 14/12/2017, Dje de 15/12/2017, Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Corregedor Nacional de Justiça. Acesso aqui.
O notariado e a registratura Quando as coisas existem a elas sempre é dado um nome, a fim de facilitar a sua designação e referência pelos interlocutores. Assim, as coisas de um modo geral passam a ser conhecidas por determinados signos, que formam uma palavra que lhe dá significado. A nomenclatura é um elemento individualizador de uma pessoa, de uma coisa e até mesmo de uma atividade. Desde 1565 temos Tabelliaes por terra brasilis. Uma das profissões estatais mais antigas oficializada por essas bandas. Conforme DEOCLÉCIO LEITE DE MACEDO1, "O primeiro ofício de tabelião público do Judicial e Notas do Rio de Janeiro, de acordo com o costume português, foi criado juntamente com a cidade, pelo capitão Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Pero da Costa foi nomeado seu primeiro serventuário". O notariado brasileiro, como se pode ver, surge apenas pouco mais de meio século após o descobrimento oficial do Brasil. No Brasil, o Registro de Títulos e Documentos teve o seu início sistematizado pelo Estado, em 1603, na então capital do Brasil, Rio de Janeiro, com o Livro I, das Ordenações do Reino. Na época, o serviço de registro foi atribuído aos Tabeliães de Notas,2 não havendo uma diferenciação técnica, portanto, entre a função de Tabelião e Registrador. Apenas com a edição da lei 973, de 1903, que se criou o primeiro Ofício de Registro de Títulos e Documentos no Brasil, com atribuições autônomas em relação ao Tabelionato de Notas.3              De outro turno, o Registro de Imóveis no Brasil completou, em 2023, 180 anos. A legislação considerada o embrião do registro predial brasileiro é a Lei Orçamentária 317, de 1843, que criou o Registro Geral de Hypothecas, a cargo, inicialmente, dos Tabelliaes do Registro Geral, conforme regulamentado pelo Decreto Imperial nº 482, de 1846. A nomenclatura que conhecemos hoje (Registro de Imóveis), no entanto, somente foi se consolidar com o Código Civil de 1916, o qual estabeleceu a este órgão registral eficácia constitutiva.4 No Brasil, a secularização do Registro Civil das Pessoas Naturais foi paulatina. Inicialmente, durante todo o período colonial, as funções de registração eram da Igreja, em virtude das denominadas Ordenações do Reino, que viam essa instituição como braço do Estado português. A Lei Orçamentária 586, de 18505 autorizou o Governo a levar a cabo o Censo Geral do Império e a estabelecer registros regulares de nascimentos e óbitos, tendo esta última sido regulamentada pelo decreto 798, de 1851.6 Ocorre que este decreto não foi bem recebido pela população brasileira, em razão do boato de que o Governo queria, na verdade, reduzir os cidadãos pobres à condição de escravos, o que causou revoltas populares que ficaram conhecidas como "Roncos das Abelhas". Em razão disso, o Governo editou, então, o decreto 907, de 1852, suspendendo a instalação do registro civil e a realização do primeiro censo no Brasil. Houveram outras normas acerca do tema, mas apenas com a implementação do decreto imperial 9.886, de 1888, que surge a primeira norma vigente de registro civil universal no Brasil (englobando católicos e não católicos), sendo o marco de criação do atual Registro Civil das Pessoas Naturais brasileiro.7 No Brasil, até o ano de 1889, os protestos eram lavrados pelos escrivães do comércio. No alvorecer da República, a partir do dia 10 de janeiro de 1890, pelo decreto 135, assinado por Deodoro da Fonseca e por Campos Salles, se criou o cargo de Oficial Privativo dos Protestos de Letras da capital federal, tendo-se de transferir os livros por eles utilizados para a lavratura dos protestos, para o Oficial nomeado. Vemos, portanto, que a função registral derivou da função notarial, tendo se especializado ao longo do tempo, fenômeno perceptível pelo avanço das legislações brasileiras durante o Brasil-Colônia, Brasil-Império e Brasil-República.   Eu registro, tu registras, ele registra, nós registramos, vós registrais, eles registram... e tudo isso é "registratura" Como se percebe, há um longínquo histórico de existência dos cartórios brasileiros. Conquanto a nomenclatura "notariado" seja unanimemente utilizada para designar a função tabelioa (ou notarial), os integrantes da classe registral não têm difundida no vernáculo dos dicionários uma designação unificada, que estabeleça o seu ofício e designe o que é o atuar na arte dos registros públicos. A utilização da expressão notariado para designar o ofício dos Notários (Tabeliães) é difundida mundialmente, vide a existência da União Internacional do Notariado Latino (UINL), que congrega mais de 90 países, correspondentes a cerca de 3/4 da população mundial, incluindo o Brasil.8 A importância de tal designação está na denominação unívoca do tratamento protocolar da classe, que defere aos Notários, ou Tabeliães, a designação de membros do notariado. O notariado, no entanto, dada sua especialização, não engloba o ofício dos titulares dos registros públicos, função pública sui generis, exercida por profissionais do direito, e que, conquanto seja coirmã do notariado (dado que advém de uma delegação de igual natureza, tem características comuns e atuações complementares), não se trata exatamente do mesmo mister. Por isso, a que se dizer que a atuação dos Oficiais de Registro, ou Registradores (assim oficialmente nominados pelo art. 3° da lei 8.935/1994), também detém uma designação própria, sendo, pois, o exercício da "registratura". Tal designação expressa uma carreira estatal ou ofício público ou privado, assim como ocorre com Juízes em relação à magistratura, Advogados em relação à advocacia (ou advocatura), e Tabeliães ou Notários em relação ao notariado. O sufixo latino (t)ura, quando incluído junto com um substantivo, estabelece um "resultado ou instrumento de ação, noção coletiva", isto é, uma designação para a coletividade de pessoas que exercem determinada ocupação, profissão, ofício. Exemplo: magistratura, advocatura, chefatura, legislatura, prefeitura (semântica de cargo de prefeito). Sua classe gramatical se refere a um elemento de composição. A designação REGISTRATURA deve, pois, ser difundida, a fim de criar uma cultura de denominação individualizada para a profissão do Registrador. Assim como temos espécies de notariado (notariado de tipo latino, anglo-saxão ou administrativo) podemos dizer que temos espécies de registratura. Cada tipo de registratura com linguagem própria, e com diferentes dialetos, conforme o ordenamento jurídico de cada país.                Definindo alguns verbetes para o dicionário notarial e registral Como forma de padronização proposta neste trabalho, sugerimos os seguintes verbetes a serem adotados pela classe notarial e registral e difundidas então em nosso vernáculo: NOTÁRIONo-tá-rios.m (substantivo masculino).1. Exercente da função pública de tabelião ou notário (tabelião de notas e tabelião de protestos). 2. Aquele que exerce delegação do Estado referente a tabelionato. Sinônimo: tabelião. Feminino: notária e tabeliã. Cognato: notariado (s.m), o múnus de notário; a instituição correspondente aos membros da instituição notarial. CF, art. 236; lei 6.015/1973; lei 8.935/1994. NOTARIADOs.m (substantivo masculino)No-ta-ri-a-do1 Dignidade, função ou ofício de notário ou tabelião.2 Exercício dessa função.3 Duração dessa função.4 Ação de exercer a função tabelioa ou notarial.5 Classe ou delegação estatal dos notários, que constituem os tabelionatos públicos. REGISTRADORRe-gis-tra-dors.m (substantivo masculino).1. Exercente da função pública de registrador público (registrador de imóveis, registrador de títulos e documentos, registrador civil das pessoas naturais, registrador civil das pessoas jurídicas). 2. Aquele que exerce delegação do Estado referente registros públicos. Sinônimo: oficial de registro. Feminino: registradora e oficial de registro. Cognato: registratura (s.f), o múnus de registrador; a instituição correspondente aos membros da instituição registral. CF, art. 236; lei 6.015/1973; lei 8.935/1994. REGISTRATURAs.f (substantivo feminino)Re-gis-tra-tu-ra1 Dignidade, função ou ofício de registrador ou oficial de registro.2 Exercício dessa função.3 Duração dessa função.4 Ação de realizar registros públicos ou exercer a função registral.5 Classe ou delegação estatal dos registradores que constituem os registros públicos. Repita comigo: eu registro, tu registras, ele registra, nós registramos, vós registrais e eles registram. Finalizamos o penúltimo capítulo deste trabalho intitulado Nomenclaturas Notariais e Registrais. No quinto e último bloco vamos analisar o conceito da extrajudicialização (o nome certo para definir um fenômeno jurídico cada vez mais recorrente em nosso País). Espero vocês lá! __________ 1 MACEDO, Deoclécio Leite de. Tabeliães do Rio de Janeiro: do 1º ao 4º ofício de notas: 1565-1822. Casa Civil. Presidência da República. Col. Publicações Históricas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 11. 2 A preocupação que conduzia a necessidade de dar publicidade aos atos jurídicos considerados importantes, com a finalidade de garantir seus efeitos, apresenta-se no Brasil Colonial, obediente ao Reino de Portugal, vem desde as Ordenações Filipinas de 1603, que regeram a legislação até a Proclamação da República.  3 Lei Federal  973, de 1903. Art. 1º. O registro facultativo de títulos, documentos e outros papeis, para authenticidade, conservação e perpetuidade dos mesmos, como para os effeitos do art. 3º, da Lei 79, de 23 de agosto de 1892, que ora incumbe aos Tabeliães de notas, ficará na Capital Federal a cargo de um Official privativo e vitalicio, de livre nomeação do Presidente da República, no primeiro provimento; competindo aos Tabeliães sómente o registro das procurações e documentos a que se referirem as escrituras que lavrarem e que, pelo art. 79, parágrafo 3º, do decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, podem deixar de incorporar nas mesmas. 4 Código Civil Art. 676. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem depois da transcrição ou da inscrição, no Registro de Imóveis, dos referidos títulos (arts. 530, n I, e 856), salvo os casos expressos neste Código. 5 Lei Orçamentária 586, de 1850 Art. 17. [...] § 3º. Para despender o que necessario for a fim de levar a effeito no menor prazo possivel o Censo geral do Imperio, com especificação do que respeita a cada huma das Provincias: e outrosim para estabelecer Registros regulares dos nascimentos e obitos annuaes. 6 Decreto 798, de 1851 Art. 1º. Haverá em cada Districto de Juiz de Paz hum livro destinado para o registro dos nascimentos, e outro para o dos obitos que tiverem lugar no Districto annualmente. 7 TIZIANI, Marcelo Gonçalves. Uma breve história do registro civil contemporâneo. Portal do RI. 11 out. 2016. Portal do RI. Disponível aqui. Acesso em: 09 abr. 2023. 8 Vide aqui.
Introdução, noções elementares e contextualização A Lei 8.929/1994, que regulamenta as Cédulas de Produto Rural ("CPR's"), tem sido objeto de iterativas alterações legislativas. As reformas promovidas pela lei 13.986/2020 ("Lei do Agro") e também pela lei 14.421/2022 merecem destaques. Esta última teve por escopo alterar diversas leis extravagantes que contemplam disposições normativas acerca do agronegócio e seu financiamento. A Cédula de Produto Rural, em linhas gerais, consiste em promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas. "Cuida-se de uma cédula diferente de todas as outras. (...) É um título circulatório, uma promessa de que se entregará o produto a determinada pessoa, (...) podendo vir acompanhada de uma garantia de que será entregue o produto".1  É, pois, título representativo da promessa de entregar, em data futura, o produto rural2indicado, na quantidade e qualidade especificadas.   Não é demais lembrar que o agronegócio no Brasil, como um dos sustentáculos do PIB brasileiro, recebe atenção especial e constante dos poderes Executivo e Legislativo, sendo de grande relevância à economia nacional o fomento geral das atividades agropecuárias, notadamente através da concessão de créditos mediante a consecução de financiamentos de safras, insumos, produtos, maquinários, implementos etc. Nesse cenário, descortinam-se como relevantíssimos mecanismos de acesso ao crédito o instituto da alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários. Ora, tratando-se de garantia fiduciária, ou mais tecnicamente, propriedade fiduciária sua constituição (rectius: pressuposto de existência) reside na inscrição no registro público competente.3 Não é por outro motivo que o art. 12, § 4º, da lei 8.929/1994, com redação dada pela lei 14.421/2022, sedimenta com clareza que "a alienação fiduciária em garantia de produtos agropecuários e de seus subprodutos, nos termos do art. 8º desta Lei, será registrada no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia". A alteração legislativa chama de pronto à atenção quando se percebe a revogação imediata da redação anterior do mesmo dispositivo, que previa: "A CPR, na hipótese de ser garantida por alienação fiduciária sobre bem móvel, será averbada no cartório de registro de títulos e documentos do domicílio do emitente". Afinal, qual é o registro competente para constituição da propriedade fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários no Brasil: Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e Documentos? Seria possível definir a competência registral exclusivamente a partir do título causal que contempla a garantia a ser constituída? Qual teria sido a ratio que moveu o legislador a alterar a competência registral? Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 RIZZARDO, Arnaldo. Direito do agronegócio. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.p.507.  2 A lei 14.421/2022 alterou substancialmente a compreensão de produtos rurais para fins de delimitação do objeto das CPR's (art. 1º, § 2º), bem assim ampliou a legitimação daqueles que podem emitir as cédulas (art. 2º).  3 "De rigor estabelecer importante diretriz terminológica. Embora por vezes os institutos se confundam em práxis descuidada, sendo nominados um pelo outro, a melhor técnica sinaliza que o nomen "alienação fiduciária de bens imóveis" deve ser reservado ao negócio jurídico real imobiliário (rectius: ao título causal) ou, mais simplesmente, ao contrato de alienação fiduciária. Já a expressão "propriedade fiduciária" representa o jus in re, o direito real já constituído e em sua plenitude. Direito real esse que só nasce a partir de seu registro constitutivo na matrícula do imóvel (art. 23 da Lei 9.514/1997, c.c. art. 167, I, nº 35, da Lei 6.015/1973). Somente essa distinção terminológica tem aptidão para harmonizar o instituto telado no sistema do título e modo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro na órbita dos direitos reais imobiliários e do registro predial" (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. Coleção de Direito Imobiliário. v. X. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p.673-112).
Os tipos de cartório e a república federativa das nomenclaturas A organização das serventias extrajudiciais brasileiras é regida, em cada unidade federativa, pelas chamadas "Leis de Organização Judiciária". Em que pese essa organização não seja propriamente "judiciária", mas sim "extrajudiciária", na prática, a criação, extinção e modificação dos cartórios e de suas circunscrições são realizadas sistematicamente de acordo com a mesma lei que cria, extingue e modifica os fóruns e suas comarcas no âmbito da Justiça Estadual. Falta realmente uma regra de nomeação (ou de padronização de nomes dos cartórios). Malgrado cada cartório, conforme a especialidade da serventia notarial e registral, tenha de ser nomeado de acordo com sua atribuição específica, alguns Estados teimam em tornar essa tarefa cada vez mais difícil, criando regras próprias. No Estado da Bahia, onde existem cartórios com atribuições de Tabelionatos de Notas cumulados com Registros Civil das Pessoas Naturais, bem como Tabelionatos de Notas cumulados com Tabelionatos de Protesto, convencionou-se chamar esses cartórios, erroneamente - nomenclatura existente na Lei de Organização Judiciária baiana e, em geral, nas fachadas dos cartórios desse Estado, mas não na legislação federal - de "Registro Civil com Funções Notariais" e de "Tabelionato de Notas com Funções de Protesto", respectivamente. Tal conduta acaba confundindo bastante os usuários do serviço, dada que as nomenclaturas estaduais estão em desacordo com a prevista na lei federal e, por esse motivo, acabam variando de Estado para Estado. A mesma lógica deve se aplicar nas nomenclaturas dos cartórios de São Paulo, onde é comum termos um "Registro de Imóveis e anexos", sem discriminar quais as atribuições notariais e/ou registrais dos ditos "anexos". São Paulo ainda tem um fenômeno mais curioso, a Corregedoria bandeirante, e os próprios Tabeliães de Notas, parecem confundir a nomenclatura do cartório com a do titular da delegação pública, não sendo incomum constar em fachadas o nome "1º Tabelião de Notas de (cidade)", ao invés de 1º Tabelionato de Notas. Ora, eu vou ao tabelionato, ao cartório (local), e não ao tabelião (pessoa física - que eventualmente pode nem estar lá!). O nome do local e da serventia (cartório) é o nome do tabelionato, o local onde se presta o serviço público, o delegatário, de sua vez, é o titular do serviço, e não a serventia. Ademais, nos parece que essa nomeação dos cartórios acaba por dificultar ainda mais o entendimento dos usuários do serviço e depõe contra a almejada padronização. Algo interessante ocorre em Santa Catarina, em que as normas locais prescrevem a existência de uma serventia chamada "Escrivania de Paz" (atribuição de Tabelionato de Notas e Registro Civil das Pessoas Naturais), cuja nomenclatura não tem qualquer relação com a norma que regulamenta os cartórios a nível nacional, a lei 8.935/1994. Ainda, entendemos que a norma, uma vez que disciplina a nomenclatura específica de cada um dos profissionais responsáveis pelos serviços notariais e registrais, veda a utilização de terminologias diversas daquelas previstas em lei. Assim, nominar um "Ofício de Registro de Imóveis" de "Registro de Imóveis e Hipotecas" (como ocorre na Bahia) ou de "Registro Geral de Imóveis" (como ocorre no Rio de Janeiro - e existe um Registro Específico de Imóveis, por acaso?), vai de encontro com a finalidade de padronização nacional e só cria mais dificuldade de compreensão dos cidadãos, que veem diferentes nomes para a mesma coisa pelas unidades federativas afora. Ainda que as nomenclaturas adotadas sejam históricas e costumeiras, não encontram respaldo na legislação federal vigente, regulamentadora da matéria. Não se busca, pois, desprezar, de forma indistinta, as nomenclaturas antigas e regionais, mas atuar em prol de que se utilize as nomenclaturas padrões a nível nacional de forma destacada e uniforme, observando a lei 8.935/1994. Falando em lei 8.935/1994, esta prevê o seguinte dispositivo legal:  Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os: I - tabeliães de notas; II - tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; III - tabeliães de protesto de títulos; IV - oficiais de registro de imóveis; V - oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; VI - oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas; VII - oficiais de registro de distribuição (grifo nosso).  Algumas nomenclaturas talvez devessem ser simplificadas para evitar a dificuldade dos usuários em compreender a função de cada atividade. Veja-se os dois pontos destacados em negrito. Nos parece que o nome sem fim "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdição e Tutela" (quase falta ar para conseguir pronunciar!) deveria ser apenas e tão somente "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais", uma vez que as atribuições de registro de interdição é só mais uma atribuição legal destes ofícios, quando se encontrarem na 1ª subdivisão judiciária de cada comarca (art. 89 da LRP). Além disso, não existe no Registro Civil o registro de tutela. Em nossa opinião, dizer que um "Registro Civil das Pessoas Naturais" é de "Interdições e Tutela" em nada acrescenta ao público, pois se é assim chamaríamos de "Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutela e Emancipações e Opções de Nacionalidade e União Estável e Ausência etc." De igual modo, correta e mais simples seria a terminologia "Tabelionato de Protesto", sem o adjetivo "[Protesto] de títulos", vez que os títulos são um dos objetos do seu procedimento. Se usarmos a lógica, o nome completo teria de ser, no mínimo, "Tabelionato de Protesto de Títulos e outros Documentos de Dívida" (preciso de mais fôlego!). Melhor mesmo apenas "Tabelionato de Protesto", deixa pra lei (e não para o nome do cartório) dizer que documentos podem ser objeto do ato formal e solene. Apenas para finalizarmos e percebermos o quanto esses nomes que muito dizem, nada dizem. Dizer que um RCPN é "de interdições e tutelas" e que um TP é "de títulos" nada mais é do que repetir o erro de chamar um "Ofício de Registro de Imóveis" de "Ofício de Registro de Imóveis e Hipotecas" (como já citamos o exemplo do Estado da Bahia), se formos por essa lógica teremos de nominar atualmente, na designação do cartório predial, todos os atos atinentes previstos no art. 167 da LRP (haja fachada!).  Terminamos mais um capítulo de nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. No próximo bloco, vamos tratar sobre os conceitos de Notariado e de Registratura.
O Planejamento Familiar é um fato sociojurídico consagrado tanto em sede constitucional (artigo 226, § 7°, CF/88), quanto legal (artigo 1.565, § 2°, do Código Civil), e tem como fundamento os princípios da paternidade responsável1, dignidade da pessoa humana2, da convivência familiar3 e do vínculo afetivo4, estabelecido na relação pais e filhos. É com base nesse planejamento, que traz um conjunto de ações de regulação da fecundidade, que se garante direitos de constituição ou não de prole pelas pessoas (lei 9.263/96). Tratando-se de um direito fundamental, não pode ser restringido, devendo ter seus obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos, como os casos de infertilidade e a intenção de procriação por pessoas solteiras ou casais homoafetivos. Daí surge a Reprodução Assistida. Maria Berenice Dias em diversos artigos e estudos, como "Regulação da gestação por substituição: Em relação à gestação por substituição (também conhecida como "barriga de aluguel")", defende que é necessário haver uma regulamentação clara e segura, a fim de garantir os direitos de todos os envolvidos. A autora argumenta que a gestante de substituição deve ter seus direitos respeitados, bem como o casal que deseja ter um filho. Em outro estudo, denominado "Direitos dos doadores de material genético" a autora aborda a questão dos direitos dos doadores de material genético, defendendo que essas pessoas devem ter sua privacidade e anonimato preservados. O argumento que a autora apresenta é que o anonimato é importante para que o doador possa tomar a decisão de doar sem ter que se preocupar com futuras responsabilidades parentais ou com o uso indevido de suas informações pessoais. Por fim, Maria Berenice Dias destaca a importância da assistência médica especializada na área da reprodução assistida, a fim de garantir a segurança e a saúde de todos os envolvidos. Ela ressalta que é preciso ter cuidado na escolha das clínicas e dos profissionais que vão realizar os procedimentos, bem como ter acesso a informações claras e precisas sobre os riscos e benefícios da reprodução assistida.5 Decorre do avanço da ciência uma ruptura sistêmica entre o biológico e o jurídico. Quem bem explica esta situação é Thomaz S. Kuhn. Na obra "A estrutura das revoluções científicas", Thomas S. Kuhn (Estruturas das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 221) propõe uma nova abordagem para a compreensão do progresso científico, argumentando que a ciência não avança de forma linear e acumulativa, como se acreditava até então. Em vez disso, ele defende que a ciência passa por períodos de estabilidade (normalidade científica) e ruptura (revoluções científicas), em que ocorre uma mudança radical no modo como os cientistas veem o mundo e fazem suas investigações. De acordo com Kuhn, cada período de estabilidade científica é caracterizado por um conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que ele chama de "paradigma". Tal paradigma é amplamente aceito pela comunidade científica e fornece uma estrutura estável para a realização de pesquisas e a solução de problemas dentro de um determinado campo científico. No entanto, ao longo do tempo, os cientistas podem encontrar anomalias que não se encaixam no padrão existente. E ainda, o que se encontra como anomalias estabelecidas, podem levar a uma crise na ciência, em que a comunidade científica começa a questionar o paradigma existente e a busca por um novo paradigma que possa explicar essas anomalias de forma mais satisfatória. Essa busca por um novo paradigma pode levar a uma revolução científica, em que o paradigma existente é substituído por um novo conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que se tornam o novo paradigma aceito pela comunidade científica. Essa mudança pode ser difícil e traumática, mas é essencial para o progresso científico. Ao aplicar esse conceito de paradigma à aplicação prática do Direito, podemos entender que os operadores jurídicos também trabalham dentro de um conjunto de pressupostos, conceitos, métodos e técnicas que são amplamente aceitos pela comunidade jurídica e que permitem a solução adequada de casos concretos. Esses paradigmas podem ser desafiados por casos que não se encaixam neles, e a busca por novos paradigmas pode ser necessária para avançar no campo do Direito. A fertilização de forma não natural, ou seja, biologicamente entendida como encontro do espermatozoide com o óvulo no corpo da mulher, sem ajuda de qualquer método artificial é o que as explicações de Kuhn evidenciam e continua-se a trilhar deste artigo. Pode-se conceituar Reprodução Assistida como um conjunto de técnicas utilizadas por médicos especializados, que tem como principal objetivo a tentativa de viabilizar a procriação, em uma função estrutural de planejamento familiar6. A prática está regulamentada, quanto aos aspectos éticos e bioéticos da atuação médica, pela Resolução 2.320/22, do Conselho Federal de Medicina7 e, no tocante aos aspectos registrais do assento de nascimento, pela Seção III, do Provimento 63/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça. A Reprodução Assistida, que pode se utilizar de várias técnicas como inseminação artificial, fertilização "in vitro", doação de gametas ou embriões, gestação por substituição, tem aplicação por casais heteroafetivos, homoafetivos, transgêneros, ou por pessoas solteiras que querem a procriação solo. Tratando-se de registro de nascimento decorrente dessa técnica, em regra, basta a apresentação dos documentos indicados no artigo 17, do citado Provimento, para que se inclua a filiação no assento, sem a necessidade de qualquer intervenção judicial, sendo inclusive vedado aos Oficiais recusar esse registro sob pena de responsabilidade disciplinar (artigo 18, Prov. 63/17 CNJ). Há situações que, mesmo diante de uma Reprodução Assistida, não será necessária a apresentação de quaisquer documentos a esse respeito, podendo o registro ser lavrado com base na filiação decorrente da gestação e do parto, ou ainda das presunções de paternidade estabelecidas no artigo 1.597, incisos I e II, do Código Civil. Todavia, há circunstâncias em que a prova da aplicação da técnica será necessária para fins de registro, quais sejam: gestação por substituição, porque excepciona a regra de que mãe é quem "deu à luz"; reprodução homóloga "post mortem", em que poderá ser estabelecida a filiação por pessoa já falecida ao tempo da concepção; reprodução heteróloga, pois a filiação não será estabelecida pelo vínculo genético. Passa-se a análise das peculiaridades dessas situações expostas em que o Oficial de Registro Civil deve se atentar aos ditames legais para efetuar o registro de nascimento. A gestação por substituição (chamada de cessão temporária de útero), popularmente denominada "barriga de aluguel", é a verdadeira exceção ao brocardo "a mãe é sempre certa", em decorrência da gestação e parto. Aqui estamos diante da situação de uma doadora genética, que se utiliza da reprodução assistida para ser mãe, sem ser a gestante e parturiente, não se aplicando a atestação constante na Declaração de Nascido Vivo. Por ocasião do parto, a Declaração de Nascido Vivo (que também tem finalidades estatísticas), será preenchida como se a genitora da criança fosse a parturiente. Desta forma, o Oficial exigirá uma declaração com firma reconhecida do diretor da clínica em que foi realizada a reprodução e o termo de consentimento firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação. Quanto à Reprodução Homóloga, pode ocorrer em vida ou "post mortem". Diz-se homóloga porque o material genético utilizado é dos pais. Se feita em vida, o nascimento pode ocorrer dentro dos prazos estabelecidos nos incisos I e II, do artigo 1.597, do Código Civil, o que dispensa maiores formalidades para seu registro e estabelecimento da filiação. Quando o nascimento ocorrer fora daqueles prazos, é a situação "post mortem", em que se torna obrigatória a comprovação da reprodução assistida para fins de indicação da filiação perante o Registrador Civil, com a documentação exigida no artigo 17, do Provimento 63/17, especialmente a autorização do falecido. Importante mencionar que há precedente do Superior Tribunal de Justiça exigindo que essa autorização prévia do falecido seja específica para uso do material genético preservado, por instrumento público ou particular com firma reconhecida, não bastando o mero contrato assinado pelas partes na clínica.8 Importante ressaltar que a previsão de procriação após a morte é questionada por alguns doutrinadores na medida em que, em tese, ofenderia o princípio constitucional da paternidade responsável. Já a Reprodução Heteróloga (artigo 1.597, inciso V, do Código Civil), é a utilização de material genético de terceiros, que fazem uma doação de gametas ou de embriões. Para o registro de nascimento, também será necessária uma declaração com firma reconhecida do diretor da clínica, informando que foi utilizada a reprodução em favor daquele casal. Assim, no assento de nascimento devem constar, no campo da filiação, as pessoas beneficiadas pela técnica, sendo vedado a menção dos doadores genéticos, garantindo-se o anonimato, conforme prevê a Resolução 2.320/22 da Conselho Federal de Medicina e o Provimento 63/17 da Corregedoria Nacional de Justiça. Oportuno lembrar que a pessoa nascida por essa técnica heteróloga pode se valer (assim como no caso da adoção) do Poder Judiciário para exercer o direito ao conhecimento de sua ascendência biológica, sem que isso implique em reconhecimento do vínculo de filiação (artigo 17, § 3°, do Prov. 63/17 da CNJ). Fato é que quase a totalidade dos doutrinadores, baseado na dicção legal, entendem que no caso de inseminação artificial heteróloga a presunção de filiação é absoluta ("iure et de iure"), pois ela decorre da intenção de se gerar um filho a chamada "maternidade de intenção", expressão utilizada pelo Dr. Marcio Martins Bonilha Filho9, Ex-Corregedor Permanente da Comarca da Capital de São Paulo, em diversos processos que tramitaram na 2ª Vara de Registros Públicos da capital10-11. Nos últimos anos, notícias a respeito de reproduções artificiais heterólogas caseiras, a chamada "auto inseminação", tem se tornado frequente por vários casais, tendo em vista o alto custo desses tratamentos e pouca acessibilidade pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Inclusive já houve decisão do Superior Tribunal de Justiça12 de que os planos de saúde não são obrigados a custear os tratamentos de reprodução assistida, salvo previsão expressa no contrato. A reprodução caseira consiste na utilização de "métodos domésticos" de inseminação com material genético doado por terceiros. Esse tema é delicado, pois envolve questões de bioética, saúde da mulher e da criança gerada, projetos parentais e proibição de comercialização de material genético, sem falar nas questões relacionadas ao sigilo do doador e sua proteção contra eventuais ações de reconhecimentos de paternidade. Nesta "técnica", o esperma é coletado pelo parceiro masculino em um recipiente (que se pressupõe) esterilizado e inserido na vagina da parceira feminina por meio de uma seringa ou outro dispositivo similar. Tal prática apresenta riscos de infecções e não possui garantias de sucesso na gravidez, aliado ao fato da falta de um acompanhamento médico adequado durante todo o processo. Do ponto de vista doutrinário, a reprodução caseira não é vista como uma prática ética ou segura. A inseminação artificial deve ser realizada por profissionais de saúde especializados, em clínicas de reprodução assistida, com equipamentos e técnicas adequadas, para garantir a segurança e eficácia do procedimento.13 Em diversos países14-15 é considerada, no mínimo, desaconselhada pelas mesmas razões que o Conselho Federal de Medicina brasileiro já se manifestou. Nesse caso, como o procedimento não foi realizado de acordo com a legislação pertinente, não será possível a aplicação das presunções legais da paternidade, nem o registro em nome dos casais homoafetivos. Para resolver essa questão registrária, as partes deverão ingressar com Ação Declaratória de Maternidade/Paternidade Socioafetiva, com pedido de tutela antecipada do nascituro (artigo 100, inciso IV, do ECA), ou, após o nascimento, fazer um reconhecimento socioafetivo, averbando-se a filiação no assento já lavrado. Nesse ponto importante esclarecer que o instituto da socioafetividade difere da hipótese de reprodução assistida, pois, nesta a manifestação de vontade de querer ser pai ou mãe antecede à prole, já na socioafetividade, ela só ocorre após o nascimento, pelo exercício da posse de estado de filho. Por fim, vale ressaltar que ao Oficial de Registro Civil é vedado mencionar no assento de nascimento essas técnicas de reprodução, uma vez que não se deve fazer quaisquer distinções a respeito de filiação (lei 8.560/92), como forma de assegurar o princípio da igualdade entre os filhos. __________ 1 A paternidade responsável é um conceito que implica no compromisso dos pais em garantir o bem-estar físico, emocional e educacional dos filhos, bem como em contribuir para a sua formação moral e social. Esse princípio se relaciona diretamente com o planejamento familiar, uma vez que a decisão de ter filhos deve ser tomada de forma consciente e responsável, levando em conta não só as condições financeiras, mas também as condições emocionais e sociais dos pais. 2 O epicentro da Constituição de 1988 é a dignidade da pessoa humana, substrato essencial dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro e está previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal. Esse princípio implica no reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos e de liberdades fundamentais, e se relaciona diretamente com o planejamento familiar na medida em que garante às pessoas o direito de decidirem livremente sobre a sua vida reprodutiva. MENEZES, Joyceane Bezerra de. A Família na Constituição Federal de 1988 - Uma Instituição Plural e atenta aos Direitos de Personalidade. Revista NEJ - Vol. 13 - n. 1 - p. 119-130 / jan-jun 2008. p. 119. 3 A Juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Dra. Conceição Mousnier, em trabalho de 2002, já trazia fundamentos sobre a família moderna, dizendo que a convivência familiar é um direito fundamental previsto no artigo 226 da Constituição Federal e se relaciona diretamente com o planejamento familiar na medida em que visa a garantir a formação de uma família saudável e harmoniosa. O planejamento familiar pode contribuir para o fortalecimento dos laços familiares, uma vez que permite aos pais planejar a chegada dos filhos, de modo a garantir as condições materiais e emocionais necessárias para a sua criação. MOUSNIER, Conceição A. A Nova Família à Luz da Constituição Federal, da Legislação e do Novo Código Civil. Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002, p 244. . 4 O vínculo afetivo se relaciona com o planejamento familiar na medida em que visa garantir que a formação da família se dê em um ambiente de amor, cuidado e respeito mútuo. Esse vínculo pode ser estabelecido tanto entre os pais quanto entre os pais e os filhos, e é essencial para o desenvolvimento emocional e psicológico saudável das crianças. VIGNOLI, Eduardo Torres. Planejamento Familiar no Brasil: Abordagens Constitucionais, Omissões Institucionais Equívocos na Intimidade. Dissertação Mestrado. p. 140. Acesso em 23 abr 2023. 5 DIAS, Maria Berenice. Diversos artigos no site, acesso em 23 abr 2023. 6 O planejamento familiar é um direito assegurado pela Constituição Federal brasileira de 1988, que estabelece o planejamento familiar como uma política de saúde pública. Ele se constitui em um conjunto de ações e medidas que visam a garantir o direito das pessoas de decidirem livre e conscientemente sobre o número de filhos e o intervalo entre os nascimentos, bem como sobre os métodos contraceptivos que desejam utilizar. Do ponto de vista jurídico, o planejamento familiar é amparado pela Lei nº 9.263/96, que dispõe sobre a regulamentação do planejamento familiar no país, definindo-o como um direito de todo cidadão. Essa lei garante, entre outras coisas, o acesso gratuito aos métodos contraceptivos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) e o direito à informação e à educação sexual e reprodutiva. No entanto, o acesso ao planejamento familiar no Brasil ainda enfrenta muitos desafios, especialmente em razão de questões sociais e culturais. Apesar de ser um direito garantido por lei, muitas pessoas ainda enfrentam dificuldades para ter acesso a métodos contraceptivos, informação e educação sexual, especialmente aquelas que vivem em regiões mais remotas ou que pertencem a grupos sociais mais vulneráveis. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. "Bioética e Biodireito: Uma Introdução", acesso em 23 abr 2023. 7 Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), reprodução assistida é "o conjunto de técnicas e métodos clínicos e laboratoriais que visam auxiliar os casais com problemas de fertilidade a alcançar a gestação" (CFM, 2021). Essas técnicas podem incluir desde medicamentos para induzir a ovulação até procedimentos mais invasivos, como a fertilização in vitro. RESOLUÇÃO CFM nº 2.320/2022,  acesso em 24 abr 2023 8 Implantação de embriões congelados em viúva exige autorização expressa do falecido, decide Quarta Turma. Publicada no site do STJ em 15 jun 2021. Acesso em 26 abr 2023.  9 Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 2ª VRPSP - Processo: 0022096-83.2012.8.26.0100. Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 30/10/2012 Data DJ: 06/11/2012. 10 Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 2VRPSP - Processo: 0022096-83.2012.8.26.0100 Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 30/10/2012 Data DJ: 06/11/2012. Registro Civil das Pessoas Naturais. Assento de nascimento - retificação. Dupla maternidade - reconhecimento - união estável homoafetiva. 11 Registro Civil das Pessoas Naturais. Registro de nascimento. Reprodução assistida. Maternidade de substituição. CGJSP - Processo: 5.122/2013 Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 16/09/2013 Data DJ: 30/09/2013. Relator: José Renato Nalini. Registro de nascimento - reprodução assistida heterológa parcial (doação de oócito) com maternidade de substituição - prevalência da verdade contida no procedimento de reprodução assistida consoante pedido de todos participantes do protocolo médico - registro de nascimento - recurso provido. 12 Em repetitivo, STJ decide que planos de saúde não são obrigados a custear fertilização in vitro. Publicado no site do STJ em 15/10/2021. Acesso em 26 abr 2023. 13 Reprodução caseira: entenda os riscos desse método" (Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS). Acesso em 23 abr 2023. 14 O "European Society of Human Reproduction and Embryology (ESHRE)" é uma organização europeia líder na área de reprodução humana e embriologia, a qual informa sobre a inseminação caseira na Europa. Em seu site, eles têm uma seção dedicada a orientações para pacientes, que inclui informações sobre técnicas de reprodução assistida e informações sobre a segurança e a eficácia dessas técnicas. Acesso em 23 abr 2023. 15 Strong C, Schinfeld JS. The single woman and artificial insemination by donor. J Reprod Med. 1984 May;29(5):293-9. PMID: 6726699. Acesso em 23 abr 2023.
Digam ao povo que o nome certo é notário ou registrado O texto do art. 3º da lei 8.935/1994 (Estatuto dos Notários e Registradores) é uníssono ao estabelecer o nomen iuris dos profissionais do direito que recebem a delegação pública para exercer a função notarial e registral: Notários, ou Tabeliães (para aqueles que exercerão função no TN e/ou no TP) e Registradores, ou Oficiais de Registro (para os que exercerão função no RI, RTD, RCPN ou RCPJ).1 Mesmo a legislação sendo tão clara, a ponto de explicar até como esses profissionais do direito devem ser chamados, ainda existe uma dificuldade da população e, por vezes, dos próprios Tribunais, em chamar pelo nome previsto na lei. No início do ano de 1822, Dom Pedro I, ao proferir a mitológica frase "Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digam ao povo que fico!", inaugurou o que viria a ser quase que uma tradição brasileira, uma questão folclórica. Na época provavelmente ele não sabia disso... e talvez muita gente nem percebeu esse jeitinho brasileiro de dizer as coisas... mas, de lá para cá, as autoridades de nosso País mais "mandam dizer" do que "dizem diretamente". Então, "Digam ao povo que o nome certo é Notário ou Registrador!". O dono do "cartório" todo Pesquisei na legislação brasileira e confesso que não encontrei em lugar algum a função "dono de cartório". Aliás, sendo uma delegação pública, o Estado delega determinada autoridade, mas a titularidade nunca deixa de ser do Estado. Outrossim, embora o Notário e o Registrador atuem em caráter privado (muito semelhante com o que ocorre com as empresas), a natureza de sua atuação é de função pública. Logo, eles (Notários e Registradores) não são "donos do cartório", apenas possuem uma delegação estatal para que, enquanto capazes, possam exercer sua função pública. Os profissionais à frente dos cartórios não são, pois, "donos" destes, mas sim exercentes da função pública de Tabeliães e Oficiais de Registro, vez que - repise-se - recebem uma delegação de serviço público, em virtude de aprovação em concurso público de provas e títulos. O acervo do cartório, físico e eletrônico, é propriedade do Estado (verdadeiro "dono"), ficando meramente sob guarda e conservação do Notário e/ou Registrador enquanto vigente a sua delegação, devendo ser devolvido ao Estado quando da vacância da função, para que seja delegado a novo Notário e/ou Registrador. Cabe aos Notários e Registradores evitar, a todo custo, o uso da expressão "dono de cartório" - corrigindo se for necessário -, como forma de educar a sociedade.                "Agente delegado" é quem trabalha para o FBI? Outra referência errônea é chamar indiscriminadamente o Notário e o Registrador como "agente delegado". É certo que, no âmbito do Direito Administrativo, dentre os agentes públicos, algumas classificações enquadram estes profissionais do direito na modalidade de "agentes delegados", mas também enquadram Juízes e Promotores como "agentes políticos" e nem por isso mandamos ofícios aos "Excelentíssimos Agentes Políticos". Primeiramente, cabe destacar que os Notários e Registradores se enquadram no amplo conceito de "agentes públicos". Como é cediço, dentro deste conceito há certas subdivisões, as quais importam para estabelecer diferentes espécies de agentes públicos, visando enquadrar estas em seus respectivos regimes jurídicos e, assim, sistematizar os regramentos específicos afetos a cada uma destas espécies. Em proposta clássica, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO classifica os agentes públicos em "a) agentes políticos; b) servidores estatais, abrangendo servidores públicos e servidores das pessoas governamentais de direito privado; e c) particulares em atuação colaboradora com o Poder Público".2 Outra proposta de classificação pode ser extraída das valiosas lições de HELY LOPES MEIRELLES, o qual classifica os agentes públicos em cinco grandes grupos: "agentes políticos, agentes administrativos, agentes honoríficos, agentes delegados e agentes credenciados".3 A depender da classificação adotada, a doutrina qualifica os Notários e Registradores como... ... particulares em colaboração com o poder público:  Nada obstante, os sujeitos titulados pela delegação em apreço [Notários e Registradores] conservam a qualidade de particulares (investidos em poderes públicos) visto que a exercerão em caráter privado; donde, não recebem dos cofres públicos, não operam em próprios do Estado nem com recursos materiais por ele fornecidos. A Constituição Federal, no art. 236, não engendrou qualquer novidade na configuração da relação estatal entre notários e registradores. Unicamente declarou-a às expressas. Segue-se que não há como ou porque extrair dele ou da lei que o regulamentou pretensas mudanças de sistemática e imaginárias transformações radicais em relação ao sistema precedente.4  ... ou, agentes delegados:  Os Notários [e Registradores] enquadrados no art. 236, em virtude de atuarem em caráter privado, não integram sequer a estrutura do Estado. Atuam em recinto particular, contando com os serviços de pessoas que também não tem qualidade de servidor e que auferem salário em face de relação jurídica que os aproxima, regida não pela lei disciplinadora do regime jurídico único, mas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Sim, os empregados do Cartório, do notário dele titular, tais como este, nada recebem dos cofres públicos, não passando pela cabeça de ninguém os enquadrar, mesmo assim, como servidores e atribuir-lhes os direitos inerentes a esse status. [...] São agentes delegados que recebem a incumbência da execução de determinada atividade ou serviço público e o realizam em nome próprio por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e permanente fiscalização do agente.5 Respondendo à pergunta que dá nome a este capítulo: por óbvio que agentes delegados não trabalham para o FBI, mas a nomenclatura também não designa tão somente Notários e Registradores, de modo que ela não deve ser utilizada como forma de identificação da função notarial e registral, haja vista que é bem mais ampla.6 A doutrina especializada classifica os particulares em colaboração com o Poder Público, ou agentes delegados, do seguinte modo: a) requisitados ou convocados (p. ex., mesários, jurados, conscritos); b) voluntários, honoríficos ou sponte propria (p. ex., dirigentes de conselhos, médicos voluntários); c) concessionários e permissionários de serviço público (p. ex., empresas que firmam contratos de prestação de serviço público com o Estado) e; d) delegatários de serviço público (notadamente os Notários e Registradores).7 Como percebemos, não se trata de classificação que engloba apenas os Notários e Registradores, os quais tem dois nomes legais (previstos no art. 3º da lei 8.935/1994), cada um para identificar sua função. Então, senhores, assim como Juiz, ou Magistrado, é espécie - e não sinônimo - de agentes políticos; Notários, ou Tabeliães, e Registradores, ou Oficiais de Registro, são espécie - e não sinônimo - de agentes delegados. Logo, não é correto discriminar como agentes delegados os Notários e Registradores, vez que a expressão não remete exatamente à sua função.8                E "delegatário". Pode? Não há dúvida que os Notários e Registradores são "delegatários de serviço público", haja vista que "Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público" (art. 236, caput, CF). Ademais, dentre a classificação do Direito Administrativo, dos agentes delegados, vimos que se inserem na submodalidade de delegatários. Mas então, porque não chamar assim os Notários e Registradores? Bem, primeiramente porque o nome dado por lei é - repise-se, para fixarmos mais um pouquinho! - Notário ou Tabelião e Registrador ou Oficial de Registro. Outro fato a impor a não utilização do termo delegatário (embora tenha a vantagem de englobar as duas funções) é que a expressão diz respeito à forma pela qual é outorgado o serviço público e não o efetivo ofício exercido. Seria o mesmo que chamar os demais agentes públicos de nomeados, já que essa é a forma de provimento da maioria dos demais agentes públicos brasileiros, seja por ingresso efetivo por concurso público, seja por eleição, seja por designação em confiança. Entende? Delegatário, assim como nomeado, não diz nada ao cidadão. Não identifica, não dá uma cara à profissão, não caracteriza a função exercida. Outro inconveniente, talvez não tão percebido pelos titulares de delegações notariais e registrais (rectius: Notários e Registradores), é que a expressão delegatários é usual pelas Corregedorias de Justiça, muito mais no âmbito de atividades correcionais, procedimentos administrativos disciplinares e sindicâncias. Não se trata de uma nomenclatura  utilizada pelo público em geral e, por esse motivo, não ajuda na identificação e na divulgação positiva da atividade notarial e registral. Por isso, pode me chamar de "Notário ou Tabelião", "Registrador ou Oficial de Registro". É isso, obrigado!                O conto do "Escrivão" e da "Escrivona" Nesses rincões brasileiros, não raro é a dificuldade da população em designar pelo nome correto a profissão dos Notários e Registradores. Muitas vezes estes são confundidos com "escrivães" ou "escrivãs" (ou o designativo feminino "carinhoso", mas errado e também comum: "escrivona"). A confusão dos termos "Notários e Registradores" com "Escrivães" não é por acaso, precisamos lembrar que se defere aos escribanos do Antigo Egito as primeiras notas e registros. Aliás, essa nomenclatura ainda é utilizada em diversos países de língua latina, especialmente espanhola. Outrossim, em Portugal e, durante o período do Brasil-Colônia, existia uma atuação conjunta entre a função de Tabelião de Notas e do Judicial, posteriormente separada, transferindo essa última função aos "Escrivães Judiciais", existentes até os dias de hoje na 1ª instância da Justiça Estadual e da Justiça Eleitoral.9-10 Reforça o problema da dificuldade de padronização de nomenclaturas a contínua utilização em alguns estados da Federação, como ocorre em Santa Catarina, em que o Tabelião de Notas e Registrador Civil é chamado - contrariamente ao que estabelece a legislação federal, competente para dispor sobre registros públicos, conforme art. 22, inc. XXV, da CF - de "Escrivão de Paz". O que, de fato, só dificulta na padronização das nomenclaturas notariais e registrais. Por óbvio, a profissão de Escrivão e a profissão de Notário e Registrador são bastante diferentes e não guardam atualmente nenhuma relação prática, sendo certo designar os delegatários dos serviços notariais e registrais apenas por estes últimos vocábulos: Notário ou Tabelião e Registrador ou Oficial de Registro. Existe "Oficiala"? Quando o assunto é designar o substantivo feminino de alguma profissão, existem situações em que o substantivo concorda com o gênero, incluindo, normalmente, o artigo "a" ao final da palavra, por exemplo. Porém, existem situações em que o substantivo é comum-de-dois-gêneros, permanecendo inalterado, sendo que os artigos definidos "o" ou "a", a frente da palavra, tem a função de designar o respectivo gênero. É, pois, o caso do debate gramatical acerca da correta grafia da palavra designativa da profissão de "Oficial", em sua versão feminina. Para explicar melhor o assunto, vamos nos valer da explicação formulada pelo abalizado conhecimento do jurista e professor em língua portuguesa, Dr. JOSÉ MARIA DA COSTA:11 1) Assim como o feminino de juiz de direito é juíza de direito, não há, em tese, razão alguma para se estranhar que, se a função de oficial de justiça é desempenhada por uma mulher, será ela uma oficiala de justiça, a exemplo de consulesa, coronela, delegada, deputada, generala, marechala, ministra, paraninfa, prefeita, primeira-ministra, sargenta, vereadora. 2) Acrescente-se, por oportuno, que o feminino oficiala é assim apontado, sem outras observações, ressalvas ou reservas, por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.12 3) Também Napoleão Mendes de Almeida, de modo categórico, assevera que esse sempre há de ser o feminino.13 4) Em mesma esteira, posta-se Evanildo Bechara.14 5) Domingos Paschoal Cegalla, sem outros comentários ou ressalvas, dá oficiala como o único "feminino de oficial: oficiala de modista, oficiala da Marinha".15 6) Cândido de Oliveira, após observar que, até há pouco, a maioria de nomes dessa natureza era considerada comum de dois gêneros, acrescenta textualmente que "é de lei, assim para o funcionalismo federal como estadual, e de acordo com o bom senso gramatical, que nomes designativos de cargos e funções tenham flexão: uma forma para o masculino, outra para o feminino"; e, em seu exemplário, ao masculino oficial contrapõe ele o feminino oficiala.16 7) Silveira Bueno, por um lado, traz antigo ensinamento de J. Silva Correia, diretor da Faculdade de Letras de Lisboa: "Nos últimos tempos têm surgido numerosas formas femininas, que a língua de épocas não distantes desconhecia, - e que são como que o reflexo filológico do progresso masculinístico da mulher, - hoje com franco acesso a carreiras liberais, donde outrora era sistematicamente excluída". 8) Por outro lado, também aduz tal autor curiosa lição de Lebierre: "Os gramáticos preceituam que os substantivos designativos de certas profissões, a maior parte das vezes exercidas por homens, conservem a forma masculina para a maioria de tais substantivos". 9) E conclui ele próprio: "Os gramáticos, que defenderam a conservação, no masculino, dos nomes de cargos outrora exercidos por homens e já agora também por senhoras, não tinham razão porque tais nomes são meros adjetivos como escriturário, secretário, deputado, senador, prefeito, podendo concordar com o sexo da pessoa que tal cargo exerce e não com o gênero dos nomes de tais profissões". 10) E preconiza ele que se diga oficiala, se tal posto é entregue a uma senhora, acrescentando que Camilo Castelo Branco emprega tal forma para designar a costureira de modista.17 11) Para que se avaliem as profundas alterações em tempo exíguo acerca da ascensão profissional da mulher, com a consequente necessidade de emprego de novos vocábulos, basta que se veja que, mesmo na segunda metade do século XX, ainda lecionava Artur de Almeida Torres haver "certos femininos que são meramente teóricos, e cujo conhecimento não oferece nenhuma utilidade prática", acrescentando tal autor que "esses femininos só servem para sobrecarregar inutilmente a memória do estudante". 12) E, dentre tais substantivos inúteis, elenca ele, por exemplo, capitoa (de capitão), aviatriz (de aviador) e anfitrioa (de anfitrião).18 13) Cândido Jucá Filho, por sua vez, muito embora sem indicar preferência nem prestar outros esclarecimentos, ressalta que o uso de oficiala às vezes é irônico.19 14) Édison de Oliveira insere tal palavra entre aqueles diversos vocábulos femininos terminados por a, que o povo evita usar, "quer em virtude de preconceito de que se trata de funções ou características próprias do homem, quer por considerá-los mal sonoros ou exóticos", acrescentando, ademais, que se hão de empregar tais femininos, "que a gramática já ratificou definitivamente".20 15) Geraldo Amaral Arruda, por sua vez, inclui o mencionado substantivo entre os comuns de dois gêneros, mandando que sua variação se dê pela simples alteração do artigo (o oficial e a oficial).21 16) Em outra passagem, o mesmo autor obtempera que "melhor é a forma oficial tanto no masculino como no feminino", justificando que na linguagem culta são muitos os substantivos com essa terminação que "variam no gênero com a simples mudança do artigo e do adjetivo que os modifiquem". 17) Acrescenta ele que adjetivos dessa natureza - de segunda classe - em latim, tinham uma mesma forma para o masculino e para o feminino, e, ao se formar o substantivo de tal adjetivo, "surgia um substantivo masculino ou feminino, conforme fosse masculino ou feminino o substantivo suprimido no ato da substantivação". 18) E conclui que "o mesmo processo perdurou no português", razão pela qual "também é melhor solução falar o oficial de justiça e, em se tratando de mulher, a oficial de justiça", sendo oficiala uma "solução inferior".22 19) Por fim, é interessante anotar que, diferentemente de coronela, generala, marechala e sargenta, não registra o feminino oficiala o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (VOLP/ABL), que é o veículo oficial para dirimir dúvidas acerca da existência ou não de vocábulos em nosso idioma; deixa, contudo, o assunto sem solução, porque registra oficial apenas como masculino (e não comum-de-dois gêneros), sem se manifestar acerca da forma feminina que se há de usar.23 20) Ora, se não é comum-de-dois gêneros, seu feminino não pode ser a oficial, de modo que se há de cair na regra comum de flexão de gênero, formando-se, de modo correto, a oficiala. Como se percebe, não há pacificação entre os gramáticos acerca do uso do adjunto "[a] oficial" (artigo antes do substantivo, que permanece sem flexão); ou da expressão "oficiala" (substantivo flexionado de acordo com o gênero feminino). Vale lembrar que quando as profissões possuem designação que utiliza como última letra o artigo "o", como regra geral, não há dúvidas de que o substantivo deve ser flexionado para o gênero feminino (Ex: notário e notária, empregado doméstico e empregada doméstica, jornaleiro e jornaleira, mecânico e mecânica, enfermeiro e enfermeira, médico e médica, advogado e advogada, secretário e secretária etc.).24 Há casos, no entanto, de profissões que terminam com o artigo "a" e são comuns-de-dois-gêneros, masculino e feminino (Ex: motorista, diplomata, dentista, jornalista, analista, balconista, cientista, fisioterapeuta, oculista, atleta, artista, cinegrafista, roteirista, sonoplasta, radiologista etc.). Em geral, as profissões que terminam com as letras "or" são flexionadas quando do gênero feminino (Ex: registrador e registradora, promotor e promotora, governador e governadora, professor e professora, embaixador e embaixadora ou embaixatriz, narrador e narradora, agricultor e agricultora, programador e programadora, animador e animadora, produtor e produtora etc.) Também são flexionadas as palavras que se referem a profissões do sexo masculino que terminam com as letras "ão" (Ex: tabelião e tabeliã, escrivão e escrivã, capitão e capitã, cirurgião e cirurgiã, artesão e artesã, espião e espiã, tecelão e tecelã etc.). Diversas palavras que dão nome a profissões que terminam com a letra "l", ao que parece, em nosso vernáculo, podem ser utilizadas como comum-de-dois-gêneros, sendo o caso de "Oficial" (o Oficial ou a Oficial), que pode ou não ser flexionada. São exemplo, inclusive, no oficialato militar, os postos de coronel/coronela e marechal/marechala, sendo mais comum, inclusive, em razão da melhor fonética (por soar melhor ao ouvido), dizer a coronel e a marechal. Em nosso sentir, algo parecido ocorre com a oficial, que, smj., tem melhor eufonia em relação ao adjunto adnominal "a oficiala".  No que tange à palavra "oficial" (designativa de profissão), ademais, o próprio VOLP (dicionário da Academia Brasileira de Letras, que atualiza e faz o registro oficial das palavras da Língua Portuguesa, com especial atenção a sua vertente brasileira) não fornece uma resposta conclusiva sobre o uso do termo "oficial(a)": por um lado porque não prevê o vocábulo "oficiala" dentre seus verbetes, por outro, porque não estabelece que "oficial" é substantivo comum-de-dois-gêneros.  Assim sendo, não parece errado o uso da expressão "Oficiala", embora também não seria incorreto usar o adjunto "a Oficial". Assim, enquanto não houver definição pela ABL, é correto dizer ou escrever tanto "a Oficial de Registro" como "a Oficiala de Registro", sendo que compete ao falante ou escritor utilizar o vocábulo que melhor lhe agrada foneticamente. Embora não tenha sido solicitada minha opinião: eu, particularmente, prefiro muito mais utilizar tanto para o gênero masculino como para o feminino apenas a designação "OFICIAL" ("o Oficial" ou "a Oficial"). É dizer: "Oficiala" é feio... mas se quiser, pode usar. Por sua conta e risco! E assim, fechamos a segunda parte de nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. No próximo capítulo, trataremos sobre as nomenclaturas adotadas pela lei e também pelos usos e costumes cartorários em relação às diversas especialidades de cartórios: Tabelionato de Notas (TN), Tabelionato de Protesto (TP), Registro de Imóveis (RI), Registro de Títulos e Documentos (RTD), Registro Civil das Pessoas Jurídicas (RCPJ) e Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). ___________ 1 Dica: Não existe "Oficial Registrador". Ou é "Registrador", ou é "Oficial de Registro"! 2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 247, grifo nosso. 3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 77, grifo nosso. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 197-198, grifo nosso. 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 14. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 290, grifo nosso. 6 No sistema brasileiro, em que pese serviços de naturezas bastante diferentes, parece que a profissão que mais se assemelha com a forma de ingresso na atividade pelos Notários e Registradores é a função de Prático Naval. Este profissional fornece um serviço de auxílio aos navegantes, estando disponível geralmente em áreas que apresentam dificuldades ao tráfego de embarcações, principalmente para as de grande porte. O ingresso na referida carreira (a praticagem de navios) também depende de concurso público e é exercida em caráter privado, recebendo uma "delegação" ou "habilitação" estatal. O Prático realiza concurso público multidisciplinar promovido pela Marinha do Brasil. Contudo, diferentemente da atividade notarial e registral, a legislação não reconhece que este profissional é detentor de uma função pública, a despeito de o serviço por ele realizado ser público. Por curiosidade, os serviços de praticagem naval são regulamentados pelos arts. 12 a 15 da Lei nº 9.537, de 1997. 7 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 31. ed. São Paulo: Método, 2021. 8 O Código de Normas do Estado do Paraná, ao invés de utilizar os nomes previstos em lei, no art. 3º do Estatuto dos Notários e Registradores (Lei nº 8.935/1994), utiliza indiscriminadamente a expressão "agentes delegados". Além disso, denomina o concurso público de "concurso de agente delegado". 9 Alguns Estados tem abandonado essas nomenclaturas, padronizando os cargos de nível superior da Justiça Comum Estadual como Analista Judiciário, podendo ser nomeado pelo juízo, como secretário judicial ou chefe de secretaria (mesma função de escrivão judicial), da mesma forma como são chamados na Justiça Federal e nas Justiças Especiais. 10 No âmbito da Polícia Civil, também existe o cargo de Escrivão de Polícia, que não guarda nenhuma relação, por óbvio, com a função notarial e registral. 11 COSTA, José Maria da. Oficial. Gramaticalhas. 06 dez. 2006. Atual. 03 jan. 2023. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2023, grifo do autor. 12 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1. ed., 8. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 992. 13 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de questões vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 215. 14 BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 19. ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 84. 15 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 294. 16 OLIVEIRA, Cândido de. Revisão gramatical. 10. ed. São Paulo: Luzir, 1961. p. 133. 17 BUENO, Francisco da Silveira. Questões de português. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 382-383. 18 TORRES, Artur de Almeida. Moderna gramática expositiva. 18. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1966, p. 59. 19 JUCÁ FILHO, Cândido. Dicionário escolar das dificuldades da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar (Fename), 1963, p. 452. 20 OLIVEIRA, Édison de. Todo o mundo tem dúvida, inclusive você. Porto Alegre: Gráfica e Editora do Professor Gaúcho Ltda., edição sem data, p. 158. 21 ARRUDA, Geraldo Amaral. A linguagem do juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 36-37. 22 ARRUDA, Geraldo Amaral. A linguagem do juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 145-146. 23 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 2. ed., reimpressão de 1998. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1999, p. 199, 366, 477, 536 e 672. 24 Interessante questão gramatical é a utilização da palavra "Presidente" flexionada para o feminino. Como a última letra da palavra presidente é a letra "e" (e não "o"), é possível utilizar o verbete para os dois gêneros, masculino e feminino (o presidente ou a presidente). Não existe, por exemplo, o adjunto "o presidento". Desse modo, seguindo a mesma lógica, em tese, não haveria porque flexionar a palavra para o feminino. Não obstante, nosso léxico considera o verbete "presidenta" uma palavra grafada corretamente, sem prejuízo de que se utilize a presidente (substantivo comum-de-dois-gêneros). A flexão da palavra para o feminino de presidente é atestada desde pelo menos 1899 pelo Dicionário de Cândido de Figueiredo, ano de sua 1ª edição. O uso da grafia presidenta, aliás, foi bastante difundido no período de gestão de Dilma Rousseff, bastando ao leitor acessar o site do Planalto e ver que todas as leis e demais atos normativos sempre a designaram como a Presidenta da República. A utilização do vocábulo, embora correta, é, no mínimo, curiosa, vez que outras profissões com igual sufixo (-te), as palavras não são flexionadas, a exemplo de gerente, dirigente, superintendente, escrevente, docente, tenente, comandante, agente, ajudante, assistente, servente, engraxate, sacerdote, ambulante, comerciante, feirante, interprete, anunciante, comediante, etc.
Embora o tema tenha ressurgido modernamente com destaque em decorrência da grande expansão que apresentaram os ativos digitais - "criptoativos" -, sobretudo na última década, fato é que a necessidade de se criar métodos para garantir a integridade e autoria de um dado documento se faz presente há séculos nos serviços notariais e registrais encarregados, justamente, de prover, com alto grau de acuidade, as comunicações jurídico-sociais que por eles trafegam de "fé pública". Em outras palavras, a tão sonhada segurança da "blockchain", ou de outras tecnologias com o mesmo intuito, tem seu correlato funcional "analógico" nos serviços notariais e cartoriais1. Aquilo que modernamente se apresenta como "criptografia" poderia, sem tanto glamour, ver suas raízes remontadas - "versão beta" - à antiga "esfragística". Não é coincidência que a "Lei orgânica" dos notários e registradores - Lei 8.935, de 18 de novembro de 1.994 -, a medida provisória que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil - e permitiu a assinatura digital reconhecida em lei de forma ampla - MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 -, e a recente lei das assinaturas digitais - Lei 14.063, de 23 de setembro de 2020 - se refiram, todas elas, à necessidade de garantir "a autoria e a integridade do documento"2, "a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica"3 ou a "publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos"4. De forma geral, todas as leis visam, nesse aspecto, evitar a negação da informação pelo emissor, após ser ela recepcionada pelo receptor5. Em outras palavras, permitem ao receptor ter a segurança de que a informação recebida é exatamente aquela expedida, e foi, com suficiente grau de certeza, emitida por aquele que se diz, no mesmo documento, ter sido o seu autor. Da mesma forma, tanto o sistema "ICP-Brasil", quanto o sistema notarial possuem, em grandes linhas, a mesma estrutura arquitetônica, sendo garantidos, em última análise, por uma hierarquia de certificação pública que possui um grande banco de dados de seus possíveis usuários6. Assim, pela estrutura ICP, os usuários que desejam assinar documentos digitais pela forma mais ampla prevista em lei são previamente cadastrados pelas "Autoridades de Registro - AR", as quais se encontram vinculadas às "Autoridades Certificadoras - AC" que, por fim, têm sua própria validação dada pela "Autoridade Certificadora Raiz - AC raiz", sendo esta última o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI7. Uma grande rede de validação eletrônica centralizada é construída com a captação de informações biográficas dos possíveis usuários de forma descentralizada, ficando cada identidade vinculada a uma chave cuja validade, em última análise, se encontra garantida pelo ente público central. Por sua vez, no âmbito dos tabelionatos de notas, a identidade do possível usuário é verificada por um escrevente capacitado, em face dos documentos de identificação previstos em lei, e conforme critérios de documentoscopia e grafotecnia padrão, que permitam auferir, com grande grau de exatidão, a veracidade das informações que, uma vez compondo a base de dados de cada cartório, serão validamente utilizadas como referência para a autenticação de todo e qualquer documento assinado com a mesma grafia depositada, e independente mesmo da vontade de seu próprio autor8. Nesse sentido, tem-se uma rede descentralizada de recepção, certificada por cada notário, enquanto profissional do Direito, fiscalizada pelo Poder Judiciário, a formar um verdadeiro bem público, repositório de comparação a toda a sociedade - independente da vontade do próprio depositante e signatário em cada documento apresentado. A descer ao nível de segurança da autenticação do documento considerado individualmente, em relação à ICP-Brasil, verifica-se que a maior parte da população se encontra alijada de conhecimentos computacionais básicos, a desde logo restringir a capacidade de fraude de um grande número de possíveis contrafatores. Ademais, a garantia técnica da integridade do documento - leia-se, que o documento não foi alterado entre a sua formalização e a sua recepção - e ao mesmo tempo de autoria, se dá pela ação conjunta da "função hash" e da estrutura de chaves públicas-privadas por ela criada. A chave privada é aquela responsável por criptografar o documento assinado em cada assinatura por seu portador, gerando concomitantemente um "hash" que se alteraria na hipótese de qualquer mínima alteração de pedaço de informação digital assinado. Por sua vez, a chave-pública, compondo, justamente, a infraestrutura de chaves-públicas, permite a decriptografia por parte do receptor que, com base na cadeia de chaves emitidas e validadas, saberá também que aquele documento foi criptografado pela específica chave-privada atribuída a determinada pessoa na base pública de certificação, tendo-lhe chegado sem alterações se o hash for compatível. A grande vantagem da assinatura eletrônica se encontra, assim, na integridade, pois o documento encaminhado não poderá sofrer qualquer mínima alteração: até mesmo um "espaço" a mais entre duas palavras quaisquer do texto assinado alteraria o seu "hash" e consequentemente denunciaria sua falta de integridade. Por outro lado, a grande desvantagem se encontra na comprovação de autoria, eis que, embora a MP determine que a chave privada seja de "exclusivo controle, uso e conhecimento" de seu titular9, fato é que lamentavelmente a maior parte dos certificados digitais em uso no país não se encontra em mãos de seus titulares, estando, antes, em mãos de assessores e contadores para o uso perante órgãos administrativo-estatais e fiscais, recordando-se, inclusive, que até mesmo um Ministro da Justiça já teve oportunidade de repudiar o uso de sua assinatura eletrônica certificada10. Por seu turno, os documentos notarizados não possuem garantia de suas mínimas alterações, como a têm os digitais por meio da função "hash". Nem por isso deixam de ser adotadas medidas de autenticação que visam a sua integridade. Assim, uma série de normas escritas e não escritas fazem pressupor a autenticidade de um documento, de modo que sinais nem sempre explícitos ao cidadão médio sem conhecimento específico se fazem verdadeiros denunciadores de maiores cuidados que degradam a confiabilidade no documento. Diversas normas estaduais proíbem, por exemplo, o reconhecimento de firma em documentos em branco, ou que contenham, no contexto, espaços aptos à adulteração11. Igualmente, as mesmas normas determinam que os sinais públicos sejam integrados em etiquetas, assinaturas e selos que produzam uma única estrutura de difícil alteração, inclusive com impossibilidade de retirada ulterior sem destruição de suas partes12. Ao fim, muitas normas não escritas são também aplicadas no dia a dia do tabelionato, como ligação de páginas por carimbos, a atestar a continuidade do documento, pequenos erros propositais de grafia em sinais e carimbos a atestar a autenticidade ao leitor treinado, entre outros. Por sua vez, a contrafação da autoria do documento exigiria do contrafator ao menos alguns dotes artísticos, que podem mesmo ter seu êxito bloqueado através de subsequentes níveis de confiabilidade de autoria, como a exigência de reconhecimentos de firma "por autenticidade" - em que a parte assina em frente ao notário -, ou por meio de escrituras públicas - a forma mais solene de garantia não só da autoria, mas da própria vontade. Ao menos em relação à assinatura manuscrita, não vige, ainda, o costume de se pedir para que se assine pelo efetivo autor, como acontece em relação às assinaturas digitais, a demonstrar que a própria sociedade vê em tais atos físicos uma maior solenidade e os trata com maior cuidado. Em síntese, as assinaturas digitais constroem, por meio de uma estrutura tecnológica, documentos de integridade quase incontestável e de autoria às vezes duvidosa, sem qualquer qualificação da vontade emanada. Por sua vez, as assinaturas manuscritas contam com métodos analógicos que nem sempre garantem a integridade do documento, mas que encontram em sua autoria uma maior assertividade, podendo, inclusive, atestar a qualificação da vontade livre e informada a depender do método utilizado para sua coleta. Nesse sentido, o que se tem do manuscrito ao digital é uma evolução técnica, mas não uma alteração de substância, ambos buscando certificar a autoria e integridade do documento que precisa circular e ser recepcionado com alta confiabilidade. Contudo, mesmo esta evolução é parcial, e atinge ainda apenas parte do afazer notarial. Nesse aspecto, embora a evolução tecnológica seja capaz de construir um arcabouço mais ou menos confiável para a função autenticadora exercida pelos notários no mundo "analógico", ainda não se encontrou substituto para a função qualificadora, em específico, aquela que qualifica efetivamente a vontade das partes no ato notarial, ou seja, os aspectos "intrínsecos" da autoria negocial, e não apenas a autoria documental enquanto elemento "extrínseco", tão somente probatório. Denuncia essa diferença o fato de que mesmo os notários, ao transporem parte de sua atividade para o meio digital, na forma das chamadas "assinaturas digitais notarizadas" pelo módulo "e-not assina", reconhecerem que "Os atos notariais de reconhecimento de firma e da assinatura eletrônica em documento digital se limitam à verificação da assinatura no documento com base naquela depositada em Tabelionato ou correspondente ao certificado digital notarizado, respectivamente, sem que haja análise da legalidade e conformidade jurídica do conteúdo do negócio ou ato jurídico no qual a assinatura física ou digital esteja inserida"13.  Ora, o específico da função notarial estaria, assim, não na construção do documento em si, enquanto material externo representativo do fato jurídico14, mas na qualificação interna do próprio ato jurídico (lato sensu) no documento representado. Em outras palavras, no cuidado com a vontade juridicamente relevante para o Direito, e não tão somente na forma como ela se documenta. Se a confiabilidade decorrente do afazer notarial poderia eventualmente ser substituída pela confiança no sistema eletrônico, como uma forma adequada de certificação autenticadora, o mesmo não pode ser dito ainda da qualificação do negócio enquanto manifestação jurídica das vontades, ao menos não enquanto não se outorgue a uma máquina, por exemplo, a análise sobre a "liberdade" e grau de consentimento informado de um ser humano15. A verdadeira "função notarial" não é mecânica - embora seja técnica em outro sentido. O notário é, antes de tudo, profissional de confiança da parte16, dotado de saber jurídico especializado, que qualifica não apenas a identidade e certifica os fatos, mas, sobretudo, qualifica a vontade livre e isenta de vícios e seus momentos de atuação no mundo jurídico. A certificação é poder instrumental e acessório. O cerne da atividade é a formatação, muitas vezes artesanal, do negócio em cada manifestação. Na interação entre sistema psicológico-humano e sistema jurídico-social, o notário é aquele encarregado de "conoscere il volere che colui che vuole non conosce: ecco il drama del notaio"17. Em outro sentido, como já alertado, na maior parte das vezes não é verdadeiro que o responsável pelo certificado digital de determinado titular seja, como queria a lei, o próprio titular. E não é por outra razão que uma grande parte dos países do globo não preveja a regulamentação de assinaturas digitais quando os atos dizem respeito a negócios tão centrais como os imobiliários18. Nesse aspecto, sempre vai ser necessário o questionamento de quanto se quer passar ao digital aquilo que, embora talvez com alguns inconvenientes, é preciso reconhecer, se faria, de forma muito mais segura, de modo analógico19. Isso não quer dizer que mesmo o cerne da atividade notarial não deva sofrer os influxos da era digital. O que se deve buscar é a digitalização do notário - e não a sua substituição pela tecnologia20. Assim a indispensável audiência, ainda que por videoconferência, prevista para as "escrituras eletrônicas" pelo Provimento nº. 100, de 26 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que criou a plataforma "e-notariado". Pode-se levantar questionamentos se a mencionada videoconferência comporta o mesmo grau de certificação que a assinatura física com colheita da manifestação de vontade in loco21, mas ao menos ainda se tem, mesmo que por vias digitais, a certificação da vontade humana por outro sistema humano. E assim o é inclusive por uma tomada de decisão filosófico-política fundamental, o que já é matéria para outro texto. __________ 1 "We define an electronic coin as a chain of digital signatures", já diria o seminal paper de "Satoshi Nakamoto" para o bitcoin. V. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Disponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em 11.01.2023. 2 Art. 4º, inciso II, da Lei 14.063/2020 3 Art. 1º da MP 2.200-2 4 Art. 1º da Lei 8.935/1994 5 Trata-se, assim, especialmente, de uma modalidade de comunicação entre ausentes, o que, para o âmbito registral se espalha por toda a sociedade - "quod omnes tangit" -, como terceiros obrigados a pressupor a validade das informações que adentram ao fólio. Sobre a questão da comunicação, v. Luhmann, N. A improbabilidade da comunicação. Trad. Anabela Carvalho. 4. Ed. Lisboa: Vega, 2006. Sobre a função registral e notarial como formação de repositório de confiança pressuposta, v. Brandelli, L. Registro de imóveis: eficácia matéria. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 6 Sobre a função das assinaturas eletrônicas no âmbito da "ICP-Brasil" e sua comparação com assinaturas físicas, v. CAMPOS, R. Segurança jurídica e assinaturas digitais. Disponível aqui, acesso em 06.03.2023. Em sentido semelhante, v. CAMPILONGO, C. Fé pública, segurança jurídica e assinatura digital. Acesso em 06.03.2023. Também com críticas pertinentes às assinaturas que não seguem o mesmo padrão, v. JACOMINO, S. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022. Disponível aqui. Acesso em 06.03.2023. 7 Arts. 7º, 6º, 5º e 13 da MP 2.200-2. 8 Os reconhecimentos de firma "por semelhança" podem ser provocados por qualquer pessoa, não dependendo da manifestação da vontade do signatário. 9 Art. 6º, parágrafo único, da MP 2.200-2 10 Moro deixa Ministério da Justiça e denuncia preocupação de Bolsonaro com inquéritos e Bolsonaro admite erro e republica sem assinatura de Moro a exoneração de diretor da PF. Acesso em 06.03.2023. 11 V. por exemplo, item 190 do Capítulo XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. 12 Itens 23 e 26 do Capítulo XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. 13 Enunciado 50 da I Jornada de Direito Notarial e Registral do Conselho da Justiça Federal do Superior Tribunal de Justiça. 14 Sobre o conceito de documento, o clássico GUIDI, P. Teoria giuridica del documento. Milão: Giuffré, 1950. 15 E daí, por exemplo, as recentes críticas ao desenvolvimento imponderado da tecnologia de I.A. Disponível aqui. Acesso em 12.04.2023 16 E daí a sua livre escolha nos termos do art. 8º da Lei 8.935/94. 17 V. SATTA, S. Poesia e veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria. Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550. Não à toa, na linha de outros italianos, classifica o autor a atividade notarial como um "giudizio". Assim, "Questa infatti è la singolatiá del giudizio notarile rispetto a tutti gli altri giudizi, che è la volontá dele parti che si assume come giudizio; anzi, il giudizio consiste próprio nell'assunzione di questa volontà come volontà dell'ordinamento, (...) Sotto questo aspetto si può dire che le parti sono i ministri dell'atto, allo stesso modo come, secondo il diritto canonico, gli sposi sono i ministri del matrimonio." (p. 547) 18 V. GRINGS. M. G. Sistemas de assinatura eletrônica: possíveis lições do direito comparado.  19 Um questionamento que, em nível de sociedade, pode ser estendido até mesmo para possíveis riscos decorrentes do mundo digital à Democracia. V. VÉLIZ, C. Privacidade é poder: Por que e como você deveria retomar o controle de seus dados. Traduçaõ de Samuel Oliveira. São Paulo: Contracorrente, 2021. 20 V. DUARTE, A. Avatar do tabelião: atuação do notário no ambiente virtual.  21 Mutatis mutandis, boa parte das críticas às videoconferências em tema processual penal, com a devida adaptação tendo em vista não se estar diante do exercício do ius puniendi estatal, poderia se aplicar à regulamentação das escrituras por videoconferência. V. MALAN, D. Advocacia criminal e julgamento por videoconferência. 
Introdução Há muito tempo se reconhece que é direito do ser humano titular certos atributos inerentes à própria condição humana. Dizia-se que o "fogo que brilha na Grécia também queima na Pérsia", na medida em que os direitos imanentes da pessoa (direitos da personalidade) eram reconhecidos como um Direito Jusnatural, ou como chamam alguns, "Jusnaturalismo"1. Conceitualmente, afirma-se que o nome é uma das facetas do direito da personalidade (alocado no Código Civil nos artigos 16 a 19). Alicerçado na teoria Jusnaturalista, pode-se dizer que é um direito natural e que integra o chamado patrimônio mínimo existencial da pessoa. Como lecionam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias: "o nome é o sinal exterior pelo qual são reconhecidas e designadas as pessoas, no seio familiar e social. Na imagem simbólica de Josserand, 'é a etiqueta colocada sobre cada um',2 sendo, portanto, a forma de reconhecimento que as pessoas possuem umas com as outras no âmbito social, profissional, familiar, entre outros. Quanto aos efeitos jurídicos, o nome torna possível a identificação da pessoa no meio da sociedade (estado social da pessoa) bem como no seio familiar (estado familiar da pessoa). Destaca-se que o nome é um dos elementos essenciais do registro de nascimento, ato originário registral que permite a aquisição de todos os outros direitos ligados à cidadania. O Professor Limongi França, citado por FARAJ, Lenise Friedrich e FERRO JR, Izaías G. assim leciona: "O nome, de modo geral, é elemento indispensável ao próprio conhecimento, porquanto é em torno dele que a mente agrupa uma série de atributos pertinentes aos diversos indivíduos, o que permite a sua rápida caracterização e o seu relacionamento com os demais."3 Fato é que, os direitos básicos do cidadão, como o acesso ao serviço de saúde, educação, trabalho formal, previdência social, dentre outros, passam pelo registro do nascimento da criança, e o nome é o primeiro elemento essencial a este assento registral junto ao Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ou seja, sem o registro da criança e seu nome, restaria incompleta a titularização de direitos essenciais ao cidadão. Com relação ao regime jurídico, importante lembrar que o nome está previsto também no Direito Internacional. Nesse diapasão, preceitua a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) que toda pessoa tem direito a um prenome e ao sobrenome de seus pais ou ao de um deles (artigo 18 do Decreto Federal nº 678 de 06 de Novembro de 1992)4. Na seara interna do nosso ordenamento jurídico, destaca-se a regulamentação dada pelo Código Civil de 2002. A codificação vigente alocou a matéria no capítulo que abarca os direitos da personalidade, com previsão nos artigos 16 a 18 do Código. Encerrou-se, assim, a antiga discussão se o nome era um direito patrimonial ou um direito personalíssimo, claramente com opção tarifada neste último. Em nível de legislação específica e especial, de suma importância e oportuno citar a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), que estabelece que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome (artigo 55).  A dicção do dispositivo é consonante com o artigo 16 do Código Civil e as atuais redações dos artigos deixaram de empregar a expressão "patronímico", já há muito superada pelo tempo e que era utilizada para designar o nome de família no Código Civil de 1916. No que diz respeito à natureza jurídica, há forte aproximação com o conceito do instituto, porquanto afirma-se ser um direito da personalidade. Alerta-se, contudo, não obstante para a pessoa do registrado o nome ser um direito, para o registrador civil a atribuição de um nome ao novo registrado é um dever regulamentar. Assim, é obrigação do delegatário da serventia extrajudicial da cidadania outorgar o nome ao registrado. O fará, inclusive, de ofício, caso do declarante não informe o sobrenome escolhido (artigo 55, §2º, da Lei 6.015/73). Sobre a classificação do nome, imperioso citar o prenome (primeiro nome ou nome de "batismo") e o sobrenome (nome familiar ou de ascendência). Estes são elementos mínimos e obrigatórios em nossa legislação. Por outro lado, há outros elementos, chamados acidentais (ou não obrigatórios), como o agnome (que faz referência a outro parente, como neto, sobrinho, filho, Junior); as partículas de ligação (como o "de", "da"); o axiônimo (ligados a títulos eclesiásticos ou de nobreza) e o pseudônimo (apelido como a pessoa é conhecida). Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O jusnaturalismo é uma teoria filosófica que defende a existência de princípios fundamentais e imutáveis ??de justiça que são inerentes à natureza humana e que devem guiar a criação e aplicação das leis. Apesar de ter sido influente na história do pensamento jurídico, o jusnaturalismo enfrenta diversas críticas, como: a) subjetividade e diversidade cultural: Os críticos argumentam que o jusnaturalismo assume a existência de princípios teóricos, mas muitos desses princípios são baseados em valores culturais e morais específicos. A diversidade cultural e a pluralidade de sistemas éticos ao longo da história e ao redor do mundo tornam difícil identificar um conjunto universal e imutável de princípios de justiça; b) ausência de base empírica: O jusnaturalismo defende a existência de leis naturais, mas muitas vezes não oferece provas empíricas concretas que apoiem a existência dessas leis. Isso torna difícil distinguir os princípios do direito natural de meras intuições morais ou inspiradas pessoais; c) falta de precisão: Outra crítica é que os princípios do jusnaturalismo são vagos e abstratos, o que dificulta sua aplicação prática. Sem critérios claros e objetivos, o jusnaturalismo pode não fornecer orientação suficiente para a criação e interpretação de leis; d) relação com a religião: Algumas teorias do direito natural têm raízes religiosas e sustentam que os princípios do direito natural derivam da vontade divina. Críticos argumentam que isso dificulta a separação entre direito e religião, o que pode levar a conflitos em sociedades multiculturais e pluralistas; e) inflexibilidade: O jusnaturalismo enfatiza a imutabilidade dos princípios do direito natural, o que pode torná-lo inflexível e inadequado para lidar com as mudanças sociais e culturais. Em contraste, o direito positivo pode ser mais adaptável e capaz de responder às necessidades de uma sociedade em constante evolução. BEDI, Gilmar Antônio. A DOUTRINA JUSNATURALISTA OU DO DIREITO NATURAL: Uma Introdução. Acesso em 02 abril 2023.     2 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil. Teoria Geral, 6. ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2007, p. 274. 3 O fim da imutabilidade do nome civil das pessoas naturais. Acesso em 26 março 2023. 4 Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Acesso em 25 de fevereiro de 2023.
Dando seguimento à nossa seção oficinal, hoje destacamos uma importante decisão prolatada pela magistrada titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, em resposta a consulta, formulada nos termos do art. 29 da lei 11.331, de 26/12/2002 c.c. inc. XIV do art. 30 da lei 8.935/1994. O tema emolumentar é sempre espinhoso. Toda decisão repercute largamente entre os registradores e demais operadores do direito, razão pela qual a própria lei impõe que o juiz corregedor permanente possa encaminhar as suas decisões "à Corregedoria Geral da Justiça, para uniformização do entendimento administrativo a ser adotado no Estado" (§ 2º do dito art. 29). E justamente aqui calha um aviso muito importante. Vamos a ele. Aviso importante O § 2º do art. 29 da Lei Estadual Paulista 11.331/2002 impõe o envio da decisão proferida pelo juiz corregedor à apreciação da Corregedoria Geral de Justiça para que se dê a uniformização do entendimento administrativo a ser adotado no Estado. O leitor deve ter em mente que a decisão, abaixo reproduzida, poderá ser reformada pelo E. Corregedoria Geral. Além disso, é esperável recurso dos próprios interessados. Tendo em conta tudo isto, vale a pena conhecer o caso concreto e apreciar os argumentos postos em debate - até que se dê a palavra final, a cargo da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Situação jurídica da matrícula O imóvel matriculado se acha submetido ao regime da incorporação imobiliária, sendo proprietários A e sua mulher B, e C, pessoa jurídica, na proporção de 27,5619% ao casal e 72,4381% a C. Apresentada escritura pública de venda e compra de frações ideais, vinculadas a futuras unidades autônomas, os proprietários alienaram-nas a 19 adquirentes, todos nomeados e qualificados no instrumento. Além da compra e venda de frações ideais pactuada, os vendedores e compradores firmaram, no mesmo ato, negócio jurídico declarando-se devedores dos proprietários. Com o registro, todos se tornarão comproprietários nas frações ideais que corresponderão a futuras unidades autônomas. A incorporadora não participou do negócio jurídico, embora tenha formulado o requerimento. A sua intervenção cingiu-se simplesmente à representação dos proprietários no ato notarial. Atos e cobrança de emolumentos A questão resume-se aos seguintes pontos: (a) definição dos atos que deverão ser praticados e, subsequentemente, (b) qual deva ser o critério de cobrança dos emolumentos. Os interessados propugnam pela cobrança de emolumentos que incidirão sobre tal ato isolado. Em arrimo de sua pretensão, citam o § 1º do art. 237-A, enxertado na LRP, in verbis: Art. 237-A. Após o registro do parcelamento do solo, na modalidade loteamento ou na modalidade desmembramento, e da incorporação imobiliária, de condomínio edilício ou de condomínio de lotes, até que tenha sido averbada a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção, as averbações e os registros relativos à pessoa do loteador ou do incorporador ou referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento e suas unidades, bem como a própria averbação da conclusão do empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel a ele destinado e replicados, sem custo adicional, em cada uma das matrículas recipiendárias dos lotes ou das unidades autônomas eventualmente abertas. § 1º Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput deste artigo serão considerados ato de registro único, não importando a quantidade de lotes ou de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes. O cenário de aplicação da lei, após as sucessivas reformas, tornou-se deveras confuso - fato, aliás, reconhecido pela magistrada - e já suscitou algumas decisões da Corregedoria Geral de Justiça do nosso Estado. Elas foram proferidas antes do advento da MP 1.085/2021 e da lei 14.382/2022, o que não empana os argumentos aqui expostos, nem a jurisprudência evocada. Assim, tendo o art. 237-A da LRP sido novamente alterado pelos últimos diplomas, abre-se ocasião para novamente apreciar as questões, agora sob a égide das novas disposições legais. Vetor interpretativo e as finalidades da lei Há um vetor que deve orientar o intérprete na compreensão da lei: o dispositivo colhe atos relativos à pessoa do incorporador ou àqueles "referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento". Não será todo e qualquer ato a ser praticado que haverá de atrair a franquia legal. No caso concreto, o incorporador sequer compareceu à escritura na condição de parte, nem os negócios jurídicos envolveram diretamente o empreendimento empresarial. São negócios jurídicos contratados entre as partes, que, obviamente, podem dispor livremente de sua propriedade (frações ideais). Sobre as finalidades da lei, TARTUCE e OLIVEIRA sustentam que o princípio que orientou as reformas terá sido a atenção ao "pleito existente no mercado de não se onerarem esses empreendimentos com custos que poderiam ser contornados ou atenuados, o que refletiria no preço final a ser cobrado do consumidor, pela venda das unidades autônomas"1. Os autores qualificam a situação que pode ocorrer nestes casos (atraindo a incidência da regra) como atos jurídico-reais globais, i.e., atos "relativos ao próprio empreendedor (v. g., a averbação de mudança de nome, a averbação de casamento) ou ao empreendimento como um todo (v. g., o registro de hipoteca dos imóveis em garantia do financiamento das obras)". E continuam: "Esses atos jurídico-reais globais contrapõem-se aos atos jurídico-reais individualizados, assim entendidos aqueles que dizem respeito apenas a uma unidade autônoma individualizada, a exemplo do registro de sua venda a determinado consumidor". (...) "Existem, assim, dois custos principais. O primeiro custo é com a abertura das matrículas-filhas e o segundo, com a repetição, em cada matrícula-filha, de atos jurídicos praticados na matrícula-mãe. A Lei do SERP girou em torno dessa preocupação ao promover alterações no art. 237-A da Lei de Registros Públicos"2. A abertura das matrículas-filhas, no caso concreto, é uma faculdade do registrador, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 237-A da LRP, o que se pode se dar sem qualquer custo ao interessado. De outra banda, não se promoverá a repetição, "em cada matrícula-filha, de atos jurídicos praticados na matrícula-mãe". O que se fará, quando eventualmente abertas as matrículas ex officio, é a prática dos atos correspondentes de compra e venda nas matrículas-filhas, seus receptáculos naturais. Por fim, os mesmos autores dirão que a regra não se aplicaria a atos jurídico-reais individualizados, pois, "se o empreendedor vender dois lotes, o registro dessa venda a ser feito nas duas matrículas-filhas pertinentes gerará a cobrança de emolumentos por cada um dos atos. O registrador cobrará dois emolumentos, um por cada ato de registro"3. Como se vê, a doutrina não diverge da orientação que se consolidou na jurisprudência registral paulista. Nos termos do parecer oferecido no Processo CG 0009006-08.2019.8.26.0344, o tema veio à balha. Colhe-se do precedente: "A atividade empresarial desenvolvida pelo incorporador, na forma do art. 28 da lei 4.591/1964, que tem por finalidade a venda das unidades autônomas a construir, ou em construção, visando a obtenção de lucro, não pode ser confundida com os atos praticados na matrícula que envolvam o próprio empreendimento. A cobrança de emolumentos como ato único, conforme dispõe o art. 237-A, § 1º, da lei 6.015/1973, diz respeito apenas a averbações e registros relacionados ao próprio empreendimento e não, à alienação, por qualquer modo, pelo incorporador a terceiros adquirentes das unidades autônomas a serem construídas ou já construídas. A atividade empresarial desenvolvida pelo incorporador, na forma do art. 28 da lei 4.591/1964, que tem por finalidade a venda das unidades autônomas a construir, ou em construção, visando a obtenção de lucro, não pode ser confundida com os atos praticados na matrícula que envolvam o próprio empreendimento. Em outras palavras, tal como bem esclarecido pelo Oficial de Registro em sua manifestação (fl. 01/12), para a cobrança de emolumentos como ato único é imprescindível que os registros e averbações estejam relacionados à pessoa do incorporador como responsável pelo empreendimento e aos negócios jurídicos visando que seja concluído mediante construção do edifício e instituição do condomínio edilício, tais como registro de hipotecas de futuras unidades autônomas para conclusão da obra e o registro da instituição do condomínio com a sua transposição para as fichas auxiliares que serão convertidas nas matrículas. Essa, no entanto, não é a hipótese dos autos4. Baseado neste precedente, a mesma Eg. CGJSP voltaria a prestigiar a tese de que a cobrança de emolumentos, como ato único, "diz respeito apenas às averbações e registros relacionados ao próprio empreendimento e não à alienação, por qualquer modo, pelo incorporador a terceiros adquirentes das unidades autônomas a serem construídas ou já construídas"5. No caso concreto, a alienação foi feita pelos proprietários - não pela incorporadora. Parece razoável apanhar o sentido da norma que se orienta na direção de beneficiar o núcleo do próprio empreendimento de incorporação imobiliária. Não tem sentido alcançar as várias modalidades de negócios que possam ser entabulados entre terceiros no interregno da incorporação. O mesmo juízo da 1ª Vara de Registros Públicos filiou seu entendimento nos precedentes citados no Processo1034340-75.2022.8.26.0100, mas notou um aspecto importante - e que calha às considerações aqui expendidas. O §15 do artigo 32 da lei 4.591/64, que foi incluído pela Medida Provisória 1.085/2021 (mantida na lei 14.382/2022 - art. 10), "não tratou especificamente da base de cálculo ou da forma como devem ser calculados os emolumentos, cuja atribuição compete aos Estados", arrematando que "não há como se concluir que a legislação federal alterou a forma como devem ser calculados os emolumentos"6. De fato, a nota explicativa n. 3 (Tabela II da Lei Estadual n. 11.331/02), reza que: "3. Com respeito à aquisição de frações ideais de terreno vinculadas a futuras unidades autônomas, no regime de incorporação, a cobrança de emolumentos será feita em duas etapas. Quando do registro de alienações de frações ideais do terreno, os emolumentos serão calculados sobre o valor da fração ideal do terreno, constante da escritura ou seu valor venal correspondente, o que for maior. Efetivada a instituição de condomínio especial, sem prejuízo dos emolumentos devidos por este ato, serão cobrados emolumentos referentes a cada unidade autônoma, considerando o valor derivado da edificação realizada ou do negócio jurídico celebrado, o que for maior". A compra e venda de frações ideais de futuras unidades autônomas atrai a incidência dos emolumentos de acordo com a tabela estadual (Notas Explicativas, 3, Tabela II) e dos impostos devidos (art. 171 do Decreto  62.137/2022), levando-se em consideração cada ato de alienação em si mesmo considerado. Logo, parece lógico que devam ser praticados vários atos de compra e venda nas matrículas das futuras unidades autônomas que serão descerradas por este Registro (§ 4º do dito artigo 237-A da LRP). Assim, cada "fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma" poderá inaugurar nova matriz, lançando-se nela os atos de alienação correspondentes e cobrando-se os valores emolumentares respectivos. Conclusão Podemos concluir, com base nos precedentes citados, e na interpretação teleológica da norma, o seguinte: a) Poderão ser abertas matrículas para as futuras unidades autônomas do empreendimento, sem a cobrança dos emolumentos (§§ 4º e 5º do art. 237-A da LRP). b) Cada negócio jurídico, que tenha por objeto futura unidade autônoma (fração ideal), será lançado como ato de registro em sentido estrito. c) Cada registro de alienação a terceiros (alheios ao microssistema da incorporação) atrairá a incidência de emolumentos, não se aplicando a regra do art. 237-A da LRP). Decisão do Corregedor Permanente A magistrada respondeu à consulta concluindo pela não aplicação do artigo 237-A da LRP aos negócios envolvendo alienação de frações ideais correspondentes a futuras unidades autônomas a terceiros. Contudo, afastou a cobrança de emolumentos "para a abertura das matrículas recipiendárias de cada unidade autônoma, nas quais serão replicadas as correspondentes transmissões de titularidade". Em relação às alienações das frações ideais, decidiu pela "incidência de emolumentos sobre cada um desses registros, observando-se a tabela própria, com enquadramento dos serviços de registro conforme os parâmetros estabelecidos na lei Estadual 11.331/02". A íntegra da r. decisão pode ser consultada aqui. __________ 1 TARTUCE. Flávio. OLIVEIRA. Carlos E. Elias de. Lei do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos. São Paulo: Forense, 2023, pp. 217 et seq. 2 Op. cit. loc. cit. 3 Op. cit. loc . cit. 4 Processo CG 0009006-08.2019.8.26.0344, Marília, decisão de 27/11/2020, Dje 3/12/2020, Corregedor Geral Des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso aqui. 5 Processo CG 1005346-86.2019.8.26.0344, Marília, dec. de 9/2/2021, Dje 11/2/2021, Des. RICARDO MAIR ANAFE. Acesso aqui. 6 Processo 1VRPSP 1034340-75.2022.8.26.0100, j. 26/5/2022, Dje 30/5/2022, Dra. LUCIANA CARONE NUCCI EUGÊNIO MAHUAD. Acesso aqui.
Nossa opinião conclusiva sobre a natureza jurídica do direito real de laje          A estruturação legal do direito de laje deixa dúvidas ao estudioso sobre a sua natureza, porque é possível a apresentação de sólidos argumentos favoráveis tanto à corrente de que se trata de direito real sobre coisa própria como à corrente de que se trata de direito real sobre coisa alheia. Favoravelmente à tese do direito de laje como direito real sobre coisa alheia, pode-se sustentar que falta autonomia, independência para a constituição do direito de laje, pois ele sempre se origina da vontade do proprietário da construção-base (vide o art. 1.510-A, que diz: "O proprietário poderá ceder..."), o que afasta o direito de laje do direito de propriedade. Por outro lado, como já visto nas publicações desta série, pode-se redarguir que esta característica, embora seja peculiar ao direito de propriedade, não lhe é essencial. Além disso, pode-se argumentar que o direito de laje recai, nos termos da lei, sobre "unidade imobiliária autônoma", o que remente à autonomia do direito do titular da laje em relação ao direito do titular da construção-base. Já em favor da tese do direito de laje como direito real sobre coisa própria, pode-se sustentar que, diante ausência de previsão legal em contrário, o direito de laje não se extingue pelo não uso e é perpétuo, características que o aproximam do direito de propriedade. Não obstante, como já visto, ambas as características apontadas não são exclusivas do direito de propriedade, mas a ele peculiares. Quanto à plenitude de poderes conferidos ao titular da laje sobre a coisa, que distingue o direito de propriedade dos demais direitos reais, assim como asseverado quando da análise da natureza jurídica do direito de superfície, trata-se de critério "tropo vago e transcendente - quasi un postulato senza dimostrazione - parlale di un potere complesso, in certo senso indeterminato, omnicomprensivo", mesmo que "questo tipo di definizione" seja certamente "esatta nel senso che non specificando non corre il rischio di omissioni."1 Assim, o critério, por ser demasiadamente vago e, pois, maleável para fins de definição da natureza do direito de laje, embora talvez seja, de fato, o critério distintivo do direito de propriedade em relação aos demais direitos reais, não é o mais apropriado para a qualificação do direito de laje como forma de direito de propriedade ou espécie de direito real sobre coisa alheia. Nesse contexto, as conclusões doutrinárias sobre a natureza jurídica do direito de laje parecem ser determinadas em grande parte pela hermenêutica que se dá à própria disciplina legal dos direitos reais. Com efeito, se se apega a uma visão legalista, isto é, voltada estritamente a estruturação e sistematização legal dada ao direito de laje, parece-nos que a topologia do direito de laje no sistema do Código Civil de 2002 não deixa margens para dúvida para a qualificação do instituto como um direito real sobre coisa alheia, autônomo. Basta notar, nesse sentido - e como acima longamente exposto -, que o art. 1.225 arrola o direito de propriedade e o direito de laje como direitos reais distintos, consoante seus incisos I (direito de propriedade) e XIII (direito de laje). Por outro lado, se se apega a uma interpretação voltada à operabilidade do direito de laje, a conclusão é diversa. Por exemplo, a mens legis da lei 13.465/17, influenciada pela regularização fundiária de favelas (como exposto pela própria Exposição de Motivos da lei 13.465/17), parece consistir na atribuição do direito de propriedade aos titulares da laje, conforme asseverado por diversos autores - inclusive por defensores da natureza de direito real sobre coisa alheia. Parece-nos que a interpretação mais adequada da legislação no âmbito dos direitos reais em geral (e no âmbito do direito de laje em específico), é aquela voltada à estruturação e à sistematização legal do direito real, tendo em vista que o sistema dos direitos reais é marcado pelo princípio da taxatividade e tipicidade (legalidade), sendo disciplinado por normas de ordem pública.2 Nesse sentido, deve-se lembrar que a redefinição dos modelos dos direitos reais só pode ocorrer pela lei,3 e que "não há outros perfis do direito de propriedade, senão aqueles que se encontram cunhados no direito positivo."4 Assim, e em conformidade com outros doutrinadores, entendemos que o direito de laje tem a natureza de direito real sobre coisa alheia autônomo, na linha da sistematização dada ao instituto pela lei 13.465/17, que inseriu o direito de laje como direito real diverso do direito de propriedade no bojo do Código Civil de 2002, embora seja efetivamente marcado por um "singular animus" em seu conteúdo, equiparável ao de domínio, o que lhe concederá faculdades amplas, similares àquelas derivadas do domínio.5 Trata-se de direito real sobre coisa alheia autônomo, distinto do direito de superfície. De fato, o art. 1.225 não deixa margem para dúvidas ao elencar como direitos reais diversos o direito de superfície (inciso II) e o direito de laje (inciso XIII). Ademais, há nítidas diferenças na própria estrutura e disciplina jurídica de ambos os direitos reais. Por exemplo, o direito de superfície é, no direito brasileiro, obrigatoriamente temporário, enquanto que o direito de laje é perpétuo.6 Parece-nos que o direito de laje consiste na positivação do direito de sobreelevação no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, esta afirmação deve ser lida à luz da conclusão alcançada anteriormente nos estudos desta série, qual seja, que o direito de sobreelevação é disciplinado de maneira não-uniforme nos diversos ordenamentos estrangeiros em que consagrado. É dizer, o direito de laje consiste no direito de sobreelevação disciplinado pelo ordenamento jurídico brasileiro, contendo, pois, peculiaridades próprias e não encontradas em sistemas jurídicos estrangeiros.   Isto é, pode-se afirmar que o direito de laje consiste no direito de sobreelevação, entendido este como direito real sobre coisa alheia autônomo e distinto do direito de superfície. Note-se que essa natureza do direito de sobreelevação, no ordenamento brasileiro, coincide com a natureza do direito de sobreelevação no ordenamento espanhol. Esta conclusão, não obstante, pouco diz a respeito sobre a disciplina jurídica do direito de laje, que, parece-nos, deve ser estudado substancialmente a partir da legislação brasileira, e apenas subsidiariamente a partir de uma análise baseada em direito comparado. Em outras palavras, a concepção do direito de laje como direito de sobreelevação autônomo do direito de superfície, nos mesmos moldes do derecho de vuelo espanhol, não autoriza, de forma alguma, a equiparação integral, pura e simples, daquele instituto a este. __________ 1 BARASSI, Lodovico. Proprietá e Comproprietá. Milão: Dott. A. Giuffré Editore, 1951, p. 10-11. 2 Em relação ao tema, escreve Edmundo Gatti sobre a abrangência das normas cogentes no âmbito dos direitos reais: "Consideramos que son de orden público, ante todo, las normas que determinan cuáles son los derechos reales y cuál es la amplitud de su contenido (tipicidad genérica) y asimismo, cuanto se refiere a la determinación de los elementos que integran la relación jurídica real y, por consiguiente, a los sujetos, el objeto y a la causa de los derechos y relaciones jurídicas reales; y en cuanto a esta última (causa), todo lo relacionado con su adquisición (modos, y, en su caso, títulos), constitución, modificación, transferencia y extinción." (GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 116). No mesmo sentido: "As normas disciplinadoras dos direitos reais são, uniformemente, consideradas como regras cogentes, imperativas ou de ordem pública. Pode-se dize, imageticamente, que os direitos das coisas são modelados por normas de ordem pública, que recebem em grande escala - por meio do direito obrigacional - a vontade dos particulares, no sentido de poderem exercer o tráfego jurídico, mas a repele quando pretendem remodelar os institutos do direito das coisas." (ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 113-114). Nesta obra de José Manoel de Arruda Alvim Netto, confira-se também o nº 1.4., em que o autor discorre sobre a "Natureza das normas disciplinadoras do Direito das Coisas" (Ibidem, nº 1.4., p. 36 e ss.). 3 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 114. 4 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 15. 5 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1.223. No mesmo sentido: MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90. 6 Como já visto, a perpetuidade do direito de sobreelevação e a temporariedade do direito de superfície é, também, um dos argumentos utilizados pela doutrina espanhola autonomização do direito de sobreelevação em relação ao direito de superfície.
As propriedades imobiliárias que foram objetos de um negócio jurídico já quitado, mas que o vendedor ou o comprador se recusa formalizar, ou não é encontrado, ou, ainda, está impedido ou impossibilitado de cumprir com sua obrigação, podem ser objeto do instituto da adjudicação compulsória. Referido instituto, até pouco tempo atrás, só era permitido judicialmente, e a novidade é que recentemente se tornou possível, também, pela via extrajudicial. Para tanto, a lei 14.382/2022, por meio da inclusão do art. 216-B, na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), previu a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, por meio de um procedimento que deve ser realizado diretamente no registro de imóveis, onde, dentre outros requisitos, deverá ser apresentada uma ata notarial, a ser lavrada em um tabelionato de notas. A ata notarial não servirá como título para registro, este será o papel do instrumento particular apresentado no procedimento, porém, a ata notarial será a peça principal para reunir toda a documentação necessária para se comprovar o direito da parte em receber ou transferir o imóvel. O tabelião de notas, juntamente com o advogado, irá orientar a parte sobre o melhor caminho para obter o êxito no registro. Inicialmente, cabe ressaltar que a adjudicação compulsória não tem nenhuma prioridade ou isenção sobre os requisitos obrigatórios contidos nos demais negócios jurídicos de transmissão de propriedade, pois nela deverão estar presentes os requisitos obrigatórios necessários ao ato jurídico notarial. Portanto, as certidões necessárias serão as mesmas, o imposto de transmissão que incide sobre o ato continuará incidindo, e todos os demais requisitos obrigatórios ao ato de transmissão necessário deverão existir de igual modo.   Resta frisar neste ponto, ao que tange à qualificação subjetiva da parte inadimplente, que a completude de informações para tal qualificação deve ser ponderada no caso da ata notarial para fins de adjudicação compulsória. É requisito essencial da adjudicação compulsória que uma parte se recuse ou esteja impossibilitada de regularizar a transferência imobiliária, seja por falecimento ou não ser possível encontrá-la para firmar a escritura de compra e venda.   Assim, não nos parece razoável a exigência da qualificação completa desta parte (nome, número de identidade, órgão expedidor e unidade da federação, número de CPF, endereço eletrônico e residencial, profissão e estado civil), pois tal exigência limitaria o uso do instituto da adjudicação compulsória extrajudicial, já que, na realidade dos fatos, muitas vezes o requerente da ata notarial de adjudicação compulsória estará se socorrendo de tal instituto justamente pelo fato de que não tem contato com a outra parte, quiçá terá cópia de seu documento de identidade para a completa qualificação da outra parte. Assim, na adjudicação compulsória há a existência do descumprimento por uma das partes, em relação a outorgar ou receber a escritura pública definitiva/título de propriedade. Desse modo, ao se comprovar o preenchimento de todos os requisitos legais, incluindo, neste caso, a quitação do valor acordado, e que a parte que possui o direito não consegue receber ou outorgar a escritura, utiliza-se o procedimento de adjudicação compulsória que, pela via extrajudicial, obtendo o deferimento no registro de imóveis, resultará no registro do instrumento particular, no lugar da escritura pública necessária, e que não foi lavrada. A ata notarial é o instrumento adequado e de grande utilidade para que sejam incluídos, além do documento que comprove a realização do negócio jurídico, inúmeros outros que possam comprovar a quitação do pagamento e o inadimplemento da obrigação. A ata notarial terá seu custo, a ser cobrado pelo notário que a realizar. Apesar de até o momento não ter nenhuma regra que trate especificamente da cobrança desta ata, há entendimentos de que deve ser aplicado em analogia à ata notarial para fins de usucapião extrajudicial, devendo ser pautada sua cobrança em ato com valor declarado, como já praticado no Estado de São Paulo no caso da usucapião extrajudicial. Neste caso, tem-se como parâmetro o maior valor entre o declarado pelas partes e o valor venal atribuído pela Prefeitura Municipal, assim como acontece com as escrituras públicas de transmissão de imóvel. Lado outro, apesar de existir cobrança de ata notarial de usucapião extrajudicial como ato sem conteúdo econômico com o mesmo valor das demais atas notariais (como por exemplo print de whtaspp e email), por mais absurdo que pareça, como é a realidade prevista no Estado do Pará, entendemos que aplicar à ata de adjudicação compulsória os parâmetros do ato com conteúdo econômico é a forma mais razoável de cobrança, visando tratar-se de transmissão de propriedade. Essa forma de cobrança de ato com valor declarado, além de importante por vários outros motivos, evita que se utilizem desse instituto somente para não terem o custo da escritura pública de transmissão, não permitindo que exista qualquer tipo de vantagem em optar por uma, e não pela outra. Esse entendimento vai ao encontro da tese que defende que a adjudicação compulsória não pode ser utilizada para substituir a escritura pública, quando não há recusa ou qualquer impedimento de se lavrar a escritura. Exatamente por isso que é exigida a comprovação da existência dessa negativa ou impossibilidade de se cumprir com a obrigação existente. Em relação à diligência ao imóvel, apesar de não ser obrigatória, é possível que o tabelião compareça ao imóvel para constatar, além da posse, tudo que possa contribuir para o conjunto probatório de que a parte requerente possui o direito de receber ou transmitir o imóvel, incluindo declarações das pessoas que residam próximo ao imóvel, da mesma forma que ocorre na ata notarial de usucapião extrajudicial. Neste sentido caminhou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quando trouxe a previsão no caput, e § 1º, do art. 5º, do provimento 65, que regulamentou a usucapião extrajudicial, dispondo que o tabelião poderá comparecer pessoalmente ao imóvel para realizar diligências, sendo competência do tabelião do município em que estiver localizado o imóvel. Apesar de que, a nosso ver, no caso de usucapião extrajudicial, seria muito melhor terem inserido como obrigatória a diligência, substituindo o "poderá", acima descrito, por "deverá". Isso porque na usucapião a diligência é mais importante ainda, e faz toda a diferença para que se tenha êxito no procedimento. A nosso ver, mesmo seja facultativa a diligência na ata notarial para fins de adjudicação compulsória, ela seria uma providência muito bem-vinda, e que ajudaria muito a enriquecer o conjunto probatório que fará parte da ata notarial para fins de adjudicação compulsória extrajudicial. Em relação a territorialidade, entendemos que, se requerida a diligência, não haveria possibilidade de outro tabelião, diverso daquele que possui suas competências no município que está localizado o imóvel objeto da adjudicação compulsória, realizar a ata notarial contendo a diligência, por expressa proibição legal. Mas é importante ressalvar que nada impede a realização de mais de uma ata notarial para inserir no procedimento de adjudicação compulsória, de modo que possa ser feita a ata em tabelião diverso da localização do imóvel por ata complementar, ainda em analogia ao previsto na regulamentação da usucapião extrajudicial, que no § 7º, do art. 4º, do Provimento nº 65 do CNJ, previu tal hipótese. Mas essa opção seria muito pouco provável, visto que acarretaria maior onerosidade para as partes, que poderiam realizar uma só ata notarial, contendo todas as informações, comprovações e diligência. Desse modo, o assessoramento jurídico por parte do tabelião de notas é de suma importância, pois ele poderá averiguar se o imóvel objeto da adjudicação compulsória está situado em localidade diversa daquela em que ele atua e explicar para a parte e seu advogado sobre a questão da diligência, caso queiram que seja feita, mostrando que, neste caso, ela terá uma economia se realizar uma só ata, no tabelião que atua na mesma localidade do imóvel. Frisa-se que, se a ata notarial de adjudicação compulsória for lavrada pelo e-notariado, pode haver o entendimento de que se deve respeitar o artigo 20, do provimento 100, do CNJ, que dispõe que somente ao tabelião da circunscrição do fato constatado ou, apenas quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente, compete lavrar atas notariais, remetendo a um dos dois tabeliães, a depender da existência ou não de pedido de diligência. Como também poderá haver entendimento de que, inexistindo a diligência, seguiria a regra da livre escolha da Lei nº 8.935/94, apenas com a imposição de que deva ser escolhido algum tabelião do mesmo Estado em que está situado o imóvel, para evitar a concorrência predatória, motivada pela diferença dos valores de custas e emolumentos entre os Estados. Nesse sentido, há posicionamento de que regra de competência para a realização da ata notarial, via e-notariado, poderia seguir a regra da livre escolha dentro do Estado em que está situado o imóvel objeto da adjudicação compulsória, quando não for feita a diligência. E, por outro lado, quando na ata notarial for constar a diligência, só poderia ser realizada pelo tabelião de notas que atua onde o imóvel está localizado. Contudo, não há regra clara no Provimento nº 100, do CNJ, para tais casos. Apesar da omissão legislativa, e levando-se em conta os argumentos supra-apresentados, esperamos que as corregedorias estaduais ou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definam uma regra específica para os casos em que for utilizado o e-notariado para a realização da ata notarial para fins de adjudicação compulsória. Por todo o exposto, nota-se a riqueza da opção legislativa pela ata notarial, trazendo a possibilidade de atestar, por meio de diversos documentos, a existência da quitação, da realização do negócio jurídico, e do inadimplemento da obrigação. E são inúmeros os meios pelos quais podem ser comprovados esses requisitos por meio da ata notarial. O tabelião poderá incluir na ata notarial a apresentação do instrumento particular assinado, dos comprovantes de transferências bancárias, recibos ou notificações já realizadas, conversas entre os negociantes por e-mail, por aplicativos como whatsapp e telegram, em redes sociais, ou por qualquer outro meio de comunicação. Também poderão ser incluídas as informações obtidas na declaração de imposto de renda, as declarações de testemunhas que participaram da negociação, por exemplo, a do corretor que intermediou o negócio, entre vários outros documentos e declarações de testemunhas, e, ainda, por tudo que o notário consiga extrair em possível diligência ao imóvel, se solicitada. Cabe ao tabelião preparar o documento que reúna todo conjunto comprobatório para instruir o pedido de adjudicação compulsória perante o registrador de imóveis. Assim, compete ao tabelião, por meio da ata notarial, ser o mais detalhista e diligente possível, para esmiuçar todas as informações acerca do negócio jurídico realizado, contribuindo significativamente para a decisão do registrador, dentro do procedimento da adjudicação compulsória extrajudicial. Outra questão muito importante que o CNJ poderia regulamentar, a nosso ver, é sobre a notificação no procedimento da adjudicação compulsória, para que seja mais econômico e atrativo o uso desse instituto pela via extrajudicial, mantendo a mesma segurança jurídica, e ajudando cada vez mais na desjudilicialização por meio da via extrajudicial. Assim, a sugestão que teríamos, com o intuito apenas de contribuirmos de alguma maneira com o instituto, seria no sentido de incluir a previsão de que o registrador de imóveis poderia, a seu critério, aproveitar uma notificação prévia, desde que realizada pelo Registro de Títulos e Documentos, quando esta já lhe for apresentada, e desde que ela tenha sido feita com os mesmos critérios estabelecidos para a notificação prevista dentro do procedimento no registro de imóveis, respeitando, principalmente, o prazo de 15 (quinze) dias para a resposta. A justificativa para a sugestão acima seria para evitar onerar a parte de forma desnecessária, com a realização de outra notificação idêntica, o que poderia estar em desacordo com o princípio da economia das partes. E, como a notificação seria pelo mesmo modo, não haveria como alegar ofensa ao princípio do contraditório, pois, mesmo que previamente ao procedimento instalado no registro de imóveis, a parte notificada teria a oportunidade de se manifestar dentro do prazo estabelecido na notificação. A notificação, a nosso ver, deve conter o pedido para que se cumpra a obrigação dentro do prazo nela previsto, assinando a escritura pública de transmissão do imóvel já quitado, como também a informação de que, em caso de recusa, será dada a entrada no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e, ainda, que a falta de resposta do notificado no prazo previsto será interpretada como não tendo, o notificado, motivos justificáveis para o não cumprimento, e não se opondo a transferência, mesmo que por adjudicação. Ainda para reforçar a justificativa, temos que lembrar que a adjudicação compulsória, para que seja deferida, deverá conter a comprovação de ter um documento assinado entre as partes, da existência do negócio jurídico realizado entre elas, que houve a quitação do negócio realizado, e, também, dos demais requisitos exigidos para toda transferência imobiliária, inclusive do recolhimento do imposto de transmissão que incide sobre o ato. Desse modo, sabemos que seria difícil, diante de todas essas comprovações, a parte ter argumentos que justifiquem o seu inadimplemento da obrigação de transferir ou receber o imóvel. Porém, o que defendemos não é a falta de notificação ou de comprovação do inadimplemento ou da recusa, e sim a possibilidade de o registrador aceitar, se assim entender suficiente, a notificação já realizada via RTD, e que contenha os mesmos requisitos previstos para a notificação a ser feita dentro do procedimento, evitando onerar a parte com nova notificação, que seguirá o mesmo rito. Essa permissão dada ao registrador de imóveis para poder aceitar uma notificação já realizada, não o obrigaria a assim proceder, somente o autorizaria, ou seja, o registrador poderia fazer uma análise cuidadosa sobre a notificação apresentada, para que possa ter certeza se ela foi feita da forma correta, decidindo, ao final, se aproveitará a notificação já realizada, ou exigirá uma nova notificação, agora dentro do procedimento que está tramitando em sua serventia. Ainda sobre a notificação, mesmo que seja um tema que deva ser mais aprofundado, também gostaríamos de deixar uma reflexão para o futuro, sobre o estudo de outras novas possibilidades de notificações válidas para a adjudicação compulsória extrajudicial, desde que feita por meio idôneo, a exemplo de uma comprovação da solicitação e da recusa, feita por meio de ata notarial. Sabemos que essa possibilidade não está prevista na lei, mas, após estudos mais aprofundados sobre o tema, nada impede que novas possibilidades sejam incluídas na legislação, se realmente se mostrarem viáveis e que puderem contribuir para a fortalecer o instituto. De posse da ata notarial, a parte, representada por seu advogado, irá dar início ao procedimento da adjudicação compulsória no registro de imóveis competente, juntamente com os demais requisitos exigidos na lei 14.382/2022 (itens I, II, IV, V e VI, do §1º, do artigo 216-B). A respeito dos demais requisitos exigidos, acima mencionados, e com a possibilidade de o registrador, a seu critério, aproveitar a notificação já realizada, todos esses demais requisitos, a nosso ver, poderiam já constar da ata notarial, a pedido do advogado, tornando-se a ata notarial o único documento a ser apresentado em conjunto com o instrumento particular. O tabelião de notas consta na ata notarial todos os documentos que correspondem aos demais requisitos, acima mencionados, arquivando todos na serventia, os quais poderão ser fornecidos, se necessário. Em relação ao imposto de transmissão devido, se ainda não estiver pago, entendemos que pode ser recolhido após a análise do registrador de imóveis, contendo a informação de que a documentação apresentada está apta para que se reconheça o direito a adjudicar o imóvel, porém, para que se possa deferir a adjudicação compulsória e realizar o registro, deverá ser apresentado ao registro de imóveis o comprovante de recolhimento de referido imposto. Assim, será oportunizado ao requerente da adjudicação compulsória a verificação da prévia aprovação da documentação reunida e tão somente após tal aprovação vislumbra-se o recolhimento do imposto de transmissão, evitando-se gastos e procedimentos desnecessários no momento, caso não reúna a documentação completa para o deferimento da adjudicação compulsória extrajudicial  Portanto, em regra, não há a possibilidade de recolhimento do imposto de transmissão posterior ao registro, ou de não recolhimento. Mas isso não exclui o dever de sempre ser consultada a lei municipal de onde está localizado o imóvel, para se ter certeza de qual é a previsão legal e vigente sobre a incidência do imposto devido, e o modo previsto para o seu recolhimento. Sobre prosseguir com a adjudicação ou realizar a escritura pública adequada, nos casos em que tenha uma resposta positiva daquele que está inadimplente, quando da notificação realizada dentro do procedimento, surge uma polêmica, pois os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por meio de suas normativas, determinaram que, mesmo com a resposta positiva por parte do notificado em aceitar cumprir a obrigação, continuaria a adjudicação. Já o Estado do Rio Grande do Sul determinou que, na concordância em cumprir a obrigação, deverá ser feita a escritura pública necessária para a transmissão do imóvel, e, no silêncio ou negativa, continuaria a adjudicação. Entendemos que a determinação do Rio Grande do Sul parece estar mais alinhada com a defesa de que, se é possível a realização da escritura, é ela que deve ser feita, não podendo utilizar o instituto da adjudicação compulsória sem que haja real motivação. Outra questão muito debatida é sobre a anuência do cônjuge (da época ou atual), que deverá ser observada de acordo com o tempo em que foi feito o instrumento particular, e o regime de bens adotado. Entendemos que também será necessário observar a existência de outro estado civil no momento da adjudicação, diferente do da época do instrumento particular e sua quitação, e o regime de bens atual. Cabe averiguar, também, se é o caso de compra com valores de bens particulares de um só cônjuge, para melhor orientação do interessado. E, ainda, quando houver falecimento de uma das partes envolvidas no negócio jurídico realizado, a nosso ver, a depender do caso, será necessário observar a existência ou não de inventário, se houve ou não a menção de referido bem ou obrigação, e quem seriam os herdeiros do falecido. Essa análise se faz necessária para saber exatamente quem são os sucessores daquele que tinha a obrigação, para que possam ser notificados. No nosso entendimento, se o falecido é quem tinha a obrigação de outorgar a escritura, a notificação deverá ser feita aos seus herdeiros, para que respondam, no prazo estabelecido, se irão ou não cumprir a obrigação deixada pelo falecido. Nesse caso, após a negativa ou o fim do prazo sem resposta, e cumprido todos os demais requisitos, poderia se deferir a adjudicação compulsória, registrando o instrumento particular assinado pelos contratantes. Nessa situação, onde o falecido foi quem deixou a obrigação de outorgar a escritura, entendemos que, na ausência de inventário apresentado, bastaria a respectiva certidão de óbito, constando quem são os herdeiros daquele que não cumpriu com a obrigação de transmissão do imóvel. Já se o falecido é quem tinha o direito de receber, haverá a necessidade de se verificar se constou no seu inventário o direito a receber esse bem já quitado, e o recolhimento do ITCMD por parte dos herdeiros; se constou, entendemos que pode ser transferido diretamente aos herdeiros, por meio da adjudicação compulsória extrajudicial, depois de realizada a notificação e cumprido todos os demais requisitos exigidos por lei. Nesse caso, o inventário seria apresentado ao registro, juntamente com o instrumento particular. Se não constou o direito de receber esse bem já quitado no inventário, no nosso entendimento, o melhor caminho seria realizar uma sobrepartilha para constar e recolher o ITCMD devido, e depois ser transferida diretamente aos herdeiros, tal como acontece nos demais casos semelhantes, mas nesse caso por meio da adjudicação compulsória extrajudicial, obviamente depois de cumprido todo o procedimento previsto na lei 14.382/2022. Nessa situação, o inventário e a sobrepartilha do falecido também seriam apresentados ao registro, juntamente com o instrumento particular. O caminho da sobrepartilha se torna necessário para que o bem não tenha que ser transferido ao falecido (espólio), e depois se proceda a sobrepartilha, uma vez que não haveria outro jeito, se não um desses dois, para que se atenda ao princípio da continuidade registral, e, também, a ordem sucessória correta, com o devido recolhimento de imposto causa mortis. Essas são algumas reflexões a respeito da adjudicação compulsória sobre as quais entendemos ser importante o debate, além de serem cada vez mais estudadas, para que o instituto seja cada vez mais utilizado na via extrajudicial. Porém, existem muitas outras que aqui não foram tratadas, que igualmente precisam de muitos estudos e debates, para que sejam cada vez mais aprimoradas. Esperamos que em breve já tenhamos definidas as questões mais divergentes, para que todos os advogados, notários e registradores caminhem de forma igualitária, e sempre unidos para poderem proporcionar, cada vez mais, uma excelente prestação de serviço para sociedade, e continuarmos, todos juntos, contribuindo para desafogar o judiciário brasileiro. Por fim, esclarecemos que todas as ideias e conclusões contidas neste singelo artigo são apenas o nosso entendimento, respeitando todos os entendimentos contrários.
Direito real sobre coisa alheia                                                                                                              De um modo geral, os autores que compreendem o direito de laje como direito real sobre coisa alheia apontam a falta de atribuição ao titular da laje do poder de reivindicar o imóvel ou exercer direito de sequela, "eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade", não obstante a atribuição ao lajeário de quase todos os poderes inerentes à propriedade, como os poderes de usar, gozar e dispor.1 Assim, afirma-se que o proprietário da construção-base "mantém o direito de reaver a estrutura da coisa, o que acaba por englobar também a laje", enquanto que o titular da laje, possuindo um direito real sobre coisa alheia, "não tem o direito de reivindicá-la contra terceiro, mas apenas de ingresso de demandas possessórias."2 Esse argumento, com efeito, se baseia na dicção do art. 1.510-A, § 3º, que, ao arrolar os poderes do titular da laje, menciona apenas as faculdades de "usar, gozar e dispor" da laje, não mencionando o "direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", nos moldes do art. 1.228, caput, relativo ao direito de propriedade. Assim, falta ao titular da laje, pelo texto legal, o direito de reivindicar a coisa. Em termos pragmáticos, no entanto, a atribuição ao titular do direito real de gozo das faculdades de usar, gozar e dispor da coisa sem atribuição do direito de sua reivindicação parece ser contraproducente, pois, como assevera a melhor doutrina, "para usar, gozar ou dispor da coisa, precisa o proprietário tê-la à sua disposição. De modo que a lei lhe confere a prerrogativa de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a detenha."3 Na verdade, o que se pode observar quanto a este argumento é uma deficiência dogmática ocasionada pela ausência de uma teoria geral dos direitos reais bem estruturada no Brasil. Como aponta a doutrina portuguesa, a sequela é uma característica comum a todos os direitos reais, tendo, nos direitos reais de gozo, sua manifestação através da ação de reivindicação.4-5 Assim, vai contra as próprias características essenciais dos direitos reais a não atribuição, ao titular do direito real, da faculdade de perseguição da coisa (ius persequendi). Em outras palavras, o direito de reivindicação não é direito exclusivo do proprietário, titular do domínio da coisa (embora seja comum esta afirmação em âmbito doutrinário6); é, na verdade, direito conferido também aos titulares de direitos reais de gozo sobre coisa alheia. Basta ver, por exemplo, que o usufrutuário (titular de direito real de gozo sobre coisa alheia) tem legitimidade ativa para propor ações petitórias, tal como a reivindicatória.7 Ainda, que o próprio enfiteuta, titular de um direito real de gozo sobre coisa alheia, "pode usar, gozar e reivindicar a coisa"8 da maneira mais ampla9. Argumenta-se, também a favor do entendimento do direito de laje como um direito real sobre coisa alheia, que o direito de laje apresenta caráter de acessoriedade incompatível com o direito de propriedade. Esta acessoriedade, afirma-se, é verificável na hipótese de extinção do direito de laje em razão da ruína da construção-base, porque "se a destruição da construção-base extingue o direito de laje, por certo o evento incide sobre um bem principal, acarretando a extinção daquele que lhe é acessório."10 Esta afirmação, entretanto, não é integralmente correta, uma vez que é possível a existência do direito de laje sobre superfície inferior independentemente de existência, ou não, de construção-base, assim como é possível a subsistência do direito de laje sobre superfície inferior no caso de ruína da construção-base (note-se que o art. 1.510-E, I, excetua justamente a regra geral estabelecida pelo caput do mesmo dispositivo). Outro argumento apontado para a compreensão do direito de laje como um direito real sobre coisa alheia - e este nos parece integralmente correto -, levantado por Frederico Henrique Viegas de Lima, consiste na impossibilidade de concepção de um direito real de propriedade que não compreende o solo natural sobre o qual a unidade imobiliária repousa, ainda que mediante a ficcional atribuição de fração ideal sobre o solo, como ocorre no condomínio edilício. Se assim se conceber, diz, "teremos uma unidade autônoma 'solta no ar'".11-12 Com efeito, na hipótese do direito de propriedade que recai sobre unidade autônoma em condomínio edilício, a vinculação da unidade imobiliária autônoma ao solo é feita a partir da atribuição de fração ideal sobre o terreno em que erigida a edificação. Por outro lado, o art. 1.510-A, § 4º, estabelece que o direito de laje "não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas". A partir disso, depreende-se que o direito de laje se relaciona única e exclusivamente com a construção-base, não guardando vínculo com o solo. Se assim é, só é possível conceber o direito de laje como um direito real que recai sobre a construção-base, coisa alheia. Em outros termos, só é possível conceber o direito de laje como um direito real derivado (= "desmembrado") do direito real de propriedade, o que configura, a toda evidência, uma relação entre direito real maior (= propriedade; direito real sobre coisa própria) e direito real menor (= direito de laje; direito real sobre coisa alheia, limitado). De fato, sendo a laje um bem imóvel, revela-se impossível a concepção do direito de laje como um direito de propriedade, porque, como escreve Pontes de Miranda, "tratando-se de bem imóvel, entram no domínio: a) o solo, com a superfície, os seus acessórios e adjacências naturais; (...)"13. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 V. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: direitos reais. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020, v. 5, p. 556. 2 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2018, p. 1.239-1.240. No mesmo sentido: "Observe-se que, assim como se dá com a superfície - e anteriormente com a enfiteuse - o direito de laje é de ampla dimensão, compreendendo quase todos os poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor. Mas não poderá, o titular da laje, pretender 'reivindicar' o imóvel ou exercer direito de sequela, eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade." (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo; VIANA, Salomão. Direito de laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.10.2019. 3 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 77. No mesmo sentido: "A presença da coisa nas proximidades da esfera de atuação do seu titular, seja ela física ou cultural, é necessidade inadiável para que o proprietário exerça satisfatoriamente os direitos componentes do domínio (usar, gozar e dispor). Esta é a regra. Para que se possa efetivar, assegura-se e reconhece-se ao proprietário, igualmente, um direito que se torna exigível quando o exercício dos poderes do domínio se dificulta pela posse ou detenção injustas." (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 158); "Como se vê, a lei concede ao proprietário o direito de reivindicar, que é um corolário lógico dos outros direitos assegurados ao proprietário." (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil III: direito das coisas. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981, p. 140). 4 Escreve, nessa linha, António Menezes Cordeiro: "A reivindicação é meio idóneo para defender qualquer direito real de gozo, em quaisquer circunstâncias." (CORDEIRO, António Menezes. Direitos reais. Reimpressão da edição de 1979. Lisboa: Lex, 1993, p. 593); e, também, Armando Triunfante: "Enquanto elemento integrante do direito real a sequela pode ser associada a qualquer um dos tipos de direitos reais. Nos direitos reais de gozo a sequela estará a cargo da ação e reivindicação (arts. 1311º e 1315º)." (TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 24-25). V., no mesmo sentido: LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 45-46; VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020,p. 118-120; JUSTO, A. Santos. Direitos reais. 2. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 18-21; ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Civil: Reais. 5. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 421; FERNANDES, Luís A. Carvalho. Lições de direitos reais. 2. Ed. Lisboa: Quid Juris, 1997, p. 251-252, nº 124. Em sentido próximo, na doutrina brasileira, v. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, v. VI, nº 12, p. 29-30. 5 Na doutrina argentina, Edmundo Gatti, ao tratar das diferenças gerais entre os direitos reais e pessoais, sublinha o ius persequendi exclusivo dos direitos reais, apontando, na nota nº 92, que "En la nota al título IV del Libro Tercero se lee: 'La persona a la cual pertenece un derecho real, puede reivindicar el objeto contra todo poseedor; (...)'" (GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1975, p. 70). Gatti, nesta passagem, se refere ao Código Civil argentino de 1869, mas é certo que o Código argentino mais atual, de 2014, adotou semelhante postura em relação ao direito de reivindicação atribuído a todos os titulares de direitos reais. Basta ver que, em capítulo referente às "Defensas del derecho real", tratou da "acción reivindicatória"" em seu art. 2252: "Artículo 2252. Reivindicación de cosas y de universalidades de hecho. La cosa puede ser reivindicada en su totalidad o en parte material. También puede serlo la universalidad de hecho." 6 V., por exemplo, HAENDCHEN, Paulo Tadeu; LETTERIELLO, Rêmolo. Ação reivindicatória. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 15-22; MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. 4. Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, v. XIV, § 1.573, nº 3, p. 25 e ss..  7 Nesse sentido é o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça brasileiro: "3. O usufrutuário tem legitimidade para propor ações petitórias, tais como as ações de imissão de posse e a reivindicatória. Precedentes." (Terceira Turma. AgRg no AgRg no REsp nº 1.489.878/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 01.10.2015). No mesmo sentido: Segunda Turma. AgRg no REsp nº 1.291.197/MG, Rel. Ministro Humberto Martins. Julgado em 12.05.2015; Terceira Turma. REsp nº 1.202.843/PR. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 21.10.2014; Terceira Turma. REsp nº 28.863/RJ. Rel. Min. Nilson Naves. Julgado em 11.10.1993. Na doutrina portuguesa, v. FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 91, em que se diz: "Também o usufrutuário pode reivindicar a coisa no caso de ter sido privado dela (...)". 8 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 252 - Grifos nossos. 9 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. Adaptação ao Código Civil por José Bonifácio de Andrada e Silva. 3. Ed. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 335, § 147. 10 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, jul.-dez, p. 477-494, 2017, p. 485. 11 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, jul.-dez, p. 477-494, 2017, p. 487. No mesmo sentido é a opinião de Pablo Stolze: "Não se tratando, em verdade, de transferência de 'propriedade' - que abrangeria, obviamente, o solo -, este terceiro passa a exercer direito apenas sobre a extensão da construção original, ou seja, sobre a laje."; "Como já ressaltamos, não se trata de uma 'propriedade' sobre a laje, eis que, se de propriedade se tratasse, o direito exercido seria "na coisa própria" e abrangeria o próprio solo, o que não se dá na hipótese vertente." (STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressões. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, nº 4936, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021). Também, ainda, a opinião de Ralpho Waldo de Barro Monteiro Filho: "Não devemos perder de vista, entretanto, que não é apenas o art. 1.228, do Código Civil (que traz conceito analítico com o feixe de faculdades do proprietário) que dá o contorno do direito de propriedade. Assim, lembre-se que o proprietário do solo também o é do subsolo e do espaço aéreo correspondente, em altura e profundidade úteis ao seu exercício (art. 1.229). Tal marca, a toda evidência, não está presente no direito de laje. O dono da laje não poderá, por exemplo, exercer o direito de explorar os recursos minerais de emprego imediato de que fala o (art. 1.230, parágrafo único)." (MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da lei 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a lei 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89). 12 Contra, Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro lembra que "tal como concebido hoje, a unitariedade [da matrícula] tem forte conotação territorial. É dizer: a matrícula apenas pode retratar um imóvel no seu sentido espacial, geográfico." Sustenta o autor, no entanto, "que esta ideia já não atende a algumas situações jurídico-reais contemporâneas, que, tout court, necessitam de um olhar desprendido do solo", apresentando como exemplo, justamente, o direito de laje. Defende que "a unicidade da matrícula deve ser analisada sob o enfoque jurídico, voltado, sobretudo, ao aspecto econômico", e então, afirma: "À evidência, seu pressuposto é a existência de uma edificação-base. Porém, trata-se de matrícula de imóvel (ou direito real imobiliário) sem vínculo físico com o solo. Afinal, o que há, de fato, é a sobreposição física de unidades imobiliárias sob a titularidade de pessoas distintas. A relação juris-real é tão complexa que há verdadeira desconstrução da milenar regra superficies solo cedit, aliada à acessoriedade das unidades imobiliárias em relação ao terreno. A ratio essendi do direito real de laje está, portanto, na necessidade de se segregar o solo da superfície. Alguns institutos já consagrados do direito privado foram construídos sob a mesma base ideológica, isto é, o Código Civil reconhece, tradicionalmente, duas maneiras de se dissociar a propriedade do solo da propriedade exclusiva de certa edificação: o direito real de superfície e o condomínio edilício. Nesse cenário, o direito de laje descortina-se no ordenamento jurídico brasileiro como mais uma maneira de se dissociar a propriedade exclusiva de certa construção da propriedade do solo, com características tão peculiares que o distingue dos institutos anteriores. Entende-se, pois, que a laje consagra um perfil registral de desvinculação da propriedade ao solo. Descerrada a matrícula autônoma, tal qual exige a Lei Civil, ter-se-á, ineludivelmente, o sistema do fólio real encerrando direito de propriedade sem qualquer lastro no solo." (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, v. 86, p. 215-262, jun., 2019, p. 230-231). Também contrário, escreve Roberto Wagner Marquesi: "Ponderando as duas opiniões e examinando o texto legal, é de concluir pela natureza dominial da laje. Esta é uma forma de propriedade, mas uma propriedade despida de plenitude, pois, dentre outros fatores, o titular não adquire uma porção do solo, como ocorre na propriedade de modelo clássico. Ainda assim, seus poderes são os mesmos do domínio, tanto que existe o direito de disposição típico da propriedade, incluindo o poder de alienar e o de gravar de garantias reais, como hipoteca e alienação fiduciária." (MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021, p. 8). E, também, Nelson Rosenvald: "O direito de laje é uma nova manifestação do direito de propriedade. Quem discorde dessa asserção, em pleno ano de 2017, provavelmente se refugia no perfil oitocentista de uma propriedade monista, ancorada nos estreitos limites do Código de Civil, apenas viabilizada quando o bem imóvel estiver fisicamente ligado ao solo ou a ele se conectar por uma fração ideal. Como evidentemente disso não se trata o modelo jurídico da "laje", para alguns doutrinadores é mais cômodo perseverar na fórmula artificial das dicotomias e direcionar o direito de laje ao território dos direitos reais em coisa alheia. Nessas horas, indago como um civilista afeito às classificações tradicionais justificaria a titularidade de dados pessoais que se encontrem nas 'clouds' fornecidas pelos provedores (lembre-se de que o direito real de laje contempla o espaço aéreo!)." (ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.08.2019). V., ainda, FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, nº 3.1.1, p. 80. 13 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 4. Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, v. XI, § 1.169, nº 2 ("Coisas que o domínio abrange"), p. 34.
Com o advento da lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, dentre outras alterações, incluíram-se mudanças ao sistema dos registros públicos brasileiro, inovações apresentadas objetivando a modernização e simplificação dos procedimentos administrativos junto ao serviço extrajudicial, criando novas figuras jurídicas, agregando-as aos institutos preexistentes e ampliando o rol de atos praticados pelos registradores civis do país. Ao aprimorar os serviços ofertados pelas unidades registrais de pessoas naturais, dentre as novidades, em que pese toda polêmica envolvendo a temática das Uniões Estáveis, destaca-se a viabilidade da lavratura do "Termo Declaratório ou Dissolutório de União Estável", formalizado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, cuja previsão encontra-se no caput do artigo 94-A1, acrescido à Lei de Registros Públicos. A novel legislação, não obstante preze a segurança jurídica e social dos atos registrais e notariais, carecia de alinhamento regulamentar, no que se refere à estrutura de montagem do procedimento e ao marco temporal inicial da união, detalhes e minúcias necessárias à sua ajustada elaboração e à perfectibilização do registro. Por se tratar de uma inovação no sistema jurídico pátrio, surgiram discussões acerca da competência, validade e viabilidade de execução direta com base no descrito em lei e, mormente, de dúvidas, na práxis, quanto ao procedimento para lavratura do registro no Livro "E", da última residência dos companheiros. Tendo em vista a finalidade precípua dos registros públicos em garantir os ditames de autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos2, a Sra. Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas do 1º Subdistrito (Sé) da Capital do Estado de São Paulo encaminhou Pedido de Providências, autuado sob n. 1089074-73.2022.8.26.0100, à 2ª Vara de Registros Públicos da Capital, negando o registro de termos declaratórios de união estável, em razão da necessidade de prévia regulamentação administrativa. Na decisão relativa ao pedido, o MM. Juiz de Direito daquela Vara submeteu a questão à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, buscando a padronização dos procedimentos pelos Oficiais de Registro Civil paulistas. Em paralelo, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) apresentou a ADI n. 7.260, ao Supremo Tribunal Federal, e Pedido de Providências, autuado sob n. 0004621-98.2022.2.00.0000, diretamente ao Conselho Nacional de Justiça, pugnando pelo sobrestamento da prática de atos registrais, relativos a elaboração do instrumento declaratório, de modo a sanar a sua competência e a sua validade, até a total regulamentação do instituto. Após frutífero debate entre especialistas na área notarial e registral, eis que se direciona uma proposta de regulamentação, com tamanha solidez com que a questão merece, decidida pelo Conselho Nacional de Justiça, com o surgimento do Provimento 141, de 16 de março de 2023, alterando o Provimento n. 37, de 7 de julho de 2014, para atualizá-lo à luz da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, tratando, em específico, do Termo Declaratório de Reconhecimento e Dissolução de União Estável perante os Registro Civil das Pessoas Naturais e dispor sobre a alteração de regime de bens na União Estável e a sua conversão extrajudicial em casamento, pelas razões que passamos ao debate3. A polêmica do termo declaratório de união estável e sua dissolução pelo mesmo instrumento Embora dispense qualquer formalização, a União Estável corresponde a uma unidade familiar com plena proteção constitucional (nos termos do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 19884), consistente em uma situação familiar fática, que, para a sua instituição, despe-se de solenidade se equiparada ao instituto do casamento5. Apesar da informalidade do instituto, dispensando quaisquer documentações, a legislação permite e, em algumas situações exige, a devida comprovação de sua existência, a citar, nos casos de vínculo previdenciário, alegação de dependência econômica, agregar dependente em planos de saúde, bem como na aquisição conjunta de bens imóveis pelos companheiros, entre outros exemplos. Coexistem em nosso ordenamento jurídico, algumas formas de se documentar a constituição e, ou, a dissolução da União Estável: a) proferida em processo judicial, por meio de sentença; b) lavratura de escritura pública declaratória de união estável, perante Tabelião de Notas; e, atualmente, c) elaboração de termo declaratório, lavrado perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Interessante frisar, na prática, serem usuais as declarações unilaterais de união estável por mero instrumento particular, com a firma reconhecida do declarante, cujo ingresso é vetado no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais, não produzindo a eficácia desejada de publicidade perante terceiros ou ingresso comprobatório perante o registrador imobiliário. Sua corrente utilização, contudo, apresenta-se restrita a casos específicos, como, por exemplo, visitas íntimas em estabelecimentos prisionais, nosocômios e hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Não obstante essa restrição, inúmeros companheiros convivem longos períodos sem uma formalização documental ou optam pelo reconhecimento judicial, e algumas das principais razões a esse fato são, eminentemente, a desinformação e, na maioria dos casos, a ausência de recursos financeiros. No Estado de São Paulo, por exemplo, uma escritura pública de declaratória de união estável, sem dissolução ou partilha de bens, de acordo com a Tabela de Emolumentos para 2023, monta em R$ 541,70 (quinhentos e quarenta e um reais e setenta centavos)6, fora a alíquota de ISS, variável de acordo com o município de localidade da Serventia. Ademais, nas dissoluções, caso haja partilha de bens, no ato da escritura pública, há cobrança diferenciada sobre o patrimônio partilhado pelas partes, além da exação tributária (ITBI ou ITCMD se houver doação), assim como honorários advocatícios, encarecendo ainda mais o desenlace. Por outro lado, caso as partes optem por um reconhecimento e, ou, dissolução judiciais, além das custas e emolumentos processuais e honorários destinados ao causídico, há também que se considerar o tempo dispendido com o processo judicial. Isso porque, em inúmeros municípios brasileiros, a distância percorrida ao Fórum Judicial, cumulada à ausência de assistência da Defensoria Pública, de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil ou, mesmo, de um Tabelião de Notas local, têm dificultado o acesso amplo à justiça, mantendo uma parcela da sociedade à margem da formalização de sua união. Nesse sentido, a lei Federal 14.382/2022, sensível às questões sociais, buscou agregar mais uma opção às partes, possibilitando aos Registros Civis das Pessoas Naturais a lavratura do Termo Declaratório de Constituição ou Dissolução de União Estável, um imperativo que socorre a demanda de uma camada social hipossuficiente, aproximando os operadores do direito, a sociedade como um todo e os serviços realizados no extrajudicial. Ademais, o legislador, atrelado à consagração da desjudicialização e aos avanços da extrajudicialização nacional, prestigiou a atuação dos registradores civis (ofícios de cidadania), que proporcionam com êxito e presteza, de um modo célere e eficiente, uma alternativa menos onerosa aos conviventes, por intermédio de um instrumento acessível e democrático a documentar esse núcleo familiar, se comparado a outros meios de alcançá-lo, em que pese alguns pontos ainda precisem de ajuste. Destarte, no que se revela essencial à sua instrumentalização, em conformidade com a atribuição da segurança e eficácia dos Termos Declaratórios e os Dissolutivos de União Estável, para fins de uniformização procedimental, a normativa trouxe a exigência de apresentação documental completa própria aos procedimentos administrativos7; além disso, requer seja observado o devido arquivamento do processo administrativo, assim como seja observada a emissão dos respectivos Termos efetuados em papel de segurança dos registros civis. Ressalte-se que, por uma questão de paralelismo com as escrituras públicas, a fim de salvaguardar a segurança jurídica do ato, sugere-se ao Oficial Registrador que faça constar expressamente do instrumento entregue às partes que houve a assinatura de ambos os conviventes no requerimento arquivado. A busca pela adequação nacional dos procedimentos ao espaço digital, via disponibilização na Central de Registro Civil (CRC-Nacional), torna necessária a construção de um módulo apropriado de instrumentalização dos Termos e seu encaminhamento para registro e averbações, consagrando a automação procedimental, inclusive projetando um índice, verdadeiro banco de dados, alimentado pelos registradores civis, facilitando as buscas, evitando litígios e contribuindo à formação dos dados estatísticos nacionais.8 Atualmente, com o intuito de suprir a demanda incipiente, o acesso está sendo disponibilizado dentro da CRC-Nacional9. Note-se, mais uma vez, que não se trata de conflito de competências entre as serventias notariais e as registrais; mas de proporcionar ao cidadão mais um instrumento para realizar a dissolução da união, tendo o CNJ a cautela de exigir para o termo declaratório os mesmos requisitos que há para o ato notarial escritural, quais sejam: assistência de advogado ou defensor público, concordância das partes e inexistência de filhos menores ou incapazes.  Da alteração do regime de bens da união estável  Conforme já mencionado, a União Estável é uma situação eminentemente fática, mas que pode ser documentada formalmente a fim de resguardar direitos dos companheiros. Em um paralelo com o instituto do casamento10, não havendo documento escrito, o regime de bens que regula a união estável segue a regra da legislação civil pátria, comportando como regime patrimonial a comunhão parcial de bens. Para o casamento, a alteração de regime de bens somente pode se dar de forma exclusivamente judicial, mediante pedido motivado dos cônjuges e ressalvados os direitos de terceiros, em virtude do § 2º do artigo 1.63911 do Código Civil. Já para a união estável, caso os companheiros decidam por elaborar um documento escrito, com a estipulação de um regime de bens diferente do legal, surge a controvérsia, se seria possível ao casal deliberar pelo efeito retroativo do regime escolhido12. Permitir que o regime de bens dos conviventes retroaja, contudo, seria o mesmo que autorizar que a união estável receba tratamento mais benéfico do que o casamento, uma vez que os efeitos do regime de bens de pessoas casadas iniciam-se na data do ato formal e solene de celebração do matrimônio. Ademais, o documento escrito, ainda que consubstanciado em instrumento público, possui eficácia inter partes, passando a repercutir efeitos perante terceiros apenas a partir do registro (ressalte-se, facultativo) da união estável no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais. Com o disposto no Provimento, estimula-se o registro e a consequente publicidade em relação a terceiros, com o propósito de imprimir mais segurança jurídica à situação fática. Trata-se, no entanto, de ponto polêmico, pela imputação genérica de atribuição, ainda sem precisar os efeitos advindos pelo tempo dessa forma de concretização; por ora, não dispensa uma análise mais acurada no decorrer da prática. Pelo visto, nos termos do artigo 9º-A, caput13, acrescido ao Provimento n. 37/2014, será admissível o processamento do requerimento firmado por ambos os companheiros, sem especificar a exigência do reconhecimento de firma (por autenticidade ou simples) destinado ao pedido de alteração de regime de bens, mediante a instauração de procedimento administrativo com a respectiva averbação no registro da união estável no Livro Especial. A partir da redação do Provimento, é possível extrair duas conclusões: primeira, para ser viável a alteração, a união estável precisará estar devidamente registrada no Livro "E" (registro de natureza facultativa14), pois é o registro que concederá efeitos perante terceiros à respectiva alteração; e, segundo, essa alteração será efetuada por um procedimento, em que o oficial analisará e deferirá (ou não) o requerimento, após exame deste e dos documentos apresentados pelos companheiros, cujo rol consta do artigo 9º-B15. Outrossim, insta destacar, a norma procedimental determina inclusive que, caso a certidão de que trata o inciso IV, do art. 9º-B ("certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos") seja positiva - isto é, um dos companheiros for interditado-, a alteração de regime de bens somente poderá ocorrer na via judicial, assegurado o resguardo aos incapazes e terceiros de boa-fé. Da mesma forma que outros procedimentos, a alteração do regime de bens poderá correr diretamente perante o ofício em que se encontra registrada a união estável no Livro "E", ou ser recepcionada em qualquer registro civil nacional, com encaminhamento à serventia responsável pelo registro por meio do módulo "e-Protocolo", da CRC-Nacional, nos termos do § 6º16 do referido artigo 9º-A. Por fim, o Provimento dispõe no § 4º do 9º-A: "o novo regime de bens produzirá efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese"; ou seja, havendo o efeito ex nunc, acrescentando, ainda, que, "se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros". Do procedimento de certificação eletrônica de união estável  Um grande imbróglio envolvendo a união estável, justamente por ser situação eminentemente fática que não obriga instrumentalização ou formalização, consiste na fixação do termo inicial da união, em virtude de declaração tardia feita pelos companheiros, cuja materialização usual visualiza-se no momento da sua conversão em casamento. Explicitando melhor: muitos companheiros vivem há anos, talvez décadas, em uniões estáveis, gerando filhos e construindo um patrimônio em comum, sem a preocupação em documentar a convivência. As razões são as mais variadas, desde pessoas "desquitadas" (pela nomenclatura atual, separadas) que não efetivaram a dissolução do matrimônio - o que impede um novo casamento antes de encerrado o vínculo -, ou, simplesmente, por não desejarem se unir pelo casamento. No entanto, reflexões sobre o futuro da relação, planejamento sucessório, direitos previdenciários, entre outras, fazem com que muitos casais busquem regulamentar, de forma expressa, a vigente situação familiar. Até a vigência da lei 14.382/2022, a maioria das decisões judiciais convergia no sentido de não ser possível a retroação da data de início da união por mera declaração dos conviventes, sendo necessária a formação de um processo judicial com amplitude probatória a fim de fixar seu termo inicial.  A fixação do marco temporal inicial da convivência tem seu principal reflexo no regime de bens. O exemplo contumaz que a prática denota é a hipótese em que um (ou ambos) dos companheiros já tenham completado 70 (setenta) anos: novamente, faz-se uma correspondência ao casamento, uma vez que, tanto na elaboração da lavratura da escritura pública declaratória, quanto na conversão em casamento, por questões etárias, há a imposição17 do regime da separação obrigatória de bens, nos termos do artigo 1.641,18 inciso II, do Código Civil. Com isso, casais que conviviam em união estável não formalizada (a quem aplicar-se-ia, conforme já mencionado, o regime legal da comunhão parcial de bens), viam-se acuados a adotarem um outro regime, da separação obrigatória, a partir do momento da formalização. A discussão da imposição do regime da separação obrigatória de bens é tão relevante que o Supremo Tribunal Federal decidirá se é constitucional a aplicação desta regra para os casamentos e, consequentemente, para as uniões estáveis. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236) do Supremo Tribunal Federal. No Estado de São Paulo há decisões19 no sentido da possibilidade da lavratura de escritura pública em que as partes declarem que a união remonta a data anterior, com a escolha de regime de bens outro que não o impositivo, resguardadas conjunturas em que se evidencia o interesse fraudulento do casal20. Por ser da própria essência da união estável sua concretização com o decorrer do tempo21, tendo a convivência more uxorio se iniciado anteriormente à referida faixa etária, é natural que, ao verificar a necessidade de documentar a união, os companheiros não desejem ter sua vontade tolhida, com a imposição de um regime protetivo que pode estar em desacordo com seus anseios. Outra polêmica surge caso seja da vontade do casal converter sua união estável em casamento, sem a imposição do regime protetivo: ainda que possuíssem documento escrito firmando data anterior, por uma questão de segurança jurídica, os companheiros eram direcionados a buscar o reconhecimento pretérito da união perante o Poder Judiciário, fazendo uso de todas as provas em direito admitidas para demonstrar a longevidade da convivência, como prova testemunhal, registro de nascimento de filhos em comum, contas conjuntas bancárias, fotografias, etc.22 Em outras palavras, a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça23, já reconheceu a possibilidade de conversão da união estável em casamento com a opção por regime que não a separação obrigatória de bens caso os companheiros já convivessem anteriormente, mas essa possibilidade não é autoaplicável ou automática, uma vez que os efeitos das decisões são inter partes. No Estado de São Paulo, por exemplo, há decisões locais em sentido contrário24, sendo necessário que o casal buscasse judicialmente o reconhecimento prévio da união, para somente após realizar a conversão em casamento por regime diverso do impositivo. A lei 14.382/2022, pelo § 6º, artigo 70-A, incluído na Lei de Registros Públicos, a fim de contribuir para a resolução dessa questão, criou o chamado "Procedimento de Certificação Eletrônica de União Estável" realizado perante oficial de registro civil, no presente devidamente regulamentado, nos termos do descrito no artigo 9º-F, acrescido pelo Provimento n. 141/2023 ao Provimento n. 37/2014. Por meio dessa espécie de procedimento administrativo, a requerimento dos interessados, caberá ao registrador civil das pessoas naturais aferir e consolidar o termo inicial e final da união estável, mediante entrevista pormenorizada junto aos companheiros (§§ 3º e 4º do art. 9º-F), bem como tecnicamente observar o contexto probatório apresentado pelos conviventes (§ 2º), inclusive testemunhal (§ 3º), de modo a atestar o respectivo tempo de convivência25, garantida a segurança jurídica inerente aos atos registrais. E, como consequência dessa certificação, será possível aos conviventes maiores de 70 (setenta) anos afastar a imposição do regime da separação obrigatória de bens26, caso  decidam fazer a conversão da união estável em casamento27, sem necessidade de processo judicial, mediante um procedimento administrativo a ser realizado diretamente no RCPN. A análise probatória documental em sede de procedimentos administrativos não é algo totalmente inédito aos registradores civis de pessoas naturais, que já possuem essa atribuição em outras situações, como em procedimentos de retificação, de alteração de patronímico, de alteração de nome e gênero (Provimento n. 73 do CNJ), de alteração de nome e sobrenome (as novíssimas possibilidades incluídas pela lei Federal 14.382/2022). Vale ressaltar, em certos casos, até mesmo o exame probatório efetuado pelos Oficiais Registradores é considerado acurado e minucioso, abarcando outras provas lícitas em direito admitidas, além da documental, como nos procedimentos de registro tardio (Provimento 28/2013, do CNJ) e no procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63/2017, do CNJ) mediante apuração e critérios objetivos, por intermédio da verificação provas e de declarações dos interessados. Assim, a possibilidade de certificação eletrônica de união estável perante os registradores civis apresenta-se como potencial instrumento de desjudicialização, ao solucionar questões pontuais da união estável, inclusive possibilitando àqueles que já convivem fazer constar a data de início e eventual término da união em seus documentos, e até mesmo na conversão da união estável em casamento. Considerações finais O Registro Civil das Pessoas Naturais acompanha a evolução da sociedade e da família, buscando resguardar a todos, sem distinção, e com atenção voltada a servir a comunidade abarcada pelos serviços registrais. As recentes atribuições concedidas à esfera registral, sem dúvida, prestigiam e reconhecem a colaboração e a projeção nacional inexorável, bem como a dedicação dos oficiais civis em fornecer segurança jurídica e, principalmente, segurança social aos diversos núcleos familiares da sociedade brasileira. Ressalta-se que as novas atribuições representam apenas mais uma via de acesso à consolidação da formalização do núcleo familiar dos conviventes em união estável, não havendo intenção conflitual de competência entre as especialidades do extrajudicial. Portanto, tece-se o convite à reflexão, em homenagem às palavras do registrador imobiliário João Pedro Lamana Paiva: "É através dos debates que novas ideias germinam e outras já existentes tornam-se mais acuradas"28, dito em prestígio a todo o trabalho desenvolvido pelas serventias extrajudiciais no Brasil, referência ao destaque alcançado, fruto da confiança depositada pela sociedade, pelos representantes do Congresso Nacional e pelos membros do Poder Judiciário nos serviços desempenhados pelos inúmeros ofícios situados no país. __________ 1 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela lei Federal 14.382, de 27 de junho de 2022, art. 94-A, caput: "Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: [...]." 2 BRASIL, Lei Federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 1º, caput, com redação dada pela lei 6.216, de 30 de junho de 1975: "Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei." 3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023. 4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 226, § 3º:  "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." 5 Desse modo, "a posse do estado de casado, por si só, não equivale a casamento. É uma situação de fato, de vivência more uxorio, que serve como prova de casamento que tenha sido efetivamente celebrado. Sem esse antecedente, a mera situação fática da posse do estado de casado seria, eventualmente, uma união estável", que poderia converter-se em casamento a pedido das partes. Os elementos que caracterizam a posse do estado de casados são: a) nomen, indicativo de que a mulher usava o nome do marido; b) tractatus, de que se tratavam publicamente como marido e mulher; c) fama, de que gozavam da reputação de pessoas casadas. A rigor, a posse do estado de casados não constitui prova das justas núpcias, visto não se admitir presunção de casamento. Não se pode considerar existente a união conjugal pelo fato de conviverem e coabitarem duas pessoas e terem filhos. É difícil distinguir a sociedade conjugal de uma união estável, pois que esta também se caracteriza pelos três elementos suprarreferidos: nomen, tractatus e fama. O que distingue as duas situações é a prova da celebração, que deve existir, sob pena de toda união estável ser tida como casamento. Faculta-se a prova subsidiária de sua realização, justificada a falta do registro. A posse do estado de casados constitui, pois, prova hábil da celebração do casamento quando tem cunho confirmatório, não se prestando a tanto quando desacompanhada de outra prova do ato". (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, Direito de família. Vol. 6. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 45). 6 BRASIL. Lei Estadual n. 11.331, de 26 de dezembro de 2002. Tabela I, atualizada para 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023. 7 Certidões civis de nascimento ou casamento (de preferência atualizadas, com emissão nos últimos 90 dias), comprovante de residência e documentos pessoais dos declarantes. 8 ARPEN Brasil. Considerações acerca da lei 14.382/2022. Disponível aqui. Acesso em: 22/03/2023. 9 A partir da data 29/03/2023, foi disponibilizada ferramenta para realização das cargas e consulta dos termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável lavrados desde a edição da lei 14.382/2022 nos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Disponível aqui. Acesso em: 29 mar 2023. 10 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.640: "Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial." 11 BRASIL. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.639, § 2º: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". 12 Dentro da própria Corte do Superior Tribunal de Justiça, foi possível visualizar tal divergência, no julgamento do Recurso Especial n. 1.845.416, em que o Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze defendeu ser possível a retroação do regime de bens, quando formalizado pelos conviventes em documento público declaratório de união estável, no qual expressaram viver com patrimônios separados desde o início do relacionamento. A Ministra Nancy Andrighi, em voto divergente, acompanhado pelos demais Ministros da Terceira Turma, posicionou que a união estável nasce no regime da comunhão parcial de bens por imposição legal e, no decorrer da conjugalidade, pode tomar outra forma patrimonial, desde que pactuada, e com efeitos prospectivos. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.845.416  - Mato Grosso do Sul, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/08/2021, DJe 24/08/2021). 13 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, caput: "É admissível o processamento do requerimento de ambos os companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público." 14 "Repise-se que a união estável não prescinde do instrumento jurídico de materialização para alcance dos seus efeitos legais, entretanto há notório benefício aos companheiros, bem como aos terceiros, na confecção de documento com tal propósito, que pode ou ser não registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais (como a própria confecção do instrumento, também é facultativo o registro, mas importantíssimo para fins de publicidade e amplo conhecimento de terceiros). [...] Reforça-se ainda que o ato de publicidade do termo declaratório com o ingresso no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm sua residência não é automático ou obrigatório, mas recomenda-se fortemente que seja realizado, pois é exatamente da publicidade do termo que terceiros poderão ter conhecimento da união estável e dos contornos jurídicos entabulados." (PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. O Termo Declaratório da União Estável - Da materialização do instrumento aos efeitos jurídicos possíveis. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2023). 15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-B: "Para instrução do procedimento de alteração de regime de bens previsto no art. 9º-A, o oficial exigira' a apresentação dos seguintes documentos: I - certidão do distribuidor cível e execução fiscal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); II - certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; III - certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; IV - certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos; V - conforme o caso, proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar." 16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-A, § 6º: "O requerimento de que trata este artigo pode ser processado perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de livre escolha dos companheiros, hipótese em que caberá ao oficial que recepcionou o pedido encaminhá-lo ao ofício competente por meio da CRC". 17 O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado sobre o tema, desde antes da mudança do limite etário, no sentido de que há extensão do normativo protetivo do idoso aos companheiros, decidindo que, "por força do art. 258, § único, inciso II, do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002), ao casamento de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o regime de separação obrigatória de bens. Por esse motivo, às uniões estáveis é aplicável a mesma regra, impondo-se seja observado o regime de separação obrigatória, sendo o homem maior de sessenta anos ou mulher maior de cinquenta". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 646.259 - Rio Grande do Sul, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 24/08/2010). 18 BRASIL. Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2022 (Código Civil), art. 1.641: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial". 19 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1000633-29.2016.8.26.0100. Parecer 220/2016-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria Iberê de Castro Dias, aprovado pelo Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, DJe 21/11/2016. 20 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Câmara Especial. Recurso Administrativo n. 0048142-07.2015.8.26.0100. Des. Rel. Renato de Salles Abreu Filho, julgado em 07/08/2017. 21 "A união estável, como situação de fato não se sujeita a nenhuma solenidade. Normalmente, concretizar-se-á com o decorrer do tempo, pois não há como saber previamente se ela será duradoura e estável. Dessa forma, eventual contrato de convivência pode ser formalizado a qualquer momento, seja na sua constância seja previamente ao seu início. Isso se justifica, pois, como não se submetem às solenidades e rigores do casamento, os conviventes possuem maior liberdade para decidir o momento em que vão celebrar o contrato. Além disso, o que não é proibido ou contrário à lei, presume-se permitido." (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.383.624 - Minas Gerais, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 02/06/2015, DJe 12/06/2015). 22 Interessante mencionar que a Lei Federal n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, já contemplava uma situação análoga, em seu artigo 45, in verbis: "Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existentes antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no artigo 258, parágrafo único, nº II, do Código Civil." 23 No ano de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, excepcionando a regra legal que impõe o regime da separação obrigatória, afastou "a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico". (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1318281 - Pernambuco, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 01/12/2016, DJe 07/12/2016). 24 O recorrente nasceu em 7 de novembro de 1943 (fls. 3) e completou setenta anos de idade no ano de 2013. Em razão disso, para o casamento é obrigatória a adoção do regime da separação de bens, sendo, portanto, cogente a observação do disposto no inciso II do art. 1.641 do Código Civil [.] Neste caso concreto, essa solução não é alterada pela alegação de anterior manutenção de união estável em que adotado o regime da comunhão universal de bens. Assim porque a escritura declaratória de união estável, com adoção do regime da comunhão universal de bens, foi lavrada em 12 de setembro de 2018, nas páginas 51/52 do Livro n. 1.344 do 18º Tabelião de Notas da Capital (fls. 5/6), quando o recorrente já tinha completado mais de setenta anos de idade. No que tange ao conteúdo, ou seja, ao fundo das declarações de vontade das partes reproduzidas na escritura pública, não existe presunção de veracidade decorrente da fé pública do tabelião, mas somente presunção de que essas declarações foram, efetivamente, manifestadas ao Tabelião de Notas. [.] Por outro lado, a natureza administrativa do procedimento de habilitação de casamento não autoriza o uso de fotografias para a comprovação de que a união estável teve início quando o companheiro não tinha completado setenta anos de idade. Resta aos nubentes, diante disso, valer-se da ação jurisdicional adequada para eventual autorização do casamento com adoção de regime de bens distinto do legal. (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Corregedoria Geral de Justiça. Processo 1107198-46.2018.8.26.0100. Parecer 267/2019-E da lavra do Juiz Assessor da Corregedoria José Marcelo Tossi Silva, aprovado pelo Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, julgado em 24/05/2019). 25 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-F, caput: "O procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil autoriza a indicação das datas de início e, se for o caso, de fim da união estável no registro e é de natureza facultativa (art. 70-A, § 6º, lei 6.015, de 1973)." 26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-D, § 3º: "Não se aplica o regime da separação legal de bens do art. 1.641, inciso II, da Lei nº 10.406, de 2002, se inexistia essa obrigatoriedade na data indicada como início da união estável na forma do inciso III do art. 9-C deste Provimento ou se houver decisão judicial em sentido contrário". 27 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n. 141, de 16 de março de 2023, art. 9º-C, caput e inciso III: "No assento de conversão de união estável em casamento, devera' constar os requisitos dos arts. 70 e 70-A, § 4º, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, além, se for o caso, destes dados: [...] III - a data de início da união estável, desde que observado o disposto no art. 1º, §§ 4º e 5º, deste Provimento." 28 Entrevista concedida ao Jornal do Notário em jan/fev 2023. Colégio Notarial do Brasil. Conheça o registrador de imóveis e especialista em adjudicação compulsória: João Pedro Lamana Paiva. Jornal do Notário, ano XXV, n. 213, jan/fev 2023, p. 17.
O sistema Justiça deu mais um passo a favor da desjudicialização, ao editar a Lei 14.382, de 27.7.2022, que - dentre outras providências - permitiu que o Registro Civil das Pessoas Naturais proceda à formalização da união estável. No âmbito do Poder Judiciário, a questão restou pacificada, com a edição do Provimento 141, de 16.3.2023, pelo Conselho Nacional de Justiça, após frustrada a suscitação de inconstitucionalidade do dispositivo autorizador. Hoje, os interessados em tornar certa a união estável, situação jurídica reconhecida mediante preenchimento de requisitos consolidados na legislação, doutrina e jurisprudência, contam com três portas de acesso à segurança jurídica. A união estável pode ser reconhecida por sentença judicial, mediante escritura pública lavrada num Tabelionato de Notas e, a novidade recente, mediante mera declaração ao Registrador Civil das Pessoas Naturais. É saudável o trato que o CNJ conferiu à previsão normativa, porque prestigia a mais democrática dentre as delegações extrajudiciais, aquela de que todos os humanos obrigatoriamente se servem. Todas as pessoas nascem, muitas se casam ou estabelecem uniões estáveis, ninguém está excluído de morrer, após curta ou longa permanência neste planeta. Os assentos realizados pelo Registro Civil das Pessoas Naturais são imprescindíveis a que alguém juridicamente exista, prove seu status familiar, possa exercer em plenitude a sua cidadania. O mais importante acervo de dados sobre os brasileiros é, paradoxalmente, o serviço menos reconhecido pelo Estado. O governo obriga o titular da serventia a proceder gratuitamente a um serviço que tem um custo. Essa cortesia deveria ser compensada pelo Estado, que não quer cobrar do usuário, mas não suportado pelo sistema extrajudicial. Sustento, há muito tempo, que a relevância dos préstimos a cargo do Registro Civil das Pessoas Naturais deveria merecer mais acurada atenção de parte do Estado. Cheguei a sugerir que tal serviço fosse o encarregado da função estatística hoje confiada a um recenseamento que, ou não acontece, ou - quando se realiza - registra inúmeras falhas. Uma etapa importante na trilha da valorização, ocorreu quando se editou a lei 13.484/17, que transformou o Registro Civil das Pessoas Naturais em "ofício de cidadania". É uma válvula aberta à multiplicação de atribuições, pois ele pode concentrar atividades correlatas e melhor servir para a consolidação da democracia participativa. Espera-se dela mais ambiciosos frutos. Desde a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, constatou-se notável incremento da eficiência das atuais delegações extrajudiciais, na mais inteligente estratégia do constituinte, ao elaborar o exitoso sistema previsto pelo artigo 236 do pacto fundamental. A receita alicerçada na inspiração da iniciativa privada fez deslanchar o uso das inovações tecnológicas e não se reconhece, nas atuais unidades delegadas, a figura do antigo cartório. O próprio Judiciário não conseguiu acompanhar, com idêntico ritmo e ousadia, a evolução verificada no setor extrajudicial. A capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais e a circunstância de atender, indistintamente, a todos os seres humanos, já o tornou a única presença do Estado brasileiro em inúmeras localidades. Distritos, povoados, vilarejos que não dispõem de polícia, muito menos de qualquer outra autoridade, contam com o desvelo de profissionais que atendem a questões múltiplas e que refogem ao âmbito estritamente registral ou jurídico. Assim como acontece com os titulares das demais delegações - Registro Civil das Pessoas Jurídicas, Registro de Títulos e Documentos, Registro de Imóveis e Notariado de Notas e de Protesto - o delegatário do Registro Civil das Pessoas Naturais é recrutado por um concurso árduo e exaustivo, realizado pelo Tribunal de Justiça. Por todas as razões, incumbir o Registrador Civil de receber o termo declaratório de união estável é o reconhecimento de que esse profissional vem se desincumbindo com zelo de seus misteres e tem condições de merecer novas atribuições. Enfatize-se, em reiteração, que resta aberta a possibilidade de se recorrer ao Judiciário convencional e ao Tabelião de Notas. Uma tríplice opção aberta à cidadania a fará escolher a que melhor vier a lhe servir. Com a vantagem de que o Registro Civil das Pessoas Naturais está em todos os rincões do Brasil, até os mais recônditos, o que o credencia a se converter na alternativa única à disposição do usuário. Nenhum risco à segurança jurídica, pois a dissolução da união estável, à luz do artigo 733 do CC, reclamará assistência de advogado. Raro momento de se aplaudir Parlamento e CNJ, irmanados na simplificação da vida cidadã e atentos às reais necessidades da população.