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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Resumo A Corregedoria Nacional de Justiça, dentro de suas atribuições de expedir atos normativos, deveria reforçar o sistema notarial e registral, procedendo a uniformização da regulamentação nacional sobre o tema da ética, compliance, governança e política de integridade dos notários e registradores, em razão de diminuta, desarmônica ou ausente normatização, das Corregedorias locais, de modo a avançar o obstáculo do corrompimento da ética, oferecendo previsibilidade de procedimentos e condutas.  Introdução  O notário e o registrador cumprem a sua função social de promover e auxiliar o Estado nas funções que este lhe delegou, fundado: na confiança que a sociedade tem sobre as instituições notariais e registrais de fé pública, por sua atuação técnica e especializada, primado pela imparcialidade; no controle da legalidade; na segurança jurídica e previsibilidade de seus atos e procedimentos; e na fiscalização censória dos seus atos pelo Poder Judiciário. O notário e o registrador nas suas atividades prestam um serviço de interesse público, sujeitam-se a submissão ao controle, regulação estatal, fiscalização censória e transparência (accountability). Assim, o Estado e a população em geral, devem ter mínimas garantias sobre a efetiva imparcialidade e integridade dos notários e dos registradores, para salvaguarda do princípio da proteção da confiança nas delegações extrajudiciais, congruente do princípio da segurança jurídica. A implantação do instrumento de compliance e da governança, se mostram meios hábeis garantidores da confiança pública depositada nestes profissionais, com uma rigorosa política de ética, desde que tenha efetiva fiscalização, seja por auditoria privada interna ou externa, ou por auditoria pública via correição judicial, para eventual aplicação de sanção a aquela minoria de profissionais faltosos.    A Agenda 2030, da ONU - Organização das Nações Unidas1, propõe um plano de ação, no sentido que deve ser implementado mecanismos que concretizem os Objetivos e Metas de Desenvolvimento Sustentável, em especial os itens: Objetivo 16.5. Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas e 16.6. Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis. Diante disso, o Colégio Permanente de Corregedores-Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil (CCOGE), reuniu-se presencialmente em assembleia geral no 89º Encontro do Colégio Permanente de Corregedores-Gerais de Justiça (ENCOGE), realizado em 18/10/2022, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e, aprovou, à unanimidade, o seguinte enunciado: 8. Incentivar a capacitação das serventias extrajudiciais em programas de compliance e governança. Compliance nada mais é que estar de acordo com a ética, obedecer aos preceitos legais e normas de conduta, agir com cuidado e diligência.  Para Débora Ribeiro de Sá Freire: "O termo compliance origina-se do verbo inglês "to comply", que significa cumprir, obedecer, observar, satisfazer, enfim, alcançar o que lhe foi imposto. É o dever de estar em conformidade com as leis, diretrizes éticas, regulamentos internos e externos, a fim de minimizar os riscos vinculado à reputação além do risco legal/regulatório". Sobre a estrutura do regime de conformidade (compliance) discorre Modesto Carvalhosa: "A abrangência do regime de conformidade no combate à corrupção tanto aquela interna, como a privada e a pública é retratada na Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção, de 2003, ao impor aos Estados signatários o dever de implantar medidas de prevenção de atos corruptivos mediante transparência contábil e auditoria interna; transparência nas relações com o mercado; os códigos de governança corporativa para a prevenção de conflitos de interesses, tendo por objetivo fortalecer a ética e a visibilidade da gestão".2 O direito a boa governança é um direito difuso, onde a sociedade deve vindicar dos agentes públicos, inclusive os agentes públicos delegados, que direcionem os seus atos a obediência do Estado de direito, em proteção aos direitos humanos3, sem corrupção e com probidade, obrigando a ordem jurídica possuir meios para zelar pela lisura de condutas, reprimindo, sancionando os faltosos, consolidando-se o vínculo de combate à corrupção a defesa da própria democracia. Das condutas atentatórias às instituições notariais e de registro  É vedado ao notário e ao registrador, ter conduta atentatória às instituições notariais e de registro (Art. 31, II, da lei 8.935/94), em especial proceder à captação predatória de clientela eivada de improbidade e ausência de integridade. Sobre a necessidade premente de combater captação antiética de clientela em prejuízo a instituição notarial, discorre Luiz Guilherme Loureiro: "Qualidades como a boa-fé, a confiabilidade e o altruísmo, como vimos, são inerentes às profissões e não aos indivíduos que as compõe: em qualquer profissão existem profissionais desonestos e movidos por sentimentos puramente egoísticos. E quanto o menor risco de penalização, maior a probabilidade da prática do ilícito. Como ensina a sabedoria popular: "a ocasião faz o ladrão". [...] Já passou da hora de combater efetivamente essa conduta que tanto prejuízo causa a idoneidade, confiabilidade e coesão do notariado, mediante a aplicação de sanções razoáveis e proporcionais à sua gravidade e reprovabilidade. A nosso ver os notários prejudicados podem exigir (...) dos órgãos fiscalizadores as medidas cabíveis para a identificação dos autores de ilícitos e aplicação da sanção". Além da conduta atentatória as instituições notariais e de registro, a interferência na livre escolha a usuário do serviço público, praticando condutas oblíquas e indignas (Art. 30, V e 31, V, da lei 8.935/94), que induzam a clientela não frequentar serventias extrajudiciais que estão em período de interinidade, tem por consequência obstrução e diminuição a receita dos cofres públicos, ação essa não íntegra, que deve ser repudiada e reprimida, em razão da opção de uso do cargo para realização de desejo pessoal imoral e não íntegro. É necessário que a Corregedoria Nacional de Justiça fiscalize, adote as medidas normativas e outras que sejam necessárias, para caracterizar como infrações dentre outras, os seguintes atos e condutas atentatórias as instituições notariais e de registro, quando intencionalmente cometidos por notários e registradores: (i) a cobrança indevida ou excessiva de emolumentos, ainda que sob a alegação de urgência; (ii) a pratica, no exercício da função ou fora dela, de atos que comprometam a dignidade, a honra, o decoro, a integridade, a imparcialidade, a probidade e o prestígio do cargo, negligenciando o cumprimento de seus deveres, de modo a preservar a confiança da sociedade nas instituições notariais e de registro; (iii) a pratica de ato fora do limite territorial de sua delegação; (iv) a utilização de estratégias mercadológicas de captação de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de uma economia de mercado, como, a exemplo da redução de emolumentos, das práticas que configurem concorrência desleal em prejuízo da distribuição ou da livre escolha do serviço pelo usuário e nem a outros instrumentos não conformes à dignidade e ao prestígio da profissão; (v) o oferecimento de comissões, subornos ou vantagens indevidas a corretores de imóveis4, a advogados, a incorporadores imobiliários ou a pessoas alheias à atividade notarial ou registral com o objetivo de angariar serviço; e, (vi) A concessão, a promessa, o pedido, a aceitação ou recebimento  intencional, de qualquer vantagem ou benefício indevido, em seu proveito próprio ou de outra pessoa, a fim de praticar ou se abster de praticar um ato no desempenho das suas funções oficiais, não previsto na legislação. Outra questão que deve ser abordada, seria exigir que as empresas fornecedoras de programas de informáticas operacionalizado pelas serventias extrajudiciais, cumpram o requisito de ter programas de compliance e governança, para que estes não sejam utilizados como instrumentos de conduta antiética, tais como sistema de caixa paralelo desconforme, planilhas e relatórios de cálculo mensal de pagamento de comissões a pessoas alheias a atividade extrajudicial. Da necessidade de capacitar as serventias extrajudiciais em programas de compliance e governança  Os serviços extrajudiciais deverão promover programas de formação e capacitação que lhes permitam cumprir os requisitos de desempenho correto, íntegro, probo, honroso e devido de suas funções e lhes proporcionem capacitação especializada e apropriada para que sejam mais conscientes dos riscos da corrupção inerentes ao desempenho de suas funções. O Programa de Integridade, é definido no Art. 56, do decreto 11.129, de 11/07/2022, que dispõe  in verbis: "programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I - prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II - fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional". É necessário criar nas serventias extrajudiciais de forma preventiva e vigilante, dentro do dever de cuidado nos notários e registradores, que cultivem mecanismos de procedimento interno de programas de integridade como garantia de correto funcionamento, a integrar o planejamento estratégico e gerenciamento de risco das serventias, com o propósito básico de se evitar o cometimento de ilícitos e atos lesivos.   A implantação do programa de integridade, é também uma forma de prevenção e restrição de responsabilidade dos notários e registradores, por atos cometidos por seus funcionários, pois não existindo esse programa, em eventual cometimento do ilícito por estes prepostos, certamente será avaliada o grau de omissão, do dever de cuidado e de vigilância deste agente público, que será objeto de responsabilização. Evidentemente, os programas não criam barreiras insuperáveis ao ilícito, mas devem, mostrar-se como elemento restritivo do ilícito e do ato lesivo. Da promoção pelas entidades de classe e a cultura da ética  As entidades de classe, com muito zelo e galhardia vêm difundindo a importância da ética aos seus associados, repelindo condutas ilícitas, seja por meio de seus próprios estatutos, seus códigos de condutas éticas ou cartilhas. Porém, infelizmente alguns poucos profissionais antiéticos de aguda ganância, não cumprem os seus deveres, sujeitando o associado a processo administrativo no âmbito da entidade de classe, por conduta antiética, com a garantia do devido processo legal, que se eventualmente punido, este associado terá como penalidade máxima a expulsão do quadro de associados. Desafortunadamente a penalidade de expulsão de uma associação, que por preceito constitucional (Art. 5º, inciso XX), ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado, não coíbe práticas maléficas. O Código de Ética e Disciplina Notarial, do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, dispõe: "Art. 4º - É defeso ao tabelião, dentre outras situações previstas na legislação notarial: I - praticar ato fora do limite territorial de sua delegação; II - cobrar em excesso, oferecer descontos, reduções ou isenções dos emolumentos, salvo em decorrência de convênios institucionais; III - oferecer vantagem a pessoas alheias à atividade notarial com o objetivo de angariar serviço; (...) IV- oferecer ou receber qualquer valor não previsto na legislação, exceto a contraprestação ou reembolso por serviços necessários ao preparo e ao aperfeiçoamento do ato notarial; (...)VIII - angariar serviços para si ou para terceiros, direta ou indiretamente, a não ser por sua própria capacidade profissional". Já o Código de Ética, da Associação dos Notários e Registradores do Brasil - ANOREG/BR, dispõe: "Art. 3º - Os deveres fundamentais dos notários e registradores abrangem, além daqueles previstos nos Estatutos da entidade nacional e os inerentes aos atos de seu oficio, mais os seguintes: I - dignificar o exercício de suas funções; II - zelar pelo prestígio da classe e pela dignidade da função de notário e registrador; III - zelar pela observância da ética profissional dos notários e registradores; (...) Art. 4º - São deveres mútuos entre notários e registradores: VI - não se permitir a concorrência desleal: - em prejuízo da distribuição ou da livre escolha do serviço pelo usuário; - aviltando o preço dos serviços ou o valor dos emolumentos legalmente devidos; - anunciando ou propagando a supremacia de seus serviços sobre os dos demais notários e registradores". É louvável a iniciativa da Anoreg BR que produziu uma cartilha de Boas Práticas de Compliance para os cartórios, e assim discorre: "Os Cartórios se tornaram referência no Brasil na prestação de serviços com qualidade. Contudo, é possível avançar: os Cartórios podem se tornar a referência nacional em Ética e Integridade e para isso precisam adotar um programa de Compliance e Integridade consistente que siga as regras da Legislação Anticorrupção (lei 12.846/13 e decreto 8.420/15) e as boas práticas reconhecidas, tal como as diretrizes do ISSO 37001 (Sistema de Gestão Antissuborno). Importante frisar, que as entidades de classe, sempre auxiliaram os Cartórios brasileiros a promover a cultura da ética, e por disposição estatutária estão sempre disponíveis a contribuir em elaborar estudos, destinados a aprimoração dos serviços prestados pelos notários e registradores. Da desarmônica normatização sobre ética, compliance e governança dos serviços extrajudiciais dada pelas corregedorias locais  Infelizmente não há uma simetria normativa e entre os provimentos editados pelas Corregedorias Estaduais. Existe uma desarmônica normatização sobre o tema ética, compliance e governança nos serviços extrajudiciais, e alguns Códigos de Normas sequer tocam no assunto.   Existem algumas disposições normativas neste sentido, a título de exemplo citamos: (i) CGJ-MT - Provimento número 21, de 09/06/2021 - Institui o código de ética e de conduta dos responsáveis pelas serventias extrajudiciais do Estado do Mato Grosso; (ii) CGJ-PE - Código de Normas, seção II - Da Ética Profissional; e, (iii) CGJ-SP - Código de Normas, Capítulo XVI - Do Tabelião de Notas, Artigos 1º ao 5º. Da necessidade de a corregedoria nacional de justiça dar uma uniformização regulatória, sobre o tema compliance e governança nos serviços extrajudiciais  É necessário que o Conselho Nacional de Justiça, dê uma uniformização regulatória nacional, sobre o tema da compliance e governança nos serviços notariais e de registro, estabelecendo programas de cumprimento e deveres de integridade, determinando a implantação e a implementação de sistema de controles internos nas serventias extrajudiciais, sob a técnica dos compliance programs, dispondo sobre procedimentos internos de prevenção a corrupção e outras condutas desconformes. Porém, não basta normatizar em âmbito nacional, é necessário constantemente que todos os órgãos censores do Poder Judiciário, efetivamente fiscalizem e adotem medidas para reforçar a integridade, a governança e evitar toda oportunidade de corrupção, pelas unidades do serviço extrajudicial. Pois, acaso não se fiscalize, estamos diante de um programa meramente formal ou de fachada (window-dressing Compliance program), que nada contribui com à ideia de prevenção, acabando não surtir nenhum efeito.   Observando, que sempre que houver violação normativa, importará em abertura de processo administrativo disciplinar, para a aplicação de penalidade compatível à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, levando-se em conta a gravidade e os efeitos da conduta praticada. Considerações finais  É improrrogável evoluir em termos normativos e fiscalizatório no manejo de programas de compliance e governança nos serviços extrajudiciais, reprimindo uma diminuta parcela de profissionais que violam e corrompem o sistema. A questão que traz desafio, é colocar uma lente para achar aonde a opressão está, e quais são os pontos de obstáculo em que não se consegue avançar, pois essa dor que nos mobiliza, nos faz querer transformar e mudar.  A inércia, de feições trágicas para a grande maioria de notários e registradores, profissionais vocacionados, que tem as mãos limpas e o coração puro, trabalhando noite e dia para não lhes faltar o pão, empregando esforços em defesa da lei, da ética, da justiça e no cumprimento da lei, em contraponto ao forte sentimento de visível ganância, vaidade e de aguda deslealdade. A nossa inculta mente, de modo particular não consegue responder, se essa injustiça, deixará de triunfar como injustiça, quando? O que se deverá então fazer se o direito daquele profissional vocacionado for torpemente desprezado e pisado? Este profissional vocacionado, deve ser tolerante à agressão contra a sua pessoa, seus colaboradores, os seus pares de profissão e ao seu direito, ficar inerte, ser comodista, ser indolente e não lutar pelo respeito ao seu direito e a palavra da lei? Ou, ficar aguardando confiante (de preferência sentado), crendo que com o passar do tempo, a justiça, fundada em flores de poesia romântica e cânticos angelicais, de belos atributos, tais como: verdade, ética, sinceridade, lealdade, honra e fé piedosa, não será mais arbitrariamente violada e um dia será traga a luz solar, em prol da paz? Vence-me quem conseguir responder a isso.  Referências  CARVALHOSA, Modesto Carvalhosa. Considerações sobre a lei anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 327. FREIRE, Débora Ribeiro de Sá. Compliance nos Cartórios: instrumento garantidor na confiança depositada no notário pelos cidadãos, empresas e Estado? Revista Brasileira de Direito Empresarial. E-ISSN: 2526-0235, 05.05.2016, pág. 12. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de Direito Notarial. Salvador: JusPODIVIM, 2020, p. 346. RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1181. __________  1 Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Acesso em 06 de março de 2023. 2 FREIRE, Débora Ribeiro de Sá. Compliance nos Cartórios: instrumento garantidor na confiança depositada no notário pelos cidadãos, empresas e Estado? Revista Brasileira de Direito Empresarial. E-ISSN: 2526-0235, 05.05.2016, pág. 12. 3 Sobre o impacto da corrupção nos direitos humanos discorre André de Carvalho Ramos: "Na área de direitos humanos, a corrupção pública pode gerar grande impacto nocivo na implementação de direitos (pela perda de eficiência do Estado e ainda aumento dos gastos) e na própria democracia, por aumentar a descrença nos agentes públicos e desconfiança das suas reais finalidades no momento de propor e concretizar políticas e obras públicas. Já a corrupção privada pode, indiretamente, impactar a área de direitos humanos, por meio da atuação real de empresas em contradição a seus próprios códigos de ética e compromissos em combater violações de direitos "princípios de Ruggie". Curso de Direitos Humanos. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1181. 4 Decidiu o MM. Juiz Diretor de Campo Grande/MS, nos autos do Pedido de Providência número 0500044-90.2016.8.12.001, no sentido de vedar o pagamento de comissões a corretores de imóveis ou qualquer outro profissional, bem como desconto nos valores dos emolumentos fixados na lei Estadual 3.003/05.
O que é o direito de sobreelevação e qual sua natureza jurídica?                O direito de sobreelevação consiste no direito de construir sobre edifício alheio. No direito português, é previsto no artigo 1526 do Código Civil, situado no título referente ao direito de superfície: "Artigo 1526.º (Direito de construir sobre edifício alheio). O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito às disposições deste título e às limitações impostas à constituição da propriedade horizontal; levantado o edifício, são aplicáveis as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no artigo 1421." A doutrina portuguesa considera o direito de sobreelevação como um "subtipo de superfície"1, um "tipo especial de direito de superfície"2. A diferença que autonomiza a superfície de sobreelevação da superfície geral é o objeto: enquanto no tipo geral o objeto é um terreno, no subtipo de sobreelevação o objeto é um edifício, já construído ou em construção3, não sendo, assim, atribuídos ao superficiário quaisquer poderes de transformação do solo4. A maior parte dos autores aponta, ainda, outra peculiaridade do direito de sobreelevação em relação ao direito de superfície geral: o conteúdo do direito de sobreelevação limita-se à faculdade de construir, não abrangendo a faculdade de manter a construção sobre o edifício alheio, uma vez que, levantado o edifício, a construção passa a ser considerada como fração autônoma do mesmo, adquirindo assim o construtor um direito de propriedade horizontal, sendo considerado um condômino.5 No entanto, José Alberto Vieira cogita de três figuras distintas após a construção no edifício alheio. A primeira delas é a prevista na própria norma do art. 1526, tratada acima: após o edifício ser levantado, aplicam-se as regras da propriedade horizontal. Nesta hipótese, a superfície extingue-se e as frações construídas ficam sujeitas ao regime de propriedade horizontal, passando o superficiário a ser condômino. Uma segunda hipótese aventada como possível se configura caso o edifício não esteja, inicialmente, em regime de propriedade horizontal. Se isso acontecer, o edifício que estava em propriedade singular passa, com a edificação, a estar em compropriedade; se já estava em compropriedade, o superficiário torna-se comproprietário juntamente com os outros comproprietários. A terceira hipótese sustentada é a da obra erguida em superfície de sobreelevação poder ser objeto de uma propriedade separada do edifício sobre ou sob o qual foi construída. Nesta hipótese, o direito de superfície mantém-se após a conclusão da construção e a propriedade da obra construída sobre ou sob o edifício mantém-se distinta da propriedade do edifício. Além disso, o autor aponta que embora o artigo 1526 faça referência apenas à constituição de superfície em edifício constituído em propriedade horizontal, entende-se que a superfície de sobreelevação pode ser constituída sobre qualquer edifício, independentemente de estar ou não em propriedade horizontal. Assim, se o proprietário singular ou os comproprietários quiserem instituir uma superfície de sobreelevação a favor de terceiro, podem-no fazer validamente.6 Enfim, cogita-se também a hipótese de o superficiário de edifício poder constituir novos direitos de superfície (de sobreelevação) sobre a obra existente ou a construir. Sustenta-se que essa possibilidade depende do título constitutivo da superfície, pois o proprietário do solo deve ter uma palavra a dizer sobre uma construção no seu prédio. Assim, se o superficiário está autorizado pelo título constitutivo da superfície a construir um edifício de dez andares, nada obsta a que o superficiário constitua uma superfície de sobreelevação para a constituição dos dois últimos andares. Nesta hipótese, não havendo lugar à aplicação das regras da propriedade horizontal, constitui-se um novo direito de superfície a favor do construtor.7 Em Macau, o direito de sobreelevação é minuciosamente regulado pelo Código Civil nos artigos 1419 e 1420, situados no título referente ao direito de superfície: "Artigo 1420.º (Direito de construir sobre edifício alheio) O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito, com as necessárias adaptações, ao disposto no artigo anterior, e, em geral, às disposições deste título. Artigo 1419.º (Construção de obra em propriedade horizontal) 1. O direito de superfície pode ter por objecto a construção de edifício ou conjunto de edifícios em regime de propriedade horizontal, contanto que se preencham as condições próprias para a constituição deste direito. 2. Neste caso, o direito de superfície tem de ser constituído com carácter perpétuo e não pode ser sujeito à estipulação prevista no n.º 2 do artigo 1427.º 3. Efectuada a construção, aplica-se às relações entre os condóminos e entre estes e terceiros o regime da propriedade horizontal, sendo, no entanto, nas relações entre condóminos e proprietário do solo aplicável o regime do direito de superfície, com as especificidades constantes do número anterior. 4. Sendo devida uma prestação anual ao dono do solo, compete à administração do condomínio cobrar de cada condómino a parte correspondente à sua fracção autónoma e proceder ao seu pagamento." No direito argentino, o atual Código Civil estabelece em seu artigo 2115 que "Artículo 2115. Modalidades. El superficiario puede realizar construcciones, plantaciones o forestaciones sobre la rasante, vuelo y subsuelo del inmueble ajeno, haciendo propio lo plantado, forestado o construido. También puede constituirse el derecho sobre plantaciones, forestaciones o construcciones ya existentes, atribuyendo al superficiario su propiedad. En ambas modalidades, el derecho del superficiario coexiste con la propiedad separada del titular del suelo." No dispositivo legal seguinte, estabelece que "Artículo 2116. Emplazamiento. El derecho de superficie puede constituirse sobre todo el inmueble o sobre una parte determinada, con proyección en el espacio aéreo o en el subsuelo, o sobre construcciones ya existentes aun dentro del régimen de propiedad horizontal." Ambas as normas encontram-se no título referente ao direito de superfície. Nesse sentido, Liliana Abreut de Begher, ao analisar o direito de superfície no novo Código Civil argentino, assim conclui: "Es un derecho real sobre cosa propia, que suspende el principio de accesión (...). El CCC incluye en el derecho real de superficie el derecho de vuelo, que en otras legislaciones se lo toma en forma separada." A legislação a que se refere a autora é, justamente, a espanhola.8 No direito espanhol, a sobreelevação é tratada pelo Reglamento Hipotecário, em seu artigo 16, 2, que estabelece que "Artículo 16. 2. El derecho de elevar una o más plantas sobre un edificio o el de realizar construcciones bajo su suelo, haciendo suyas las edificaciones resultantes, que, sin constituir derecho de superficie, se reserve el propietario en caso de enajenación de todo o parte de la finca o transmita a un tercero, será inscritible conforme a las normas del apartado 3º. del artículo 8 de la Ley y sus concordantes. En la inscripción se hará constar:a) Las cuotas que hayan de corresponder a las nuevas plantas en los elementos y gastos comunes o las normas para su establecimiento. (...) d) Las normas de régimen de comunidad, si se señalaren, para el caso de hacer la construcción." A doutrina espanhola, em razão do exíguo tratamento legal dado ao direito de sobreelevação, diverge na definição de sua natureza jurídica. Para alguns se trata de um direito sobre coisa própria; para outros, de direito real sobre coisa alheia (o imóvel sobre o qual se constitui). Dentre estes últimos, há aqueles que o tratam como direito de superfície e aquelas que o tratam de maneira separada.9 Não obstante - e em razão do próprio texto do artigo 16.2 do Reglamento Hipotecário -, prevalece a caracterização do direito de sobreelevação como direito real distinto do direito de superfície. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón sobre o direito de sobreelevação: El precepto reglamentario contempla un derecho de o de sobre una edificación ya existente, en la que se creará una propriedad horizontal (si pertenciese esa edificiación a un solo propietario) o se amplará la actual (si, por el contrario, el edificio fuese de varios y además divido por pisos y locales). Tal derecho no es de superficie, según disse expresamente (<>), y la diferencia se encuentra en que en éste el superficiario se hace dueño de lo construido también, pero con una propriedad temporal o ad tempus, mientras que em aquél no rige limitación temporal alguna. No quiere decir ello, por supuesto, que no quepa un derecho superficiario sobre una edificación actual o bajo su suelo, sino que el especialidad del derecho que estudiamos reside precisamente en esa no sujeción a plazo de la titularidad dominical. A la vista de lo expuesto, puede afirmarse que el derecho de sobreelevación o de vuelo, o de subsuelo, posee como núcleo fundamental la facultad de elevar una o más plantas sobre o bajo um edificio, y secundariamente realizar todas las obras necesarias para ese resultado, haciéndo propietario de lo construido su titular. Es, como la superficie, una derogación voluntaria del principio de accesión, una renuncia a prori a sua actuación.10 Com efeito, são significativas as diferenças entre o direito de sobreelevação (derecho de vuelo) e o direito de superfície no direito espanhol. Em primeiro lugar, "el concepto derecho de vuelo se vincula a la facultad de construir y recae sobre edificios o suelos urbanos o urbanizables; por el contrario, el derecho de superficie es susceptible de gravar todo tipo de suelos y atribuye las facultades de construir pero también de plantar en suelo de tercero".11 Em segundo lugar, "el derecho de vuelo, que se agota con su propio ejercicio, la construcción, provoca una copropiedad sobre determinados elementos y la necesidad de proceder a la asignación de cuotas de participación; el derecho de superficie sin embargo permanece vigente por el tiempo pactado o de manera ilimitada, y la propiedad superficiaria no provoca ninguna copropiedad con el dominus soli." Desse modo, "el derecho de vuelo, uma vez ejercitado se agota, y la propiedad sobre lo edificado comporta automaticamente una copropiedad sobre el suelo y el vuelo, así como la necesidad, enocasiones, de constituirse en propiedad horizontal, circunstancias que no se dan en los derechos de superficie."12 Em terceiro lugar, "el derecho de vuelo es de tracto único. En su devenir pueden vislumbrarse dos momentos: el de su constitución, que confiere a su titular un derecho real limitado; y el de su efectivo ejercicio que le atribuye la propiedad de la construcción. De manera que podría decirse que los derechos de vuelo o subedificación, a diferencia de la superficie, son derechos que se extinguen con su propio ejercicio." Assim, enquanto o direito de superfície leva a um "dominio temporal de lo construido o plantado o sembrado directamente sobre el suelo o bajo él, y el del suelo en que se lleva a cabo", o direito de sobreeleveção leva a um "dominio necessariamente perpetuo (...) sobre la edificación o la subedificación sobre una edificación ya existente." Ainda, "la necesaria preexistencia de una edificación para el caso de la sobreedificación o la construcción subterránea es otra nota característica." A conclusão, portanto, é que "vuelo y superficie son derechos reales con absoluta autonomía formal y funcional, lo que descarta que pueda ser considerada la superficie una modalidad dentro de una pretendida categoría general de derechos de vuelo."13 Na Catalunha, o direito de sobreelevação é tratado de forma autônoma em relação ao direito de superfície no Código Civil. O primeiro (sobreelevação, denominado derecho de vuelo) é tratado no Capítulo VII, enquanto o segundo (superfície) é tratado no Capítulo IV, ambos do Título VI, que trata "De los derechos reales limitados". O art. 567-1 do Código Civil da Catalunha assim conceitua o derecho de vuelo: "Artículo 567-1. Concepto. 1. El vuelo es el derecho real sobre un edificio o un solar edificable que atribuye a alguien la facultad de construir una o más plantas sobre el inmueble gravado y hacer suya la propiedad de las nuevas construcciones. Los preceptos del presente capítulo son de aplicación al derecho de subedificación." Note-se que, pela definição dada, aquele que sobreeleva faz sua a propriedade das novas construções. Deve-se remarcar, também, que o art. 567-2 estabelece que o instrumento público que estabelece o derecho de vuelo deve conter, ao menos, "b) Los criterios que deben aplicarse en la determinación de las cuotas de participación que corresponden a los elementos privativos situados en las plantas o edificios nuevos y las que corresponden a los situados en las plantas o edificios preexistentes, que deben garantizar la proporcionalidade adecuada entre todas." Depreende-se deste dispositivo que, após o exercício do derecho de vuelo, surge situação de condomínio edilício sobre o imóvel. No direito italiano, o direito de sobreelevação é tratado pelo Código Civil no capítulo referente ao condomínio edilício, especificamente no artigo 1127: "Art. 1127 Costruzione sopra l'ultimo piano dell'edificio. Il proprietario dell'ultimo piano dell'edificio può elevare nuovi piani o nuove fabbriche, salvo che risulti altrimenti dal titolo. La stessa facoltà spetta a chi è proprietario esclusivo del lastrico solare. La sopraelevazione non è ammessa se le condizioni statiche dell'edificio non la consentono. I condomini possono altresì opporsi alla sopraelevazione, se questa pregiudica l'aspetto architettonico dell'edificio ovvero diminuisce notevolmente l'aria o la luce dei piani sottostanti. Chi fa la sopraelevazione deve corrispondere agli altri condomini un'indennità pari al valore attuale dell'area da occuparsi con la nuova fabbrica, diviso per il numero dei piani, ivi compreso quello da edificare, e detratto l'importo della quota a lui spettante. Egli e inoltre tenuto a ricostruire il lastrico solare di cui tutti o parte dei condomini avevano il diritto di usare." Os portugueses Pires de Lima e Antunes Varela, comentando o artigo 1526 do Código Civil português - que trata do direito de sobreelevacão, como visto acima -, anotam que "a falta no Código italiano de uma disposição semelhante à do artigo 1526, aliada ao facto de o artigo 952 desse diploma [Código italiano] se referir apenas ao direito de construir al disopra del suolo, levantou em Itália dúvidas acerca da possibilidade de se constituir um direito de superfície, não sobre o solo, mas sobre uma construção."14 Não obstante, analisando o direito de superfície no direito italiano, A. Massimo Bianca sustenta que o objeto do direito de superfície pode ser, sim, uma construção sobre a qual o superficiário tem o direito de sobreelevar. Tratando-se de edifício de condomínio, o direito de sobreelevação pertence legalmente (em razão do art. 1127, acima transcrito) ao proprietário do último andar ou da cobertura plana, salvo disposição em contrário. Na doutrina e na jurisprudência, aponta o autor, considera-se que este direito é uma faculdade que se enquadra no direito de propriedade sobre o edifício existente. O proprietário da parte superior do edifício estaria precisamente na posição de proprietário do solo, e adquiriria a propriedade da sobreelevação em virtude do princípio da acessão. Mais apropriada, contudo, na visão de Bianca, é a tese que reconhece que o proprietário do último andar tem direito de superfície legal.15 No direito brasileiro, enfim, a evolução histórico-jurídica do direito de sobreelevação se inicia a partir de estudos doutrinários sustentando a possibilidade da concessão superficiária para fins de sobreelevação, a despeito da ausência de autorização expressa na legislação nacional. Sustentava-se a ausência de restrição literal no ordenamento jurídico ao direito de sobreelevação, notadamente quando o olhar se voltava ao Código Civil (art. 1.369) e ao Estatuto da Cidade (art. 21, § 1º). Como asseveram Rodrigo Mazzei e Rodrigo Sanz Martins, como a legislação brasileira não era clara acerca do direito de sobreelevação, a doutrina nacional não era unânime a respeito, dividindo-se em duas posições, uma favorável e outra contrária à possibilidade de sobreelevação no direito de superfície. Os contrários à referida possibilidade sustentavam, basicamente, que as normas sobre direito de superfície não abarcavam essa modalidade de concessão. Já os favoráveis16 à concessão de superfície para sobreelevação sustentavam que o direito de superfície não poderia ser tratado com enfoque puramente horizontal e, a partir de uma leitura conjugada dos arts. 1.369 do Código Civil e 21, § 1º, do Estatuto da Cidade com o art. 1.229 do Código Civil, concebia-se a possibilidade de, com alicerce na construção alheia já implantada, utilização do gabarito aéreo que não foi totalmente aproveitado, ou seja, de espaço volumétrico que pode ainda ser edificado. Os autores ressaltam, não obstante, que o regime jurídico elaborado até então pela doutrina era inseguro, pois embora não existisse vedação, a compreensão acerca da possiblidade da concessão do direito de superfície com objeto na sobreelevação era extraída a partir de diversos dispositivos legais. Nesse sentido, a concessão superficiária para sobreelevação reclamava apego não apenas às regras de direito de superfície, mas também a outras normatizações: na fase de construção da obra sobre o imóvel erigido em terreno alheio, havia a predominância das disposições afetas ao direito de superfície e as ligadas à própria edificação ordinária (códigos de postura, legislação urbanística, etc.); terminadas as obras vinculadas ao implante e surgindo a propriedade superficiária sobreelevada, as relações entre as partes envolvidas eram conduzidas em maior espaço pelos regramentos da propriedade horizontal e da relação condominial, ficando as questões superficiárias em plano de fundo, mas sem a sua extinção. Este cenário de insegurança foi, enfim, alterado substancialmente com a promulgação da lei 13.465/17, ao prever expressamente o direito de laje como direito real, entendido este como a concessão que o proprietário da construção-base faz em favor do titular da laje para que este edifique uma construção na superfície superior ou inferior, não implicando a atribuição ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas.17 Breve conclusão Da análise feita do direito de sobreelevação nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, pode-se concluir que não há um tratamento estritamente uniforme dado ao instituto. Isto é, o direito de sobreelevação é regulado de modo consideravelmente diverso pelos ordenamentos jurídicos estrangeiros. No direito português, tratado expressamente pelo artigo 1526 do Código Civil, situado no título relativo ao direito de superfície, a doutrina o considera um "subtipo de superfície". Majoritariamente, considera-se que a construção sobreelevada passa a ser necessariamente uma unidade autônoma do edifício, estabelecendo-se, assim, uma situação de propriedade horizontal após o exercício do direito de sobreelevação, com respeito à todas as exigências legais típicas desta forma de condomínio. Não se compreende, pelo menos majoritariamente, outras hipóteses de exercício do direito de sobreelevação, como, por exemplo, aquele que resulta em compropriedade ou em propriedade separada. Em Macau e em Argentina, o direito de sobreelevação é tratado pelo direito positivo também no título referente ao direito de superfície. A doutrina argentina considera-o, assim como a portuguesa, modalidade de direito de superfície. No direito espanhol e catalão, por outro lado, o direito de sobreelevação, exiguamente regulado pelo Reglamento Hipotecário, é considerado um direito real distinto do direito de superfície. Dentre as diversas diferenças apontadas pela doutrina espanhola entre um e outro direito real, destaca-se a temporariedade - imposta por lei - da propriedade sobre o implante resultante do direito de superfície e a perpetuidade intrínseca da propriedade sobre o implante decorrente direito de sobreelevação. No direito italiano, o direito de sobreelevação é tratado no artigo 1127 do Código Civil, localizado no capítulo referente ao condomínio edilício. Não obstante, a doutrina italiana reconhece o direito de sobreelevação como modalidade de direito de superfície, embora com especificidades próprias, como a sua atribuição legal ao proprietário do último andar ou da cobertura plana, salvo disposição em contrário. No direito brasileiro, enfim, o direito de sobreelevação, em razão da ausência de normatização expressa a respeito, era estudado em âmbito estritamente doutrinário e ligado ao direito de superfície, havendo divergência doutrinária sobre a possibilidade, ou não, de sua instituição até a promulgação da lei 13.465/17, que estabeleceu o direito de laje como direito real e, a partir de uma disciplina específica, conferiu autonomia ao direito de laje (sobreelevação) em relação ao direito de superfície. O que se pode concluir, portanto, é que o direito de sobreelevação não pode ser tomado como instituto jurídico uniforme nos diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Há especificidades deste direito que devem ser levadas em conta quando de sua consideração, que não pode ser, de certa forma, genérica. __________ 1 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765. 2 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 347. 3 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765. 4 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 348. 5 V. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 348. Nesse mesmo sentido, escreve Armando Triunfante: "Julgamos, portanto, que o direito de superfície, na hipótese de sobrelevação, está limitado à primeira dimensão (construção da obra). No seguimento da conclusão do implante, assiste-se à extinção da superfície, permanecendo somente uma situação de propriedade horizontal. Esta conclusão é fortemente sugerida na lei. Com efeito, não existe, na sobrelevação, qualquer menção ao direito de manter a obra. Por outro lado, a sujeição às disposições da superfície está limitada à própria construção." (TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 287). V., também, com o mesmo entendimento: FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 296; ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Civil: Reais. 5. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 526. 6 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765-766. No mesmo sentido: TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 289. 7 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 765-766. 8 BEGHER, Liliana Abreut de. Comentarios sobre el derecho real de superficie. Revista Derecho Privado, ano II, nº 5, p. 17-29, junho, 2013, p. 24. 9 V. COSSARI, Nelson G. A.; LUNA, Daniel G. Derecho de sobreelevación y propriedad horizontal. Revista Jurídica La Ley, 2009-C-1090. 10 DIEZ-PICAZO, Luis; GULLON, Antonio. Instituciones de derecho civil: derechos reales. 2. Ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1995, v. II/1, p. 340-341. V. outras definições dadas pela doutrina espanhola: "El derecho de vuelo es el derecho real sobre un edificio que atribuye a alguien la facultad de construir una o más plantas sobre el inmueble gravado y hacer suya la propiedad de las nuevas construcciones. (.) El titular del derecho de vuelo hace suyos, con pleno dominio, los elementos privativos situados en las plantas o edificios que resultan del mismo." (ALBA, Chantal Moll de. El aprovechamiento del derecho de vuelo: una oportunidad sostenible y económica para el sector inmobiliario. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2021); "Se entiende por derecho de vuelo, el derecho real sobre cosa ajena, con vocación de dominio, por el cual su titular adquiere la facultad de elevar unao varias plantas o de realizar construcciones bajo el suelo, adquiriendo, una vez ejercitado, la propiedad de lo construido." (FREIGE, Pilar Morgado. El derecho de vuelo y de subsuelo en la propiedad horizontal de hecho. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2021). 11 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125. 12 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125-127. V., no mesmo sentido, ALBALADEJO, Manuel. Derecho Civil. 4 ed. Barcelona: Bosch, 1975. v. III, p. 218, nº 183. 13 NICUESA, Aura Esther Vilalta. El derecho de superficie. La superficie rústica. Barcelona: Bosch, 2008, p. 125-127. 14 LIMA, Pires de; VARELA, Antunes. Código Civil anotado. 2 ed., rev. e ampl. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, v. III, p. 594, comentários ao art. 1526. 15 No original: "Oggeto del diritto di superficie può anche essere una construzione, che il superficiaria abbia diritto di sopraelevare. Con riferimento ad un edificio condominale il diritto di sopraelevare spetta legalmente al proprietario dell'ultimo piano o del lastrico solare, salvoche sia diversamento stabilito. In dottrina e in giurisprudenza si ritiene che tale diritto sia una facoltà rientrante nel diritto di proprietà sulla construzione esistente. Il proprietario della parte superiore dell'edificio sarebbe precisamente nella posizione del proprietario del suolo, e acquisterebbe la proprietà della sopraelevazione in virtù del principio di acessione. Più appopriata è la tesi che ravvisa in capo al proprietario dell'ultimo piano un diritto legale di superficie." (BIANCA, A. Massimo. Diritto civile: La proprietá. Milão: Giuffré, 1999, v. 6, p. 554). 16 Dentre outros trabalhos doutrinários sustentando a possibilidade de sobreelevação antes da previsão expressa do direito de laje no ordenamento positivo brasileiro, v. RODRIGUES, Renata Percílio. Negócio jurídico de sobrelevação em direito de superfície. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2017, passim. 17 V., amplamente, MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.).  Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da resolução CNJ nº 452, de 22 de abril de 2022, conforme tratamos em outra oportunidade, alterou o artigo 11 da Resolução CNJ 35/2007, para permitir a nomeação do inventariante em escritura pública anterior à partilha ou à adjudicação (Resolução CNJ nº 35, art. 11, §1º), bem como o seu acesso a saldos e extratos bancários de contas do de cujus e o levantamento (saque) de quantias - eventualmente existentes - com a finalidade de efetuar o pagamento do devido imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais do Inventário Extrajudicial. Trata-se de alteração de grande relevância, visando a viabilização e a devida conclusão do inventário extrajudicial. A alteração, contudo, poderia ter sido ainda melhor se tivesse contemplado, de igual forma, o levantamento de valores eventualmente existentes em conta do de cujus para o pagamento de: 1) honorários advocatícios, mesmo que parciais, pois não há como se falar em realização de Inventário, Judicial ou Extrajudicial, sem a presença obrigatória de advogado; 2)  eventuais débitos tributários existentes, a fim de se possibilitar a realização do inventário pela via administrativa, de maneira a se atender à Resolução 35/2007 do CNJ, que exige certidões negativas de débitos tributários. Outra questão que defendemos, capaz de muito contribuir com o avanço do Direito das Sucessões e da desjudicialização em nosso país, é a concernente à possibilidade de venda de bens do espólio pelo inventariante devidamente nomeado/autorizado em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, independentemente de autorização judicial, nos casos em que as partes vierem a optar pela realização do Inventário de forma extrajudicial e inexistirem credores do espólio, pois constitui verdadeiro contrassenso exigir que as partes, capazes e concordes, que já optaram por promover o Inventário pela via extrajudicial, precisando alienar um ou mais bens para viabilizá-lo, sejam obrigadas a se dirigir ao Poder Judiciário para requerer autorização judicial. A exigência de alvará judicial para venda de bens do espólio, nesses casos, prevista no artigo 619, I, do CPC 2015, que apenas replicou a regra do revogado artigo 992 do CPC de 1973, época em que sequer se cogitava falar em inventário extrajudicial, vai de encontro ao importante movimento de desjudicialização existente em nosso país, ferindo, ainda, o Princípio da Autonomia da Vontade, bem como os Princípios da Intervenção Mínima do Estado, da Economia Procedimental e o que chamamos de Princípio da Livre Disposição de patrimônio próprio (CC, art. 1.228), na medida em que retira das partes, capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas capacidades civis, em momento de necessidade, o poder de decisão/disposição e, assim, a possibilidade de venderem um ou mais bens que já se encontram compreendidos em sua esfera patrimonial, em razão do droit de saisine (CC, art. 1.784), obrigando-as a bater às portas do Judiciário para requerer algo que de forma simples poderia ser resolvido e evitado. Bastaria a autorização expressa concedida ao inventariante pelo meeiro acompanhado de todos os herdeiros e respectivos cônjuges - com exceção daqueles casados sob o regime da Separação de Bens - na própria Escritura de Nomeação de Inventariante. Em termos práticos, o inventariante devidamente nomeado e autorizado por todos os herdeiros/sucessores e seus cônjuges, bem como pelo meeiro, e que tenha prestado compromisso de bem e fielmente cumprir o seu mister, em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, com a devida assistência de advogado, já estaria apto a requerer a lavratura e a representar o espólio na assinatura da competente Escritura Pública de Compra e Venda a ser outorgada ao comprador. A Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, nesse caso, contendo autorização/poderes especiais e expressos concedidos ao inventariante, substituiria o alvará judicial, de forma a permitir, desde logo, o devido recolhimento tributário (ITBI) e o registro do título translativo (Escritura Pública de Compra e Venda) na competente Serventia Predial, na respectiva matrícula do imóvel. Um passo gigantesco nesse relevante e indispensável movimento de desjudicialização trilhado em nossa nação. Para um melhor entendimento e aprofundamento da matéria, vale a leitura de artigo de nossa autoria publicado nesta Coluna, no Migalhas, intitulado: Escritura de nomeação de inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial. Outra questão igualmente importante, objeto deste artigo, diz respeito ao saque das importâncias descritas na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980, pelos sucessores do falecido. Referida lei dispõe sobre o pagamento, aos dependentes ou sucessores, de valores não recebidos em vida pelos respectivos titulares, dispensando o inventário ou arrolamento. Em seu artigo 1º, a lei assim preconiza: Art. 1º - Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. § 1º - As quotas atribuídas a menores ficarão depositadas em caderneta de poupança, rendendo juros e correção monetária, e só serão disponíveis após o menor completar 18 (dezoito) anos, salvo autorização do juiz para aquisição de imóvel destinado à residência do menor e de sua família ou para dispêndio necessário à subsistência e educação do menor. § 2º - Inexistindo dependentes ou sucessores, os valores de que trata este artigo reverterão em favor, respectivamente, do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP, conforme se tratar de quantias devidas pelo empregador ou de contas de FGTS e do Fundo PIS PASEP. O decreto 85.845, de 26 de março de 1981, que regulamenta a citada lei, por sua vez, dispõe que: Art . 1º Os valores discriminados no parágrafo único deste artigo, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos seus dependentes habilitados na forma do artigo 2º.  Parágrafo Único. O disposto neste Decreto aplica-se aos seguintes valores: I - quantias devidas a qualquer título pelos empregadores a seus empregados, em decorrência de relação de emprego; II - quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores; III - saldos das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS/PASEP; IV - restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas; V - saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 (quinhentas) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional e não existam, na sucessão, outros bens sujeitos a inventário. Dessa forma, os seguintes valores, não recebidos em vida por seus respectivos titulares, serão pagos aos seus dependentes habilitados perante a Previdência Social, em quotas iguais, independentemente de inventário ou arrolamento: - quantias devidas a qualquer título pelos empregadores aos empregados (falecidos), em decorrência de relação de emprego; - quaisquer valores devidos, em razão de cargo ou emprego, pela União, Estado, Distrito Federal, Territórios, Municípios e suas autarquias, aos respectivos servidores;  - os montantes das contas individuais do FGTS e do PIS-PASEP;  - restituições relativas ao imposto de renda e demais tributos recolhidos por pessoas físicas;  - e os saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento, desde que não ultrapassem o valor de 500 OTNs e inexistam outros bens sujeitos a inventário. Nesses casos, os pagamentos serão feitos aos dependentes habilitados, mediante apresentação de "documento fornecido pela instituição de Previdência ou se for o caso, pelo órgão encarregado, na forma da legislação própria, do processamento do benefício por morte", conforme prevê o artigo 2º do decreto 85.845/1981. Da certidão ou declaração emitida pela competente instituição de Previdência constarão, obrigatoriamente, o nome completo, a filiação, a data de nascimento de cada um dos interessados e o respetivo grau de parentesco ou relação de dependência com o falecido, conforme o parágrafo único do artigo 2º do referido decreto. Isso não significa, contudo, que a meação do cônjuge/companheiro sobrevivente e os direitos dos herdeiros poderão ser desrespeitados, pois não se trata de sucessão irregular ou anômala. Filiamo-nos à corrente que entende que as regras previstas na lei 6.858/80 e em seu decreto regulamentador são de caráter processual, e não de caráter material, não podendo prejudicar, portanto, eventual direito do cônjuge/companheiro supérstite e de herdeiros do falecido. Nesse sentido são as lições do ilustre professor Carlos E. Elias de Oliveira: Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art. 1º e o parágrafo único do artigo 2º da lei 6.858/1980), o "pagamento direto" das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da lei 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (artigo 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil). Nessa esteira, aquele que receber o "pagamento direto", ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros. A lei ainda prevê que, na falta de dependentes habilitados, os pagamentos deverão ser feitos aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. Essa é a previsão da segunda parte do seu artigo 1º, que dispensa, nesse caso, o inventário ou arrolamento, e, também, do artigo 5º do decreto 85.845/1981, in verbis: "Art . 5º Na falta de dependentes, farão jus ao recebimento das quotas de que trata o artigo 1º deste decreto os sucessores do titular, previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, expedido a requerimento do interessado, independentemente de inventário ou arrolamento." Acontece que a referida lei é da década de 80, época em que a realidade social e jurídica era outra. Naquela época, o legislador optou por autorizar, na falta de dependentes habilitados do falecido, o saque das quantias mediante a apresentação de alvará judicial, a fim de se desburocratizar o recebimento de tais importâncias. Afinal, ainda não existia a desjudicialização de procedimentos em nosso país. Acontece que o Direito deve servir à sociedade. Dessa forma, acompanhando o dinamismo social, também deve ser dinâmico, com vistas a dar soluções dignas, seguras e adequadas aos anseios e necessidades do homem moderno, que clama por mais celeridade e economia na realização de atos e procedimentos em seu cotidiano. Feitas essas considerações, a pergunta que se faz é a seguinte: é pertinente, atualmente, a exigência de alvará judicial, a fim de que os sucessores do falecido façam o saque de tais importâncias? Entendemos que não! Frise-se que, diante da previsão da Lei nº 6.858/80 e de seu Decreto Regulamentador, podem ocorrer as seguintes situações: a) Saque de tais importâncias, sem a realização de inventário e partilha, em razão da inexistência de outros bens deixados pelo "de cujus"; b) Saque de tais importâncias, com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo "de cujus". No primeiro caso (saque sem a realização de inventário ou arrolamento), em sendo todos capazes e concordes, qual seria a complexidade a ensejar o encaminhamento das partes ao Poder Judiciário para pleitear alvará judicial? Bastaria aqui a realização de Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros, em tabelionato de notas, com assistência de advogado, contendo: - a qualificação de todos os herdeiros e do cônjuge/companheiro supérstite;  - dados de eventual casamento ou união estável do de cujus e regime de bens; - dados de qualificação do de cujus e de seu falecimento, com a indicação dos dados da certidão de óbito; - declarações, sob as penas da lei, de que são os únicos herdeiros do falecido e acerca da inexistência de outros bens passíveis de partilha; - expressa autorização concedida por todos para que um dos herdeiros ou o cônjuge/companheiro sobrevivente saque as referidas importâncias junto aos órgãos/instituições competentes. De igual forma, sendo todos os herdeiros capazes e concordes, mesmo que o autor da herança tenha deixado outros bens passíveis de partilha, caso optem pela realização do inventário pela via extrajudicial, não há razão em se exigir que primeiro batam às portas do Poder Judiciário para pleitear alvará judicial para o levantamento das quantias descritas no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV, do citado decreto e, posteriormente, realizem o inventário de forma administrativa. Se o inventário é administrativo, dever-se-á possibilitar às partes a opção por realizar todos os atos preliminares e preparatórios também pela via administrativa. Por que não? Não haverá prejuízo algum a quem quer que seja. Prejuízo existe, com a devida vênia a quem pensa diferente, ao se exigir alvará judicial nessas situações. Nessa hipótese (saque com a realização de inventário e partilha de outros bens deixados pelo "de cujus"), bastaria a realização de Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, contendo a autorização de todos os herdeiros e cônjuge/companheiro sobrevivente para o inventariante sacar referidas quantias. Por que submeter as partes a um pedido de Alvará Judicial, se estas optarem pela realização do inventário pela via administrativa? Mister se faz frisar que, nesse caso, os valores descritos no artigo 1º, Parágrafo Único, incisos de I a IV do referido decreto não precisam ser inventariados, conforme dispõe o final do artigo 5º do citado Decreto nº 85.845/81 e o artigo 666 do novo Código de Processo Civil. Já aqueles descritos no inciso V (saldos de contas bancárias, saldos de cadernetas de poupança e saldos de contas de fundos de investimento até o valor de 500 (quinhentas) OTNs), caso existam outros bens sujeitos a inventario, deverão constar do rol dos bens a serem inventariados, podendo, contudo, ser sacados para fins de pagamento do imposto de transmissão (ITCMD) e dos emolumentos notariais e registrais, conforme permissão contida na atual redação do artigo 11 da Resolução 35/2007 do CNJ, ressaltando-se aqui, também, a necessidade de que o saque contemple o pagamento dos honorários advocatícios e de outros tributos indispensáveis à realização do inventário pela via extrajudicial.   De qualquer forma, parece-nos, hoje, desnecessária e demasiadamente desarrazoada a exigência de alvará judicial para o saque das importâncias previstas na lei 6.858/1980 e em seu decreto regulamentador, nos casos que envolvam pessoas capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas vontades. Permitir, assim, o saque de tais importâncias por meio dos referidos atos notariais (Escritura Pública Declaratória de Únicos Herdeiros ou Escritura Pública de Nomeação de Inventariante), independentemente de alvará judicial, é, a nosso ver, medida que se impõe e alternativa inteligente e em harmonia com o clamor e o dinamismo social, bem como com o movimento de desjudicialização existente em nosso país, na medida em que promove paz social com efetividade, previne o surgimento de inúmeros litígios, ajuda o Poder Judiciário em sua importante missão de prestar jurisdição com efetividade àqueles que necessitam, possibilita o recolhimento dos tributos devidos, e, atende, por sua celeridade e segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e à autonomia da vontade, ressaltando-se, sempre, a obrigatória participação de advogado nos citados atos notariais, assistindo as partes. Referências: BRASIL. Lei 6.858, de 24 de novembro de 1980. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. BRASIL. Decreto 85.845, de 26 de março de 1981. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. CNJ. Resolução 452/2022. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023. GUEDES, Anderson Nogueira. Escritura de Nomeação de Inventariante e a venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial. Disponível aqui. Acesso em: 06 mar 2023.  OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. A dispensa de inventário e o pagamento direto (parte 2). Acesso em: 06 mar 2023.
Natureza do direito de laje  O direito de laje é um direito real autenticamente brasileiro. Não há direito real com nomen iuris assemelhado em outros ordenamentos jurídicos, assim como não há direito real com regime jurídico idêntico ao direito de laje em sistemas estrangeiros. Isto se deve, precisamente, ao fato de o direito de laje ter surgido numa realidade peculiar brasileira, qual seja, as construções sobrepostas erigidas sobre construções-base nas favelas urbanas brasileiras. Como visto, o "direito" de laje surgiu, como fenômeno social, antes de sua regulamentação formal pelo Estado, por meio da MP 759/16. Por sua vez, a regulamentação do direito de laje por esta norma deu-se, declaradamente, com vistas à "regularização fundiária regularização fundiária de favelas" (item 95 da Exposição de Motivos da MP 759/16), "em reforço ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas" (item 113).1 Por conta dessa peculiaridade específica do direito de laje, é impossível metodologicamente iniciar seu estudo por meio de fontes (direito positivo, doutrina, jurisprudência, etc.) estrangeiras - porque não há direito real equivalente, pelo menos prima facie, ao direito de laje em outros países.2 Sendo assim, o estudo do direito de laje deve partir necessariamente das peculiaridades (formais e informais) brasileiras que perpassam este novo direito real, incumbindo, parece-nos, propriamente à doutrina brasileira delimitar o que é, precisamente, o direito de laje. Não obstante, os autores brasileiros pouco vêm estudando sobre o direito real de laje. E, quando o estudam, na maioria dos casos, infelizmente, estudam sem grande profundidade científica, chegando a conclusões com poucos fundamentos dogmáticos. É o que ocorre, na maioria dos casos, quando se escreve sobre a natureza jurídica do direito real de laje, questão de alta complexidade, pertencente "à área cinzenta do Direito", geradora de "um acirrado debate doutrinário (autores ultraque trahunt), sem perspectivas de consenso"3. Sucintamente, o debate sobre a natureza jurídica do direito de laje se resume a seguinte questão: é o novo direito real de laje um direito real sobre coisa própria ou um direito real sobre coisa alheia? A doutrina se divide. São diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria4, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície5-6, enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real.7 No âmbito jurisprudencial, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça manifestou, mesmo que de forma incidental, e não principal, o entendimento de que o direito de laje tem natureza de direito real sobre coisa alheia.8 Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 V. exposição de motivos da Medida Provisória nº 759/16, disponível aqui. Acesso em: 17.02.2021. 2 Por exemplo, afirma Marco Aurélio Bezerra de Mello que "não é possível importar o modelo do direito de sobrelevação português ou suíço com algumas adaptações, pois em tais países não nos parece que a favela seja uma forma de habitação tão ricamente utilizada como ocorre no Brasil." (MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito à posse da Laje. GenJurídico, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.06.2021). 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56. 4 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Arnaldo Rizzardo (v. RIZZARDO, Arnaldo. O direito real de laje. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 986, p. 263-275, dez., 2017, passim); Eduardo Silveira Marchi (v. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de Laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018, passim); Francisco Eduardo Loureiro (v. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. Ed. In: Cezar Peluso (Coord.). Barueri: Manole, 2020, p. 1.558); César Augusto de Castro Fiuza e Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto (v. COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho; FIUZA, César Augusto de Castro. Ensaio sobre o direito real de laje como previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 11.09.2019); Patricia André de Camargo Ferraz (v. FERRAZ, Patricia André de Camargo. Direito de Laje: Teoria e Prática - nos termos da Lei 13.465/17. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 43 e ss.); Cristiano Chaves de Farias, Martha El Debs e Wagner Inácio Dias (v. FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56 e ss.); Nelson Rosenvald (v. ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Carlos Eduardo Elias de Oliveira (v. ELIAS DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo. Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465, de 2017: nova lei, nova hermenêutica. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Sílvio de Salvo Venosa (v. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: reais. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 689, nº 27.1); Vitor Kümpel e Bruno De Ávila Borgarelli (v. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje - Parte 1. Migalhas, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Alexandre Laizo Clápis e Raphael Marcelino (v. CLÁPIS, Alexandre Laizo; MARCELINO, Raphael. Direito real de laje. In: Estatuto fundiário brasileiro: comentários à lei 13.465/17, tomo 1. Coords. Everaldo Augusto Cambler, Alexandre Jamal Batista e André Cordelli Alves. São Paulo: Editora IASP, 2018, nº III, p. 38); Marco Aurélio Bezerra de Mello (v. MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Anderson Schreiber...[et al.]. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, coms. ao art. 1.510-A, p. 1.250); MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 09.06.2021, passim; CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147, passim; Roberto Paulino de Albuquerque Junior (este autor possui posição contraditória, como se pode verificar de artigo mencionado na próxima nota, de sua autoria) e Otavio Luiz Rodrigues Junior (v. ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. O direito real de laje: elementos para uma crítica. In: MARCHI, Eduardo C. Silveira (Coord.). Regularização fundiária urbana. 1ª. Ed. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 202 e 204). 5 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Roberto Paulino Albuquerque Júnior (v. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Conjur, 2017. Acesso em: 17.09.2019); Frederico Henrique Viegas de Lima (v., principalmente, LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: uma visão da catedral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 82, p. 251-280, jan.-jun., 2017, nº 5, p. 265 e ss.; HENNIKA, Luís Henrique da Silva; SANTIN, Janaína Rigo. Direito de superfície e direito de laje: uma análise à luz do direito urbanístico. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 4, nº 3, p. 801-835, 2018, nº 5, p. 823 e ss.; e, também,  LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, p. 477-494, jul.-dez., 2017, passim); Marcelo de Oliveira Milagres (v. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito de laje?. Revista de Direito Privado, v. 76, São Paulo, p. 75-88, abr., 2017, passim). 6 Há, também, julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo em que se afirma que "O direito de laje, portanto, não constitui um direito real novo, mas uma modalidade de direito de superfície que era (e é) praticado por usos e costumes, nos chamados 'puxadinhos', normalmente, para acomodação de parentes e agregados que vão se incorporando a determinada família." (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1003793-19.2017.8.26.0006. 12ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Jacob Valente. Julgado em 19.12.2019). 7 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (v. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 5, 2020, p. 553, nº 2); Salomão Viana (v. STOLZE, Pablo; VIANA, Salomão. Direito de laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Flávio Tartuce (v. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 567 e ss., nº 6.8.); Maria Helena Diniz (v. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 4, p. 547); Paulo Lôbo (v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Coisas. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 4, 2020, p. 320 e ss.); Ralpho Waldo de Barros Monteiro Filho (v. MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90); Rodrigo Reis Mazzei e Rodrigo Sanz Martins (v. MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.).  Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380); CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147. 8 "3. Nesse passo, como instrumento de função social, notadamente em razão da realidade urbanística brasileira, previu o legislador, recentemente, o direito real de laje (CC, art. 1225, XIII, redação da lei 13.465/2017). O foco da norma foi o de regulamentar realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo, de alguma forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à moradia (CF, art. 6°). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art. 1.510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão - superfície sobreposta ou pavimento inferior - da construção original, conferindo destinação socioeconômica à referida construção." (Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. nº 1.478.254. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 08.08.2017. - Grifos nossos).
O Conselho Nacional de Justiça, CNJ, editou a resolução 485, em 18 de janeiro de 20231, ao dispor sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção em observância ao princípio da proteção integral da criança. A normativa nos remete ao instituto da adoção e ao acurado dever de proteção ao recém-nato2; todavia, em que pese todo o devido resguardo, o que se questiona é o conflito principiológico e a produção dos efeitos registrais do ato na esfera do registro civil das pessoas naturais. Consigna-se, em relação a temática do "Parto em segredo", o debate insurge pontuais conflitos de direitos que perpassam julgamentos éticos. De um lado, tem-se o estabelecimento de um procedimento, alicerçado nos parâmetros de amparo e solidariedade, em atenção as necessidades primordiais de mantença a dignidade e, em especial, ao fraterno atendimento, destinados a acolher a gestante no momento, atenção que se desdobra do pré-natal até do nascimento; por outro lado, em respeito ao lastro de princípios que albergam a proteção à criança, ao resguardo do melhor interesse do infante e, mormente, ao direito à vida, à família e a garantia ao pleno desenvolvimento humano, por si só, esse aparente conflito de interesses, tem sido questionado, embora toda a razoabilidade e proporcionalidade da medida sugerida pela normativa. Em atenção a situação em exame, a questão abarca expressiva constatação acerca dos dados estatísticos do instituto da adoção no país. Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, através do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), implantado em 2019, dados acerca do número de crianças e adolescentes aptos as adoções e o número de pretendentes legalmente habilitados junto ao sistema judiciário nacional, no ano de 2020, são divergentes, isto é, encontravam-se 33.091 pretendentes adotantes, para um universo de 4.046 crianças e adolescentes disponíveis à adoção.3 Por conseguinte, apesar dessa diferença e considerando a demanda pela adoção depende de regular processo judicial, ainda assim, existe o latente problema no que se refere ao número de crianças recém nascidas abandonadas nas ruas ao nascer. Esse aumento de casos, tem chamado atenção das autoridades judiciárias, pois o ato de abandono configura crime, ao invés de incentivo ao procedimento de adoção consciente das mães que, por diversas razões, não desejam exercer o vínculo materno ou perderam o vínculo com o genitor do bebê. A seu turno e diante a realidade, em conformidade como Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal, com efeito surge a Resolução n° 485/2023, destinada a regularização da latente situação do abandono no país e estímulo a entrega a adoção consciente e legalizada, configurando mais uma alternativa para a tutela e proteção do neonato desamparado, contribuindo a redução social de abandono, índice que nosso pais carrega frente a outras nações. Dos Direitos Fundamentais da Parturiente e do recém-nato. A proteção ao parto e a proteção da parturiente são direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, pelas leis4 e mesmo normas internacionais de direitos humanos5. As premissas que fundamentam essas proteções incluem: 1. Direito à vida e à saúde: toda pessoa tem direito a um padrão de vida adequado que assegure a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais necessários. Durante o parto, é fundamental garantir que a vida e a saúde da mãe e do bebê sejam protegidas. 2. Direito à integridade física e psicológica: todas as pessoas têm o direito de serem protegidas contra qualquer forma de violência, tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Durante o parto, a integridade física e psicológica da parturiente deve ser respeitada e protegida. 3. Direito à igualdade: todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com igualdade perante a lei e ter acesso a oportunidades iguais, sem discriminação de qualquer tipo. Durante o parto, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade independentemente de sua origem étnica, idade, orientação sexual, identidade de gênero ou qualquer outra característica pessoal. 4. Direito à privacidade: toda pessoa tem direito à privacidade e à proteção contra a interferência em sua vida privada, família, lar e correspondência. Durante o parto, a parturiente tem o direito de ter sua privacidade respeitada e de receber atendimento em um ambiente que respeite a sua intimidade. 5. Direito à informação e ao consentimento informado: toda pessoa tem o direito de ser informada sobre os procedimentos médicos que serão realizados e de dar ou não o seu consentimento para esses procedimentos. Durante o parto, a parturiente tem o direito de receber informações claras e precisas sobre os procedimentos que serão realizados e de dar ou não o seu consentimento para esses procedimentos. Ou seja, a proteção ao parto e a proteção da parturiente são direitos fundamentais que devem ser respeitados e garantidos pelos sistemas de saúde e pela sociedade em geral. Essas proteções estão fundamentadas em premissas como o direito à vida, à integridade física e psicológica, à igualdade, à privacidade, à informação e ao consentimento informado. O que é o Parto em Segredo? Parto em segredo (díspares aos Projetos de Lei6 que instituiriam o Parto Anônimo, menção aos projetos de lei 2.747/2008, 2.834/2008 e 3.220/2008 todos da Câmara dos Deputado) ou erroneamente chamado de parto com abandono, dentre várias nomenclaturas utilizadas, inexiste uma definição legal exata e precisa, contudo, o termo jurídico escolhido pelos autores como "Parto em Segredo", no remete a possibilidade de uma mulher dar à luz em alguma unidade de saúde pública ou privada, sendo a identificação da parturiente ser ou não conhecida. Caso deseje o anonimato com a garantia de que nunca será revelada sem o seu consentimento, justifica o nome escolhidos pelos autores, como "Parto em Segredo". Entretanto, nos termos da norma há a possibilidade de a mãe ter sua identificação registrada e com posterior adoção do recém-nato, sendo o caso de adoção pelas vias já conhecidas no direito. Qual é o procedimento de assistência à maternidade? Na prática, à chegada à maternidade, após comunicar à equipa médica a sua vontade de dar à luz em segredo, sendo uma garantia de inexistência de sanção penal, civil ou administrativa, nem efetuada qualquer investigação neste sentido7. A pedido, ou com o seu consentimento, a mulher pode se beneficiar de apoio psicológico e social do serviço de assistência à infância8. A preservação do sigilo do seu internamento e da sua identidade por parte do estabelecimento privados ou públicos de saúde, rege-se pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O consolidado Estatuto, bem como a novel Resolução 485/2023, ambos especificam que lhe seja entregue a informação sobre as consequências jurídicas deste pedido e a importância de resguardo aos dados biológicos do indivíduo. A discussão sobre o conhecimento da filiação genética em nossa doutrina e jurisprudência é pacífica e o Estatuto da Criança e Adolescente9 trouxe proteção neste aspecto de segurança jurídica e social, ao salvaguardar os direitos fundamentais da criança. Qual é o procedimento de acompanhamento da gestante? Há que se analisar algumas situações em específico. Se a parturiente for acompanhada sob sua identidade durante a gravidez e depois decidir dar à luz anonimamente, deverá ser criado um arquivo anônimo, seguido de um nome real ou fictício da criança, ou mesmo se esta não escolher, a equipe médica poderá fazê-lo. Os resultados de exames biológicos e dados médicos são coletados e anonimizados. Caso a parturiente não for acompanhada durante a gravidez no estabelecimento hospitalar, um procedimento anônimo é criado no mesmo princípio durante a admissão. Seja qual for a situação, a admissão administrativa deveria permanecer anônima. Há a possibilidade de a parturiente não querer se identificar, entretanto, deve ser incentivada a deixar sua identidade em sigilo com os dados de contato de uma pessoa a ser notificada (em caso de complicações no parto ou óbito)10. A identidade da parturiente é colocada confidencialmente junto ao Serviço de Assistência Social e confiada a um funcionário designado (Assistente Social) que deverá depositar tal informação em arquivo seguro do estabelecimento hospitalar. Tais informações poderão ser confiadas ao Serviço de Assistência Social em um envelope QUE poderá ser entregue à mãe quando ela receber alta hospitalar, se ela requisitar. Da mesma forma, para garantir o direito da criança a conhecer a sua origem, a mãe é convidada a deixar, se assim o entender, informações sobre a sua saúde e a do pai, a origem da criança e as circunstâncias do nascimento e, sua identidade, bem como uma carta ou objeto destinado a seu filho principalmente em caso de parto de alto risco. Ela pode nesta carta indicar à criança os motivos que motivaram sua decisão, sendo os mais frequentes a ausência do pai biológico, dificuldades financeiras, idade muito jovem, medo da rejeição familiar, e somado a todos esses problemas, a descoberta tardia de gravidez. Estas formalidades são efetuadas, a cargo da Assistência Social, pelas pessoas designadas pelo magistrado, ou na sua falta, pelos gestores da unidade de saúde. O segredo pode ser levantado? É possível que a mãe, que desejou manter o anonimato durante o parto, realize futuras diligências no que se refere a declaração de levantamento do segredo. Nesse ponto, a parturiente pode manifestar à assistência social o consentimento ao levantamento do sigilo sobre sua identidade pessoal e informações sobre o nascimento, de acordo com determinadas circunstâncias previstas em lei. O segredo do nascimento se refere ao direito da mãe biológica de manter o anonimato sobre sua identidade no momento do parto e da entrega da criança para adoção, resguardando o direito fundamental a privacidade e a intimidade. Além disso, em algumas situações excepcionais, como em casos de necessidade de informações sobre a saúde do adotado ou de questões de ordem jurídica, é possível que o juiz autorize o levantamento do segredo de justiça do processo de adoção e permita o acesso a informações sobre os dados da mãe biológica. Porém, é importante ressaltar que o levantamento do segredo do nascimento deve ser realizado de forma responsável e respeitosa, levando em consideração os interesses e direitos da mãe biológica e do adotado. É fundamental, também, que sejam adotadas todas as medidas necessárias para preservar o sigilo quando solicitado e garantir a proteção dos dados dos envolvidos. A mãe pode reconsiderar sua decisão? A mãe poderia reconsiderar sua decisão, através de procedimento judicial para saber o paradeiro da criança, não dispondo de prazo legal para tanto. O ato de adoção, por sua natureza irretratável, não poderia ser revisto; contudo toda questão pertinente a filiação genética, nas devidas proporções (linhagem parental e ascendente), seguem resguardas caso fossem necessárias. A quem é confiada a criança ao nascer? Diferente do parto anônimo previsto em Projetos de Lei não aceitos pela Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, na adoção regulamentada pela Resolução 485/2023, do CNJ, ao nascer, a criança é confiada aos cuidados da mãe ou de outro responsável legal que assuma a guarda provisória da criança, como o pai ou outro familiar. Caso a mãe biológica não possa ou não queira assumir a guarda da criança, ela pode optar por entregá-la para adoção, após cumpridas as formalidades legais previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Insta ressaltar, mesmo após a entrega da criança para adoção, a mãe biológica continua sendo a titular dos direitos e deveres decorrentes da filiação, como o direito de receber informações sobre o desenvolvimento da criança e de ser informada sobre sua localização, desde que não prejudique o interesse superior da criança e respeite o sigilo necessário. A mãe pode levar o filho de volta depois? Ou seja, a mãe pode tentar cancelar a adoção? Em tese, antes do procedimento de entrega a adoção, poderia concretizar a desistência. Contudo, após o período entrega a família adotante, não. Somente uma ação judicial poderá permitir que a mãe biológica receba seu filho de volta, note-se, antes do procedimento finalístico da adoção. A possibilidade de revogação da adoção, portanto, depende do estágio em que se encontra o processo judicial de adoção e do cumprimento das formalidades legais. No Brasil, o processo de adoção é regido ECA, estabelecendo normas específicas sobre o tema. Uma vez que a adoção é decretada pelo juiz e o processo é finalizado, a revogação não é permitida, exceto em situações excepcionais previstas na lei, como no caso de vício de consentimento ou de comprovada má-fé dos adotantes. Porém, durante o processo de adoção, a mãe biológica pode mudar de ideia e decidir que não quer mais entregar seu filho para adoção. Nesse caso, ela pode desistir da adoção e retomar a guarda do filho, desde que a desistência seja manifestada antes da sentença de adoção e aceito no procedimento judicial. Relevante destacar, a revogação da adoção ou a desistência do processo de adoção são situações complexas que envolvem muitas questões emocionais e legais. É fundamental que a mãe biológica conte com o apoio de profissionais capacitados e de serviços de assistência social para avaliar a melhor decisão para a criança e para sua própria vida. Além disso, é importante que todas as formalidades legais sejam cumpridas para evitar que a criança fique em situação de vulnerabilidade ou de limbo jurídico. Como a criança pode encontrar seus pais biológicos? O adotado tem o direito de buscar informações sobre sua origem e seus pais biológicos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante o direito do adotado a ter acesso à sua identidade biológica, à história pessoal e familiar e às informações sobre sua adoção, desde que respeitados os direitos da mãe biológica e a preservação do sigilo necessário. Para isso, existem algumas possibilidades de busca pelas informações. Uma delas é a busca pela Vara da Infância e Juventude onde foi processado o procedimento de adoção, solicitando o acesso a informações sobre a mãe biológica, como nome e endereço, para a Vara responsável pelo processo de adoção. A chamada Lei de Adoção (lei 12.010/2009) garante o sigilo das informações sobre a mãe biológica, mas em alguns casos excepcionais, o juiz pode autorizar o referido acesso, garantindo a aproximação do indivíduo, o conhecimento com sua família biológica. Outra possibilidade é a busca por meio de bancos de dados de informações genéticas e familiares. No Brasil, existe o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), que é um sistema informatizado mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que reúne informações sobre crianças e adolescentes em processo de adoção e sobre pretendentes habilitados à adoção. Além disso, algumas instituições privadas também oferecem serviços de análise genética para busca de informações sobre a origem biológica.  Quais as implicâncias do procedimento junto ao Registro Civil? A dignidade da pessoa começa formalmente com o registro de seu nascimento. De acordo com a Lei de Registros Públicos, o ato registral do nascimento comprova a existência e a identidade de uma pessoa, e é nele que são registrados os dados básicos de um indivíduo, como o nome, a data de nascimento, a filiação e o estado civil. Frente a essa premissa fundamental, depreende-se do ato administrativo regulamentador, em específico, existe a respectiva importância do nome (art. 6, II), a partir do acompanhamento e da participação direta da equipe técnica multidisciplinar que acompanha a gestante, bem como entre diversos fatores, a possibilidade de escolha do direito de atribuição de nome à criança, colhendo de qualquer forma suas sugestões, assim como será explicado o procedimento de atribuição do nome, caso a mãe biológica não se predisponha a fazer. Na mesma linha de pensamento, reafirmando a garantia da lavratura do registro de nascimento e respectiva certidão, o parágrafo 2º, art. 8º, da Resolução, repisa a observância da inclusão de todos os dados constantes na Declaração de Nascido Vivo (DNV), preservando, de todas as formas, o direito pertinente ao resguardo biológico. Ainda, explícito no texto da Resolução, na sequência dos parágrafos, do artigo 8º, dispõe, na falta de atribuição do nome pela genitora, o registro será feito com o prenome de algum de seus avós ou de outro familiar da genitora biológica, conforme dados constantes do relatório produzido pela equipe técnica. Da mesma forma, caso a genitora não tenha seus dados filiatórios cognoscíveis pela equipe do estabelecimento de saúde, o juiz lhe atribuirá prenome e sobrenome. O procedimento de adoção garante aos adotantes a legitimidade do vínculo familiar com o filho adotado, incluindo direitos e deveres de pais, como a obrigação de fornecer amparo e proteção, e o direito de herança. De acordo com o ECA, a adoção é considerada um ato jurídico irrevogável que cria vínculos de filiação entre o adotante e o adotado, com efeitos similares aos da filiação natural. O Estatuto também prevê medidas de proteção para os genitores biológicos e para o adotado, assegurando o direito de privacidade e sigilo da identidade dos genitores biológicos, e garantindo aos adotantes a legitimidade do vínculo familiar com o filho adotado11. No caso de uma criança adotada, o Estatuto e a Lei de Registros Públicos preveem a alteração do registro de nascimento da criança para cancelar o registro anterior e se lavrar novo assento, com os nomes dos adotantes como pais legais da criança. O registro de nascimento da criança adotada é considerado um documento público e, como tal, tem fé pública e presunção de verdade, o que significa que os dados nele registrados são considerados verdadeiros até que sejam comprovados o contrário. Portanto, de acordo a Lei de Registros Públicos, o registro de nascimento prévio da criança adotada é cancelado e é lavrado um novo assento de nascimento, desta vez com o nome dos pais adotantes. A regulamentação da alteração do registro de nascimento da criança após a adoção está prevista no artigo 46, da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA): "Art. 46. O registro de nascimento da criança ou adolescente será alterado, incluindo-se o nome dos adotantes como pais, e o respectivo assento será fechado, sendo aberto outro em seu lugar." O que este dispositivo prevê é exatamente o "cancelamento" do termo de nascimento anterior. O Oficial registrador nunca expedirá certidão, exceto através de mandado judicial. A regulamentação da alteração do registro de nascimento da criança após a adoção, encontra-se disposta no art. 47, da Lei de Registros Públicos Este artigo prevê que a sentença que declarar a adoção deve fazer menção expressa à alteração do registro de nascimento da criança, incluindo os nomes dos pais adotantes, e que o oficial do registro deve realizar a averbação necessária. O que se deduz da Resolução 485/2023 do CNJ é que não houve qualquer alteração significativa quanto as diretrizes prévias junto ao ECA nem junto a Lei de Registros Públicos, permanecendo neste aspecto a importância da atribuição do nome da criança bem como o sigilo registral da adoção, bem como o direito ao conhecimento da filiação genética. Para reflexão ... A referida normativa, no intuito de justeza e equilíbrio social, surge com objetivo de direcionar o olhar social à proteção da mulher gestante e puérpera, bem como da criança, fundamentada na responsabilidade solidária do poder público atuante na intervenção precoce de amparo e a orientação social. Nesse sentir, mister se faz a adoção de medidas públicas em favor da gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, visando garantir a máxima proteção de todos os envolvidos. Cumpre destacar, tais medidas devem ser precedidas de suporte à família, para que sejam evitados casos de adoção desnecessários, bem como para que a mãe possa contar com o apoio necessário para cuidar do filho. Dessa forma, a intervenção precoce e mínima é um princípio fundamental para a proteção da criança e da família. A diretriz de atendimento integrado e intersetorial à garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, que estabelece a importância da atuação conjunta e colaborativa de diferentes órgãos e setores da sociedade, visando a garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Essa diretriz é fundamental para que seja garantido o desenvolvimento saudável e pleno das crianças e adolescentes, bem como para a prevenção de situações de vulnerabilidade e violação de direitos Nada obstante, em alguns países da Europa, a citar legislações na França, Luxemburgo, Itália e República Checa todos dispõem de atos normativos autorizadores reconhecendo as mulheres a solicitarem o sigilo do seu parto e de sua identidade na certidão de nascimento da criança, vedando qualquer julgamento discriminatório, de pré-julgamentos morais e religiosos, não havendo a constituição de óbices legais. O legislador pátrio atento as necessidades sociais, buscou encontrar um equilíbrio entre a proteção da criança e a liberdade de decisão da mulher em optar o não exercício consciente da maternidade e evitando, assim, sequelas ao desenvolvimento psicológico e social da criança sujeita ao abandono. E pelo visto, considerando nossa realidade fática da existência de um contingente de crianças que vem sendo abandonadas diariamente ao nascer, necessitando de amparo legal, para além do mero acolhimento assistencial, surge a partir daqueles que se comprometem em aplicar o Direito um instrumento realizador de uma ordem jurídica-social justa e equilibrada, apartada de dogmatismos que possibilita um viés mais conceitual e menos pré-conceitual. As discriminações em matéria de adoções, a partir de partos realizados em segredo, fundadas tão somente no fato de não desejar o exercício da maternidade, constitui um preconceito injustificado, sujeita-se a precoce decretação de nulidade jurídica do ato, por ofender direto a ordem jurídica constitucional. Assim, o parto em segredo deve ser entendido como uma possibilidade de interpretação a reconstrução da dignidade da gestante e da criança, por via de inclusão em um espaço familiar. __________ 1 A resolução 485 do CNJ entrará em vigor 60 dias após a publicação. 2 A política pública de proteção da mulher, gestante e puérpera, bem assim da criança, está assegurada nos arts. 7º, 8º e 13, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 3 Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção em 2020.  Disponível aqui. Acesso em: 09/03/2023. 4 No Brasil, existem diversas normas legais e dispositivos constitucionais que protegem a criança e a parturiente. Alguns dos mais relevantes são: a) Constituição Federal de 1988: A Constituição Federal garante a proteção integral à criança e ao adolescente, assegurando a proteção à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer e à convivência familiar e comunitária (art. 227). Além disso, a Constituição também garante a proteção à maternidade, à gestante e ao parto (art. 6º, 7º e 196). b) Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): O ECA é uma lei federal que estabelece as normas para a proteção integral da criança e do adolescente, estabelecendo seus direitos fundamentais e as obrigações da família, da sociedade e do Estado em relação a eles. O ECA também estabelece normas específicas para a proteção da gestante e da parturiente, como o direito ao acompanhamento durante o parto e a garantia de condições adequadas para o nascimento (arts. 8º e 9º). c) Lei do Parto Humanizado: A Lei nº 11.108/2005 estabelece o direito da gestante de ter um acompanhante durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, além de garantir o respeito aos seus desejos e preferências no momento do parto. d) Normas regulamentadoras do Ministério da Saúde: O Ministério da Saúde estabelece diversas normas e diretrizes para a atenção à saúde da gestante e do recém-nascido, como o Programa de Humanização do Parto e Nascimento (PHPN) e as diretrizes para a atenção ao parto normal. e) Código Penal: O Código Penal prevê sanções penais para crimes contra a gestante, como o aborto sem seu consentimento (art. 125) e o abandono de recém-nascido (art. 134). Esses são apenas alguns dos principais dispositivos legais e constitucionais que protegem a criança e a parturiente no Brasil. Há também outras leis e normas específicas que estabelecem direitos e garantias para essas pessoas em diferentes contextos. 5 As normas internacionais de direitos humanos também estabelecem a proteção ao recém-nascido e à parturiente, sendo alguns dos principais instrumentos: a) Declaração Universal dos Direitos Humanos: A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece o direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa (art. 3º), bem como o direito à saúde, incluindo a assistência médica e os cuidados necessários para a saúde da mãe e da criança (art. 25) (Declaração Universal dos Direitos Humanos - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível aqui). Convenção sobre os Direitos da Criança: A Convenção sobre os Direitos da Criança é um tratado internacional que estabelece os direitos fundamentais de todas as crianças, incluindo o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à igualdade e à proteção contra todas as formas de violência e discriminação (art. 6º e 24º) Convenção sobre os Direitos da Criança - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Disponível aqui). Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher: A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher estabelece o direito à proteção da saúde da mulher, incluindo os cuidados médicos e a assistência obstétrica necessária durante a gravidez, o parto e o período pós-parto (art. 12). Recomendações da Organização Mundial da Saúde: A Organização Mundial da Saúde estabelece recomendações para a assistência à gestante e ao recém-nascido, incluindo as boas práticas para o parto e o nascimento seguro, a atenção ao aleitamento materno e os cuidados pós-natais. (Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979. Disponível aqui. E Recomendações da Organização Mundial da Saúde - As recomendações da OMS para a assistência à gestante e ao recém-nascido são atualizadas periodicamente. As mais recentes estão disponíveis aqui.) Essas são apenas algumas das principais normas internacionais de direitos humanos que estabelecem a proteção ao recém-nascido e à parturiente. Além desses instrumentos, há outros tratados e normas específicas que estabelecem direitos e garantias para essas pessoas em diferentes contextos. 6 Existiam três projetos legislativos que pretendiam institucionalizar o parto anônimo, no Brasil. PL 2.747/2008, o primeiro a ser apresentado à Câmara dos Deputados, pelo deputado Eduardo Valverde, de Rondônia. O PL 2.834/2008, apresentado pelo deputado Carlos Bezerra, de Mato Grosso. Por fim, o PL 3.220/2008, apresentado pelo deputado Sérgio Barradas, da Bahia, cuja autoria é do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Os dois últimos projetos foram apensados ao primeiro para tramitação conjunta e, atualmente, todos encontram-se arquivados. No trâmite legislativo, o projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que acatou o relatório do Deputado Luíz Couto, do Estado da Paraíba, que o rejeitou alegando que seria um evidente retrocesso ao tempo das "rodas dos enjeitados medievais", além de violar, pelos olhos do deputado, diversos direitos fundamentais das crianças (BRASIL, CÂMARA, 2009, on line), o que acarretou o arquivamento dos três Projetos de Lei. 7 Resolução 485/2023 CNJ. Art. 2º Gestante ou parturiente que, antes ou logo após o nascimento, perante hospitais, maternidades, unidades de saúde, conselhos tutelares, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), instituições de ensino ou demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, manifeste interesse em entregar seu filho à adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada, sem constrangimento, à Vara da Infância e Juventude, a fim de que seja formalizado o procedimento judicial e seja designado atendimento pela equipe interprofissional. 8 Resolução 485 CNJ: Art. 6º A equipe técnica deverá informar, ainda, a gestante ou a parturiente, dentre outros, sobre: I - o direito à assistência da rede de proteção, inclusive atendimento psicológico nos períodos pré e pós-natal, devendo, de plano, a equipe interprofissional fazer os encaminhamentos necessários, caso haja sua anuência; 9 ECA, art. 48. 10 Resolução 485 CNJ: Art. 4º No relatório circunstanciado a ser apresentado pela equipe  interprofissional será avaliado: II - se, ressalvado o respeito a sigilo em caso de gestação decorrente de crime, a pessoa gestante foi orientada sobre direitos de proteção, inclusive de aborto legal (art. 128 do Código Penal); ... VI - se a pessoa gestante ou parturiente tem conhecimento da identidade e paradeiro do pai e da família paterna, e se necessita suporte para contato e mediação de eventuais conflitos, salvo no caso de requerer sigilo quanto ao nascimento. 11 A regulamentação da adoção está presente em diversos dispositivos da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA). Algumas das principais disposições que regulamentam a adoção no ECA incluem: Artigo 42: estabelece os requisitos para se tornar adotante, como a idade mínima de 25 anos e a diferença de idade mínima de 16 anos entre o adotante e o adotado. Artigo 44: define as condições para a celebração do ato de adoção, incluindo a necessidade de autorização dos pais biológicos ou da autoridade judiciária. Artigo 45: trata da possibilidade de adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos. Artigo 46: estabelece as formas de registro da adoção, incluindo o registro no Registro Civil de Nascimento das Pessoas Naturais. Artigo 47: define o efeito da adoção, que é a extinção dos vínculos com os pais biológicos e a constituição de novos vínculos de filiação com os adotantes. Artigo 48: estabelece que a adoção pode ser revogada nos casos previstos em lei. Artigo 50: prevê medidas de proteção para os genitores biológicos, como o sigilo da identidade dos mesmos.
Breve introdução e justificativa de estudo                Como já ressaltado em nossas últimas publicações, são diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície (por sobreelevação), enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real. Nesse contexto, isto é, em razão da existência de corrente doutrinária que defende ser o direito de laje, simplesmente, uma forma de direito de superfície (por sobreelevação), revela-se impositivo o estudo específico da natureza jurídica do direito de superfície e, além disso, da natureza jurídica e do regime jurídico do direito de sobreelevação.                Conceito e natureza jurídica do direito real de superfície  Em linhas gerais1, o direito de superfície é o direito real autônomo de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob solo alheio.2 Trata-se de instituto muito discutido, tendo-se construído, ao longo do tempo, diversas teorias explicativas de sua configuração e estrutura. Como afirma Federico Puig Peña, das principais teorias sustentadas ao longo do decorrer histórico, destacam-se: 1º) uma primeira doutrina, fundada especialmente em raízes romanas, que considera o direito de superfície como um direito real sobre coisa alheia (e, dentro dessa visão, incluem-se posições diferentes, como autores que entendem ser a superfície uma espécie de servidão, uma espécie de enfiteuse ou uma espécie de usufruto); 2º) uma segunda doutrina, que mantém a teoria do domínio dividido para explicar o fenômeno superficiário; 3º) uma terceira doutrina, majoritariamente mais aceita na atualidade, que mantém um ponto de vista integral no sentido de entender que a superfície constitui um direito real sobre o solo e ao mesmo tempo uma propriedade superficiária separada.3 A seguir, abordaremos apenas as teorias do desmembramento e a teoria dualista, pois são pouquíssimos os autores que atualmente concebem o direito de superfície como uma servidão, uma enfiteuse ou um usufruto.4 Esta visão está, hoje, tão distante que não cabe no objeto deste estudo, pois os autores mais recentes tentam explicar o direito de superfície ou pela teoria do desmembramento ou pela teoria dualista. Contudo, deve-se observar que tanto os autores adeptos da teoria do desmembramento como parte dos autores adeptos da teoria dualista entendem ser o direito sobre o implante uma forma de direito de propriedade. Ou seja, autores adeptos de teorias distintas, com especificações, delimitações e fundamentos distintos, concluem, de uma forma mais geral, que o direito sobre o implante consiste em um direito de propriedade. A rigor, a teoria do desmembramento e a teoria dualista, a depender da opinião adotada relativa à natureza do direito que recai sobre o implante nesta última, se aproximam. Quando se entende, pela teoria dualista, que o direito sobre o implante consiste em um direito de propriedade, a aproximação com a concepção da teoria do desmembramento é considerável. Por outro lado, quando se entende, pela teoria dualista, que direito sobre o implante consiste em direito sobre coisa alheia, aí fica evidente a distinção entre a teoria dualista e a teoria do desmembramento. Por essa razão, abordaremos o tema a partir da teoria dualista, que, de certa forma, engloba a teoria do desmembramento, estudando-se a natureza dos direitos reais de implantar e sobre o implante.5 Clique aqui e confira a comuna na íntegra. __________ 1 Como ressalva Federico Puig Peña, "realmente resulta difícil dar un concepto exacto del derecho de superficie aplicable a todas las épocas y lugares, por cuanto el mismo cambia mucho de naturaleza y condición, según sea la opinión que se tenga de él. Pero quizá y como término de uma larga evolución pudiera entendierse, con cierto carácter de generalidad, por derecho de superficie aquel de naturaleza real por cuya virtud una persona (concedente) otorga a otra (superficiario) el derecho de las que deviene titular el que las hace bajo ciertas y determinadas condiciones." (PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586). 2 Em sentido próximo: "La superficie è il diritto di fare i mantenere una construzione sul suolo o nel sottosuolo altrui." (BIANCA, A. Massimo. Diritto civile: La proprietá. Milão: Guiffré, 1999, v. 6, p. 541); "El derecho real de superficie es el poder de tener edificación (o plantación) en terreno ajeno, o bien el de levantar y mantener aquélla en éste." (ALBALADEJO, Manuel. Derecho Civil. 4 ed. Barcelona: Bosch, 1975, v. III, p. 207). 3 PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586. 4 V. PEÑA, Federico Puig. Tratado de Derecho Civil Español. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1972, t. III, v. I, p. 586-587. 5 Assim também procedeu metodologicamente Rodrigo Mazzei em: MAZZEI, Rodrigo. Direito de superfície. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 219-244.
Um dos principais pontos "disruptivos" que a lei 14.382/2022 apresenta refere-se ao tema "extratos eletrônicos". Não pela figura do extrato que, como será visto, já era conhecida no ordenamento jurídico brasileiro. O instituto traz uma mudança de paradigmas no Registro de Imóveis, ao prever novas regras para a apresentação de um título, e novos parâmetros para a qualificação registral. E, também, no Registro de Títulos e Documentos, uma vez que "O registro de extratos eletrônicos substituirá o registro integral de diversos contratos, especialmente no que se refere às garantias mobiliárias"1. Este artigo consolida algumas das primeiras impressões acerca do tema, considerando as disposições da lei 14.382/2022, dos vetos à mencionada norma derrubados pelo Congresso Nacional e da recente Medida Provisória 1.162/2023. a) Diferentes usos jurídicos para a palavra "extrato". Para maior clareza de compreensão do instituto, deve-se diferenciar: a.1) Extrato como técnica de escrituração: O decreto 482/1846 previa, em seu artigo 11, que o registro das hipotecas seria feito verbo ad verbum, ou seja, pela transposição integral dos elementos do título. Com a lei 1.237/1864, houve uma reforma da legislação hipotecária e a regra de escrituração mudou: a norma previu que a transcrição seria feita por extratos (artigo 8º, § 1º), ou seja, pelo ato do registrador de extrair e registrar apenas os elementos essenciais do título. Assim, um dos usos correntes para a palavra extrato é a sua utilização como uma técnica de escrituração, pela extração dos elementos mais importantes de um título para sua transposição para o registro. a.2) Extrato como duplicatas dos títulos: Uma outra utilização já adotada pelo direito brasileiro para a palavra "extrato" foi aquela dada pelo decreto 3.453/1864, que regulamentou a lei 1.237/1864 acima mencionada. Para esta norma, os títulos apresentados ao Registro de Imóveis deveriam vir acompanhados de um extrato em duplicada, que deveria conter todos os requisitos necessários à inscrição e à transcrição, e seria assinado pela parte, seu advogado ou procurador (artigo 53). O extrato, aqui, seria o documento a ser apresentado juntamente com o título, contendo todos os elementos exigidos para inscrição ou transcrição. Nas palavras de Lacerda de Almeida2, tratava-se de "um resumo em separado das forças do título, contendo as declarações que devem constar da inscripção". Por razões que serão dispostas a seguir, os extratos físicos foram dispensados expressamente pelo Decreto nº 18.542/1928, norma que regulamentou a seara registral constante do Código Civil de 1916. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Abelha, André; Chalhub, Melhim; Vitale Jr, Olivar Lorena. Sistema Eletrônico de Registros Públicos - Comentada e Comparada (p. 290). Edição do Kindle. 2 LACERDA DE ALMEIDA, Francisco de Paula. Direito das cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1910.
Provimento CNJ 94/2020 Dando seguimento à série Assinaturas Eletrônicas e a lei 14.382/2022, hoje encerramos o ciclo enfrentando o disposto nos §2º do art. 4º e art. 9º, ambos do Provimento CN-CNJ 94/2020. As questões aqui agitadas guardam estreita relação com o tema central dos artigos anteriores: autenticidade e integridade dos títulos apresentados a registro. Os ditos dispositivos do Provimento 94/2020, baixado no auge da pandemia, em circunstâncias excepcionais - o que de certo modo justificava a solução ali alvitrada -, poderão ser reapreciados pela Corregedoria Nacional de Justiça, razão pela qual apresentamos as breves linhas que se seguem, feitas com o objetivo de colaborar com os debates públicos1. Comecemos pelo §2º do art. 4º do dito ato normativo. O dispositivo aponta para uma espécie de documento eletrônico que agora nos interessa: "consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278, de 18 de março de 2020". Pois bem, vamos examinar as referências que serviram de base para o dito dispositivo normativo. Reza o artigo 5º do decreto 10.278/2020: "Artigo 5º O documento digitalizado destinado a se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno deverá: I - ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados; À parte a redação do inciso I, suficientemente clara, vimos que a exegese do art. 5º deve ser iluminada pelo disposto no art. 18 da própria lei regulamentada (lei 13.874/2019), como já destacado anteriormente2. Ademais, poder-se-ia argumentar - e com boas razões -, que o conjunto normativo não se aplicaria às atividades registrais imobiliárias, mas tão-somente àquelas relacionadas ao trato do cidadão com a administração pública, em suas relações e interesses pessoais em face do próprio Estado (e mesmo estritamente, entre os privados - art. 2º do decreto 10.278/2020). Sabe-se que as declarações constantes de documentos assinados "presumem-se verdadeiras em relação aos signatários" (art. 219 do CC e art. 408 do CPC), de modo que a tendência verificada na supressão de reconhecimento de firmas nos documentos apresentados perante a administração pública ganha novo impulso com esta regulação3. Entretanto, a presunção de autoria daquele que digitalizou o título não alcança obviamente os subscritores do instrumento, já que as hipóteses ventiladas no conjunto legal e regulamentar visam a estabelecer canais de interação direta entre o próprio cidadão e a administração pública no marco da governança digital. Trata-se da relação eminentemente pessoal, estabelecida entre o cidadão e o Estado. O documento, assim digitalizado, poderá ser, segundo a regra, equiparado a documento físico "para todos os efeitos legais" (art. 5º). Entretanto, note-se, neste dispositivo, que a oração anterior se articula com a conjunção "e", ligando-a a outro período, qual seja: "comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno" - vale dizer: União, Estados, Distrito Federal e Territórios, além dos Municípios, autarquias, associações públicas e as demais entidades de caráter público criadas por lei (art. 41 do CC). É evidente que a norma se preordena à veiculação de interesses próprios e individuais de cidadãos perante a administração pública (art. 9º do decreto Federal 9.094 2017). Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O dito Provimento CNJ 94/2020 teve o seu prazo de vigência indeterminado, nos termos do art. 1º do Provimento CNJ 90/2022. No dia 23/2/2023, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou a Portaria 15/2023 criando o Grupo de Trabalho encarregado da elaboração de estudos e propostas destinadas à consolidação dos provimentos da Corregedoria Nacional de Justiça relativos ao foro extrajudicial. 2 JACOMINO. Sérgio. Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 - parte II - Breves anotações e sugestões para sua regulamentação. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 2023. 3 A tendência de deformalização é longeva. Vide Decreto Federal 63.166, de 26/8/1968 (art. 1º). Ele seria revogado pelo Decreto Federal 6.932, de 11/9/2009. Mais recentemente, o Decreto 9.094, de 17/7/2017 dispôs: "Art. 9º Exceto se existir dúvida fundada quanto à autenticidade ou previsão legal, fica dispensado o reconhecimento de firma e a autenticação de cópia dos documentos expedidos no País e destinados a fazer prova junto a órgãos e entidades do Poder Executivo federal" (os grifos não são originais)".
Dentro de uma abordagem jurídica objetiva, os oficiais registradores de pessoas naturais no exercício de sua atividade, identificam um ato ou fato jurídico e, a partir dessa análise, torna apto, ou não, registros e averbações. Via de regra, o ato registral se concretiza a partir da genuína e prudente qualificação, em diversos casos, vem se limitando a explicar, ínsitos em uma estrutura lógica formal, a subsunção do ato ou fato jurídico aos parâmetros estipulados pela legislação. Em definitivo, o sistema registral brasileiro, em muito se apoia nessa estrutura sólida e rígida de um direito que fixa suas respostas atreladas às normas legais. Nosso ponto de partida, quiçá, de longe tenha a intenção de ser um discurso contraditório frente ao extenso apanhado normativo-principiológico registral, clama atenção a polêmica envolvendo os registros civis de indivíduos que se auto identificam segundo o gênero não-binárie. E sob esse manto de invisibilidade, tecemos breves considerações. A identidade não-binária (também conhecida não-binárie, em razão neutralidade inclusiva terminológica) é representativa de um conjunto de diversas identidades de gênero, situadas no contexto da cisnormatividade standart, isto é, a identificação do gênero não-binário está para além da definição normativa de sexo biológico1. Questões envolvendo sexo biológico, mormente, passam pela identificação do ser humano ao nascer. Descrito pela medicina, o sexo do ser humano é definido como masculino ou feminino, e a percepção se firma, objetivamente, por intermédio da formação do órgão genital, apartado do gênero que se autodetermina ao longo da vida. Por essa ótica, o sexo atribuído no nascimento, parte da lógica dual: se masculino será definido homem; do contrário, se feminino será designado mulher. Como visto, de modo diverso, o gênero trilha, de forma subjetiva, a auto percepção humana e o indivíduo, inserido na premente necessidade existencial de se auto firmar, vem sendo classificado pela medicina como cisgênero ou transgênero. Dentro do universo das pessoas que se autodeclaram transgêneros, existem indivíduos que se identificam como masculino ou feminino mas, também, encontramos o gênero não-binarie (NGB)2, aqueles sem preferência a orientação preestabelecida. Nesse sentir, inseridos em um contexto de um formalismo conceitual, apegados a noção de que, o pensamento humano segue mediante a uma simplista lógica formal - de que todo ser humano se encaixa nos padrões típicos do sexo pré-definido -, até pouco tempo atrás, parecia inconcebível a admissão de registros de indivíduos com características declaradas "intersexo" ou até mesmo "ignorada". Pois bem, na intenção de suprir determinadas lacunas normativas procedimentais, a intervenção do Conselho Nacional de Justiça vem concretizar com a edição do Provimento n° 122/20223, a significativa inclusão do sexo ignorado nos assentos de nascimento e nos óbitos fetais, otimizando, assim, os registros frente a realidade fática-jurídica, que sempre existiu, todavia, por muito tempo foi sonegada. No que tange a esse aspecto procedimental, conforme dispõe a Declaração de Nascido Vivo (DNV) e a Declaração de Óbito Fetal (DO), tais formulários apresentam o campo "sexo", a ser preenchido pelo responsável médico, descrevendo, junto a classificação padrão, a possibilidade descritiva de sexo ignorado, elemento, até então, necessário a lavratura do assento do registrando. Ao considerar a variável "sexo", um elemento essencial a individualização humana, o modelo estrutural que ora se apresenta, o correlaciona a fixação da personalidade humana e, a perfectibilização dos registros civis passam, necessariamente, por observar esse requisito como sendo um critério essencial. E haverá, certamente, quem considerará dispensável, em um caminhar futurista e inovador, esse elemento a ser concebido acidental do registro; mas em linhas gerais, inserido no modelo estrutural atual, o direito registral ainda se mostra, em tese, linear, seguindo as práticas fielmente estabelecidas. Pois bem, em um consciente respeito a diversidade de gênero (uma vez que a garantia da dignidade humana é precedente vetor axiológico as demais normas nacionais), à vista de um contingente universo de indivíduos declarados transgêneros no país, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n° 73, publicado em 28 de junho de 20184. O referido ato normativo, detalha o procedimento de averbações e de alterações de prenome e de gênero, ou de ambos, nos assentos de nascimentos e casamentos de pessoas transgêneros, padronizando os registros civis de pessoas naturais do país, o respeito a auto identificação de gênero, livre de quaisquer discriminação. A verdade dos fatos é, ao enfrentar o tema "diversidade de gênero", há uma infinidade categórica de situações que exige maior distinção terminológica pois, reforça nosso acurado olhar, a um grupo significativo de pessoas que, em razão da sua por autonomia e liberdade de escolha, ainda, no que tange ao gênero, persiste na indigitada questão envolvendo a descrição de sexo. Esse corte preciso, dentro da prática do registro civil, deve ser posto em exame, pois fere, em essência a dignidade humana e carrega, por si só, o seu caráter verdadeiramente inclusivo, tão crucial a completude de um legítimo desenvolvimento individual e social. Contudo, destaca-se, em que pese as diferentes concepções sobre a basilar, ou não, pontual descrição desse item como elementar no assento registral, ainda que se venha a permitir essa concretude de direito, muitos profissionais entendem que seria o mesmo que dar asa ao "avesso do direito", posta a total ausência de segurança jurídica. Sem embargo, ao contrário, fecham-se caminhos, antecipadamente, quando passamos a analisar os registros públicos, apenas ângulo positivista da lei, um dever que acompanha registrador público ao lutar também, pela segurança social. Centrado na esfera social, ao considerarmos a eterna busca pelo respeito a condição humana, nosso maior desafio, sem dúvida como operador jurídico é atribuir visibilidade funcional à dignidade da pessoa humana, retirando-a do convincente discurso retórico convencional, de modo a alcançar maior interação do indivíduo, da lei e da sua própria realidade social. Para tanto, essa integração, exige proatividade da tríade governamental, para fins de consolidar um direito registral maleável - concatenado a tese construtiva de um direito dúctil -, refletindo toda e qualquer situação fática-social, situado fora do formalismo positivista exacerbado, tecnicamente centrado apenas nos indivíduos que, naturalmente, possuem visibilidade. Pioneiro estudo científico na América Latina, ligado a Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (UNESP), publicado na Scientific Reports, observa que, aproximadamente, 2% da população adulta brasileira se autodeclara transgênero, sendo que, nesse universo, aproximados 1,19% se identificam não-binário, isto é, quase três milhões de pessoas no país.5 Outros países tem igualmente taxas até maiores, como Alemanha e Chile, com 4% de sua população declarando-se transgênero ou não binária6, e a exemplo da Alemanha, Islândia e Malta, já reconhecem o gênero não binário, e introduziram o registro de marcadores de gênero que não sejam masculinos ou femininos e não usam nenhum marcador de gênero em sua documentação oficial, há aqueles que estão trabalhando para adaptar seus sistemas para reconhecer identidades não binárias, como Bélgica, Países Baixos e Grécia.7 Isso é tem relevância não apenas aos estudos interligados a saúde mental, nada obstante, vem sendo essencial para estabelecer um diálogo imprescindível com o poder público à construção de políticas públicas direcionadas e assistenciais, de modo a impulsionar a criação de dispositivos legais condizentes a essa parcela da população, com sugestiva alteração da legislação registral em atenção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável firmado pelo Brasil junto à Organização das Nações Unidas.8 O direito, de longos tempos, vem padecendo desse erro de percepção, e o registrador civil, atuante Ofício de Cidadania, em virtude da aproximação social e capilaridade dos serviços em todo país, diariamente, vem reconhecendo as imprecisões e as lacunas do sistema normativo nacional. Alguns Estados da Federação, a citar, o exemplo da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, através do Provimento n° 16/2022,9 autoriza que indivíduos autodeclarados não-binários, alterem prenome e gênero, incluindo o gênero para não-binarie nos seus registros, mediante procedimento de retificação administrativa, solicitado pessoalmente, pelo interessado, diretamente em cartório. A iniciativa de alteração procedimental pela ação da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal do Rio Grande do Sul partiu da integração do Tribunal a Agenda de 2030/ONU, em observância ao desenvolvimento institucional, a promoção da máxima inclusão social e a busca pela redução das desigualdades em todos os níveis, através de ações direcionadas a firmar o Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos e a responsabilidade das instituições públicas, acompanhando as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal.10 Nessa senda, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em meados de 2022, editou o Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC11, pontuando a necessidade de adequação da atividade registral baiana à plena identificação contemporânea dos transgêneros não binárie, em um pleno exercício de evitar quaisquer práticas discriminatórias de gênero e inclusão social desburocratizante, solicitadas pela via administrativa extrajudicial. Tal direcionamento está centrado não apenas na questão da segurança jurídica prestada pelos registros públicos mas, principalmente, na busca pela segurança social, alcançada pela prestação de um serviço público qualificado, abrangendo direitos fundamentais e sociais. A evolução e essa concretude registral tem alcançado espaço no universo da justiça nacional. Em recente posição, o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco,12 em ação promovida pela Defensoria Pública Estadual, reconheceu em janeiro do corrente ano, a alteração do registro de nascimento com base no gênero não-binárie - reafirmando o uso da linguagem neutra -, e a aceitação do marcador de gênero, para além da alteração de nome solicitada. Pelo visto, com efeito, entre retas e curvas, o direito busca traçar o seu próprio itinerário, estabelecendo pontos de contato entre a realidade social e a norma jurídica. É possível, sempre, aprimorar esse diálogo, não somente apontando e descrevendo as suas imprecisões. Transcender os limites desse universo jurídico sistêmico13 representa um desafio. Pensar o Direito, como um ponto de partida para novos pontos de partida - em menção a Lênio Luiz Streck14 - vem direcionar a construção da legislação nacional adequada a realidade social, fundamentalmente, com o intuito de construir respostas a um direito que muitas vezes se encontra frágil. ___________ 1 FUCHS, Jéssica Janine Bernhardt; HINING, Ana Paula Silva; TONELI, Maria Juracy Figueiras. Psicologia e cisnormatividade. Psicologia & Sociedade, n. 33, 2021. Disponível aqui. Acesso em 16.02.2023. 2 REVISTA GALILEU. O que é gênero não binário e como usar a linguagem neutra no dia a dia. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 122, de 13 de agosto de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023. 4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n° 73, de 28 de junho de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16.02.2023. 5 SPIZZIRRI, Spizzirri, Giancarlo, Eufrásio, Raí; Lima, Maria Cristina Pereira; et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Report, v. 11, n° 2240, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 6 6 charts that reveal global attitudes to LGBT+ and gender identities in 2021. Acesso em 21.02.2023. 7 Right now, just three european countries recognise non-binary identities, but others are pushing forward.. Acesso em 21.02.2023. 8 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Os objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 18.03.2023. 9 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento n° 16/2022 - CGJ. Disponível aqui. Acesso em: 18.02.2023. 10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agenda ONU. Disponível aqui. Acesso em: 17.02.2023. 11 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA. Corregedoria Geral de Justiça do Estado. Provimento Conjunto n° 08, CGJ/CCI/2022- GSEC. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023. 12 ALVES, Pedro. Justiça reconhece gênero 'não binárie' pela 1ª vez em Pernambuco e jovem tem certidão de nascimento retificada. Disponível aqui. Acesso em: 19.02.2023. 13 Os conceitos jurídicos são construções sociais que disponibilizam formas generalizadas de significado para que o direito funcione como direito e para que a sociedade se represente como uma forma objetiva com fundamentos normativos. Nessa perspectiva, a pretensão de validade do direito não é natural ou logicamente derivada de princípios superiores, mas o resultado de uma operação de abstração socialque, apesar das aparências, é sempre equívoco e incompleto. A incompletude do direito reside no fato de que o que passa a ser codificado como direito positivo está inevitavelmente ligado ao que o conceito não é ou está fora de seu alcance (o extralegal). Por isso, a identidade do ordenamento jurídico não se funda na facticidade da unidade, mas na facticidade da diferença: ou seja, na produção de autodescrições instituídas com sucesso que visam encobrir a contingência dos fundamentos do ordenamento jurídico, que podem ser identificados abstratamente, mas não realmente 'encontrados'; e também na geração de tentativas alternativas de autodescrição que revalorizem o direito e expandam a imaginação normativa nas lutas pela definição da forma de sociedade. In: CORDERO, Rodrigo.  The Negative Dialectics of Law: Luhmann and the Sociology of Juridical Concepts. Social & Legal Studies Volume 29, Issue 1, February 2020, Pages 3-18 The Author(s) 2019, Article Reuse Guidelines. Acesso em: 21.02.2023 14 STRECK, Lênio Luiz. Direito, literatura e o jardim dos caminhos que se bifurcam. In: GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 59-71.
Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 - parte I)1, agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis. Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam. De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos "atos de transferência e de registro de bens imóveis" (inc. IV, § 2º, do art. 5º da lei 14.063/2020)2; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada. Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos. Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis3. Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022). Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria. Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres - que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por mera averbação -, poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas. Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de "envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet", nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022. Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da lei 14.382/2022). Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título). Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 A MP 1.162/2023 aprofunda a barafunda relacionada à qualificação técnica dos títulos inscritíveis. A assinatura avançada poderá ser utilizada nos contratos do financiamento imobiliário (art. 17-A da Lei 14.063/2020). Os extratos não são contratos (nem títulos, em sentido próprio). 2 As NSCGJSP preveem no Cap. XX: "366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo". 3 Vide JACOMINO. Sérgio. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022 - Parte I - Breves anotações e sugestões para sua regulamentação, cit. na nota 1.
Com a Declaração de Inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, no julgamento dos Recursos Extraordinários 878.694/MG e 646.721/RS, o Supremo Tribunal Federal, em repercussão geral, fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002". É inconstitucional, portanto, qualquer tipo de distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos (casamento e união estável) o regime do artigo 1.829 do Código Civil, que assim preconiza: "Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:                   I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais." Como consequência, no citado artigo 1.829, onde se lê "cônjuge", dever-se-á, na verdade, ler e compreender "cônjuge ou companheiro". Essa foi a leitura feita pelo Supremo Tribunal Federal do citado dispositivo legal à luz da Constituição Federal, equiparando-se o companheiro ao cônjuge na ordem de vocação hereditária. Superada essa questão, resta ainda saber: O companheiro é ou não herdeiro necessário? Poderá ser excluído da sucessão legítima através de testamento? As respostas a tais questionamentos são de crucial importância ao Direito, especialmente aos ramos do Direito de Família e Sucessões e do Direito Notarial e Registral, tendo inúmeras consequências jurídicas. Os herdeiros necessários são aqueles arrolados no artigo 1.845 do Código Civil. São eles:  - os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Pertence a essa classe especial de herdeiros, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima (CC, art. 1.846), a qual não poderá ser objeto de disposição em testamento. Tampouco poderão ser afastados da sucessão legítima, por testamento, referidos herdeiros necessários, salvo nos casos de deserdação previstos na lei civil. Acontece que, em tais julgamentos, o Pretório Excelso não enfrentou a questão de ser ou não o companheiro herdeiro necessário, não se manifestando com relação ao rol previsto no artigo 1.845 do Código Civil. Entretanto, ao se interpretar referido artigo em consonância com a Constituição da República e com os Princípios Constitucionais norteadores do Direito de Família contemporâneo, intimamente ligados ao caso em apreço, outro não pode ser o entendimento: o companheiro deve ser reconhecido como herdeiro necessário. Com relação ao tema, assevera Flávio Tartuce (2018, p. 1688): "Findo o julgamento pelo STF, para esta edição 2018 da obra, traremos as observações que podem ser feitas sobre o acórdão, sem prejuízo de aspectos que restaram em aberto, pois não enfrentados pelo decisum. O primeiro deles, reafirme-se, diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. O julgamento nada expressa a respeito da dúvida. Todavia, lendo os votos prevalecentes, especialmente o do relator, a conclusão parece ser positiva, sendo essa a posição deste autor, conforme destacado em outros trechos deste livro." Nesse mesmo sentido são as lições de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2020, p. 1858), ao comentarem o artigo 1.845 do Código Civil: "Nesse ponto surge outra questão da mais alta relevância: o companheiro também figura no rol dos herdeiros necessários? [...] A respeito do tema, Paulo Lôbo destaca que são equiparados os direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente e do companheiro, inclusive quanto à ordem de vocação hereditária e à qualificação como herdeiro necessário. Lembra que entre todas as entidades familiares existentes, a que mais se aproxima da união estável é a união conjugal, pois ambas são compostas de casais com ou sem filhos, em convivência pública e duradoura, com objetivo de constituição de família, distinguindo-se apenas pela existência ou não do ato jurídico do casamento. Assim, 'são iguais os direitos dos cônjuges e companheiros relativamente à ordem de vocação hereditária (art. 1.829, III), ao direito real de habitação (art. 1.831), à sucessão concorrente com os descendentes e quota mínima (art. 1.832), à sucessão concorrente com os ascendentes (art. 1.837), à qualificação como herdeiro necessário (art. 1.845)' (LÔBO, Paulo. Direito Civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 168). É também a nossa posição e, cremos mais, essa será a postura interpretativa que se imporá, acreditamos, na doutrina e na jurisprudência brasileira, na linha da evolução histórica-normativa que temos assinalado." (Grifo nosso) Importantes, também, as lições do professor Christiano Cassettari (2021, p. 789): "Se no sistema constitucional vigente é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, isso significa que o companheiro passou a ser herdeiro necessário, desde então. Logo, todos os testamentos que forem abertos após a publicação desse julgamento, se excluírem o companheiro, deverão ser objeto de redução, conforme o art. 1.967 do Código Civil." Dessa forma, em que pese entendimento em sentido contrário, levando-se em consideração o que vem sendo decidido hodiernamente pela Suprema Corte Brasileira, no sentido de igualar a união estável ao casamento para fins de proteção do Estado e de efetiva proteção da família, bem como os princípios norteadores do Direito de Família contemporâneo, especialmente os Princípios Constitucionais da Igualdade, da Liberdade, da Especial Proteção à Família e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, deve o companheiro ser reconhecido como herdeiro necessário, não podendo, portanto, ser afastado da sucessão legítima, por meio de testamento, concorrendo ou não com filhos do companheiro falecido.  Referências BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 Disponível aqui. Acesso em: 08 fev 2023. STF. RE 646.721/RS Disponível aqui. Acesso em: 08 fev 2023. STF. RE 878.694/MG. Disponível aqui. Acesso em: 08 fev 2023. CASSETTARI, Christiano. Elementos de Direito Civil. 9º ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código Civil Comentado artigo por artigo. Salvador-BA: Editora Juspodivm, 2020. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil Volume único. 8ª ed. rev. atual. e ampl., São Paulo: Editora Forense, 2018.
A Corregedoria Nacional de Justiça acha-se debruçada sobre o desafio de regulamentar a lei 14.382/2022. Ainda recentemente, o Sr. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou o Provimento CN-CNJ 139/2023, de 1º de fevereiro, que instituiu as regras basais do SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos1. Entre os assuntos que certamente entrarão no radar do órgão, acha-se a utilização das assinaturas eletrônicas no processo registral imobiliário. Tema de capital importância para os cartórios brasileiros, as assinaturas eletrônicas são instrumentos e ferramentas que vão aptificar os agentes a interagir na infovia de interoperabilidade do SERP e dos Operadores Nacionais das várias especialidades. Lembremo-nos de que o tema não interessa tão somente na perspectiva do funcionamento do SERP, mas abrange, naturalmente, a gestão documental a cargo dos próprios cartórios. Documentos, livros, registros, inscrições etc., acolhidos, produzidos e mantidos na própria serventia, devem submeter-se a rígida codificação e enquadrarem-se em tabelas de temporalidade2. MP 1.162/2023 - a reforma da reforma Mal terminava de alinhavar estas notas ligeiras, tendo depositado o texto na redação do Migalhas Notariais e Registrais, eis que nos chega a notícia do advento da MP 1.162, de 14/2/2023. Aparentemente, o Executivo busca corrigir alguns problemas e defeitos revelados por outros juristas - e por mim mesmo, em artigos anteriores3 - relativamente à reforma da LRP. Estas mudanças sucessivas ocorrem basicamente em virtude de enxertos artificiais de disposições alheias à nossa tradição registral. Como disse alhures, são como flores de plástico postas sobre um jardim tropical... Peças recolhidas de experiências alienígenas e que, de certa maneira, instabilizam o sistema de Registro Imobiliário e se chocam com a ratio do Direito Civil pátrio. Antes de prosseguir com as considerações originais, vamos abrir um pequeno parêntese para nos determos ligeiramente nas novidades consubstanciada no inc. IV, inserido no art. 6º da lei 14.382/2022, art. 17-A na lei 14.063/2020 e a alteração do inc. II do art. 221 da LRP, todos embalados pela dita medida provisória. São elas, in verbis: Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta lei. § 1º Na hipótese de que trata o caput deste artigo: [...] IV - os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis produzidos pelas instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública poderão ser apresentados ao registro eletrônico de imóveis e as referidas instituições financeiras arquivarão o instrumento contratual em pasta própria. Art. 17-A.  As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta Lei. ... Art. 221 - Somente são admitidos registro: [...] II - escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública; (Redação dada pela Medida Provisória 1.162, de 2023) À parte a redação rebarbativa do inciso IV do art. 6º, acima transcrito, vê-se que a pequena reforma da reforma previu uma faculdade que se concede às instituições financeiras permitindo que elas utilizem o sistema de meros extratos na consumação do registro. As novas disposições não alteraram substancialmente a situação anterior - exceto que a via notarial foi parcialmente obliterada, substituindo-se a "pasta própria" do tabelionato pela congênere das ditas instituições financeiras. A questão central, já enfrentada em artigo anterior4, a rigor remanesce como pedra de tropeço (ou de opróbrio) da reforma. Examinando atentamente o texto da lei, haveremos de conceder que ou bem o título inscritível será o extrato, subvertendo-se completamente o sistema registral, ou ele sempre reclama a contraparte (o próprio "instrumento contratual", como grafado na lei). Vejamos em detalhe. Reza o caput do art. 6º que os oficiais, quando cabível, receberão extratos eletrônicos "para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos". Nota bene: inscrição de fatos, atos e negócios jurídicos - claras hipóteses de títulos materiais cujo rol se acha nos incisos I e II do art. 167 da LRP, instrumentalizados pelos títulos indicados no art. 221 da LRP. Seguindo o sinuoso percurso da norma, lemos no inciso I do § 1º do art. 6º que o Oficial "qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico". Em seguida lê-se, no § 2º do mesmo artigo, que nos casos de extratos, proceder-se-á à "subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado", a sugerir que o título deva ser apresentado. Por fim, o Oficial qualificará o título em seus aspectos formais e materiais (não o extrato, que contém apenas certos dados estruturados veiculados por meios eletrônicos e processados no hub pseudo registral)"5. Não queiramos ser mais realistas do que o rei. Parece certo que o "extrato" tenderá a absorver o título, na exata medida em que as entidades registradoras progressivamente vão assimilando o próprio Registro de Imóveis. Está em causa uma profunda mudança de paradigmas do sistema registral pátrio. Advirta-se, pois, de que já não estaremos diante de um título em sentido próprio, mas de outra coisa, bem diferente, longe mesmo, até, de um conjecturável negócio jurídico abstrato, que atrairia a qualificação registral sobre aspectos relativos à existência, validade e eficácia de um negócio jurídico que não é um negócio jurídico, de um  instrumento que não é instrumento, de um título que não é um título6. Nasceu entre nós, com o advento da MP 1.085/2021, o registro por mera indicação, artefato algoritimizável, que não reclama maiores zelos e responsabilidades do que a vigilância da infovia e de seus aparatos tecnológicos. Por outro lado, o art. 17-A, igualmente enxertado na lei 14.063/2020, leva a três ordens de considerações: (a) se o instrumento remanescer arquivado nas "pastas próprias" das instituições financeiras (inc. IV do art. 6º da lei 14.382/2022), tollitur quaestio. Nada há de novo no front, já que o instrumento jamais chegará ao Registro de Imóveis. Nesse caso, tanto faz que a banca adote a modalidade avançada ou qualificada de assinatura eletrônica (aparentemente já não poderá utilizar as assinaturas simples). No caso em que (b) o contrato seja enviado ao Cartório, a assinatura avançada poderá de fato ser adotada, mas isto é um plus em relação às regras anteriores (inc. II do artigo 221 da LRP, alterado). No ingresso de títulos em papel ou mesmo eletrônico (pela plataforma do ONR), não se exigia o reconhecimento de firmas dos contratantes e testemunhas... Agora, ao menos, a instituições financeiras (ou empresas privadas contratadas para tal mister) atrairão para si a responsabilidade autenticatória das firmas dos contratantes, deslocando inteiramente o eixo das responsabilidades civis, penais e administrativas do registrador para os entes financeiros. Por fim, (c) a disposição legal não alcança o extrato, já que ele não representa "instrumentos particulares com caráter de escritura pública", nem é assinado pelos "partícipes dos contratos" (dicção do art. 17-A da Lei de Assinaturas Eletrônicas). Por fim, para não deixar passar a oportunidade, note-se que a manutenção inalterada do inc. III do art. 6º da lei 14.382/2022 abre a janela para que todo e qualquer instrumento particular, portado e "autenticado" pelo próprio interessado (art. 6º da lei 14.382/2022), possa aceder ao registro por meio de extratos apresentados por tabelião de notas, "hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria" (inc. III do dito art. 6º). A barafunda legislativa se complexifica a cada emenda da emenda. Espera-se que a Corregedoria Nacional de Justiça possa colocar o assunto em bom rumo sistemático, nos termos do inc. VIII do art. 7º da lei 14.382/2022. Voltando à vaca fria... Como decíamos ayer, compartilho com a comunidade de estudiosos de direito registral as ligeiras reflexões que vão logo baixo, buscando contribuir com os debates e discussões que se seguirão até a regulamentação de toda a infraestrutura do SERP pela Corregedoria Nacional de Justiça7. Para maior conforto, resolvi segmentar esta série em três capítulos. Com isso, mantenho o padrão enxuto da Coluna Migalhas Notariais e Registrais, e não canso em demasia os nossos leitores. Boa leitura! Assinaturas eletrônicas - dispersão sistemática na regulação   De partida, é preciso destacar a falta de rigor sistemático no tratamento da matéria nas várias leis que se sucederam ao longo do tempo. Desde o advento da MP 2.200-2, de 2001, até a recente reforma da LRP, muitas leis e regulamentos advieram, tornando pedregosa a tarefa de discernir o que deva prevalecer como referência a orientar os operadores e órgãos reguladores em relação às assinaturas eletrônicas. Pergunta-se: afinal, para a transmissão ou oneração de bens imóveis será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada ou será admitida a avançada?8 Comecemos por assinalar que as leis de regência, para o caso do Registro de Imóveis, são: a MP 2.200-2/2001 (§ 1º do art. 10) e a lei 14.063/2020 (inc. IV, § 2º, do art. 5º). Entretanto, recentemente se vem insinuando no ordenamento legal a admissibilidade de utilização de assinaturas avançadas para alguns casos específicos. Os exemplos são os seguintes: a) Registro Mercantil. Registro de atos perante as juntas comerciais - letra "c", § 1º, do art. 5º c.c. inc. IV do mesmo artigo da Lei 14.063/2020; b) Cédulas escriturais de Produto Rural. Inciso II, §4º, do art. 3º da lei 8.929/1994, na redação dada pela Lei 14.421/2022; c) LRP - art. 17 e parágrafos c.c. art. 38 da Lei 11.977/2009, alterados pela lei 14.382/2022. Questiona-se: os dispositivos legais supra, que sancionam sua utilização, devem ser consideradas hipóteses excepcionais em relação às regras gerais? No caso do Registro de Imóveis, especialmente, as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas tout court? Registro de atos perante as juntas comerciais A lei 14.063/2020 criou uma exceção à exigência da assinatura eletrônica qualificada. Vejamos o quadro legal: Art. 5º [..].  § 1º [...] II - a assinatura eletrônica avançada poderá ser admitida, inclusive: [...] c) no registro de atos perante as juntas comerciais; § 2º É obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada: IV - nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, ressalvado o disposto na alínea "c" do inciso II do § 1º deste artigo; Para compreendermos perfeitamente o quadro delineado, é preciso coordenar estes dispositivos com a legislação atinente ao registro do comércio. Assim, tanto a Lei 8.934/1994 (art. 85), quanto a lei 6.404/1976 (§ 2º do art. 98 e art. 224), o decreto 1.800/1996 e a IN-DIRE 81/2020, todos eles preveem que a certidão dos atos constitutivos e de suas alterações constitui título inscritível no Registro de Imóveis. A autenticação dos atos praticados perante as juntas comerciais, bem como as certidões expedidas pelo órgão, ambas admitem a utilização da assinatura eletrônica avançada. As certidões podem ser assinadas com certificados digitais da ICP-Brasil, mas poderão sê-lo, igualmente, por "qualquer outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, nos termos do § 2º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, e da lei 14.063, de 23 de setembro de 2020" (art. 104 da IN-DIRE 81/20209). Entretanto, as certidões, depois de expedidas em forma digital, serão disponibilizadas "nos respectivos sítios na internet em formato PDF" (art. 104, cit.). Nestes casos, será sempre possível conferir a autenticidade da certidão no site da própria junta comercial, a exemplo do que ocorre rotineiramente com a reprodução de peças processuais dos tribunais brasileiros. No caso de autos digitais, deve-se prover "elementos que permitam verificar a sua autenticidade em endereço eletrônico para esse fim, disponibilizado nos sítios do Conselho Nacional de Justiça e de cada um dos Tribunais usuários do Sistema Processo Judicial Eletrônico - Pje"10. Este aspecto de autenticação não passou desapercebido pela juíza titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo na sentença prolatada no Processo 1112167-65.2022.8.26.0100, de onde se colhe: "Outrossim, a autenticidade da certidão apresentada, [...] pode ser confirmada no portal mediante o código de autenticação (omissis) anotado no rodapé do documento, onde também se encontra a informação de que a JUCESP garante a autenticidade do registro e da Certidão de Inteiro Teor quando visualizados diretamente no seu portal eletrônico"11. Este microssistema confere aos instrumentos que acedem ao Ofício Imobiliário um grau de segurança bastante aceitável em relação à criticidade da decisão inscritiva (art. 7º da Lei 14.129/2021). Cédulas escriturais e as garantias imobiliárias Vimos que se admite o uso de assinatura eletrônica avançada ou qualificada  na emissão de cédulas de produto rural emitidas em forma escritural, quando carregarem garantias reais mobiliárias ou imobiliárias (inc. II, § 4º, do art. 3º da lei 8.929/1994, na redação dada pela lei 14.421/2022). A emissão de tais cédulas pode ser feita em forma escritural ou cartular. Vale a pena nos demorarmos um pouco na compreensão das ditas figuras. A distinção se acha originariamente consagrada na lei 10.931/2004 (§ 4º do art. 18). Em brevíssima síntese, podemos dizer que a cédula escritural é a destinada a custódia nas instituições custodiantes regulamentadas pelo Banco Central do Brasil. A cédula escritural tanto pode ser emitida em forma cartular, quanto eletrônica - sendo que esta última haverá de se tornar a regra absoluta12. Para compreendermos com clareza o microssistema representado pelo registro e custódia das cédulas de crédito em entidades exógenas ao sistema registral pátrio, é preciso retroceder a investigação a alguns poucos anos. Seu début parece ter ocorrido com o advento da Lei 12.543/2011, que introduziu o art. 63-A na Lei 10.931/2004. Posteriormente, a lei 13.476/2017 revogaria dito dispositivo e alteraria o art. 26 da lei 12.810/2013 para dispor acerca da "constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado". Note-se - aqui também - a progressiva apropriação de expressões peculiares do sistema de publicidade jurídica usadas de modo uniforme há muitas décadas13. São sintomas de uma mudança paradigmática a qual aludi logo acima. Esta viragem, por si só, é um claro signo do lento processo de apropriação das atividades registrais por entidades pararregistrais14. A custódia e o registro de tais títulos de crédito, garantidos por bens móveis ou imóveis, se dá em entes centralizados, exógenos ao sistema registral, embora a garantia real imobiliária ainda se constitua pela inscrição no Registro de Imóveis competente (§ 2º do art. 12 da mesma Lei 8.929/1994, dentre outros). A centralização de dados se tornou uma tendência que parece exercer uma força atrativa irresistível - tropismo registral, como disse alhures15. A dança do art. 42-A da Lei 8.935/1994, incrustrado na Lei dos Notários e Registradores, é um exemplo, mas não o único16. Voltando à CPR, é importante destacar que as alterações introduzidas na lei foram justificadas na mensagem de encaminhamento da MP 1.104/2022 ao Congresso Nacional, da qual se colhe o seguinte: "Considerando os níveis de confiança das assinaturas estabelecidos pela lei 14.063, de 2020, e a necessidade de permitir maior liberdade para que as partes contratantes definam o nível de confiança que melhor atendam aos seus interesses negociais, proponho que para a assinatura da CPR e do documento que contenha a descrição dos bens vinculados em garantia possam ser utilizados os três níveis de assinatura eletrônica (simples, avançada e qualificada); e que, no registro e na averbação de garantia real vinculada à CPR, constituída por bens móveis e imóveis, possam ser utilizadas as assinaturas eletrônicas avançada ou qualificada"17. A mensagem alude à maior liberdade negocial para que as partes possam definir o nível de confiança que melhor atenda aos seus interesses, sopesados os níveis de risco em relação à "criticidade da decisão, da informação ou do serviço específico" (art. 7º da Lei 14.129/2021). Este é o eixo da questão: em que casos a assinatura avançada pode ser admitida, garantindo-se um nível tolerável e administrável de confiança e segurança nas transações que redundam na mutação jurídico-real? A lei o admite, é certo, mas não discrimina o casos. É preciso, portanto, antes de regulamentar a sua utilização, compreender o contexto em que o dispositivo autorizador calha. As disposições da lei da CPR (e da própria LRP) devem coordenar-se logicamente com a Lei 14.063/2020, norma geral que a ilumina e confere um sentido racional ao microssistema. Note-se aqui um pequeno e fundamental detalhe: a assinatura avançada será admitida exclusivamente nas hipóteses em que sua adoção seja consentida e reconhecida como válida pelas partes ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento. É o que nos revela o dito inc. II, in fine, do art. 4º da Lei 14.063/2020. Para maior clareza, eis o que nos revela o dispositivo: "assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento (.)" (g. n.). O caráter excepcional de admissão da assinatura avançada permite sua utilização no caso de as partes (ou a pessoa a quem for oposto o documento) aceitarem-na antecipadamente. O prévio acordo entre as partes - ou a falta de impugnação daquele contra quem foi produzido o documento, ou em relação a quem seus efeitos se produzirão - gera a autenticação, nos termos dos incisos II e III do art. 411 do CPC18. A mensagem ministerial, veiculada ao Congresso Nacional, não alude a terceiros - i.e., a quem poderá ser oposta as garantias reais cartulares, especialmente porque a eficácia e a oponibilidade dos direitos reais se irradiam erga omnes, colhendo, naturalmente, os sucessores a que título for. Neste ponto, abre-se um campo fértil para eventuais disputas judiciais, que se resolveriam, em grande medida, com a predefinição da autoria e integridade do instrumento, evitando-se eventual judicialização e o elevado custo transacional que podem incorrer as partes nas suas transações de crédito com garantias imobiliárias adjetas. Não custa relembrar que os Registros Públicos atuam na esfera ante judicial, sistema de segurança jurídica preventiva de conflitos e litígios. Uma vez desencadeado o conflito de interesses, judicializada a demanda, abre-se a dilação probatória e as partes produzirão livremente as provas que calharem (art. 369 do CPC). Sabemos que isso é tudo o que o sistema registral não é, não promove, nem fomenta. A assinatura qualificada, gozando das mesmas garantias que a assinatura manuscrita e com firma reconhecida, aporta um plus: o instrumento assinado com os certificados da ICP-Brasil, preenchidos os requisitos legais, gera os efeitos de validade, autenticidade e eficácia ex lege. Note-se que estes potentes efeitos decorrem diretamente da própria lei e não dependem nem do prévio reconhecimento de validade entre as partes, nem da aceitação pela pessoa a quem for oposto o documento (nem, tampouco, de sucessores a que título for). Os documentos eletrônicos firmados com assinaturas qualificadas já nascem com estes atributos, diferentemente das demais modalidades (simples e avançada). A assinatura qualificada - diz o texto legal - é "a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos" (§ 1º do art. 4º da lei 14.063/2020). A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, acolhendo o parecer do magistrado JOSUÉ MODESTO PASSOS, consagrou o entendimento de que, no caso de assinaturas qualificadas (ICP-Brasil), "as declarações constantes dos documentos eletrônicos presumem-se desde logo verdadeiros em relação aos signatários (Cód. Civil, art. 219, caput), sem mais. Caso sejam empregados outros meios de comprovação de autoria e integridade, essas declarações presumem-se verdadeiras entre os contratantes, mas não são ipso iure oponíveis a terceiros, que primeiro têm de verificar, junto aos relativos sites certificadores, com a segurança necessária, a autenticidade do que está aposto"19. É preciso levar em consideração a natureza singular dos direitos reais. A propriedade não se extingue pelo decurso do tempo20 e as assinaturas avançadas, dependendo de sua fonte certificadora (normalmente empresas privadas), podem perder-se na nuvem de elétrons com o passar do tempo. O surgimento e desaparecimento de empresas "ponto com" ocorre amiúde em face dos impactos de processos disruptivos da economia digital. A perenidade dos atos cartoriais reclama o tratamento técnico seguro e adequado. Enfim, admitida que seja a recepção pelos Registros Imobiliários das CPR's, firmadas com assinaturas avançadas, a hipótese deve alinhar-se com a exceção criada na própria LRP (inc. II do art. 221), ao dispor acerca dos instrumentos particulares oriundos de "instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário". Eis um típico exemplo de substituição de segurança jurídica por segurança econômica e tecnológica21. No próximo artigo, vamos ajustar ainda mais o foco: assinatura avançada no Registro de Imóveis. __________ 1 Provimento CN-CNJ 139, de 1º/2/2023, Dje de 2/2/2021, Min. LUÍS FELIPE SALOMÃO. Acesso aqui.  2 JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no Registro de Imóveis - A reforma da LRP pela lei 14.382/2022. Revista de Direito Imobiliário, Vol. 93, jul.-dez. 2022, p. 13 et seq. Sobre o tema, v. dossiê CNJ/CONARQ.  3 Recomendo a leitura dos seguintes artigos, todos publicados no Migalhas Notariais e Registrais: SERP - havia uma pedra no caminho, em que analiso a redação defectiva do inc. III do mesmo art. 6º da Lei e, especialmente, Extratos, títulos e outras notícias - Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (lei 14.382/22), no qual critico a confusão criada com os títulos inscritivos. Acesso aqui. 4 JACOMINO. Sérgio. Extratos, títulos e outras notícias - Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (lei 14.382/22), op. cit. 5 Id. Ibidem. 6 A barafunda terminológica se espraia por todo o corpo da lei. A expressão títulos se acha em vários quadrantes com o sentido próprio - art. 172, n. 3 e 4, III, art. 176 etc. 7 As nótulas que compõem o presente artigo decorreram da excelente interlocução travada com o Prof. Dr. RICARDO CAMPOS, da Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Em virtude da sua nomeação para compor o ilustre Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR (Portaria CN-CNJ 7, de 31/1/2023), é imperioso consignar que as conclusões aqui esboçadas são de minha exclusiva responsabilidade e não expressam, necessariamente, as opiniões do ilustre professor. 8 A classificação e definição legal de assinaturas eletrônicas simples, avançada e qualificada acha-se no art. 4º da lei 14.063/2020. 9 IN-DREI 81, de 10/6/2020, alterada pela IN DREI 55, de 2/6/2021. Acesso aqui. 10 V. § 1º do art. 4º da Resolução CNJ 185, de 18/12/2013. Acesso aqui. O mesmo exemplo encontramos com os notários, que emitem o seu "manifesto notarial" que aponta para o site do próprio Colégio Notarial do Brasil onde se pode baixar documentos, traslados e certidões assinados com a assinatura qualificada. 11 Processo 1VRPSP 1112167-65.2022.8.26.0100, j. 21/11/2022, Dje 23/11/2022, Dra. LUCIANA CARONE NUCCI EUGÊNIO MAHUAD. Acesso aqui. 12 V., pode exemplo, o § 4º do art. 18 da lei 10.931/2004: "A emissão da CCI sob a forma escritural ocorrerá por meio de escritura pública ou instrumento particular, que permanecerá custodiado em instituição financeira". Remeto o leitor para o pequeno roteiro elaborado por mim: Item 4 - que diferença existe entre a CCI cartular e a escritural? In JACOMINO. S. Cédula de Crédito Imobiliário - roteiro prático para o registrador. In Boletim Eletrônico do IRIB n. 593. São Paulo: IRIB, 18/12/2002. Acesso aqui. 13  A expressão "gravames" não se acha consagrada no ordenamento civil e integra o dialeto da novilíngua de instituições financeiras. Para uma abordagem detalhada das expressões que hoje transitam no sistema, V. JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 2022. Acesso aqui. 14 Em relação ao tema, em outro artigo busquei demonstrar como os ativos, títulos e valores mobiliários, custodiados e registrados em entidades pararregistrais, acabaram por assimilar a transmissão da propriedade fiduciária imobiliária pela via de cessão de direitos creditórios, alienação esta que se dá fora do sistema do direito civil. V. JACOMINO. Sérgio.  Cédula de Crédito e o Registro Eletrônico de Cessões Vinculadas a Direitos Reais de Garantia. No prelo. 15 No discurso proferido na abertura do 38º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis, realizado em 24/6/2019 na cidade de Cuiabá, MT, questionava os registradores nos seguintes termos: "haveremos de nos vergar, numa espécie de tropismo incondicional aos influxos que nascem exclusivamente de necessidades do mercado financeiro? Vamos depositar nas mãos de agentes e representantes dessa magnífica força do mercado imobiliário a reengenharia do próprio sistema registral?". São Paulo: Irib. JACOMINO. Sérgio.  O sentido e a direção - a charada do registrador. 24/6/2019. Íntegra aqui. 16 O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON's, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de "cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei". O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central - ou anomia registral? - bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso aqui. 17 EM nº 54/2022 ME, de 9/3/2022. Convertida na Lei nº 14.421 de 20/07/2022, ficou estabelecido que as partes elegerão "a forma e o nível de segurança da assinatura eletrônica que serão admitidos para fins de validade, eficácia e executividade" (§ 4º do art. 3º da Lei 8.929/1994). O tema da garantia de "executividade" remete, novamente, à ideia de prova pré-constituída e requisitos de caráter jurídico para segurança e previsibilidade dos atos e negócios jurídicos. 18 Pode ocorrer, eventualmente, a preclusão do direito de questionar a autenticidade do documento.  EDcl no RMS 52044/DF, j. 23/10/2018, Dje 31/10/2018, Relator Min. OG FERNANDES. "Não havendo impugnação específica acerca da autenticidade dos documentos, mas apenas afirmação que deveriam ser reconhecidos em cartório, deve ser reconhecida sua validade". V. NERY. Nelson. NERY. Rosa Maria de Andrade. CPC Comentado. 17ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 1.039, n. 2. 19 Processo CG 10.060/2022, decisão de 9/2/2022, Desembargador FERNANDO ANTÔNIO TORRES GARCIA. Acesso aqui. 20 "O sistema jurídico brasileiro", diz Pontes, "não cogita da limitação da propriedade no tempo, salvo em se tratando de propriedade literária, artística, científica ou industrial (propriedade intelectual), ou quando ligada a certo gênero de exploração. Em princípio, a propriedade é perpétua". Mais adiante, acentua que a "transferência da propriedade é perpétua, ou por todo o tempo em que ela subsista". MIRANDA. Pontes de. Tratado. Tomo XI, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 23, § 1.164, n. 3. 21 A dispensa do reconhecimento ocorre em outras hipóteses - especialmente de títulos de extração administrativa e os oriundos de instituições financeiras. V. JACOMINO. Sérgio. O instrumento particular e o Registro de Imóveis. Academia.edu, Jan. 2010, acesso aqui.  
A busca por uma sucessão familiar adequada e menos impactante é algo que vem crescendo muito no país. A sucessão não planejada resulta em uma série de problemas, por exemplo, a necessidade de tomar decisões imediatas, as quais acabam não permitindo uma análise mais aprofundada, que possibilitaria o direcionamento do melhor caminho a ser seguido por aquele núcleo familiar específico. Além disso, a falta de um planejamento sucessório prévio resultará na necessidade de tomarmos decisões importantes nos momentos mais difíceis e delicados de nossas vidas, que é justamente quando perdemos um ente querido. Adiantar-se em relação a algo que, inevitavelmente, irá acontecer, é uma ótima estratégia e acaba evitando surpresas indesejáveis. Esse planejamento prévio se torna mais atrativo uma vez que, além de evitar problemas futuros e gerar economia patrimonial para a família, conta com a participação de todos os familiares, unidos no mesmo propósito, que podem estudar melhor as alternativas disponíveis e decidirem, juntos, o melhor caminho para todos. Para que o planejamento e execução aconteçam da melhor maneira, é necessário observar alguns pontos: 1- As expectativas dos envolvidos devem ser alinhadas antes de qualquer movimentação; 2- Averiguar se existem objetivos em comum acerca do negócio e patrimônio; 3- Cada um deve entender seu papel na família e negócio, bem como sua cota de contribuição em cada esfera; 4- Compreender que sucessão do patrimônio e sucessão da gestão se diferenciam; 5- Observar se existem interessados na sucessão da gestão, realizar a inserção gradativamente dentro do modelo de negócio e desenhar um plano de carreira para o sucessor; 6- Entender que não há padrão dentre as opções de arranjo patrimonial, e que as ferramentas aplicadas devem estar em consonância com o modelo de gestão e a dinâmica familiar; 7- Um planejamento pronto e completo dificilmente atenderá as necessidades individuais de cada família e negócio; 8- Inferir se haverá ou não a possibilidade de permanência de uma sociedade entre os sucessores, ou por alguns deles. Além dos diversos ramos de negócios existentes, é necessário saber quais os objetivos individuais e coletivos de cada núcleo familiar. Sempre há diversidades de problemas, que também podem sofrer muitas variações, a depender das diferentes regiões em que se concentram os negócios e os bens de cada família. Além disso, também é necessário analisar as intenções, os costumes e as pretensões futuras de todos os sucessores e seus antecessores, para possibilitar um planejamento sucessório mais adequado e específico. Vale lembrar que nesta diversidade, neste processo complexo onde papéis se sobrepõem nas três esferas, os interesses da família não devem ser causa de anulação do indivíduo. No aspecto jurídico, dentre os instrumentos legais existentes para a realização do planejamento sucessório, podemos citar várias ferramentas de proteção ao patrimônio dos herdeiros, tais como: A- Escrituras públicas de doação, seja em adiantamento da legítima herança, da parte disponível do patrimônio, ou de ambas, e, a cada vez mais utilizada, escritura pública de partilha em vida, que vem revolucionando o cenário de sucessão familiar, e, ainda, a formalização de holdings familiares, seja por escritura pública ou por instrumento particular. B- Não menos importante, temos o Testamento Público, uma opção que também vem crescendo muito no país, principalmente depois da pandemia que enfrentamos recentemente. C- Existem, ainda, ferramentas legais de proteção que podem ser inseridas em muitos desses instrumentos jurídicos, tais como a reserva de usufruto, as cláusulas de incomunicabilidade (específica ou geral), impenhorabilidade, inalienabilidade e de reversão. D- Escrituras declaratórias de união estável e os pactos antenupciais, os quais poderão ser amplamente explorados com diversas cláusulas e regramentos de proteção. Em muitos casos o planejamento sucessório ideal pode abranger mais de um desses instrumentos, ou até todos eles. Para que certos planejamentos sucessórios sejam realmente viáveis, não basta uma análise somente do ponto de vista tributário. A economia de imposto deve ser analisada juntamente com diversos outros fatores importantes. Uma economia momentânea pode nem sempre ser o ideal, podendo, a depender do caso, gerar mais gastos no futuro. Um exemplo muito comum é o excesso de propagandas em torno da realização da holding familiar. Muitas dessas propagandas passam a falsa ideia de que somente a holding é, em qualquer situação, a melhor ferramenta de planejamento sucessório. Essa afirmação não procede, uma vez que ela tanto pode ser uma ótima opção para algumas famílias, como também pode não ser a melhor opção para outras. Podendo, também, ser apenas uma das opções dentro do planejamento sucessório, dentre várias outras necessárias. A título de exemplo, podemos garantir que nem sempre uma economia de imposto de transmissão (ITCMD), para realizar a transferência do patrimônio aos herdeiros, pode ser a solução de todos os problemas; pelo contrário, a depender do caso, o meio mais econômico hoje pode ser o começo de todos os problemas que terão no futuro. Assim, criar uma sociedade entre os herdeiros somente para economizar o imposto de transmissão pode ser algo totalmente inviável, caso a solidez desta sociedade se mostre praticamente inviável entre eles. Estudos recentes demonstram que a busca pela extinção da sociedade entre os herdeiros vem crescendo consideravelmente, uma vez que o próprio vínculo parentesco acaba dificultando a harmonia necessária para o bom andamento da sociedade empresarial. Desse modo, nota-se que, em tais situações, diante da impossibilidade de manter uma sociedade saudável entre os sucessores, optar pela integralização de imóveis em sociedade empresarial e posterior doação de cotas, poderia apenas adiar os problemas e criar gastos mais elevados no futuro, quando da dissolução desta sociedade e divisão patrimonial. Nesse cenário, a escritura pública de partilha em vida, cuja utilização vem crescendo consideravelmente no país, seria uma opção a ser considerada, visto que por meio dela o patrimônio já pode ser separado em quinhões para cada sucessor, e, ainda, com a participação dos antecessores em cada quinhão. O resultado dessa partilha vem sendo muito elogiado pelas famílias, que conseguem separar o patrimônio dos sucessores, e ao mesmo tempo ter os antecessores como sócios de cada sucessor de forma individual, pois reservam para si o usufruto, ou parte dele, em cada quinhão. Em termos mais simples, significa dizer que os pais conseguem dividir o patrimônio de modo que cada filho já fique com seu patrimônio certo, permanecendo os pais em todos os quinhões, ou seja, os pais seguem ao lado dos filhos, orientando-os e acompanhando-os em todas as decisões. Além disso, o grande diferencial é que na partilha em vida, diferente da doação, todos participam, ou seja, os filhos participam da divisão do patrimônio realizada, e da transmissão de seus pais para eles e para os seus irmãos, aceitando o que está recebendo e concordando com aquilo que os irmãos recebem, evitando-se qualquer tipo de problema futuro. O planejamento sucessório, além dessas possiblidades, também pode ser aproveitado, como dito anteriormente, para colocar regras de proteção patrimonial para os sucessores. Essa é uma importante fase do planejamento, que deve ser minunciosamente estudada de acordo com a situação concreta de cada família. Portanto, planejar a sucessão é um caminho que possibilita organizar e profissionalizar o negócio, utilizando ferramentas e regramento específico a cada modelo de gestão e dinâmica familiar, respeitando fatores singulares, buscando a perpetuidade.
Introdução - Características dos direitos reais em geral Em nossa última publicação, vimos os princípios norteadores dos direitos reais, que nos conferirão maior facilidade com o trato da questão que esta série pretende responder - qual a natureza jurídica do direito de laje. Nesta, agora, iremos nos aproximar mais desta questão, trazendo apontamentos que serão relevantíssimos para a crítica dos argumentos utilizados pelos autores brasileiros para a definição da natureza jurídica do direito de laje. Especificamente, um prévio estudo sobre as características dos direitos reais mostra-se necessário para que, mais à frente, possamos empreender uma análise percuciente dos caracteres exclusivos do direito de propriedade, que nos permitam distingui-lo dos demais direitos reais (limitados). Segundo a doutrina portuguesa, são as seguintes as características presentes em todos os direitos reais: a) inerência, b) eficácia absoluta e c) sequela/ambulatoriedade. Vejamos sucintamente cada uma delas. Inerência (aderência direta e imediata) O direito real adere, direta e imediatamente, à coisa ao qual se refere.1 Assim, a inerência significa que o direito real está de tal forma ligado à coisa que é o seu objeto, que a ela inere e não pode dela ser desligado.2 Ou, nas palavras de Clóvis Bevilaqua: "ele adere, imediatamente, à coisa, vinculando-a, diretamente, ao titular."3 Absolutividade Os direitos reais são direitos absolutos. Como precisamente leciona Luciano de Camargo Penteado, "direito absoluto é o que configura situação jurídica absoluta, isto é, não relacional." Isto é, "é o que prescinde, para a sua configuração, de relação jurídica. Situações jurídicas absolutas são as que independem de vínculos prévios com outros sujeitos de direito para se configurar." Além das situações jurídicas reais, são absolutas, por exemplo, as situações jurídicas geradas pelos direitos de personalidade." Assim, "decorre da característica de direito absoluto que têm os direitos reais a sua oponibilidade erga omnes."4 Nesse sentido, como consequência do caráter absoluto do direito real, resulta o fato de existir um dever genérico de respeito desse direito por parte dos outros sujeitos, aos quais o titular do direito pode sempre opor eficazmente o seu direito. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 BITTAR, Carlos Alberto. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 17. 2 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 44. 3 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. I, p. 252. 4 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 100.
Resumo: O inventário e partilha extrajudiciais foram procedimentos reinseridos no ordenamento jurídico brasileiro por ocasião da entrada em vigor da lei 11.441/2007. Aborda-se neste artigo: conceito; histórico; competência notarial; regime jurídico aplicável; o prazo e multa tributária; pressupostos e requisitos legais; partilha parcial e sobrepartilha; repercussões tributárias do instituto; e a gratuidade da escritura pública. Conceito A palavra inventário se origina do latim invenire, que traduz a ideia de encontrar, achar, descobrir, inventar. Decorre também de inventum, isto é, invenção, invento, descoberta (VENOSA, 2011, p. 37). Em sentido lato, trata-se do procedimento destinado à declaração do patrimônio do falecido para a liquidação do acervo, com eventual quitação de dívida e partilha do saldo remanescente em favor dos sucessores (KÜMPEL, 2017, p. 911). A acepção estrita do termo não destoa: consiste no rol de todos os bens e responsabilidades patrimoniais de um indivíduo (DIAS, 2011, p. 533), que se transmitirão aos sucessores. A finalidade do instituto é, pois, encontrar, descobrir e descrever os bens do acervo hereditário, discriminando o ativo e o passivo, bem como eventuais interessados nesses bens, sobretudo os herdeiros e os credores. Partilha, por seu turno, é o ato procedimental que põe fim à comunhão hereditária, atribuindo a cada sucessor, isoladamente considerado, sua parcela no monte partível, isto é, os bens eventualmente restantes após solver-se o passivo1. Isso porque a herança é deferida como um todo unitário (art. 1.791, caput, do Código Civil - CC), ou seja, os bens objeto da sucessão são transmitidos conjuntamente, formando um condomínio de caráter eminentemente transitório (PEREIRA, 1997, p. 289), que assim permanecerá até que se ultime a partilha (art. 1791, parágrafo único, do CC). Histórico Embora seja lição corrente na doutrina2 no sentido de que, em nosso direito, o inventário sempre fora judicial até a lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, enquanto a partilha, havendo concordância entre os herdeiros, pudesse ser também extrajudicial, tal não se confirma. De fato, as Ordenações Filipinas já previam3, como atribuição do Tabelião de Notas, a lavratura de inventários. Alguns autores, no entanto, já salientavam que a via judicial nem sempre fora o procedimento obrigatório para o inventário. Monteiro (1974, p. 271), por exemplo, leciona que, no regime da lei 3.232, de 22 de outubro de 1884, processava-se o inventário perante repartição fiscal, desde que os herdeiros fossem capazes. Inclusive, resgatando ensinamento de Lopes da Costa, anota que, no Estado de Minas Gerais, assim se procedeu até o advento da lei 693, de 12 de setembro de 1917, que aboliu o inventário administrativo. Caio Mário afirma, ademais, que, em outros ordenamentos jurídicos4, e na sistemática do direito anterior, o inventário judicial é facultativo no caso de serem todos maiores e capazes, como ainda no de ser ínfimo o valor do espólio (PEREIRA, 1997, p. 266). Pontes de Miranda trata, sem maiores divagações, da abolição do inventário extrajudicial pelo Código de Processo Civil de 1939 - CPC/39 (MIRANDA, 1954, p. 197); sepultando, por definitivo, interpretações do art. 1.770 do CC/16  que, embora usasse o termo "inventário judicial", não impossibilitava o administrativo. Com efeito, trata-se de novidade relativa, que já possuía precedentes no antigo ordenamento pátrio. Dessa sorte, a lei 11.441/2007, que alterou o Código de Processo Civil de 1973 - CPC/73, apenas reinseriu o inventário administrativo em nosso sistema jurídico, mantendo, a propósito, algumas restrições do direito pré-codificado, como demonstrado acima. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Com sua precisão habitual, preleciona Pontes de Miranda: "A partilha, no sentido estrito do Direito das Sucessões, é a operação processual pela qual a herança passa do estado de comunhão pro indiviso, estabelecido pela morte e pela transmissão por força de lei, ao estado de quotas completamente separadas, ou ao estado de comunhão pro indiviso ou pro diviso, 'por força de sentença'" (MIRANDA, 1954, p. 223). Caio Mário também destaca o fato de pôr fim à comunhão hereditária (PEREIRA, 1997, p. 290). 2 Nesse sentido: THEODORO JÚNIOR, 2021b, p. 240; DIAS, 2011, p. 563. 3 Confira-se, por oportuno: "E farão todos os testamentos, cedulas, codicillos, e quaesquer outras ultimas vontades, e todos os inventarios, que os herdeiros e Testamenteiros dos defuntos e outras pessoas lhes quizerem mandar fazer, per qualquer maneira que seja: salvo os inventarios dos Menores, Orfãos, Prodigos, ou Desasisados, onde houver Serivão de Orfãos, porque então os fará elle [...]" (Livro I, Título LXXVIII, "7"). 4 Conquanto não fosse, ainda, o caso, quando o texto foi escrito pelo mestre, foi aprovada, em 2019, a lei 117, de 13 de setembro, que revoga a legislação anterior que tratava do inventário notarial, já admitido anteriormente no ordenamento português por força da lei 23, de 5 de março de 2013. 5 A redação era: "Proceder-se-á ao inventário e partilha judiciais na forma das leis em vigor no domicílio do falecido [...]". Note-se que, apesar do texto legal, era pacífico que a partilha podia ser feita extrajudicialmente, sendo que a controvérsia recaia somente sobre o inventário.
A adjudicação compulsória no Direito Brasileiro é um instituto de direito processual civil que tem como fito a aplicação da matéria regulada no art. 1.418 do Código Civil Brasileiro que dispões que o promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel. Trata-se, portanto, de procedimento que deve ter como autor o compromissário comprador, ou ao cessionário dos direitos à aquisição, anunciada em face do titular do domínio do imóvel, que prometeu vender o bem imóvel, entretanto não outorgou a escritura definitiva, buscando, então, o suprimento dessa ação do promitente vendedor. Com a edição da lei federal 14.382 de 27 de junho de 2022, tornou possível o suprimento de vontade do titular do domínio pela via extrajudicial, o que antes somente era possível com a provocação do judiciário. Dita lei incluiu o art. 216-B na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), autorizando seu processamento diretamente junto ao Registro Imobiliário da situação do imóvel, nos mesmos moldes da usucapião extrajudicial. Quando da conversão da MP 1.081 na lei 14.382, o presidente vetou o inciso III do art. 216-B da LRP, excluindo a necessidade da lavratura de ata notarial lavrada por tabelião de notas para o ingresso e processamento da adjudicação junto ao cartório de registro de imóveis competentes. No dia 22 de dezembro de 2022, o Congresso Nacional rejeitou dois vetos presidenciais referentes a lei que cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), para dela ficar constando o texto inicial aprovado pela casa na MP 1085, determina a partir de então a lavratura de ata notarial quando da adjudicação de imóvel objeto de promessa de venda ou cessão, onde deverão constar dados de identificação do imóvel e do comprador e prova do pagamento, dispensando, ainda a comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor quando do deferimento da adjudicação compulsória. Sendo assim, a redação do art. 216-B da lei 6.015/73 (LRP) passa a ter a seguinte redação: "Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo. § 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, instruindo o pedido com os seguintes documentos: I. instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso. II. prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de quinze dias, contados da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do Registro de Imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do Registro de Títulos e Documentos. III. ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade. (grifei) IV. certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente demonstrando a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de venda do imóvel objeto da adjudicação. V. comprovante de pagamento do respectivo Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - ITBI. VI. Procuração com poderes específicos. § 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor. § 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º, o oficial do Registro de Imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou do instrumento que comprove a sucessão. Necessário esclarecer que o art. 1.225 do Código Civil Brasileiro, em seu inciso VII prevê que em havendo promessa de compra e venda celebrada por instrumento público ou particular registrada no cartório de registro de imóveis, nasce o direito real à aquisição do imóvel, podendo o promitente comprador, exigir a outorga da escritura definitiva, ou adjudicar o bem para si. O Superior Tribunal de Justiça, em tese sumular (Súmula 239), definiu que não é obrigatório o registro no cartório de registro de imóveis para que haja o direito à adjudicação compulsória. Desta forma, para o processamento da adjudicação compulsória cartorial se faz necessário: I. manifestação de vontade; II. instrumento escrito, público ou particular, independente da denominação dada ao instrumento, desde que verificadas as características da promessa de compra; III. inexistência de cláusula contratual de arrependimento; IV. comprovação da quitação da dívida assumida. A ata notarial mencionada prevista no inciso III do art. 216-B da LRP, deverá ser lavrada pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel compromissado ou a maior parte dele. Se dispensadas as diligências do notário, a competência territorial acaba podendo os requerentes optarem por qualquer tabelião de notas (art. 8° LNR). A queda da competência territorial do notário não se demonstra como melhor solução, vez que a diligência inspecional poderá dar mais certeza ao registrador imobiliário para a lavratura do registro da transmissão da propriedade.  Preenchidos os requisitos de manifestação de vontade e os previstos no art. 216-B da LRP, passamos à construção da ata notarial para a adjudicação compulsória: ATA NOTARIAL PARA ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA Aos ___________ (___) dias do mês de ______ (___) do ano de dois mil e vinte e _________(202_), eu, Douglas Gavazzi, substituto legal do 2° Tabelião de Notas de São Paulo, Capital, assento no livro notarial a presente ATA NOTARIAL, nos termos do artigo 216-B, inciso III, da Lei de Registros Públicos, cuja diligência se deu às ___h___m (__________) do dia ___/___/202__, na forma a seguir: REQUERENTES | COMPROMISSÁRIOS COMPRADORES (art. 319, II CPC) FULANO DE TAL, nacionalidade, profissão, portador da cédula de identidade RG nº _______ -SSP/SP, inscrito no CPF nº __________ e sua esposa, FULANA DE TAL, nacionalidade, profissão, portadora da cédula de identidade RG nº _______ -SSP/SP, inscrita no CPF nº __________, casados pelo regime da _________ aos ___/__/___ conforme certidão de casamento matrícula n° _____________ do RCPN de _________; residentes e domiciliados na ________________, cidade, estado, CEP:_______. ADVOGADO(A) (art. 216-B, VI LRP) FULANO DE TAL, nacionalidade, portador da cédula de identidade RG nº _______ -SSP/SP, inscrito no CPF nº __________ , inscrito no Ordem do Advogados do Brasil - Secção __________ sob n° ____________; residente e domiciliado em ________________, com escritório profissional na ____________, cidade, estado, CEP:_______. COMPROMISSO | ESPECIALIDADE SUBJETIVA Aos _____________, _________________ (especialidade subjetiva) formalizaram com _______________ (prováveis cedentes) "Contrato Particular de COMPRA e VENDA do seguinte imóvel: DESCRIÇÃO DO IMÓVEL, objeto da matrícula ____________ ou transcrição _________ do ____ Oficial de Registro de Imóveis de ____________, constando nela que os titulares do domínio adquiriram dito imóvel através da _______________, registrada sob n° ______________. Descrever cláusulas contratuais ou inserir fotos do mesmo. CESSÃO DOS DIREITOS CONTRATUAIS (se houver) Aos _____________, os requerentes formalizaram com os cedentes _______________ "Contrato Particular de Promessa de Cessão" dos direitos destes últimos referentes ao imóvel descrito na clausula anterior, objeto da matrícula ____________ ou transcrição _________ do ____ Oficial de Registro de Imóveis de ____________. O cessionário, nesse caso, se sub-roga nos direitos do cedente, a teor do disposto no art. 349 do Código Civil, vez que, tendo o cessionário sucedido na relação contratual, o mesmo passa a desfrutar da mesma condição do cedente, dispondo de direito próprio contra o promitente vendedor. Então, considerando que os REQUERENTES, ao quitarem o preço da venda pelo imóvel objeto desta ata notarial passam a deter todas as ações relativas ao imóvel, sub-rogam-se nos direitos do bem, possuem legitimidade para buscar direito que se constrói por este instrumento de constatação, cabendo-lhes ter a escritura definitiva do imóvel outorgado. DISPONIBILIDADE | ESPECIALIDADE OBJETIVA O imóvel sobre o qual se pretende a transmissão do domínio por adjudicação está matriculado (ou transcrito) sob n° ______________ no __° Oficial de Registro de Imóveis de ______________, com a seguinte descrição: _____________________. Está cadastrado junto à Prefeitura Municipal de ______________ através do cadastro n° _____________, com o valor venal atual de R$___________ (_____________). VALOR E PROVA DE QUITAÇÃO Tendo sido ajustado o valor de R$__________ ou ________ (valor da época) para a efetivação da cessão dos direitos mencionada no item anterior, os REQUERENTES, arcaram integralmente com o preço combinado, sendo certa a inexistência de débitos tributários a incidir sobre o imóvel, conforme se comprova da certidão negativa de débitos abaixo consignada. Apesar de cumprida integralmente a avença, conforme se comprova dos recibos apresentados a este notário, cuja veracidade se atesta, os REQUERENTES tentaram obter reiterada e amigavelmente, com os titulares de domínio e seus herdeiros a outorga da competente escritura definitiva de compra e venda, a fim de que o referido negócio se aperfeiçoe unicamente para fins de registro. AUSÊNCIA DE CLÁUSULA DE ARREPENDIMENTO O artigo 1.417 do Código civil Brasileiro regra que mediante promessa de compra e venda, em que não se pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. Verifica-se dos instrumentos apresentados a este tabelião, que ambos foram firmados com clausula de IRRETRATABILIDADE e de IRREVOGABILIDADE, podendo, ainda, atestar a ausência de clausula de ARREPENDIMENTO, neste caso não incidente as prescrições e regras contidas no art. 420 do Código Civil Brasileiro e nem mesmo do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor no que aplicável aos contratos imobiliários nos termos da jurisprudência vigente. INADIMPLEMENTO DOS TITULARES DO DOMÍNIO Verificada a quitação e com base nos documentos apresentados a este notário, (comprovantes de depósitos, notas promissórias, e-mails, mensagens de WhatsApp, redes sociais) e não tendo obtido êxito algum na busca da solução amigável do caso, os REQUERENTES se servem do procedimento da ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL prevista no art. 216-B da Lei de Registros Públicos a qual se processará junto ao ____ Oficial de Registro de Imóveis de ____________. DILIGÊNCIA INSPECIONAL No dia _________, a pedido do REQUERENTE, providenciei diligência no imóvel objeto do pedido de adjudicação compulsória, às _____h ________min, onde o REQUERENTE me atendeu, franqueando meu ingresso no imóvel, sendo possível a captura das fotos abaixo, as quais o fiz através do meu aparelho celular. FOTOS. RATIFICAÇÕES TESTEMUNHAIS (se for o caso) Na mesma data da diligência, tive a oportunidade de conversar com o confortante do lado direito (prédio n° ____) Sr. _________________, o qual me relatou que conhece o REQUERENTE desde ___________, podendo atestar que o mesmo ali reside e/ou é tido como proprietário do bem, sem conhecimento de qualquer forma de esbulho.  Também conversei com o confortante do lado esquerdo (prédio n° _____), Sr. _________________, o qual me relatou que conhece o REQUERENTE desde ___________, podendo atestar que o mesmo ali reside e/ou é tido como proprietário do bem, sem conhecimento de qualquer forma de esbulho. E por fim, o confrontante dos fundos (prédio n° _____), o qual me relatou que conhece o REQUERENTE desde ___________, podendo atestar que o mesmo ali reside e/ou é tido como proprietário do bem, sem conhecimento de qualquer forma de esbulho. DIREITO DO REQUERENTE | FUNDAMENTOS LEGAIS O compromisso, como contrato preliminar, engloba relações jurídicas diversas, geradoras de obrigações e direitos recíprocos entre os contratantes. Nesse negócio jurídico o promitente comprador tem a obrigação de pagar quantia certa (em dinheiro - art. 481 CC o que foi feito conforme se prova nas clausulas anteriores), enquanto o promissário vendedor tem obrigações de diferentes naturezas: a) a primeira consistente em dar a posse do imóvel (obrigação de dar) o que foi feito, estando o REQUERENTE na posse do bem imóvel desde _______________; e b) a segunda, consistente em outorgar a escritura definitiva, após o pagamento do preço (obrigação de fazer infungível), motivo pelo qual se aparelha a presente adjudicação. Assim sendo, a pretensão do REQUERENTE encontra amparo jurídico nos seguintes diplomas legais: decreto-lei 58/67, artigos 15 e 16; Código Civil, artigos 1.417 e 1418; e Código de Processo Civil, artigos 466-A, 466-B e 466-C. O Decreto-Lei nº 58/67 nos seus artigos 15 e 16 regra que os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o pagamento integral do preço, e estando quites com os impostos e taxas, exigir a outorga da escritura de compra e venda. Entretanto, recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, o que agora, diante do que autoriza a Lei Federal 14.382/22 requer-se processamento pela via administrativa. Referidos contratos (processa e cessão) não se encontram registrados junto ao registro de imóveis competente, entretanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (Súmula 239), definiu que não é obrigatório o registro no cartório de registro de imóveis para que haja o direito à adjudicação compulsória.   PROCURAÇÃO Os requerentes outorgam ao advogado(a) ________________, qualificado acima, todos os poderes para a regularização do imóvel em tela, podendo retificar ou aditar a presente ata notarial, dar ingresso junto ao registro imobiliário, assinar os requerimentos necessários, alegar, atestar, requerer, conferindo-lhe os poderes da cláusula "ad judicia" e "ad extra", podendo representá-lo(s) em juízo para suscitar dúvida ou em caso de conversão deste procedimento em processo judicial, outorgando-lhe ainda poderes especiais para receber citação, de concordar, acordar, confessar, discordar, desistir, executar e fazer cumprir as exigências registrais afim de possibilitar a consecução da adjudicação do bem. CONVERSÃO DA ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EM USUCAPIÃO A critério do Registrador Imobiliário, caso entenda que os documentos instruíram o pedido de ADJUDICAÇÃO compulsória são insuficientes para a continuidade do pedido na forma do instituto de escolha das partes, requerem o aproveitamento da presente ata notarial ao processamento da Usucapião Extrajudicial, esclarecendo o tempo da posse: (art. 4º, I, "b" Prov. 65/CNJ) _____________; que o atingimento (art. 4º, I, "e" Prov. 65/CNJ) se dá exclusivamente sobre o imóvel da matrícula n°______________ o que dispensa a elaboração de memorial descritivo e de planta ou levantamento planialtimétrico; a atribuição de valor (art. 4º, I, "f" Prov. 65/CNJ) para efeito de usucapião bem como para a cobrança de emolumentos notariais e registrais de R$_____________; e a modalidade do instituto (art. 4º, I, "d" Prov. 65/CNJ) que o advogado, presente à lavratura, entende que examinado o tempo e o tipo da posse do requerente alinhavado aos elementos extrínsecos à posse, a presente prescrição aquisitiva preenche os requisitos e se insere na hipótese de usucapião ___________, nos termos do artigo _______, do Código Civil Brasileiro, do que concorda o requerente, visto possuir, justo título, ter a posse, acrescida dos seus antecedentes, há mais de _____ anos. DOCUMENTOS APRESENTADOS Os requerentes apresentaram os seguintes documentos: a) contrato de compromisso de venda e compra de _____________; b) contrato de cessão de direitos de _____________; c) comprovantes de quitação do preço; d) certidão negativa de tributos municipais; e) certidão negativa de feitos ajuizados em nome dos titulares do domínio (analogia ao art. 4º, IV, "f" Prov. 65/CNJ) _______________; f) certidão negativa de feitos ajuizados em nome dos requerentes _______; g) certidão da matrícula do imóvel sob n° ________ do ___° Oficial de Registro de Imóveis de ______. CONSULTA À CENTRAL DE INDISPONIBILIDADE DE BENS Conforme determina o art. 14, do Provimento nº 39/2014, do Conselho Nacional de Justiça - Corregedoria Nacional de Justiça, datado de 25 de Julho de 2014, foram, na presente data, realizadas buscas na Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB, não sendo encontrado qualquer apontamento de Indisponibilidade de Bens em nome dos requerentes e dos titulares do domínio, de acordo com Relatório de Consulta de Indisponibilidade emitido às ______, do dia ________ - Códigos HASH: ___). DECLARAÇÕES DOS REQUERENTES | COMPROMISSÁRIOS Os requerentes declaram sob as penas da lei: 1) que todas as declarações prestadas nesta ata notarial são verdadeiras, responsabilizando-se civil e criminalmente pelas mesmas. 2) que por mim, tabelião substituto tomaram ciência de que omitir, em documento público ou particular, declaração que dele deva constar, ou ainda, inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante constitui crime formal de falsidade ideológica tendo como sujeito o Estado, que busca a proteção da fé pública dos órgãos auxiliares da Justiça, sendo assim, objeto de ação penal pública incondicionada e independe de qualquer representação formal; 3) que aceitam e concordam com todos os termos e constatações feitas nesta ata. CIENTIFICAÇÃO Os REQUERENTES foram cientificados que esta ata notarial não tem valor como confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial da ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA para regular processamento perante o ____° Oficial de Registro de Imóveis de _____________. REQUERIMENTOS Requerem e autorizam o Senhor Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de ___________, a prática de todos os atos registrais em sentido amplo, nos termos do artigo 216-B, da Lei Federal nº 6.015/73, autorizando, desde já, em caso de impossibilidade de cumprimento de exigências formuladas pelo Oficial, a suscitação de dúvida prevista no art. 198 da referida lei registral. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO O imposto de transmissão de bens imóveis deverá ser recolhido pelos REQUERENTES junto ao registrador imobiliário competente, após a confirmação da transmissão da propriedade (derivada) conforme jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmada nos autos do recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1294969, com repercussão geral (Tema 1124) de que o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) só é devido a partir da transferência da propriedade imobiliária, efetivada mediante o registro no cartório de Registro de Imóveis.  ATESTADO E ENCERRAMENTO Da análise de toda a documentação apresentada e fatos constatados é possível atestar que o requerente porta documentos necessários ao processamento da ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA, permanecendo ainda, na posse pacífica do imóvel objeto, portando-se como se dono fosse ficando, portanto, demonstrada a origem, a natureza e o direito. De tudo dou fé. Com a lavratura da ata notarial, o advogado contratado pelos compromissários compradores deverá instruir requerimento junto ao registro de imóveis da situação ou circunscrição competente, contendo a descrição dos fatos e do direito.  É fato que requerimento poderá ser instruído com mais de uma ata notarial, por ata notarial complementar ou por escrituras declaratórias lavradas pelo mesmo ou por diversos notários, ainda que de diferentes municípios, as quais descreverão suas constatações. Uma vez instruído o pedido, os titulares do domínio serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância. O Conselho Nacional de Justiça não se posicionou por alguma normatização sobre o procedimento da adjudicação compulsória extrajudicial (assim como fez com a usucapião), entretanto, imagina-se que se infrutíferas as notificações dos titulares do domínio ou estando em lugar incerto, não sabido ou inacessível, o oficial de registro de imóveis certificará o ocorrido e promoverá a notificação por edital publicado, por duas vezes (à exemplo da usucapião), em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretando o silêncio do notificando como concordância, sendo possível a publicação do edital em meio eletrônico, pelo próprio Sistema Eletrônico de Registros Públicos - SERP. A adjudicação compulsória se mostra como forma de aquisição derivada da propriedade. Assim, ocorre quando a transmissão é feita de um proprietário a outro, por ato inter vivos ou causa mortis. A coisa chega ao adquirente com as mesmas características anteriores, não se extingue o ônus, como por exemplo, servidão, hipoteca, penhora, arresto, usufruto, reversão, entre outros. Com isso, a indisponibilidade dos titulares do domínio impede o ingresso da adjudicação junto ao fólio real, sendo que os requerentes deverão servir-se das vias jurisdicionais próprias para o levantamento da constrição. A rejeição do pedido extrajudicial da adjudicação compulsória não impede o ajuizamento de ação no foro competente. A repulsão do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente perante o próprio oficial de registro de imóveis, que deverá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição, sempre cabendo a suscitação da dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP. Diferentemente da usucapião extrajudicial (modo de aquisição originário), o registro da adjudicação não implica na abertura de nova matrícula e deverá ser feito na sequencia prevista pela própria lei de registros públicos. Convém salientar que a ata notarial de adjudicação compulsória e o registro submetem-se aos emolumentos previstos nos atos com valor econômico tendo como base o valor venal (ou de mercado) do imóvel à época da lavratura do ato, sendo que  diligências, notificações e atos preparatórios e instrutórios para a lavratura da ata notarial, certidões, buscas, averbações, notificações e editais relacionados ao processamento do pedido da adjudicação compulsória serão considerados atos autônomos para efeito de cobrança de emolumentos. A sociedade habituada a converter seus conflitos aos tribunais em busca da prestação jurisdicional, por acreditar que o Poder Judiciário é a melhor fonte de acesso à Justiça, se recruta ao fenômeno da desjudicialização com essência nas serventias notariais e de registro, como um relevante instrumento capaz de proporcionar a mesma (ou melhor) tutela dos direitos pretendidos.
Resumo 1. Com o registro da incorporação imobiliária, nasce o condomínio protoedilício (§ 15 do art. 32 da lei 4.591/1964). 2. O condomínio edilício nasce apenas com o registro da sua instituição (art. 1.331 do CC; art. 7º da lei 4.591/1964; e art. 167, I, "17", da LRP). 3. É indevido e incorreto tecnicamente misturar essas duas modalidades de condomínio ou promover uma promiscuidade registral como marco natalício delas. Além da clareza da redação legal, há diferenças ontológicas e teleológicas entre essas duas modalidades de condomínio a impedir a unificação normativa. 4. O registro da instituição do condomínio edilício só pode ocorrer após a averbação da construção, embora - de modo indevido - existam alguns Estados brasileiros que, por razões puramente pragmáticas, antes da Lei do SERP, admitiam o registro precoce da instituição do condomínio edilício. Após a Lei do SERP, é discutível se subsistem essas razões pragmáticas.   5. A abertura de matrículas-filhas após o registro da incorporação é justificada pela natureza jurídica do condomínio protoedilício e está autorizada pelo art. 237-A da LRP (na redação da Lei do SERP). 1. Introdução Este artigo trata da subsistência do que designamos de condomínio protoedilício mesmo após o advento da lei 14.382/22 (Lei do SERP, Sistema Eletrônico de Registros Públicos). Demonstra, por consequência, que o condomínio edilício não nasce com o registro da incorporação imobiliária na matrícula, e sim com o futuro registro da instituição do condomínio edilício na forma do art. 1.331 do Código Civil (CC), do art. 7º da lei 4.591/64 e do art. 167, I, "17", da lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP), os quais não foram alterados pela Lei do SERP. 1 Esclarece que a Lei do SERP, na verdade, faz referência ao condomínio protoedilício, e não ao condomínio edilício, quando faz referência à expressão "condomínio por frações ideais" ou "condomínio sobre as frações ideais" no novo inciso II do § 10 do art. 213 da LRP e no novo § 15 do art. 32 da lei 4.591/64. Vejamos os referidos dispositivos: Lei 4.591/64 "Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (...) § 15.  O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único". Lei de Registros Públicos "Art. 213. (...) (...) § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes". Sobre o tema, já havíamos alertado para tanto em nossa obra, escrita a quatro mãos, intitulada Lei do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos.2 2. Modalidades de condomínios no Direito Brasileiro. No Direito das Coisas, entendemos pela existência de sete modalidades de condomínios, a seguir expostas brevemente. A primeira delas é do condomínio geral ou tradicional, em que cada condômino é titular de uma fração ideal da coisa. Essa primeira categoria se subdivide em duas, podendo ser voluntário ou convencional, com tratamento entre os arts. 1.314 e 1.326 do Código Civil; ou necessário, regulado entre os arts. 1.327 a 1.330 da mesma codificação privada. A segunda modalidade é do condomínio edilício, em que cada condômino é titular de uma unidade imobiliária autônoma - de propriedade privativa -, vinculada a uma fração ideal do solo e das áreas comuns das edificações. As suas regras estão entre os arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil em vigor. A terceira modalidade condominial é do condomínio de lotes, sendo similar ao condomínio edilício, com uma principal diferença, eis que a unidade privativa é um lote, assim definido como "o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe", na forma do art. 2º, § 4º da lei 6.766/79.  Está disciplinado pelo art. 1.358-A do Código Civil, incluído pela lei 13.465/17, além do tratamento constante da última norma especial citada. O condomínio urbano simples é a quarta modalidade condominial, sendo igualmente similar ao condomínio edilício, com duas principais diferenças: as edificações consistem em casas ou cômodos, e o instituto só se aplica a áreas urbanas. Está disciplinado pelos arts. 61 a 63 da lei 13.465/17, que trata da Regularização Fundiária Urbana (Lei do REURB). Seguindo na exposição que ora nos interessa, como quinta modalidade, há o condomínio em multipropriedade, também similar ao condomínio edilício, mas duas principais diferenças, eis que a unidade imobiliária autônoma é uma unidade periódica; e a vinculação dessa unidade se dá a uma fração ideal de um imóvel-base. Está disciplinado pelos arts. 1.358-B a 1.358-U do Código Civil. Apesar da controvérsia sobre a sua natureza jurídica, pelo tratamento da lei o fundo de investimento seria a sexta categoria condominial, pelo que está expresso no caput do art. 1.368-C do Código Civil, no sentido de que esse constitui "uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza". Além dessa norma, está tratado até a letra f do mesmo comando. Por fim, tem-se aquilo que denominamos como condomínio protoedilício, correspondente à situação condominial especial e transitória que intermedeia o período entre o registro da incorporação imobiliária e a futura instituição do condomínio edilício. Essa última figura será tratada de forma mais profunda mais à frente, sendo tal instituto o foco do presente artigo, ao lado do condomínio edilício. 3. Condomínio edilício, existência física da edificação e incorporação imobiliária. O condomínio edilício é, por definição legal, atrelado a uma edificação já existente. O próprio caput do art. 1.331 do Código Civil é textual em vinculá-lo a "edificações": "pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos". Trata-se de norma semelhante ao que já estava previsto no caput do art. 1º de Lei de Incorporação Imobiliária (lei 4.591/64), que alude expressamente a "edificações ou conjunto de edificações".3 Em complemento, outros comandos legais partem do mesmo pressuposto, como os dispositivos que, ao tratar do condomínio edilício, expressamente fazem menção a partes fisicamente existentes da edificação. Veja, por exemplo, os arts. arts. 3º, 5º, 8º e 9º da lei 4.591/64. Se, eventualmente, o titular da propriedade pretender alienar "na planta" as futuras unidades autônomas, terá o dever jurídico de efetivar previamente um ato jurídico específico, a ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis, qual seja a incorporação imobiliária, nos termos do art. 29 da própria lei 4.591/64.4 A incorporação imobiliária, assim, é o ato jurídico que autoriza e possibilita a concretização dessas alienações "na planta". Sua razão de ser é a necessidade de tutelar os interesses individuais homogêneos de potenciais adquirentes das unidades imobiliárias. Trata-se, portanto, de um instituto vocacionado à efetiva tutela coletiva de direitos, para a diminuição dos riscos assumidos pelos compradores. 4. Condomínio edilício: nascimento. Quanto ao condomínio edilício, ele consiste em uma pluralidade de unidades imobiliárias autônomas vinculadas a uma fração ideal do solo e às demais partes comuns, consoante o citado art. 1.331 do CC. Nasce ele por meio do registro, no Cartório de Imóveis, de um ato jurídico específico, qual seja a instituição do condomínio edilício (art. 1.332 do CC). Esse ato de instituição traz, assim, a estrutura jurídico-real do condomínio edilício, o seu esqueleto.5 Ou, ainda, pode-se dizer que a instituição do condomínio encerra um ato de gestação.6 O funcionamento do condomínio edilício, por sua vez, é tratado pela sua convenção, que traz as regras de operacionalização interacional dos condôminos, como quórum de votação, forma de administração, entre outros, consoante o art. 1.333 do Código Civil.7 Pode-se afirmar, portanto, que convenção dá a alma àquele metafórico esqueleto.8 A convenção de condomínio, nesse contexto, constitui o estatuto coletivo que regula os interesses das partes que fazem parte da relação jurídica condominial, havendo um típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada.9 Assim, em regra, a existência física da edificação é um pressuposto para o condomínio edilício. Todavia, em alguns Estados brasileiros, a prática registral flexibilizava essa premissa, admitindo-se o registro da instituição do condomínio edilício antes mesmo da averbação da construção, após a expedição do "habite-se". O motivo para tanto era meramente pragmático, com a ideia de se criar precocemente um sujeito de direito - o condomínio edilício -, com CNPJ próprio, sobretudo para celebrar contratos que atendam aos interesses da coletividade formada, como os relativos ao fornecimento de serviços essenciais, como água e energia elétrica. A propósito, em razão do princípio da unitariedade matricial, a abertura de matrícula das unidades autônomas antes do registro da instituição condomínio edilício sempre foi tema sensível. Por uma interpretação literal, realmente não se poderia admitir a abertura dessas matrículas em tais condições, pois a existência do condomínio edilício só se dá com o registro do ato de sua instituição. Havia, porém, um problema prático-registral no caso de haver o registro de uma incorporação imobiliária, relacionado à poluição informacional da matrícula-mãe, gerando uma situação insustentável se todos os atos jurídicos relativos a cada uma das várias unidades autônomas fossem nela concentrados. Em outras palavras, a matrícula-mãe ficaria confusa, com o cruzamento de informações jurídicas dos fatos jurídicos de cada uma das várias unidades autônomas. A título de ilustração, falecimentos, casamentos, transmissões causa mortis, penhoras e outros vários fatos jurídicos de cada unidade imobiliária ficariam perdidos na matrícula-mãe, ao lado de atos relativos à própria edificação. Por essa razão, algumas unidades da federação, como o Estado de São Paulo, chegaram a uma solução pragmática, de admitir a abertura de uma ficha auxiliar para cada unidade autônoma futura, que se convolaria em uma matrícula quando do futuro ato de instituição do condomínio edilício.10 Tratava-se, assim e na nossa opinião, de uma solução tecnicamente perfeita, contando com o nosso apoio. Justamente por isso, outros Estados, diante das mesmas razões pragmático-registrais, foram além e autorizaram a abertura de matrículas antes mesmo do ato de instituição do condomínio edilício, flexibilizando o princípio da unitariedade matricial. Isso, porém, não significava que o condomínio edilício já tivesse sido instituído desde então, pois a instituição só se concretizaria com o registro futuro do ato de instituição, após a averbação da construção. A abertura precoce da matrícula era apenas um imperativo de ordem pragmático-registral para impedir a citada poluição informacional da matrícula-mãe. O próprio art. 237-A da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73) corroborou esse caminho quando se tratasse de registro de incorporação imobiliária. A abertura das matrículas-filhas passou a ser permitida, de modo facultativo. Esse cenário passou a valer desde o surgimento do referido dispositivo com a Medida Provisória 459/09, que gerou a lei 11.977/09 (Lei Minha Casa, Minha Vida), e persiste, com ajustes, com a sua atual redação vigente, por força da Lei do SERP (lei 14.382/22).11 Portanto, reafirmamos o nosso entendimento segundo o qual condomínio edilício só nasce com o registro do seu ato de instituição. Ademais, em regra, esse nascimento pressupõe a prévia existência física da edificação, formalizada por meio da averbação da construção após a expedição do "habite-se". Antes da Lei do SERP, admitia-se, de modo excepcional e em alguns Estados da federação, o registro precoce do registro do ato de instituição do condomínio edilício, o que era - a nosso sentir - equivocado. Após a Lei do SERP, deixou de ter sentido essa verdadeira contemporização praticada em alguns Estados, porque o instituto do condomínio protoedilício ficou mais bem delineado, com indicação de seus representantes (a comissão de representantes) para a prática de atos jurídicos. É possível discutir se o condomínio protoedilício poderia vir a receber CNPJ e a praticar atos jurídicos em seu próprio nome, mesmo fora das hipóteses de destituição do incorporador - art. 43, § 3º, inc. II, letra c, da lei 4.591/64 -, desde que haja assembleia geral deliberando nesse sentido.12   5. Condomínio protoedilício (condomínio sobre frações ideais) Após o registro da incorporação imobiliária - nos termos do antes referenciado art. 29 da lei 4.591/64 -, o terreno passa a ser juridicamente vinculado a transformar-se em um condomínio edilício, o que será efetivado após a conclusão das construções. Essa vinculação, porém, sujeita-se a duas condições, eventos futuros e incertos. A primeira delas é a conclusão das obras; a segunda a não desistência do incorporador, dentro do prazo de carência. Sobre essa última condição, a Lei de Incorporação Imobiliária autoriza que o incorporador desista do empreendimento dentro de um lapso temporal indicado quando do registro da incorporação. Esse lapso temporal é batizado como prazo de carência (arts. 32, "n", e 34 da lei 4.591/64). É justamente por conta dessa vinculação condicional do terreno a um futuro condomínio edilício que a Lei de Incorporação Imobiliária admite que o incorporador possa alienar, "na planta", as futuras unidades autônomas. Na verdade, o objeto da alienação é a fração ideal do terreno, que corresponderá à futura unidade autônoma pretendida pelo adquirente. O fato é que, nessa dinâmica jurídica, a propriedade do terreno abandona o seu perfil unitário ou, se for o caso13, o regime de condomínio geral do art. 1.314 do Código Civil.14 Surge uma situação condominial intermediária, temporária e de transição, envolvendo a comunhão - potencial ou efetiva -, dos adquirentes das futuras unidades autônomas. Entendemos que essa situação condominial não se confunde com o instituto do condomínio edilício, cuidando-se de uma situação condominial própria. Prova disso é que o próprio § 1º-A do art. 32 da Lei de Incorporação Imobiliária refere-se a essa situação como um regime condominial especial, in verbis: "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos".  A lei 14.382/22 (Lei do SERP), ao acrescentar o § 15 do art. 32 da Lei de Incorporação Imobiliária, bem como o inciso II ao § 10 do art. 213 da Lei de Registros Públicos, denominou essa situação condominial como "condomínio sobre as frações ideais" ou "condomínio por frações ideais", em alusão ao fato de que os adquirentes são titulares de uma fração ideal do terreno vinculada às futuras unidades autônomas. Na verdade, o legislador não se preocupou com um nome de batismo, o que evidencia a constatação de ter usado preposições diferentes nas expressões destacadas. Não houve, portanto, uma preocupação taxonômica do legislador, ou seja, a sua atenção estava mais no conteúdo do que na forma. O seu objetivo era deixar claro o regime jurídico especial dessa situação condominial. Aliás, a taxonomia, com a denominação das categorias jurídicas, representa mais uma tarefa da doutrina do que do legislador. Por isso, preferimos, em sede doutrinária, designar essa situação condominial de condomínio protoedilício. Vejamos, assim, o que sustentamos em obra escrita a quatro mãos:  "Regime condominial especial (condomínio protoedilício). Com o registro da incorporação imobiliária, nasce o 'regime condominial especial', por força do qual e' viável a alienação ou a oneração individualizada das futuras unidades autônomas, independentemente da anuência dos demais (art. 32, § 1º-A, da lei 4.591/64). Essa situação e' batizada de 'condomínio por frações autônomas' pelo inc. II do § 10 do art. 213 da LRP. Parece-nos mais adequado considera'-lo um condomínio protoedilício, pois ele e' um 'nascituro' do futuro condomínio edilício. O § 1º-A do art. 32 da lei 4.591/64 e' importante para deixar claro que regras do condomínio tradicional, como o direito de preferência dos condôminos no caso de venda da fração ideal (art. 504 do CC), não são aplicáveis ao condomínio protoedili'cio".15 Assim, parece-nos que não houve, ao menos na sua totalidade, uma inovação legislativa nesse tratamento. A Lei do SERP apenas deu clareza ao que já se admitia no âmbito da comunidade jurídica, afastando dúvidas, esclarecendo a natureza jurídica dessa categoria e estabelecendo algumas regras operacionais importantes. Sobre a existência de um "nascituro" para o condomínio edilício futuro, Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, em sentido próximo, fala na presença de um instituto "congênito" ao registro da incorporação. Vejamos as suas palavras, às quais nos filiamos:  "Coloca-se em evidência que este regime condominial especial, congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro (leia-se: de condomínio de frações ideais para o condomínio edilício). Noutras palavras, o registro da incorporação, que antecede a edificação do prédio e serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, em nada se relaciona com o nascimento jurídico das unidades em regime de condomínio edilício, ainda não instituído. Por possuírem naturezas e efeitos jurídicos distintos, o registro da incorporação não se presta a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial".16 Acrescenta-se que o legislador foi absolutamente consciente ao se referir ao condomínio protoedilício por meio de expressões diversas, como condomínio sobre frações ideias. Durante o processo legislativo de conversão da Medida Provisória, foram feitas tentativas de utilização do nome condomínio edilício no novo texto legal. O pleito, porém, não foi acolhido por uma razão clara, qual seja a de que o condomínio protoedilício não se confunde com o condomínio edilício. Trata-se de um instituto totalmente diverso, e com marco natalício diverso. O condomínio protoedilício nasce com registro da incorporação imobiliária, ao passo que o condomínio edilício, com o registro do seu ato de instituição. Para se alterar essa realidade jurídica, seria necessário que vários dispositivos da legislação brasileira fossem modificados ou mesmos revogados, com inclusão dos artigos que preveem o registro da instituição do condomínio edilício. Entretanto, nota-se que o legislador não avançou nesse sentido, mas, muito ao contrário, destacou a diferença da situação condominial especial surgida com a incorporação imobiliária, distanciando-a juridicamente do condomínio edilício, que só nasce com o registro do ato de instituição. Aliás, a diferença de regime jurídico entre o condomínio edilício e o condomínio protoedilício tem ressonância em outros países. Na Espanha, por exemplo, o condomínio edilício é conhecido como propiedad horizontal. Já as situações jurídicas de alienações "na planta" - que, entre nós, são tratadas sob as vestes de institutos como incorporação imobiliária - estão dentro do que os juristas espanhóis designam de situación de prehorizontalidad. Os espanhóis tratam, em separado, as duas hipóteses - a de propiedad horizontal e a situación de prehorizontalidad -, por um motivo óbvio: o regime jurídico de cada um é diferente, por dizer respeito a contextos totalmente diferentes. Nesse sentido, o jurista espanhol Rafael Arnaiz Eguren - uma das principais autoridades no tema - é bem assertivo em realçar a diferença de regime jurídico entre a propriedad horizontal e a situación de prehorizontalidad, do que decorre a inviabilidade de pretender buscar unificar científica e normativamente as hipóteses.17 De fato, o regime jurídico de horizontalidad pode resultar de uma situação prévia de prehorizontalidad, dotada de um regime jurídico próprio. O regime jurídico para as situações protoedilícias - ou, no linguajar espanhol, situações de prehorizontalidad -, oscila a depender do País. Na Argentina, por exemplo, o seu novo Código Civil (Código Civil y Comercial de la Nación) promoveu mudanças no seu mecanismo de proteção dos adquirentes de imóveis "na planta", passando a exigir do empreendedor a contratação de um seguro obrigatório para cobrir eventuais prejuízos18. Em igual sentido, o articulo 2.070 do Código Civil Argentino - que integra o Capítulo 10, tratando da Prehorizontalidad -, ao se referir às situações protoedilícias - prehorizontales -, é inequívoco em falar de situações anteriores à constituição do condomínio edilício - propriedad horizontal: "CAPITULO 10. PREHORIZONTALIDAD ARTICULO 2070. Contratos anteriores a la constitución de la propiedad horizontal. Los contratos sobre unidades funcionales celebrados antes de la constitución de la propiedad horizontal están incluidos en las disposiciones de este Capítulo". Como se vê, mesmo sob uma perspectiva de outros Países, não há falar em condomínio edilício antes da existência física de uma edificação. Seguindo na exposição a respeito do tema, pontuamos que condomínio protoedilício é representado pela comissão de representantes, que representa os interesses dos titulares das futuras unidades autônomas. Como é notório, é obrigatória a sua criação em caso de incorporação imobiliária, com registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos (art. 50, caput, da Lei de Incorporação Imobiliária). Sem prejuízo do que está nos parágrafos do supracitado art. 50 da Lei de Incorporação Imobiliária, essa comissão de representantes tem como atribuições principais: a) o direito a receber do incorporador os documentos relativos ao andamento das obras (art. 31-D, incisos IV e VI, e art. 43, caput, inc. I, da Lei de Incorporação Imobiliária); e b) representar os titulares das futuras unidades autônomas nos atos decorrentes da substituição do incorporador (art. 31-F, § 1º e art. 43, § 1º, da Lei de Incorporação Imobiliária). A propósito, vejamos as palavras sempre precisas de Caio Mário da Silva Pereira: "Os adquirentes representam-se, pois, pela Comissão, escolhida por eles próprios, a qual conserva o mesmo poder em relação aos cessionários ou sub-rogados nos direitos daqueles que realizaram a nomeação. No direito francês, criou-se um órgão de defesa dos interessados, com a denominação de Conseil de Surveillance, com o encargo de efetuar, no interesse coletivo dos associados, fiscalização permanente sobre a administração da sociedade".19 Como se percebe, a atuação da comissão de representantes não se confunde com as atividades dos órgãos administrativos do condomínio edilício, quais sejam o síndico, o subsíndico - eventualmente -, e o conselho fiscal, que estão tratados entre os arts. 1.347 a 1.356 do Código Civil. Por todo o exposto, do ponto de vista formal, cumpre esclarecer que o condomínio protoedilício nasce automaticamente com o registro da incorporação imobiliária, conforme se retira do § 15 do art. 32 da Lei de Incorporação Imobiliária.20 Em nome da boa técnica de redação registral, convém que o registrador, no teor do ato de registro, faça menção expressa a tanto. O condomínio edilício, por sua vez, só nascerá quando do registro, na matrícula, do ato de instituição do condomínio edilício. A Lei do SERP nada mudou nesse ponto. Assim, segue atual, por exemplo, a lição de José Marcelo Tossi Silva que, de modo explícito, realça que o registro da incorporação imobiliária não afasta a necessidade de, no momento oportuno, ser feito o registro da instituição do condomínio edilício.21 6. Da distinção entre o condomínio protoedilício e o condomínio edilício Como já demonstrado, o condomínio protoedilício não se confunde com o condomínio edilício, por ser, como definimos, o "nascituro" do último. Há, assim, uma espécie de ato jurídico preliminar, que almeja o ato definitivo, que é justamente o condomínio edilício. A distinção entre institutos jurídicos deve observar tanto a opção legislativa quanto razões de ordem ontológica e teleológica. O legislador foi bem claro em distinguir as duas espécies de condomínio. Além disso, a razão de ser e a finalidade dos institutos não coincidem. De fato, o condomínio protoedilício: a) não exige a existência física de uma edificação; b) é representado pela comissão de representantes, registrada no Cartório de Registro de Títulos e Documentos; c) nasce com o registro da incorporação; d) objetiva proteger os titulares das futuras unidades autônomas de intercorrências durante o andamento das obras; e e) deve ser considerado extinto no caso de desistência do incorporador dentro do prazo de carência (art. 34 da Lei de Incorporação Imobiliária). Essa estrutura jurídica é totalmente diferente do condomínio edilício, cuja razão de ser e a finalidade pressupõem a existência física da construção. O seu objetivo é garantir a boa interação entre os diferentes titulares das unidades autônomas dentro do contexto de uma edificação já existente. Sem a existência física da construção, não se deve falar em condomínio edilício, repise-se. Aliás, no caso de ruína da edificação, deve-se considerar extinto o condomínio edilício se não se deliberar pela sua reconstrução, nos termos do art. 1.357 do Código Civil, que por razões óbvias não se aplica ao condomínio protoedilício.22 Assim, para os necessários fins de diferenciação categórica, observamos que o condomínio edilício: a) exige a existência física de uma edificação; b) é representado pelo síndico; c) nasce com o registro do ato de instituição no Cartório de Registro de Imóveis; d) objetiva tutelar a interação dos condôminos dentro do contexto de uma edificação já existente; e e) extingue-se com a ruína da edificação, salvo se se deliberar pela reconstrução. 7. Problemas práticos em reconhecer o nascimento do condomínio edilício com o registro da incorporação Além de contrariar o texto legal, a tese que pretende reconhecer a instituição do condomínio no registro do memorial de incorporação imobiliária ocasionaria problemas jurídicos relativos a conflitos normativos de difícil superação. E esses problemas serão prejudiciais tanto para as incorporadoras quanto para os adquirentes. Como primeiro problema, o Código Civil estabelece alguns requisitos formais que devem ser observados nos condomínios edilícios, destacando-se os quóruns exigidos para determinadas questões, como para a realização de obras e de benfeitorias (ex.: arts. 1.341 e 1.342). Por óbvio que tais regras não podem ser aplicadas ao condomínio existente antes da realização e encerramento das obras, o que não faria o menor sentido, seja no plano fático, seja no jurídico. Essa afirmação igualmente vale a respeito dos deveres dos condôminos em pagar as contribuições relativas ao condomínio edilício, em conservar a edificação, em não ameaçar o sossego dos demais condôminos, nos termos dos incisos do art. 1.336 do Código Civil.23 Mais uma vez tais previsões pressupõem a existência física de uma edificação, com a interação social entre os condôminos em razão do exercício da posse sobre as unidades autônomas existentes. Ora, os pressupostos são diferentes no ambiente do condomínio protoedilício, em que não há essa interação por se tratar de uma situação destinada a garantir o sucesso futuro da edificação de acordo com o projeto. Mesclar institutos com pressupostos, regimes jurídicos e finalidades diferentes sempre dá ensejo a teses jurídicas perigosas, ameaçando a segurança jurídica, a certeza, a estabilidade e a funcionalidade das categorias jurídicas. Como é notório, o que fundamenta as regras relativas ao condomínio edilício previstas no Código Civil é a efetivação da vida em comum, no melhor sentido da função social da propriedade, nos termos do art. 5º, incisos XXII e XXIII da Constituição e do art. 1.228, § 1º, da codificação privada em vigor.24 Essa é a estrutura existente, justificada pela sua finalidade, que não está presente no condomínio protoedilício. Por isso, a tese de defender o nascimento do condomínio edilício com o registro da incorporação imobiliária é totalmente antifuncional. Em continuidade de estudo, o condomínio edilício não possui natureza transitória, ao contrário do condomínio protoedilício. Dessa afirmação decorrem problemas jurídicos de difícil equacionamento, como as regras relativas à desistência da incorporação imobiliária dentro do prazo de carência previsto no art. 34 da Lei de Incorporação Imobiliária. Essas regras só podem ser aplicadas ao condomínio protoedilício, pois esse é que tem natureza transitória, não podendo incidir em casos envolvendo o condomínio edilício, sob pena de gerar situações de abandono e de não atendimento da função social. Outro problema a ser considerado é que não há como conciliar as regras de gestão do condomínio edilício previstas no Código Civil com a gestão do condomínio protoedilício, especialmente diante do fato de que o incorporador tem o dever legal de seguir o projeto, e não as deliberações dos condôminos, que são soberanas, sobretudo aquelas que surgem da convenção condominial e das assembleias gerais. Sobre a convenção de condomínio, o art. 1.333 do Código Civil é claro quanto à aplicação da força obrigatória, pela máxima pacta sunt servanda, prevendo que "a convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção". Há, assim, um negócio jurídico coletivo que submete os participantes do condomínio edilício às suas regras. Como bem explica Marco Aurélio Bezerra de Melo, "na formação tem-se um negócio jurídico plurilateral, em que os condôminos deliberarão, por maioria, respeitados a lei 4.591/64 e o Código Civil, os seus interesses na forma como lhes aprouver. Após o registro da convenção de condomínio, teremos uma regra de direito em que se estabelecerão os direitos e deveres recíprocos dos condôminos, independentemente de estes terem ou não participado na sua laboração. Outro motivo que aproxima a convenção de uma norma jurídica é a sua normatividade genérica e abstrata, de modo que todas as pessoas que ingressarem na esfera de proteção jurídica da convenção se submeterão ao seu comando".25 Aplicar essas premissas jurídicas antes da existência do edifício, com o encerramento da construção, é inviável juridicamente.  Outro problema a ser considerado como consequência nefasta da tese indevida de admitir o nascimento do condomínio edilício com o registro da incorporação imobiliária diz respeito à inviabilidade de subsunção das punições impostas aos condôminos antissociais, que não cumprem com as suas obrigações perante o condomínio, para o cenário de uma situação condominial de um imóvel ainda "na planta"; sem existir citada interação efetiva de convívio entre os condôminos. Não seria possível, assim, aplicar o art. 1.337, seja o seu caput ou seu parágrafo único, que consagram penalidades de cinco a dez vezes o valor da contribuição condominial ao condômino nocivo.26 Em continuidade de exposição da problemática a respeito da confusão entre os institutos, se se considerar como edilício o condomínio existente com o mero registro da incorporação, os adquirentes poderiam ser cobrados quanto às contribuições condominiais antes mesmo de estarem imitidos na posse de suas unidades. A mesma afirmação valeria para o incorporador, pois seria considerado igualmente como condômino, em um regime jurídico totalmente avesso e distante ao que hoje é praticado, o que geraria insegurança e instabilidade jurídica. Além disso, o próprio direito do incorporador em desistir da incorporação dentro do prazo de carência seria sujeito a controvérsias jurídicas se se entendesse já existir um condomínio edilício. É que, no condomínio edilício, os condôminos é que velam pela edificação, de maneira que seria extremamente possível vir a prevalecer a tese de que o incorporador, para desistir da incorporação no prazo de carência, precisaria de consentimento de 2/3 (dois terços) dos condôminos por força de possível leitura do art. 1.351 do Código Civil.27 De fato, as regras de desistência do incorporador dentro do prazo de carência não convivem com a equivocada tese de já existir um condomínio edilício. Igualmente sofreria o incorporador problemas jurídicos relacionados à relativa liberdade de que ele desfruta na condução das obras. Em havendo um condomínio edilício, o incorporador teria de sujeitar-se às deliberações aprovadas em assembleia, além de ter de submeter-se a atuação de eventual conselho fiscal que o condomínio venha a instituir, consoante o art. 1.356 do Código Civil.28 Aliás, soa de difícil conciliação haver um conselho fiscal do condomínio edilício com a comissão de representantes, visto que essa última igualmente tem o papel de velar pelos interesses dos adquirentes durante a construção. Existem, ainda, antinomias praticamente insuperáveis se adotássemos a equivocada tese de nascimento do condomínio edilício no momento do registro da incorporação. Uma delas diz respeito ao fato de que o condomínio edilício é um sujeito de direito despersonalizado, que é representado pelo síndico, que pode praticar atos jurídicos e que tem CNPJ. Parece-nos ser totalmente inviável conciliar essa realidade jurídica com o papel da comissão de representantes e com outros dispositivos da lei 4.591/64. Por exemplo, no caso de destituição do incorporador por justo motivo, o art. 43, § 2º, da lei 4.591/64 menciona que a ata da assembleia de destituição do incorporador, se registrada no Cartório de Títulos e Documentos, é idôneo para "a inscrição do respectivo condomínio da construção no CNPJ" e para a "imissão da comissão de representantes na posse do empreendimento". Ora, se já existe um condomínio edilício com CNPJ, o qual é representado pelo síndico, não haveria sentido algum em, nesse caso da destituição, ser criado um outro condomínio, com outro CNPJ, a ser conduzido por uma comissão de representantes. Há um problema lógico insuperável em defender a existência de um condomínio edilício, representado por síndico e com CNPJ, concomitantemente com outro condomínio, representado por comissão de representantes e com CNPJ. Também seria de dificílima conciliação as regras relativas à alteração do projeto de incorporação. O art. 43, inc. IV, da lei 4.591/64 estabelece que o incorporador, ao longo das obras, não pode alterar o projeto nem se desviar do plano da construção, "salvo autorização unânime dos interessados".29 Se, porém, entendermos equivocadamente que já há um condomínio edilício desde o registro da incorporação, tornar-se-á possível defender a aplicação do art. 1.351 do Código Civil, que autoriza mudanças de destinação do edifício por 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos, ou a aplicação do art. 1.341 da própria codificação privada, que autoriza benfeitorias voluptuárias ou úteis mediante respectivamente 2/3 ou maioria dos condôminos. Como se percebe, essa seria mais uma antinomia de dificílima conciliação e solução técnica, que surgiria se se promovêssemos a mistura dadaísta e incompatível de situações jurídicas ontológica e teleologicamente diferentes - a situação protoedilícia ou de prehorizontalidad, para os espanhóis e os argentinos -, e a situação edilícia. Como outra questão de relevo, é descabido estender para o condomínio protoedilício as regras de extinção do condomínio edilício, sendo certo que este último, por exemplo e como antes pontuado, extingue-se com a ruína da edificação sem posterior deliberação pela reconstrução (art. 1.357 do Código Civil). No caso do condomínio protoedilício, por sua vez, se a obra que está em andamento ruir, cabe ao incorporador reerguê-la, cumprindo o projeto original e atendendo aos interesses dos adquirentes que, como regra geral, são consumidores protegidos pela lei 8.078/990. Não se poderia conceber, assim, em um dever de os condôminos deliberarem pela reconstrução, pois foi o incorporador quem se obrigou a entregar uma coisa futura. Nesse contexto, o sistema ora vigente possibilita um controle efetivo quanto à entrega aos adquirentes do produto oferecido, no caso as unidades imobiliárias adquiridas por meio da incorporação. Como é notório, no atual sistema, não havendo ainda um condomínio edilício quando o imóvel está em construção é aplicado, como premissa-geral e na imensa maioria das situações concretas, o Código de Defesa do Consumidor, com todas as suas regras e princípios protetivos aos consumidores adquirentes. Caso seja reconhecida a presença de um condomínio edilício na primeira fase do empreendimento imobiliário deixará de ter incidência o CDC, o que retirará a garantia consolidada dos direitos dos adquirentes consumidores, com grandes prejuízos para a coletividade e para a própria ordem pública. Como é cediço, a lei 8.078/90 é norma principiológica, com prioridade de aplicação, nos termos do seu art. 1º, e da proteção constitucional dos consumidores como direito fundamental, consagrado pelo art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal de 1988, in verbis: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Como está expresso no dispositivo inaugural da Norma Consumerista, "o presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias". Observe-se, nesse contexto, que a jurisprudência superior tem posição consolidada no sentido de não aplicar o Código de Defesa do Consumidor na relação interna entre condôminos e condomínio, entre outras razões, por faltar a alteridade da relação jurídica, uma vez que os condôminos são componentes do próprio condomínio edilício. Essa posição está tão consolidada na Corte que passou a compor a sua ferramenta Jurisprudência em Teses. Conforme a premissa número 10, constante de sua Edição n. 68, dedicada ao condomínio edilício e publicada em 2016, "nas relações jurídicas estabelecidas entre condomínio e condôminos não incide o Código de Defesa do Consumidor". Nesse contexto, além de todos os problemas técnicos aqui expostos, e da grave confusão categórica em se afirmar a existência de um condomínio edilício desde o início das etapas do empreendimento imobiliário, com o imóvel ainda "na planta", fica claro o objetivo de afastar a incidência do CDC, trazendo gravíssimos problemas para os consumidores adquirentes, vulneráveis e hipossuficientes, favorecendo-se sobremaneira agentes de mercado hipersuficientes, no caso as construtoras, incorporadoras e agentes financeiros. Assim, é totalmente inconciliável misturar a situação de representação dos entes condominiais. Enquanto o condomínio protoedilício é representado pela comissão de representantes; o condomínio edilício é representado pelo síndico. Por todo o desenvolvido, observa-se que o legislador não se atreveu a confundir os institutos jurídicos do condomínio protoedilício e do condomínio edilício por uma razão clara e percetpível de imediato: os seus pressupostos, os regimes jurídicos aplicáveis e as finalidades dessas figuras são totalmente diferentes. Totalmente inviável, portanto, no âmbito da aplicação das normas jurídicas, forçar interpretações no sentido de mesclar ou baralhar esses institutos, sob pena de criar uma caótica Babel de antinomias normativas, de se quebrar um sistema de aquisição seguro e com funcionalidade, que visa a trazer certeza e a efetiva proteção aos adquirentes que, regra geral, são consumidores, vulneráveis e hipossuficientes, amparados pelo Código de Defesa do Consumidor. Cabe um último esclarecimento, o art. 30 da lei 4.591/64 estabelece que é incorporador os "proprietários e titulares de direitos aquisitivos que contratem a construção de edifícios que se destinem a constituição em condomínio, sempre que iniciarem as alienações antes da conclusão das obras". O raciocínio até aqui exposto aplica-se também a essa hipótese: com o registro da incorporação, nascerá o condomínio protoedilício. Antes desse registro, os condôminos que contrataram a construção do edifício para futura instituição de um condomínio edilício mantêm uma posição de condomínio tradicional, nos termos dos arts. 1.314 e seguintes do Código Civil, mas estão vinculados contratual ou estatutariamente ao acordo existente entre eles para a realização da obra e para a futura instituição do condomínio edilício. ---------- 1 CC/2002. "Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. §1º. As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio. (Redação dada pela Lei nº 12.607, de 2012). § 2º O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos. § 3º. A cada unidade imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004). § 4º. Nenhuma unidade imobiliária pode ser privada do acesso ao logradouro público. § 5º. O terraço de cobertura é parte comum, salvo disposição contrária da escritura de constituição do condomínio". Lei n. 4.591/1964. "Art. 7º O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dêle constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade." Lei de Registros Públicos. "Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. I - o registro: (...) 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio;" 2 OLIVEIRA, Carlos E. Elias; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 243. 3 Lei 4.591/64. "Art. 1º As edificações ou conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienados, no todo ou em parte, objetivamente considerados, e constituirá, cada unidade, propriedade autônoma sujeita às limitações desta Lei". 4 Lei 4.591/64. "Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas. Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção, se, ao ser contratada a venda, ou promessa de venda ou de cessão das frações de terreno, já houver sido aprovado e estiver em vigor, ou pender de aprovação de autoridade administrativa, o respectivo projeto de construção, respondendo o alienante como incorporador. 5 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 967. 6 TARTUCE, Flavio. Direito Civil. Volume 4. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 13ª Edição, 2021, p. 407. 7 CC/02. "Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção". 8 Nesse contexto de afirmação, vejamos as lições do segundo coautor: "Instituir e' o ato que dá' existência jurídica ao condomínio, fazendo nascer juridicamente as unidades autônomas vinculadas a uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O ato de instituição e' registrado na matrícula do imóvel, a qual fica no Livro 2 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", 176, 227, 237-A da LRP). Constituir e' o ato pelo qual se registra a convenção de condomínio, estabelecendo regras relativas ao funcionamento do condomínio. A convenção, além de reiterar os requisitos formais do ato instituição - para deixar claro quais são as unidades autônomas -, da' as regras relativas a` custeio financeiro do condomínio, a` sua administração, a` competência da assembleia e ao regi- mento interno. Os seus requisitos estão no art. 1.334 do CC e no art. 9o, § 3o, da Lei no 4.591/64. A constituição se instrumentaliza por uma convenção que deve ser registrada no Livro 3 do Cartório de Registro de imóveis (arts. 167, "17", e 178, III, LRP e art. 9o, § 1o, da Lei no 4.591/64). Ela não e' registrada na matrícula do imóvel - a qual fica no Livro 2 -, porque a convenção não trata da estrutura de direito real de propriedade do condomínio edilício, e sim das regras de funcionamento do condomínio. Numa metáfora, instituir o condomínio edilício e' criar o corpo (esqueleto e carne). Constituir e' dar a alma para esse corpo funcionar" (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 967).  9 TARTUCE, Flavio. Direito Civil. Volume 4. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 13ª Edição, 2021, p. 407-408. 10 Em São Paulo, por exemplo, veja os itens 220 a 222 do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo (NSCGJ/SP): "220. Recomenda-se a elaboração de uma ficha auxiliar de controle de disponibilidade, na qual constarão, em ordem numérica e verticalmente, as unidades autônomas, a exemplo do estabelecido para os loteamentos (item 176.1 171.1.) (Alterado pelo Provimento CG nº 37/2013 e Renumerado pelo Provimento CG nº 56/2019). 221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será' irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas. (Alterado pelo Provimento CG nº37/2013 e Renumerado pelo Provimento CG nº 56/2019). 222. Uma vez averbada a construção e efetuado o registro da instituição e especificação do condomínio, proceder-se-á' a` averbação desse fato em cada ficha complementar, com a nota expressa de sua consequente transformação em nova matrícula e de que esta se refere a unidade autônoma já' construída, lançando-se, então, no campo próprio, o nu'mero que vier a ser assim obtido (modelo padronizado) (Alterado pelo Provimento CG nº 37/2013 e Renumerado pelo Provimento CG nº 56/2019). 222.1. Antes de operada a transformação em nova matrícula, quaisquer certidões fornecidas em relação a` unidade em construção deverá incluir, necessariamente, a da própria matrícula em que registrada a incorporação. (Acrescentado pelo Provimento CG nº 37/2013 e Renumerado pelo Provimento CG nº 56/2019)".  11 É a atual redação desse dispositivo legal, com todos os seus parágrafos: "Art. 237-A. Após o registro do parcelamento do solo, na modalidade loteamento ou na modalidade desmembramento, e da incorporação imobiliária, de condomínio edilício ou de condomínio de lotes, até que tenha sido averbada a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção, as averbações e os registros relativos à pessoa do loteador ou do incorporador ou referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento e suas unidades, bem como a própria averbação da conclusão do empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel a ele destinado e replicados, sem custo adicional, em cada uma das matrículas recipiendárias dos lotes ou das unidades autônomas eventualmente abertas.   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022). § 1º Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput deste artigo serão considerados ato de registro único, não importando a quantidade de lotes ou de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes.   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022). § 2º Nos registros decorrentes de processo de parcelamento do solo ou de incorporação imobiliária, o registrador deverá observar o prazo máximo de 15 (quinze) dias para o fornecimento do número do registro ao interessado ou a indicação das pendências a serem satisfeitas para sua efetivação. (Incluído pela Lei nº 11.977, de 2009). § 3º O registro da instituição de condomínio ou da especificação do empreendimento constituirá ato único para fins de cobrança de custas e emolumentos.  (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 4º É facultada a abertura de matrícula para cada lote ou fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma, após o registro do loteamento ou da incorporação imobiliária.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022). § 5º Na hipótese do § 4º deste artigo, se a abertura da matrícula ocorrer no interesse do serviço, fica vedado o repasse das despesas dela decorrentes ao interessado, mas se a abertura da matrícula ocorrer por requerimento do interessado, o emolumento pelo ato praticado será devido por ele.    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)". 12 Lei n. 4.591/1964. "Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (...) § 2º Da ata da assembleia geral que deliberar a destituição do incorporador deverão constar os nomes dos adquirentes presentes e as seguintes informações: (...) III - as inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia." 13 Referimo-nos à hipótese de dois ou mais sujeitos serem titulares do terreno. 14 CC/2002. "Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outro" 15 OLIVEIRA, Carlos E. Elias; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 243. 16 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da lei 14.382/22. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/371876/o-regime-juridico-registral-da-incorporacao-imobiliaria. Acesso em 17 de janeiro de 2023. 17 Sobre Rafael Eguren, o registrador espanhol Fernando P. Méndez González - tido como a maior autoridade registral espanhola (vide https://www.anoreg.org.br/site/imported_1889/) - testemunha: "Todos los registradores de la propriedad, salvo, quizás , los más recientes, saben que Rafael Arnaiz Eguren se há distinguido constantemente em ambas dimensiones: ejercicio prudente de las facultades registrales y defensa enérgica de las mismas frente a los intentos de debilitamiento propiciados por intereses especiales y sesgados, com gran capacidad - en ocasiones - de interloución política. (...) Rafael Arnaiz Eguren es, además, el Registrador de la Propriedad de referencia en los asuntos urbanísticos relacionados con el Registro para todos los registradores de la propriedade y, en general, para los profisionales del derecho que se relacionam habitualmente con el Registro de la Propriedad. Sus opiniones gozan, además, de una gran influencial doctrinal" (GONZÁLEZ, Fernando P. Méndez. Prólogo 1ª Edición. In: ERGUREN, Rafael Arnaiz. Terreno y edificación, propiedad horizontal y prehorizontalidad. Navarra/Espanha e Pamplona/Espanha: Thomson Reuters, 2015, p. 60). 18 HERNÁNDEZ, Joaquín Alejandro. Nuevo régimen de prehorizontalidad y seguro obligatorio. Disponível em: https://www.elseguroenaccion.com.ar/nuevo-regimen-de-prehorizontalidad-y-seguro-obligatorio/. Publicado em 31 de maio de 2018. 19 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 293. 20 Lei n. 4.591/1964. Art. 43. § 15. "O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único". 21 "Isso, todavia, não dispensa o registro da instituição do condomínio, que é obrigatório mesmo quando existente prévio registro da incorporação imobiliária" (SILVA, José Marcelo Tossi. Incorporação Imobiliária. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 14). 22 CC/2002. "Art. 1.357. Se a edificação for total ou consideravelmente destruída, ou ameace ruína, os condôminos deliberarão em assembleia sobre a reconstrução, ou venda, por votos que representem metade mais uma das frações ideais. § 1 o Deliberada a reconstrução, poderá o condômino eximir-se do pagamento das despesas respectivas, alienando os seus direitos a outros condôminos, mediante avaliação judicial. § 2 o Realizada a venda, em que se preferirá, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, será repartido o apurado entre os condôminos, proporcionalmente ao valor das suas unidades imobiliárias". 23 CC/2002. "Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004). II - não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas; IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes". 24 CF/1988. Art. 5º. (...). XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social". CC/2002. "Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.  § 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas". 25 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 3ª Edição, 2021, p. 1037. 26 CC/2002. "Art. 1337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem. Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento antissocial, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembleia". 27 CC/2002. "Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção, bem como a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária. (Redação dada pela Lei nº 14.405, de 2022)" 28 CC/2002. "Art. 1.356. Poderá haver no condomínio um conselho fiscal, composto de três membros, eleitos pela assembleia, por prazo não superior a dois anos, ao qual compete dar parecer sobre as contas do síndico". 29 Lei n. 4.591/1964. "Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (...) IV - é vedado ao incorporador alterar o projeto, especialmente no que se refere à unidade do adquirente e às partes comuns, modificar as especificações, ou desviar-se do plano da construção, salvo autorização unânime dos interessados ou exigência legal";
O contemporâneo acórdão da 3º Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi reforçou a ratio decidenci do excelente acórdão da 4º turma de relatoria do Ministro Luiz Felipe Salomão. Trata-se de interpretação dentro dos limites da legalidade em atendimento aos objetivos teleológicos do ordenamento jurídico.  O fenômeno já conhecido da extrajudicialização, ou seja, prática de determinados atos pelos cartórios extrajudiciais. Vale ressaltar, que sempre deverá ser consensual essa relação jurídica processual. Havendo litigiosidade, o Poder Judiciário e os advogados constituídos atuarão na busca pelo justo em ambiente não administrativo, e sim contencioso. Flávio Tartuce sempre defendeu que a exigência da via judicial no caso existência de testamento deveria ser mitigada, possibilitando assim a feitura em âmbito administrativo, especialmente nos casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado, havendo prévio processamento de abertura do testamento na via judicial. Além disso, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o fim social da lei 11.441/2007 foi a redução de formalidades, devendo essa sua finalidade sempre guiar o intérprete do Direito. O mesmo deve ser dito quanto ao CPC/2015, inspirado pelas máximas de desjudicialização e de celeridade, em vários de seus comandos. Aliás, essa posição doutrinária foi citada e transcrita no memorável acórdão das 4º e 3º Turmas do STJ sobre o tema. Não por acaso tivemos enunciados do Colégio Notarial do Brasil em 2014, da VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2015 e enunciado do IBDFAM no mesmo sentido. Em 2016, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo editou alteração normativa para viabilizar em âmbito extrajudicial a perfectibilização desse ato que era interpretado com alcance restrito (apenas em âmbito judicial). Nesse contexto, o Ministro Luis Felipe Salomão, relator do RESP 1.808.767 do STJ, da 4º Turma, disruptivo em sua intelecção normativa, já havia se posicionado positivamente quando aprovados os enunciados doutrinários sobre a extrajudicialização do direito. Aliás, o referido acórdão foi devidamente relacionado na ratio decidendi do recente acórdão da 3º Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, objeto da presente análise, corroborando ainda mais a construção desse fenômeno, hipertrofiado sobretudo, com a aprovação do atual Código de Processo Civil, em suas parêmias extrajudicializantes. A maior importância dessas decisões, foram permitir um novo alcance hermenêutico ao dispositivo (artigo 610 do CPC), perscrutando um novo passo adiante, extrajudicial, mas respeitando o comando normativo "... que será judicial...". Por outro lado, podemos dizer que o alcance da expressão; "mesmo havendo testamento, é admissível a realização de inventário e partilha por escritura pública, na hipótese em que todos os herdeiros são capazes e concordes", significa entalhar que o fenômeno extrajudicializante permitiu atender ao dispositivo legal estabelecido no Código de Processo de Civil (artigo 610) com as mesmas cautelas e práxis do ordenamento jurídico. Ainda que em um primeiro momento a leitura possa indicar a total exclusão da via administrativa, a interpretação teleológica permite as duas vias, não apenas a judiciária. Com efeito, vale ressaltar que na sistemática proposta, a diferença é que haverá um diálogo de concreção biprocessual - judicial e extrajudial - irradiando assim uma simbiose processual em um procedimento híbrido, mais célere, sem afastar a aplicação legal e a análise judicial prévia, o que representa uma atuação bifronte, sem afastar a missão constitucional do Ministério Público, muito menos do Poder Judiciário. Em relação ao MP, poderia ser descartado, pela ausência de incapazes, no entanto, esse raciocínio permitiu um grande passo adiante para aplicação desse mesmo arquétipo normativo nos casos de pessoas incapazes. Nesse ponto, cabe uma observação, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no seu inciso XXXV do artigo 5º, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Por outro lado, o Código de Processo Civil possibilitou buscar a justiça por outros meios, não apenas o Poder Judiciário como única forma de acesso. Segundo o artigo 3º, não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, permitindo arbitragem, na forma da lei, e direcionando a promoção Estatal, sempre que possível, à solução consensual dos conflitos, devendo a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. No entanto, não podemos generalizar as situações, relativizando a lei, descumprindo o ordenamento jurídico. Devemos ter muita cautela na implementação das soluções jurídicas, sem divorciarmos das conquistas processuais, da segurança da essencialidade da advocacia e do papel institucional do Ministério Público - como fiscal da lei - e do Poder Judiciário. Por isso, defendemos a possibilidade dessa pacificada solução, em todos os casos, com existência de testamento e com incapazes, inspirando as Corregedorias Estaduais na edição de normas de serviço que facilitem a prática dos atos pelos advogados, notários e juízes, aplicando-se em inventários, partilhas, divórcios e separações. Objetivamente representa a pacificação do tema, permitindo os julgadores terem maior tranquilidade nos julgamentos - afastando qualquer tipo de infração hermenêutica -, não correndo o risco de insegurança de inovações legais, aplicando o direito em conformidade com o ordenamento jurídico posto. Também indica uma vereda aos Corregedores Estaduais na implementação das Normas de Serviço (expressão Paulista) ou Código de Normas Extrajudiciais. Como já mencionado em um recente alvará do TJSP, da Comarca de Iacanga, irradiada de nosso posicionamento simbiótico, essa estrutura processual híbrida, portanto, está sendo lentamente absorvida pela jurisprudência de outros Tribunais, além do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sempre tendo em vista a efetivação dos princípios supramencionados e revelando, dessa forma, o enorme peso que a compreensão principiológica galgou para que tais mitigações tanto no caso do testamento quanto no caso do sucessor incapaz ocorressem. Na verdade, nesse caso, ainda que tenha esses novos paradigmas hermenêuticos, o que não representa em nenhum momento a subsunção da coerente crítica de Lenio Luis Streck ao tratar do fenômeno de "pamprincipiologismo". Nesse contexto, vale transcrever seu posicionamento: "Por certo, a principal preocupação da Teoria do Direito deve ser o controle da interpretação, problemática agravada pelo crescimento da jurisdição em relação à legislação. O "caso brasileiro" é paradigmático nesse sentido. Se aos princípios é possível debitar esse crescimento tensional, é igualmente neles que reside o modo de, ao mesmo tempo, preservar a autonomia do Direito e a concretização da força normativa da Constituição. Daí a necessidade de um combate hermenêutico à pamprincipiologia, que enfraquece sobremodo o caráter concretizador dos princípios, ao criar uma gama incontrolável de standards retóricos--persuasivos (na verdade, no mais das vezes, enunciados com pretensões performativas) que possibilitam a erupção de racionalidades judiciais ad hoc, com forte cunho discricionário. Entretanto, como contrapartida, deve haver um cuidado com o manejo dos princípios, que não podem ser transformados em álibis retóricos e, com isso, fragilizar a autonomia minimamente exigida para o direito nessa quadra da história. Tampouco se pode continuar a utilizar a vetusta cisão entre regras - que seriam aplicadas por subsunção - e princípios, esses "aplicados por ponderação." Percebe-se que a irradiação principiólogica desenvolvida e a simbiótica relação processual freia o alcance semântico ao interpretar corretamente o artigo 610 do CPC, na medida em que permanece o procedimento "judicial", ainda que com uma mitigação da instrumentalidade das formas. Aliás, aproveitando o ensejo e a evolução do tema, dentro dos limites legais do artigo 610 do CPC, esse caso representou uma grande evolução, notadamente podendo aplicar a solução nos inventários com incapazes, destaca-se um trecho, obiter dictum, dessa atual decisão que corroborará com a aplicação desse arquétipo simbiótico: "... 12) Reafirmando essa tendência, acrescente-se que o art. 2.015 do CC/2002 estabelece que "se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz", ao passo que o art. 2.016 do mesmo Código assevera que "será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz..." Além da própria ementa: "CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO SUCESSÓRIO. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DE PARTILHA EXTRAJUDICIAL EM QUE HÁ TESTAMENTO. ART. 610, CAPUT E § 1º, DO CPC/15. INTERPRETAÇÃO LITERAL QUE LEVARIA À CONCLUSÃO DE QUE, HAVENDO TESTAMENTO, JAMAIS SERIA ADMISSÍVEL A REALIZAÇÃO DE INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. INTERPRETAÇÕES TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA QUE SE REVELAM MAIS ADEQUADAS. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA LEI Nº 11.441/2007 QUE FIXAVA, COMOPREMISSA, A LITIGIOSIDADE SOBRE O TESTAMENTO COMO ELEMENTOINVIABILIZADOR DA PARTILHA EXTRAJUDICIAL. CIRCUNSTÂNCIA FÁTICA INEXISTENTE QUANDO TODOS OS HERDEIROS SÃO CAPAZES E CONCORDES. CAPACIDADE PARA TRANSIGIR E INEXISTÊNCIA DE CONFLITO QUE INFIRMAM A PREMISSA ESTABELECIDA PELO LEGISLADOR. LEGISLAÇÕES ATUAIS QUE, ADEMAIS, PRIVILEGIAM A AUTONOMIA DA VONTADE, A DESJUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS E OS MEIOS ADEQUADOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS. POSSIBILIDADE DE PARTILHA EXTRAJUDICIAL, AINDA QUE EXISTENTE TESTAMENTO, QUE SE EXTRAI TAMBÉM DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO". Portanto, não há uma total desjudicialização, pois continua havendo o atendimento teleológico do dispositivo com a análise cognitiva do Magistrado e do Promotor de Justiça, após a competente deflagração realizada pelo advogado. Dessa forma, não há desvirtuamento legal, muito menos atividade legislativa administrativa, mas sim a escorreita aplicação da ratio decidendi do RESP 1.808.767 e do atual da 3º Turma, RECURSO ESPECIAL Nº 1.951.456 - RS (2021/0237299-3), com a efetiva proteção dos incapazes - realizado judicialmente - e a valorização da norma fundamental prevista no §§ 2º e 3º do artigo 3º do Código de Processo Civil. Assim, haverá uma atuação simbiótica desses dois sistemas de acesso à justiça, o extrajudicial e o judicial, já que etimologicamente estarão sempre ligados. Por fim, com todo esse arcabouço, podemos afastar essa aflição gnoseológica jurídica para aplicar a concreção biprocessual - judicial e extrajudial - irradiando assim uma simbiose processual em um procedimento híbrido, mais célere, sem afastar a aplicação legal e a análise judicial prévia, representa uma atuação bifronte, sem afastar a missão constitucional do Ministério Público, muito menos do Poder Judiciário. Referências BRASIL. LEI N. 10.406 DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Código civil, Brasília, DF, jan 2002. Disponível aqui. Código Civil. Acessado em 20.11.2022. BRASIL. LEI N. 13.105 DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de processo civil, Brasília/DF, mar 2015. Disponível aqui.  Acessado em 20.11.2022. STJ. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.951.456 - RS (2021/0237299-3),. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 2022. Disponível aqui. acesso em 24.11.2022 STRECK, Lenio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio Dilemas da crise do direito. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 23.11.2022 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 6: direito das sucessões. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 600/605.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Ata notarial ou escritura pública declaratória?

As definições de ata notarial e de escritura pública são bem delineadas, portanto, nesse ponto, não há considerável divergência. Apenas para reforçar tais conceitos, trazemos a seguir o quadro elaborado pelos ilustres notários e doutrinadores Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues, em obra inédita de autoria de ambos, sobre a qual podemos afirmar se tratar da mais completa obra existente sobre ata notarial do país (Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2.ed.rev.ampl. e atual. - Salvador: Editora JusPodivm, 2020. pp 149 e 150). Semelhanças e Diferenças entre ata notarial e escritura pública Ata Notarial Escritura Pública Assessoria notarial Assessoria notarial Imparcialidade Imparcialidade Fatos Jurídicos Atos e negócios jurídicos Autenticatória Constitutiva, modificativa e Extintiva O tabelião é o autor. As partes não atuam, apenas indicam o quê constatar O tabelião é o autor, redigindo legalmente a vontade das partes Autentica e dá forma aos fatos presenciados para a proteção de direitos Autentica e dá forma à relação jurídica Desistência da assinatura pela parte: o ato pode ser subscrito, a critério do tabelião Desistência da assinatura pela parte: o ato não pode ser subscrito pelo tabelião, o ato fica sem efeito ou incompleto Sem juízo ou opinião subjetiva sobre os fatos pelo tabelião. Há um juízo estritamente objetivo Há um juízo subjetivo e objetivo sobre a capacidade das partes e legalidade sobre os atos e negócios jurídicos Descrever fatos que contenham ilícito: sim, pode Instrumentalizar atos e negócios ilícitos: não pode O tema que divide opiniões entre os notários brasileiros e estudiosos do Direito Notarial e Registral surge especificamente quando se trata da escritura pública declaratória e a sua distinção em comparação com a ata notarial. Isso ocorre devido aos costumes praticados no notariado ao longo do tempo, cujos profissionais, em sua maioria, utilizaram a escritura pública declaratória para atender a vontade das partes quando, apenas, quisessem declarar algo. Assim, notamos que há um conflito entre os conceitos legais dos atos e os costumes na prática notarial. Por um lado, há quem defenda que, quando as partes procuram um notário com a única finalidade de declarar algo, o instrumento público adequado seria a escritura pública declaratória. Por outro lado, há quem defenda que nessa situação, o instrumento público adequado seria a ata notarial. Entre os adeptos da primeira corrente (escrituras declaratórias), existem duas interpretações sobre o tema, uma mais rígida e outra mais moderada. Na mais rígida se defende, por exemplo, que, caso houver qualquer tipo de declaração de pessoas durante a realização de uma ata notarial, essa declaração não poderia ser incluída na ata, pois toda e qualquer declaração deve ser formalizada por escritura pública declaratória, sendo necessário, nesse caso, realizar outro ato público em apartado, ou seja, a ata notarial para a constatação do que lhe foi requerido, e a escritura declaratória para as declarações que surgirem durante o ato. A interpretação mais moderada, ainda dentro da primeira corrente (escrituras declaratórias), apesar de defenderem a escritura pública declaratória como o instrumento adequado quando se tratar de apenas colher declarações, não se recusam, no exemplo acima, a colher depoimentos ou declarações que possam surgir durante a realização da referida ata notarial, pois entendem que, neste caso específico, tais declarações surgiram durante a realização da ata, posto que seria o ato notarial secundário ou complementar, sendo a ata, nessa situação, o ato notarial principal ou primário. Já a segunda corrente (ata notarial) defende que toda vez que se tratar de um ato que não contenha um negócio jurídico, onde a vontade das partes não resulta em um efeito jurídico obrigacional, o instrumento adequado sempre será a ata notarial, independentemente de as partes comparecerem no cartório somente para declararem algo. Essa corrente defende a literalidade dos conceitos legais de cada ato, não fazendo exceção quando se trata de declarações. Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues, que são defensores da segunda corrente (ata notarial), na obra já citada, trazem um exemplo bem simples para se distinguir esses dois instrumentos públicos. Os autores citam duas situações parecidas, mas que pela existência de um complemento em uma delas, faz com que o instrumento público adequado se torne outro. O exemplo trazido por eles é de quando duas pessoas comparecem perante um tabelião para declarar, apenas, que vivem juntas, ou seja, essa não seria uma declaração de vontade das partes e sim o relato de um fato que é existente e está sendo declarado por elas, sendo, portanto, o instrumento adequado para o caso a ata notarial. Porém, nesse mesmo exemplo, se estas duas pessoas, além de declarar o fato existente de viverem juntas, complementam que essa união se submeterá às regras de determinado regime de bens, haverá, então, na explicação dos autores, uma declaração de vontade que resultará em um efeito jurídico obrigacional ou real, passando, a partir daí, a ser uma escritura pública declaratória o instrumento adequado ao caso. O fato é que ao longo do tempo a ata notarial foi muito pouco utilizada, e a grande maioria dos notários se acostumou com a escritura pública declaratória para toda e qualquer declaração que as partes viessem a realizar dentro do Tabelionato. Mesmo que hoje já tenhamos estudos mais avançados sobre a ata notarial, a exemplo da brilhante obra já mencionada, e que o uso da ata notarial é cada vez maior em nosso país, muitos notários ainda não se acostumaram com a ideia de lavrar uma ata notarial em casos que sempre utilizaram a escritura pública declaratória. O próprio nome do ato, que contém a palavra "declaratória", faz com que muitos afirmem ser esse o instrumento correto, pois alegam que não se trata de uma escritura comum, que envolve necessariamente um negócio jurídico, e sim de uma escritura específica, a qual serve para colher a declaração das partes. O problema que surge sobre o tema não é tanto sobre a instrumentalização pública adequada para tais declarações, pois apesar de serem instrumentos distintos, ambos são aceitos, inclusive no Poder Judiciário. Também não encontramos nenhum caso de punição a notário por praticar de uma forma ou de outra, pois essa divergência está mais ligada à técnica notarial, não gerando riscos ou prejuízos aos usuários com a utilização de ambas. O que se torna preocupante é outra situação, que abrange até onde vão os limites de tais interpretações e seus reflexos para a sociedade. Desse modo, o que gostaríamos de chamar a atenção não é sobre qual interpretação está correta e deva ser usada, até porque, como já dito, qualquer que seja a forma que o notário optar lavrar, mesmo que não seja o instrumento adequado, será aceito, como vem sendo ao longo de todos esses anos. O que, para nós, é preocupante, são os apegos a certos formalismos na hora de lavrar o ato, os quais podem resultar em sérios prejuízos aos usuários dos serviços notariais. Um exemplo deste "excesso de formalismo", ao nosso ver, dá-se no momento da realização da ata notarial para fins de usucapião extrajudicial. Há entendimento no sentido da impossibilidade de colheita de depoimentos e declarações de pessoas que residem ao redor do imóvel usucapiendo, quando da realização da ata notarial, por mais que tais depoimentos sejam importantíssimos para contribuir na comprovação do tempo de posse, sob alegação de não ser possível inserir declarações de pessoas em atas notariais, sendo o instrumento adequado uma escritura pública declaratória. Vejam, com todo respeito a quem pensa de modo diferente, isso vai totalmente de encontro com o que se espera da usucapião extrajudicial, que é agilidade e economia. Como o requerente irá conseguir que várias pessoas que moram ali na vizinhança compareçam no cartório para realizarem tais declarações? Ou, mesmo que o cartório pratique o ato em diligência, realizando várias escrituras públicas declaratórias com as pessoas que moram próximo ao imóvel, quanto ficaria o valor de todos esses atos ao final? Portanto, a recusa em colher tais depoimentos na própria ata se mostra muito prejudicial às partes e à Sociedade, inviabilizando a usucapião extrajudicial e ferindo frontalmente dois princípios notariais, o da economia para as partes e o da eficiência. Mas então qual seria a saída para determinados conflitos de interpretação? Entendemos e respeitamos as duas maneiras de interpretação sobre ata notarial e a escritura pública declaratória, sendo ambas aceitáveis, contanto que não sejam prejudiciais aos usuários; portanto, evitar excessos nas interpretações pode ser o caminho mais adequado e justo. Uma sugestão, também, seria aceitar a forma escolhida pela parte, desde que essa seja aceita pela jurisprudência. Exemplo: o notário que entenda que se trata de escritura declaratória quando duas pessoas somente declaram que moram em referido endereço, caso lhe seja solicitado que faça o ato como ata notarial, poderia lavrá-lo como tal, mesmo não concordando, tendo em vista ter respaldo doutrinário e jurisprudencial. E o contrário também poderia ocorrer, ou seja, nessa mesma situação, o notário que entenda ser a ata notarial o instrumento adequado, poderia lavrá-lo como escritura pública declaratória, caso a parte insista que o ato seja lavrado como tal. Não havendo prejuízos para as partes, e sendo o ato defensável e aceito, inclusive em juízo, se necessário for, entendemos não existir motivos para a recusa, pois estaria o notário atendendo a um pedido do usuário, em relação ao qual não existe ilegalidade presente. Isso não significa dizer que os notários devem sempre agir assim, estamos tratando especificamente dos casos que envolvem as polêmicas de interpretação sobre onde deve ser usada a ata notarial, e onde deve ser usada a escritura pública declaratória. Porém, o que não deve ocorrer, sob pena de sérios prejuízos aos usuários dos serviços notariais, a nosso ver, são recusas como as que trouxemos de exemplo neste singelo artigo, de se negar a constar depoimentos e declarações em atas notariais, quando estas surgirem durante a constatação, tanto em atas para fins de usucapião extrajudicial ou em qualquer outra ata notarial de constatação que o notário esteja em diligência. Por fim, esclarecemos que elaboramos uma sugestão de enunciado para a 1ª Jornada de de Direito Notarial e Registral, realizada nos dias 04 e 05 de agosto de 2022, porém, infelizmente, por um erro de envio de nossa parte, o enunciado não foi nem para a apreciação inicial. A proposta de enunciado que elaboramos foi a que segue. Enunciado: As Atas Notariais para fins de Usucapião Extrajudicial podem conter depoimentos, testemunhos ou quaisquer espécies de declarações de pessoas em seu conteúdo, sem a necessidade de se formalizar escrituras públicas declaratórias em apartado. Tal proposta será enviada para a próxima Jornada, para que possa ser avaliada pela comissão de Notas, com a intenção de evitar possíveis recusas que, além de causarem prejuízos aos usuários, prejudiquem a evolução da usucapião extrajudicial no país. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.
segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

SERP - havia uma pedra no caminho

O Congresso Nacional acabou por derrubar alguns vetos de dispositivos da Lei 14.382/2022. Entre outros, já apontados e comentados1, gostaria de chamar a atenção, especificamente, para a derrubada do veto ao seguinte dispositivo da Lei: "Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei. § 1º ............................................................................................................................... III - os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis deverão, obrigatoriamente, ser acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples, exceto se apresentados por tabelião de notas, hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria". O inciso foi promulgado, nos termos do § 5º do art. 66 da Constituição Federal, e se acha agora em pleno vigor. Geleia geral notarial e registral Já havia me dedicado ao tema aziago da substituição dos títulos, em sentido material e formal, por meras notícias digitais (notes), afeiçoadas a sistemas de registração alienígenas. Sobre a substituição paradigmática do sistema de registro de direitos pelo de registração por mera indicação, remeto o leitor aos argumentos já expendidos anteriormente2. A derrubada do veto introduz um novo elemento que haverá de render algumas discussões, razão pela qual retorno ao tema. O notário ganhou uma atribuição heterodoxa: arquivamento de instrumentos particulares em suas "pastas próprias", seja lá o que isto queira significar em tempos de digitalização. O tabelião de notas possivelmente concorrerá com o SERP neste mister, a fiar-se no disposto no inc. VIII do art. 3º da Lei 14.382/2022, alçados, ambos, a uma espécie de ente para-registral3. Entretanto, o notário ganha uma atribuição ainda mais inusitada: recebido o instrumento e arquivado em suas "pastas próprias", dele expedirá (ou concertará) o extrato, que se torna, assim, uma espécie de traslado do documento por ele arquivado. De outra forma, terá sentido que receba o instrumento, arquivando-o em suas pastas, e acate o extrato elaborado por terceiros? Como estará seguro de que este não se acha em descompasso com o instrumento contratual? Instaurou-se a geleia geral nas notas e registros! Analisando o quadro legal, não deixo de me lembrar dos velhos extratos do século XIX. Constatem a simetria encontrada entre a moderna Lei 14.382/2022 e o vetusto Decreto 3.453, de 26/4/1865: Art. 53. A pessoa, que requerer a inscrição ou transcrição de qualquer título, deverá apresentar ao oficial do registro: § 1º O título. § 2º O extrato do mesmo título em duplicata, contendo todos os requisitos que para inscrição e transcrição este regulamento exige, e pela mesma ordem, em que são exigidos. Estes extratos serão assinados pela parte ou por seu advogado ou procurador. O regulamento de 1865 ainda cravava que um dos principais deveres dos oficiais do registro seria justamente a "conferência dos extratos entre si e com o título" (§ 2º do art. 98). Esta ideia da extratação foi abandonada ainda no século XIX por se tratar de "uma perfeita inutilidade", consoante Lafayette4. Um pouco mais tarde, Lacerda de Almeida averbaria que os extratos eram "uma adaptação servil e inútil do sistema de registro francês"5. Hoje diríamos, "adaptação servil (e imperita) do sistema norte-americano"... Ironias à parte, é preciso reconhecer que novos extratos foram concebidos no passado recente para que pudéssemos enfrentar, de modo rápido e eficiente, as demandas da sociedade digital. Era preciso informatizar os processos de encaminhamento de títulos a registro, criando uma infovia registral. Os novos extratos representaram, assim, uma solução inteligente e adequada às necessidades do crédito imobiliário. Para sua regulamentação e adoção foram buscados fundamentos na legislação hipotecária e naquelas em que ocorre a previsão de contratação imobiliária estereotipada - nos típicos contratos de adesão6. As inovações igualmente figuraram na especificação do SREI - Sistema de Registro de Imóveis eletrônico7 e a sua execução, no Estado de São Paulo, foi posta em prática no período de 2012-20138, na gestão do desembargador José Renato Nalini. A ideia era espraiar o modelo para todo o Brasil. Entre outros objetivos, esta foi razão pela qual se criou  o ONR - Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico. Buscávamos dotar o sistema registral imobiliário de novas ferramentas tecnológicas, mudanças estas que suscitaram grandes resistências, como se sabe. A regulamentação dos extratos repousava em bons precedentes e fundamentos legais e foi objeto de prova de conceito (POC) do SREI, levada a efeito pelo NEAR-lab - Laboratório do Núcleo de Estudos Avançados do Registro de Imóveis eletrônico9. Em vista do que se construiu no passado, legado do qual muitos de nós nos orgulhamos, não se pode presumir que sejamos avessos à ideia do extrato em si mesmo considerado. O problema é sua defectiva consagração nesta lei, cuja aplicação e regulamentação advinha-se tormentosa. Voltando à vaca fria, a redação original do art. 194 da LRP era clara o suficiente e sua aplicação provada pela experiência de muitas décadas. Alterou-se para pior. Os títulos físicos, uma vez digitalizados (e devolvidos às partes), serão arquivados em repositórios eletrônicos de difícil gestão e conservação (aliás, não regulamentados10). Teremos em cartório meros representantes digitais divorciados de sua fonte primária original. Por outro lado, se o instrumento ("cópia simples") vier encapsulado em arquivos eletrônicos, o que se fará? Não há previsão de arquivamento de instrumentos eletrônicos (sejam digitalizados ou natodigitais) no Registro de Imóveis, consoante a LRP (art. 194). Caso o interessado queira uma certidão do instrumento registrado, a quem deverá solicitar a sua expedição? Ao Registro de Imóveis da circunscrição correspondente (arg. do art. 18, in fine, c.c. inc. III do art. 6º da Lei 14.382/2022)? Ou tal título remanescerá em repositórios eletrônicos administrados pelo SERP (inc. VIII do art. 3º da Lei 14.382/2022)? Nesse caso, O próprio SERP, a máquina ou um técnico contratado, expedirá a certidão de documento arquivado nesta espécie de "entidade registradora"? Ou o título remanescerá nas "pastas próprias" dos notários, de cuja fonte extrairão a certidão? Ou em cada um destes repositórios? Por fim, ad absurdum, poderia ser o próprio interessado que terá atestado que o "conteúdo corresponde ao original firmado pelas partes"? Ora, tendo autenticado o instrumento na entrada, por que não poderá fazê-lo a qualquer tempo? Quem expedirá a certidão, ministrando-lhe os efeitos jurídicos de eficácia que dimana da fé pública notarial e registral? De quem será a responsabilidade pela recepção, gestão, ordem e conservação de tais documentos? No cenário criado por esta lei, respondam-me sinceramente: que diferença faz que estes depósitos de dados se façam em entes como o SERP ou em blockchain, ou mesmo que se "tokenisem" a propriedade, ou a garantia real? Esses dados remanescerão gravados, perene e indelevelmente, nas cadeias on chain das novas serpes digitais... Considerando-se que o valor probatório dos instrumentos particulares, performado ex ante (prova pré-constituída e notarizada, dotado de força orgânica, "motor da ação"11), se esvai progressivamente do sistema e a qualificação registral se degrada (l. "a", inc. I, art. 6º), que diferença essencial pode haver? A situação jurídica se estabilizará ex post na via jurisdicional? Como sustentar a preponderância da segurança jurídica preventiva em face da eminente segurança econômica e tecnológica que desponta se, ao final e ao cabo, deflagrado um litígio acerca da contratação e de seus efeitos revérberos, tudo se resumirá à produção de provas em juízo (art. 369 do CPC)? Não se deve esquecer de que a presunção do registro foi construída ao longo de mais de uma centúria na relação intrínseca e direta que se estabeleceu entre o registro e a titulação notarial ou de instrumentos particulares notarizados (instrumentos particulares com firmas reconhecidas - inc. II do art. 221 da LRP c.c. inc. I do art. 411 do CPC). Um sistema digital baseado na recepção e emissão de dados não autenticados ("cópias simples") gera facilmente o fenômeno GIGO -   garbage in - garbage out (lixo entra, lixo sai). Insegurança jurídica entra - insegurança jurídica sai. O instrumento particular registrável agora é qualificado pela lei como mera "cópia simples", presumivelmente um singelo PDF, despojado de seu envoltório jurídico (vestido formal, prova pré-constituída, motor da ação etc.), "acompanhado de declaração, assinada eletronicamente, de que seu conteúdo corresponde ao original firmado pelas partes" (§ 4º do art. 6º). "Declaração" firmada por quem, cara-pálida? Pelo apresentante, por analogado do §2º do art. 130 da LRP12? Por procuradores? A lei não diz, mas faz presumir que seja o "interessado" que assume esta responsabilidade autenticadora no caso do Registro de Imóveis, legitimando o acesso do título à tábua registral (arg. do art. 6º, caput, da Lei 14.382/2022). Acha-se restaurado entre nós o princípio de rogação ou instância (inc. II do art. 13 da LRP)? E aí se pergunta: o quê do famoso artigo 217 da LRP? Quem haverá de qualificar o legítimo interesse do apresentante no envio de extratos via SERP? Remanescerá a dita disposição como mero arcaísmo na lei - a exemplo dos igualmente famosos extratos (art. 193 da LRP)13? A resposta a questões como as aqui agitadas nos será dada pela regulamentação a cargo da CN-CNJ. O órgão deverá regulamentar "os padrões tecnológicos de escrituração, indexação, publicidade, segurança, redundância e conservação de atos registrais, de recepção e comprovação da autoria e da integridade de documentos em formato eletrônico, a serem atendidos pelo Serp e pelas serventias dos registros públicos, observada a legislação"(inc. III do art. 7º da Lei 14.382/2022). Nesta altura, o exegeta deve estar se perguntando: afinal, o registro será feito pelo extrato ou pela "cópia simples" do instrumento encaminhada ao SERP? Ou por ambos? A cópia será assinada eletronicamente? E o extrato? Por quem? Assinatura eletrônica avançada ou qualificada14? A representação dos contratantes, quando calhar, será qualificada pelo notário ou pelo registrador? Ou somente o envio da "cópia simples" será autenticado?   Vejamos no detalhe. Com a derrubada do veto, o inc. III, § 1º, do art. 6º se ilumina pelo § 4º do art. 6º, que reza: § 4º O instrumento contratual a que se referem os incisos II e III do § 1º deste artigo será apresentado por meio de documento eletrônico ou digitalizado, nos termos do inciso VIII do caput do art. 3º desta Lei, acompanhado de declaração, assinada eletronicamente, de que seu conteúdo corresponde ao original firmado pelas partes. O registrador deverá receber os extratos "acompanhados do arquivamento da íntegra do instrumento contratual, em cópia simples" em forma eletrônica, diz a lei. Já o inc. VIII do art. 3º da Lei 14.382/2022 reza que o SERP  terá a função de "armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais". O SERP encaminhará o instrumento ("cópia simples") pareado com o extrato ao Registro de Imóveis? Aparentemente, a resposta é positiva, a teor do dispositivo ressuscitado. Nesse caso, então, por que a referência contida no § 4º do art. 6º - "nos termos do inciso VIII do caput do art. 3º desta Lei"? São disposições de certo modo despiciendas e já se achavam no texto antes do veto. Todo o articulado é confuso, emaranhado, macarrônico, disfuncional. Quando se diz que  o oficial "qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico"15 (item § 1º do art. 6º), somos levados à conclusão de que são coisas distintas - extrato e título. E são mesmo! Com a derrubada do veto, a distinção e a função de ambos se tornaram nítidas (ou mais obscuras, dependendo da perspectiva). Reitera-se a pergunta feita acima: o registro se fará pelo extrato ou pelo instrumento? Ou por ambos. Parece razoável e lógico que deva haver uma íntima congruência entre o título e o extrato. Sabemos que o instrumento contratual deverá obrigatoriamente ser arquivado no Registro de Imóveis competente (ou no tabelionato de livre escolha do interessado). Entram em cena, novamente, os repositórios de caráter público - tabelionatos e registros imobiliários. Pergunta-se: o tabelião, ou o registrador, ao qualificar o título, "pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico", devem denegar o acesso quando não sejam congruentes entre si? Caso contrário, como expedir certidão de um instrumento que pode não ser o mesmo que foi efetivamente inscrito? Erigiu-se uma "esquizo-titulação".  O que é título, para efeitos da lei civil e registral? Barafunda imensa, esta que foi criada... Por outro lado, não se argumente que a lei sancionou a faculdade de o requerente, a seu alvedrio, "solicitar o arquivamento da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato eletrônico". O dispositivo que franqueia o exercício dessa faculdade se refere exclusivamente a instrumentos que tenham por objeto bens móveis (inc. II do art. 6º), não imóveis. Aqui não calha qualquer tipo de analogia, especialmente porque a própria lei distingue claramente as duas hipóteses no mesmo quadrante (inc. III), com o destaque do advérbio - obrigatoriamente. A natureza e os efeitos dos contratos são distintos e calham em registros públicos diversos (RTD e RI), malgrado o fato da conhecida intentona de consumação da geleia geral registral. Calha aqui uma nótula de frustração e de certo desapontamento. Sempre sustentamos que quem deveria gerar o extrato a partir de todo e qualquer instrumento apresentado a registro, fosse público ou privado, deveria ser o próprio registrador, com uso e apoio de novas tecnologias da informação e comunicação -machine learning, inteligência artificial, algoritmos especializados etc.16 De certo modo, sempre foi assim e o é até hoje: o registrador desempenha uma função criativa, no sentido de que é ele, o registrador, que extrai do título os elementos de transcendência real e conforma o ato de registro. Capacitação econômica e técnica, portanto, jamais nos faltaram. O que a lei fez foi simplesmente trasladar atribuições, tão nobres, dignas, tradicionais, próprias de um jurista, para terceiros. Não se deve iludir, sempre haverá quem promova uma diligência preventiva de litígios (due diligence) nas vésperas de qualquer contratação que tenha por objeto bens imobiliários e mobiliários sujeitos a registro e à publicidade jurídica. E nem por isso se dirá que tal atividade seja custosa e burocrática... A infovia notarial Diz o dispositivo que os extratos poderão ser apresentados por tabeliães de notas, "hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria". Voltamos às questões: os interessados encaminharão - instrumento e extrato - já elaborados ao tabelião? Ou serão eles próprios, os notários, que elaborarão um heterodoxo "traslado por extrato" dos instrumentos contratuais (originais ou "cópias simples")? Que tipo de autenticação promoverão os nossos notários? Darão certidão ou tirarão traslados? Farão a concertação, como se fazia com as públicas-formas? Ou será, ainda, que, pela via notarial, os próprios instrumentos originais devam ser apresentados aos tabeliães, sujeitando-os à qualificação notarial? Daí se lavrará um ato notarial de entrega do instrumento contratual e arquivamento, autenticando-se, ato contínuo, o extrato? Tudo se fará sob sua estrita responsabilidade? Eles encaminharão o extrato diretamente aos registradores pela plataforma digital dos próprios notários? Ou pelo SERP? Os instrumentos remanescerão no SERP ou na plataforma do e-Notariado? Ou em novos repositórios criados nas serventias imobiliárias? Percebem que, longe de facilitar e racionalizar o processo de registro, criamos vários hubs que representam, na prática, nódulos informacionais que tendem a ser expelidos do circuito por redundância? Quando a lei diz que será arquivado o "instrumento contratual em pasta própria" não nos parece crível que se possa arquivar meras cópias, cujo valor probante é consabidamente escasso, especialmente nos casos de criação, alteração e extinção de direitos reais. É uma espécie de capitis diminutio da função notarial e registral. Se requerida a certidão, far-se-á uma cópia de cópia? Ora, o representante digital não se confunde com o seu original. Nem mesmo o registrador deveria albergar cópias totalmente carentes de autenticação (i. e. definição de autoria das partes e não só do apresentante)17. Garbage in - garbage out. O que se buscou com a lei seria factível se a reforma promovesse um ecossistema registral homogêneo e inteiramente coerente com as tradições do direito civil pátrio, mas isto infelizmente não aconteceu. Ao assimilar os modelos de registro de garantias alienígenas18, postamo-nos com os pés fincados em duas canoas. Como disse alhures, incrustaram-se flores de plástico num jardim tropical, importando elementos de direito estranhos à nossa tradição, enxertando-os, a fórceps, na ordem civil19. O quadro se revela inçado de acidentes rebarbativos, representando imensas dificuldades hermenêuticas. Questão lateral: instrumentos particulares extratados por tabeliães Uma questão lateral se revela de modo inesperado: o notário poderá receber qualquer instrumento particular quando não for obrigatória a escritura pública?20 Poderão recepcionar o instrumento particular, autenticar o extrato e encaminhá-lo ao Registro de Imóveis? Será possível conjugar o disposto no art. 6º da Lei 14.382/2022 com o artigo 1.417 do CC21? Notem que não há restrição alguma no caput do art. 6º. "Quando cabível", diz a lei, "os oficiais receberão dos interessados, por meio do SERP, os extratos eletrônicos para registro ou averbação". Calha perguntar: extratos de todo e qualquer instrumento particular? A lei legitimaria qualquer "interessado" a apresentar seus instrumentos particulares, bastando provar o interesse na prática do ato de registro? Espera-se que a Corregedoria Nacional regulamente precisamente as hipóteses em que seja "cabível" o uso dos extratos, nos termos do inc. VIII do art. 7º da Lei 14.382/2022. Poderá levar em consideração a experiência provada no Estado de São Paulo, delimitando, claramente, o âmbito de sua ocorrência22. SERP - um fruto serôdio O fato é que, depois de uma tramitação acidentada da MP 1.085/2021, com 667 emendas rejeitadas e 15 aprovadas pelo relator na tramitação da matéria23, ficou patente que as reformas eram precipitadas e açodadas e tiveram que ser aprovadas ao cair da noite, com base num "relatório relâmpago" do Deputado Isnaldo Bulhões. Tudo a confirmar a péssima impressão que ficou de toda essa iniciativa24. Convertida a MP 1.085/2021 na Lei 14.382/2022, vemos que pouco mudou nos cartórios  brasileiros. A remansosa tramitação dos títulos segue sua indolente procissão formalista, sem atalhos nem ganhos de produtividade. Há boas iniciativas, é claro, especialmente aquelas que já se achavam consagradas na experiência exitosa da regulamentação feita em São Paulo. Nesse sentido, é preciso reconhecer que nada há de novo no front. Isto é, nada de bom que já antes não havia. Estranho e cruel paradoxo! Lembra-nos de Lampedusa, que registrou que "tudo deve mudar para que tudo fique como está". Em tempos de slogans e narrativas, criou-se uma ilusão de eficiência e modernidade que há de se revelar, pouco a pouco, mera ilusão. Nesse sentido, a reforma pode ser considerada reacionária, um grande retrocesso para os negócios, para o crédito imobiliário, para a sociedade e para os próprios registradores. Entretanto, sempre restam esperanças... Os mais despertos sabiam que a solução dos graves problemas do Registro Imobiliário não se achava na potencialização dos ramais de acesso aos cartórios (SERP, centrais estaduais, entidades registradoras etc.). O nó górdio se achava posto no interior de cada serventia, na modelagem e efetivação do que se chamou de SC (Sistema de Cartório), como desenvolvido na especificação e prova de conceito do SREI-ONR, elaboradas e provadas ao longo de mais de uma década. A este desafio de desenvolver o SC nos dedicamos no ONR - Operador Nacional de Registro de Imóveis. Este velho registrador não espera que a regulamentação possa promover o milagre da multiplicação da rapidez e eficiência do processo registral, prometida e infelizmente não entregue. Ela virá de setores orgânicos da própria categoria, não de técnicos e profissionais alheios ao mister registral25. Finalizo enfatizando que os registradores brasileiros devem ter os olhos postos no futuro. Contudo, devem assentar as mudanças nas bases e alicerces da larga tradição da instituição registral brasileira, acolhida no seio da ordem jurídica pátria. A assimilação de novas tecnologias, e seu emprego racional ao longo do tempo, já nos deu bom testemunho a própria história do Registro de Imóveis nacional. Assim foi no passado; assim há de ser no futuro. Que os próprios registradores - e não outros profissionais do direito - possam propor e efetivar as mudanças, tomando as rédeas das grandes transformações que a sociedade contemporânea espera de suas instituições jurídicas. __________ 1 LAMANA PAIVA. João Pedro. Congresso Nacional derruba vetos da Medida Provisória nº 1.085, transformada na Lei nº 14.382/2022. Boletim Eletrônico do IRIB n. 5.246, de 2/1/2023. 2 JACOMINO. Sérgio. Extratos, títulos e outras notícias - Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (Lei 14.382/22). São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 1/7/2022.  3 Fixem-se na redação do art. 3º da Lei: "O Serp tem o objetivo de viabilizar: (...) VIII - o armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais". 4 PEREIRA. Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1905, p. 589, nota 9. 5 LACERDA DE ALMEIDA. Francisco de Paula. Direito das Cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, Vol. II, 1903, p. 334, § 184. 6 Exemplos são encontradiços na legislação: contratos-padrão de parcelamentos do solo (inc. III do art. 1º c.c. §2º do art. 18 do Decreto-Lei 58/1937; inc. VI do art. 18 c.c. art. 27 da Lei 6.766/1979). Incorporações imobiliárias (art. 67 da Lei 4.591). No âmbito do crédito rural, v. o disposto no § 1º do art. 83 da Lei 4.504/1964; art. 43 c.c. letra "b", parágrafo único do Decreto 59.428/1966. No âmbito do SFH, v. artigos 60 e 61 da Lei 4.380/1964. Para comentários estendidos, v. JACOMINO. Sérgio. Op. cit. nota 2. 7 V. a especificação do SAEC/SC no dossiê publicado no bojo da Recomendação CNJ 14/204, de 2/7/2014. Acesso aqui. Para uma panorâmica, vide: Bernal. Volnys. UNGER. Adriana J. SREI Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário - Parte 1 - Introdução ao  Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário. São Paulo: LSITEC/CNJ, 20/5/2002, p. 18, n. 3.4.2. Acesso aqui. 8 Provimento CG 42/2012, de 17/12/2012, des. José Renato Nalini. O trabalho contou com a coordenação do hoje desembargador Antônio Carlos Alves Braga Jr. Acesso aqui. 9 V. a íntegra do documentário aqui. 10 Vide esboço da codificação e tabela de temporalidade in JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no Registro de Imóveis. A reforma da LRP pela Lei 14.382/2022. In RDI n. 93, jul./dez 2022. 11 ALMEIDA JR. João Mendes de. Direito Judiciário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 203, n. IV. 12 "§ 2º O registro de títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, e caberá exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes de documento particular". 13 "Art. 193. O registro será feito pela simples exibição do título, sem dependência de extratos". A reforma foi tão precipitada que deixou em vigor dispositivos como este... 14 Se o exegeta se limitar ao conjunto legal em vigor, haverá de concluir que a assinatura qualificada é simplesmente indispensável. Vide CAMPOS. Ricardo. JACOMINO. Sérgio. Assinaturas Eletrônicas. Notas e Registros Públicos: Implicações da Lei 13.482/2022 e o Valor Probatório no Sistema Legal Brasileiro. 2022. No prelo. 15 Às vezes fico com a impressão de que a redação foi malbaratada. Não seria mais lógico que se dissesse que o oficial "qualificará o extrato pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do título"? Estranha figura de metonímia que, invertida, toma a parte pelo todo. A fonte dos elementos que comporão o extrato é o título, não vice-versa. 16 No NEAR-lab, avançamos consideravelmente nos estudos da construção de um vocabulário controlado (ontologia registral) para fins de desenvolvimento de algoritmos para registração guiada. Os extratos estavam bem encaminhados. Vide: POC-SREI, Capítulo IV - SC - Sistema do Cartório. Acesso aqui. 17 Acerca do esvaziamento das funções típicas dos registradores de títulos e documentos pela adoção do sistema de mero arquivamento de documentos autenticados por apresentantes, v. JACOMINO. Sérgio. Oficina notarial e registral: Instrumento particular. Título inscritível - certidão de RTD. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais. Acesso aqui. 18 Vide PINTO E SILVA.  Fábio Rocha. In ABELHA. André. CHALHUB. Melhim. VITALE. Olivar. Org. Sistema eletrônico de registros públicos: Lei 14.382, de 27 de junho de 2022 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 36, passim. 19 JACOMINO, Sérgio op. cit. nota 2. 20 Art. 108 do Código Civil c.c. com o art. 406 do CPC. 21 Aludimos à promessa de compra e venda, mas há inúmeros outros exemplos de instrumentos particulares que têm acesso ao registro predial - locações, cédulas etc. Para aprofundamento do tema, vide: JACOMINO. Sérgio. O instrumento particular e o Registro de Imóveis. São Paulo, 2010. Acesso aqui. 22 O âmbito de admissibilidade do uso de extratos pode ser consultado no excelente parecer oferecido pelo Des. Alves Braga no Processo CG 131.428/2012, decisão de 15/4/2013 (DJE 24/4/2013), do Des. José Renato Nalini. Acesso à íntegra do parecer e da decisão aqui. 23 Sabemos que a MP 1.085/2021 teve uma tramitação acidentada. Longe de representar uma matéria pacificada, que atenderia, como se sugeria fartamente na imprensa, aos altos anseios do mercado, da sociedade, e do crédito imobiliário, o total de emendas apresentadas (316 na Câmara e 351 no Senado) demostraram que a reforma merecia uma reflexão ponderada e não deveria ser objeto de uma medida provisória, mas um projeto de lei. 24 "Já era noite quando o Ofício 196/2022 do Senado chegou à Câmara, e o Relator, Deputado Isnaldo Bulhões Jr., apresentou prontamente o relatório relâmpago (Parecer Preliminar de Plenário 3) votando pelo acolhimento das alterações promovidas pelo Senado"... Tratou-se de verdadeira blitzkrieg empreendida por alguns setores do Governo Federal aliados a grupos interessados. A expressão é bastante reveladora e integra a apresentação encomiástica que se fez do diploma legal em ABELHA. André. CHALHUB. Melhim. VITALE. Olivar. Op. cit. p. XVII. 25 Não resisto à tentação de indicar, ao paciente leitor que chegou até aqui, uma boutade lançada para uma plateia perplexa durante o transcurso do XXIII Encontro dos Oficiais do Registro de Imóveis do Brasil realizado em 1996: Informática Registral - uma coisa séria demais...
Introdução - Princípios norteadores dos direitos reais O leitor, ao se deparar com o título desta publicação - e com os das próximas, se perguntará: qual a relação dos princípios norteadores dos direitos reais, tema tão abstrato e geral, com a natureza jurídica do direito de laje, questão tão específica? A relação é clara; nada do que aqui se escreverá será inútil para uma análise percuciente da questão que a série pretende responder. Para que se possa aceitar ou refutar argumentos, quaisquer que sejam eles, há de se ter uma base teórica sólida. No caso do direito de laje, esta base teórica se resume a boa compreensão do regime dos direitos reais em geral, do direito de propriedade e do direito de superfície. É a partir desta base sólida, relativamente específica, que será possível criticar todos os argumentos dados pelos autores para o direito de laje ter esta ou aquela natureza jurídica. Se assim não se proceder, não se estará fazendo realmente ciência dogmática, mas construção de teorias derivadas de opiniões. Iniciaremos, então, o estudo do regime jurídico geral dos direitos reais por breves notas sobre seus princípios norteadores.                                Princípio da coisificação Os direitos reais versam sobre coisas, e não sobre pessoas ou bens que não se caracterizam como coisas, ainda que se tratem de bens patrimoniais.1 Coisas, na definição de José Manoel de Arruda Alvim Netto, são "objetos corpóreos, isto é, não só existem no mundo físico, como também se apresentam formando um corpo, donde hão de ser tangíveis pelo homem e devem ter consistência".2 Assim, segundo o autor, "os direitos reais recaem sempre sobre uma coisa determinada, tangível e corpórea (móvel ou imóvel), que são seu objeto material."3 Este é o significado do princípio da coisificação. Esta concepção, que se pode dizer clássica, contudo, vem ganhando novos contornos com o desenvolvimento da sociedade e o surgimento dos chamados "novos" bens, havendo tendências para a equiparação de determinadas realidades à coisa. É o que ocorre, por exemplo, com a equiparação feita pela própria lei de certos bens com valor econômico (v.g., energia elétrica) às coisas.4 Princípio da taxatividade (numerus clausus) Por taxatividade dos direitos reais entende-se que são direitos reais somente aqueles desenhados segundo este regime em lei. Nesse sentido, a identificação do direito real e a conceituação como tal dependem de eleição do legislador que, atendendo a conveniências de certas ordens5, insere-os no ordenamento jurídico.6 Desta feita, a criação, pelos privados, de direitos reais não previstos em lei é vedada, diversamente do que se passa com os direitos obrigacionais, que podem ser criados para além dos modelos previstos em lei.7 Deve-se frisar que a taxatividade dos direitos reais exige apenas que a sua criação se dê por meio de lei, não se restringindo, porém, ao Código Civil.8 Exemplifica esta afirmação a criação da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis pela lei 9.514/1997, etc. Princípio da tipicidade A tipicidade, diversamente da taxatividade dos direitos reais, diz respeito aos elementos constitutivos, ao conteúdo dos direitos reais: não pode o particular alterar as situações reais, afastando a incidência da norma que a disciplina, mediante modelação negocial.9 Assim, a tipicidade é uma exigência adicional à da taxatividade. Enquanto a taxatividade diz respeito à enunciação dos direitos reais, a tipicidade diz respeito à estruturação destes. Nesse sentido, não só a criação de direitos reais não previstos em lei é vedada aos privados (taxatividade), como também o é a modificação do regime jurídico legalmente estabelecido pela autonomia da vontade (tipicidade). Como ensina José Manoel de Arruda Alvim Netto, há, no direito das coisas, um conjunto de normas cogentes que serve ao direito privado, estando o limite à autonomia privada na inviabilidade de conformar ou redefinir os modelos dos direitos reais, o que só pode ocorrer pela lei. O que pode escassamente ocorrer, aponta o autor, é que a norma deixe espaço ou algum espaço à autonomia privada, como ocorre no que pode ser objeto de usufruto e de uma servidão. Nestes dois casos, diz, "não se pode pretender que estejamos em face de um tipo fechado e exaurientemente definitório da realidade nela gizada, senão que, em certa escala, aberto."10 No direito português, por exemplo, o Código Civil é claro ao estabelecer que o objeto da servidão pode consistir em "quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que aumentem o seu valor". De onde conclui Menezes Leitão que "as servidões constituem assim hoje um direito atípico."11 No direito brasileiro, embora menos claro o Código Civil quanto à atipicidade, a doutrina relembra adágio romano - servitutum numerus non est clausus - para concluir que as espécies de servidão são "ilimitadas".12-13 Igualmente, no direito de superfície pode ser identificado um espaço à vontade dos contratantes, deixando a lei margem ao proprietário a faculdade de conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, nos termos do art. 1.369 do Código Civil de 2002.14 Impende observar, finalmente, que há hipóteses que, embora não tenha sido explícito o legislador, devem também ser consideradas direitos reais, desde que amoldáveis a tipos suscetíveis a serem submetidos aos princípios dos direitos reais. Tem-se, como exemplo, o direito de retenção e o direito de retrovenda, que conferem ao titular direito à coisa, e não à indenização. Assim, conclui-se que a taxatividade dos direitos reais, acima abordada, se entende como "somente são direitos reais aqueles previstos no sistema", levando em consideração, porém, que "previsto pelo sistema não envolve, necessariamente, uma explicitude absoluta".15 Princípio da publicidade Os direitos reais devem ser ostentados publicamente, em razão de sua eficácia absoluta, erga omnes. Em outras palavras, para que possam ser exercidos e produzir efeitos contra todos, impõe-se que sejam publicizados para toda a sociedade.16 No que diz respeito especificamente às coisas móveis, manifesta-se a publicidade precipuamente por meio da posse; no que diz respeito aos imóveis, avulta a função do Registro de Imóveis.17 Ressalve-se, porém, que nem todos os direitos com eficácia absoluta, que se exercem erga omnes, são direitos reais, como os direitos da personalidade, que "no necesitan de publicidad, como el derecho a la vida, al honor, etc., pues su existencia es suficiente, nadie podría alegar su ignorancia."18 Princípio da transmissibilidade Os direitos reais, à semelhança do que sucede com os direitos obrigacionais, podem mudar de titular, sendo transmissíveis inter-vivos ou mortis causa.19 A ligação entre um direito real e o seu titular é, nesse sentido, cindível.20 Ressalve-se, contudo, que a transmissibilidade consiste em nota meramente tendencial dos direitos reais, comportando exceções. Cita-se, como exemplo que excepciona o princípio da transmissibilidade, o direito real de usufruto, que não é alienável inter-vivos (apenas seu exercício pode ser cedido, nos termos do artigo 1.393 do Código Civil de 2002), assim como não é sucessível, eis que se extingue com a morte do usufrutuário (art. 1.410, Código Civil de 2002).21 O princípio da transmissibilidade possui íntima relação com as formas de constituição e de aquisição dos direitos reais, que podem ser originárias ou derivadas. No direito brasileiro, a tradição e o registro são os modos fundamentais de aquisição derivada de direitos reais, respectivamente, sobre móveis e imóveis. São, na linguagem vinda dos glosadores, o modus, antecedidos de um titulus. É por meio destes modos que há transmissão de direitos reais no ordenamento brasileiro.22 No que diz respeito aos direitos reais imobiliários, a eficácia do direito real depende da existência e validade do título causal. Se este é nulo, a aquisição do direito real não vale. Ou seja, o modo de aquisição é condicionado à validade do título que lhe serve de base, causa.23 Vale frisar que na aquisição originária de direitos reais, a situação se altera: perfeitos os requisitos da aquisição (como no caso da usucapião), passa a existir o direito real, do ponto de vista substancial. Não há, nesta hipótese, transmissão. Para vir a fazer parte formalmente do universo dos Direitos Reais, haverá de ser reconhecido judicial ou extrajudicialmente, como, ainda, deverá vir a ser objeto de publicidade, no caso de coisa imóvel, no registro imobiliário, com o que, então, logrará vir a ter a publicidade própria dos direitos reais. É certo, porém, que nesta hipótese, a publicidade não é constitutiva do direito real, como o é na hipótese de aquisição derivada.24 Princípio da atualidade Ao contrário das obrigações, que podem ter como objeto mediato coisas futuras - tendo como objeto imediato uma conduta futura do devedor -, as coisas têm que ter existência presente, atual, para que possam ser objeto dos direitos reais.25 Assim, só pode haver direito real sobre coisas presentes que existam já em poder do titular e não sobre coisas futuras. A noção de coisa futura compreende ambas as vertentes, absoluta e relativa: as coisas que não existem ainda e aquelas que apesar de terem já existência física não estão ainda em poder do disponente.26 Com efeito, uma coisa que não existe não pode ser objeto de direito real. Por outro lado, a coisa pode existir sem que o direito real esteja na titularidade do disponente. Neste caso, o negócio de disposição do direito real é válido, se a coisa for tomada como futura. No entanto, a eficácia do negócio só vem a ser deferida para o momento em que o disponente adquire o direito.27 Há exceções, contudo, ao princípio da atualidade da coisa. Por exemplo, em regra, não cabe a hipoteca de bens futuros, salvo no caso de prédio em construção ou apartamento em edifício coletivo, quando a referência ao memorial descritivo, plantas e projetos constituem os dados especializadores (v. princípio da especialidade, infra), de sorte a permitir que a evolução da construção, nas suas diversas fases, vá objetivando o gravame gradativamente.28 No âmbito das incorporações imobiliárias, o princípio da atualidade da coisa foi objeto de relevantes estudos doutrinários.29 De forma sucinta - como este espaço exige, pode-se afirmar que, no âmbito da incorporação imobiliária, é possível a existência de direito real sobre coisa futura, a partir da criação de um direito real preliminar sobre a coisa atual que, após a construção sobre esta coisa, sucede automaticamente sobre a coisa futura, construída.   Princípio da especialidade O princípio da especialidade é aquele em que se estabelece, a partir da identificação da coisa, para viabilizar a percepção de uma situação entre o sujeito e o objeto (a coisa), proporcionando essa especificação a identificação objetiva da coisa. Ou seja: é a configuração dos indicativos objeto e sujeito do direito real sobre uma coisa.30 Assim, pelo princípio da especialidade, o direito real incide, sempre, sobre uma coisa certa e determinada, individualizada. Não incide, pois, sobre coisas genéricas ou indeterminadas. Quanto à possibilidade de se estabelecer direitos reais sobre coisas coletivas (universalidades de fato), a doutrina portuguesa diverge. Parte dos autores entende que não existem direitos reais sobre universalidades, incidindo o direito individualmente sobre cada uma das coisas que compõem a universalidade.31 Outra corrente entende que o fato de os direitos reais terem como objeto coisas certas e determinadas, individualizadas, não é incompatível com a possibilidade de o seu objeto ser uma universalidade.32 Princípio da elasticidade (expansão potencial) e da consolidação Pela elasticidade (ou expansão potencial) e pela consolidação, os direitos reais podem ser comprimidos quando um outro direito real passa a incidir sobre a coisa, e podem ser estendidos quando readquirem toda a sua amplitude por cessação de um direito real compatível.33 Segundo a doutrina majoritária, trata-se de princípio que norteia o regime de todos os direitos reais, e não só da propriedade. Esta ressalva é importante, pois são diversos os autores que tratam a elasticidade como característica exclusiva do direito de propriedade, o que não é tecnicamente correto.34 Por exemplo, tendo sido constituído um direito de usufruto sobre a coisa, será este e não a propriedade a ficar diminuído pela constituição posterior de uma servidão. Ao revés, é também o usufruto que se beneficia com a extinção da mesma servidão.35 Princípio da exclusividade (compatibilidade) Em relação aos direitos reais, pode-se falar em princípio da exclusividade, no sentido de que não se pode conceber dois direitos reais, de igual conteúdo, sobre a mesma coisa.36 Em outras palavras, não é possível, onde um direito real anteriormente existe, estabelecer outro da mesma espécie.37 Assim, se sobre a coisa recaírem dois direitos reais, não serão da mesma espécie, ou, não serão integrais. Portanto, "com respeito aos direitos reais, duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com exclusividade a alguém, que é o sujeito do direito real."38 É o que ocorre no condomínio: os condôminos não são donos integrais da coisa, pois o direito real de propriedade, que sobre ela incide, é um só; este, entretanto, se divide entre os vários condôminos.39 Há uma pluralidade de sujeitos da mesma relação jurídica, mas esta é uma só, e o seu objeto não pode suportar nova relação da mesma natureza.40 A doutrina portuguesa fala também em princípio da compatibilidade, no sentido de que só pode existir um direito real sobre determinada coisa na medida em que seja compatível com outro direito real que a tenha por objeto.41 __________ 1 TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 33. 2 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 82. 3 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 50. 4 Sobre este intricado tema, veja-se, sobretudo: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 82 e ss. 5 V. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 20; WALD, Arnoldo. Direito das Coisas. 12. Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 17-18; ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Petrony, 1968, p. 107-108. 6 BITTAR, Carlos Alberto. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 16. 7 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 92. 8 WALD, Arnoldo. Direito das Coisas. 12. Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 25. 9 V. PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 94; LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 19; TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 29-30. 10 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 113 e ss. 11 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 353. 12 FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de Direito Civil. 3ª ed. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1975, v. 1, p. 261. 13 Sobre a tipicidade dos direitos reais, v. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 78-82. 14 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 114. 15 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 66-67. No mesmo sentido é a conclusão de José de Oliveira Ascensão, v. ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Petrony, 1968. Escreve o autor português que, para a existência de um tipo de direito real, "a nominação por lei nem sequer é necessária. Pode a lei ter estabelecido uma situação jurídica sem a nominar, quiçá imersa na regulamentação de um instituto mais vasto, e o intérprete descobrir nela os traços de um novo direito real, a que poderíamos chamar um direito real inominado." (Ibidem, p. 109). Logo após, indaga e responde: "Que é então necessário para que se possa dizer que há um tipo legal de direito real, uma vez excluídas a definição e a nominação por lei? É necessário que a lei: - contenha a descrição essencial de uma dada situação; - estabeleça para ela um regime real." (Ibidem, p. 109-110). Na mesma obra, v. também o item nº 40, p. 121-122, em que o autor chega a seguinte conclusão: "Concluindo: a tipicidade taxativa não implica um monopólio legal na qualificação de direitos reais. O intérprete pode incluir nesta categoria qualquer situação, desde que nela encontre os seus traços essenciais." (Ibidem, p. 122). 16 ALLENDE, Guillermo L. Panorama de derechos reales. Buenos Aires: La Ley, 1967, p. 219. 17 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 50. Sobre o tema do histórico e justificação do Registro de Imóveis, veja-se: CARVALHO, Afrânio. Registro de Imóveis. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 11-28. E, sobre a publicidade como elemento necessário para a eficácia ultra partes das situações jurídicas, veja-se: BRANDELLI, Leonardo. Fraude à execução imobiliária e a publicidade registro no novo CPC. In: Direito registral e o novo Código de Processo Civil. Ricardo Dip... [et. al.]; Coordenação: Ricardo Dip. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 84-96. 18 ALLENDE, Guillermo L. Panorama de derechos reales. Buenos Aires: La Ley, 1967, p. 219-220. 19 FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 103-104. 20 JUSTO, A. Santos. Direitos reais. 2. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 32. 21 FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 103-104. V., também, LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 23. 22 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 154 e ss. 23 GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 13. 24 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 154 e ss. 25 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 21. 26 TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 33-34. 27 VIEIRA, José Alberto. Direitos reais. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2020, p. 104, p. 209. 28 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 27. Ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 318. 29 V. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 67-68; CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. 2. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 42; TERRA, Marcelo; WALDER, Waldyr. A matrícula na incorporação imobiliária. In: Doutrinas Essenciais de Direito Registral, v. 6, p. 763-780, dez., 2011, passim; ASCENSÃO, Maria Teresa Pereira de Castro; ASCENSÃO, José de Oliveira. Instituição, incorporação e convenção de condomínio. In: Doutrinas Essenciais de Direito Registral, v. 4, p. 475-494, dez., 2011, p. 479-480. 30 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. In: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 228. 31 V. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2015, p. 21. 32 V. FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 99 e ss. 33 TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 36. 34 Cite-se, por exemplo, Carlos Alberto Mota Pinto, que ao tratar da elasticidade, limita sua lição ao direito de propriedade, sem mencionar a elasticidade de outros direitos reais: FRAGA, Álvaro Moreira Carlos. Direitos reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto. Coimbra: Livraria Almedina, 1975, p. 113-114. E, no direito brasileiro, cite-se Luciano de Camargo Penteado, que faz uma afirmação que nos parece incorreta: "A potência expansiva da elasticidade é interior ao direito de propriedade, por isso é uma das suas características, até mesmo diferenciadoras dos outros direitos subjetivos." (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 168). 35 TRIUNFANTE, Armando. Lições de Direitos Reais. Coimbra: Almedina, 2019, p. 36. 36 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 8. 37 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. I, p. 252. 38 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yussef Said (Coord.). Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 50. 39 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1975, v. V, p. 8. 40 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. I, p. 252. 41 JUSTO, A. Santos. Direitos reais. 2. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 31.
Introdução O Novo Código de Normas da CGJ/RJ (NCN/RJ) foi publicado no dia 19/12/22 e entrará em vigor no próximo dia 01/01/23. Foram quase dois anos de trabalho e dedicação, no qual atuamos intensamente na qualidade de relator geral, junto aos membros das comissões especiais e ao juiz auxiliar da CGJ/RJ, Dr. João Luiz Ferraz. O resultado é um Código de Normas mais moderno, dotado de normas voltadas à simplificação dos procedimentos, à desburocratização, à desjudicialização e ao uso da tecnologia como ferramenta principal para conferir segurança jurídica ao serviço. O maior benefiado é o cidadão, usuário dos serviços notariais e registrais do Estado do Rio de Janeiro, e por que não dizer, o próprio Poder Judiciário, que ganha um notariado e um sistema registral que nunca contribuiu tanto para a desjudicialização. Faremos uma análise das principais mudanças implementadas em cada uma das atividades, dividindo o trabalho em "temas". Iniciaremos pelas inovações na atividade notarial, onde tivemos a oportunidade, enquanto membro da comissão notarial, de apresentar diversas sugestões, como o inventário extrajudicial com incapaz e a ata notarial para produção de prova oral. Em cada "tema" afeto à atividade notarial faremos a análise de uma ou mais mudanças implementadas. O primeiro "tema" envolve a produção de prova oral para instrução de processo judicial em curso.  A ata notarial como meio de prova A atividade notarial vem exercendo papel relevante perante a sociedade, contribuindo especialmente com a redução de conflitos perante o Poder Judiciário, no que se denominou de desjudicialização. São diversos os exemplos, como o divórcio,o inventário, a mediação, a usucapião, dentre outros, os quais até pouco tempo levavam anos de disputa, assoberbando o sistema judicial com um alto custo para a economia do País. Atento a esta realidade, o Novo Código de Normas da CGJ/RJ (NCN/RJ) não apenas aprimorou as regras até então vigentes, como inovou com novas soluções, como a ata notarial para oitiva de testemunhas em processos judiciais em curso. De fato, a ata notarial vem se revelando em importantíssimo instrumento de prevenção de litígio, dada a presunção de veracidade que decorre da fé pública do tabelião, razão pela qual é amplamente aceita pelos Tribunais de Justiça do País como documentos públicos aptos a comprovar os fatos presenciados pelo tabelião, a teor do que dispõe os artigos 384 e 405 do CPC, verbis: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial. Art. 405. O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença. O NCN/RJ dedicou um capítulo às atas notariais em sentido amplo, prevendo em seu artigo 399 que "a ata notarial é o instrumento público, dotado de presunção de veracidade, pelo qual o tabelião declara, sem juízo de valor, a existência e o modo de existir de algum fato ou a percepção que deles tenha". No parágrafo primeiro do citado artigo 399 foi prevista expressamente a possibilidade do tabelião utilizar recursos tecnológicos para "registro de suas percepções", como a gravação de imagens, vídeos ou áudio. Neste sentido, o NCN/RJ também inova ao permitir que tais registros constem da própria ata notarial, com possibilidade de uso de QR Code, tecnologia que permite que o destinatário da prova, v.g., um magistrado, acesse diretamente o arquivo de vídeo ou áudio, evitando transcrições que, além de trabalhosas, nem sempre refletem com exatidão o fato percebido pelo notário. Já tivemos oportunidade de realizar diversas atas notariais com uso do QR Code, as quais tem sido utilizadas com sucesso em processos judiciais.   Com efeito, deste contexto que envolve a fé pública do tabelião, o uso da tecnologia de gravação por vídeo e a facilidade do QR Code para acessar os registros realizados, o NCN/RJ previu o uso da ata notarial para casos expressos de desjudicialização, como a nomeação de curador e apoiadores por ata notarial (art. 405), a usucapião extrajudicial (art. 411) e a produção extrajudicial de prova oral (art. 420). Da produção extrajudicial de prova oral A matéria encontra-se prevista a partir do art. 420 do NCN/RJ, que dispõe: Art. 420. A requerimento de qualquer das partes e desde que autorizado pelo juízo competente, ouvido previamente o Ministério Público quando atuar no feito, admite-se a lavratura de ata notarial para colheita de prova oral.§ 1º. Nas ações em que funcione a Defensoria Pública ou pessoa jurídica de direito público, o deferimento do pedido da parte adversa dependerá de sua concordância.§ 2º. Não impede a lavratura da ata notarial o fato de um dos depoentes residir em comarca diversa que poderá ser ouvido tanto por precatória do juízo, como por ata notarial lavrada por tabelionato diverso situado na comarca de sua residência ou, ainda, perante o notário da comarca em que tramita a ação, se o interessado se comprometer a levá-lo ao ato, sob pena de perda da prova em caso de seu não comparecimento.  De plano, tem-se que a lavratura da ata notarial para fins de produção de prova oral depende necessariamente da autorização do juízo competente. De fato, o magistrado é o destinatário direto da prova e cabe a ele avaliar, caso a caso, as hipóteses em que a prova oral poderá ser colhida perante o notário. No entanto, é fato que a produção de prova oral no processo cível é dispendiosa, seja financeiramente seja no aspecto temporal. As pautas estão sobrecarregadas, havendo audiências que levam até 12 meses ou mais para serem realizadas, com risco de adiamento pelo não comparecimento de testemunhas. Além disso, tem-se o fator econômico, o tempo que o magistrado perde para produzir tal prova quando poderia estar proferindo sentenças ou decisões interlocutórias, o custo das comunicações e intimações que devem ser feitas, assim como a necessidade de espaços físicos apropriados à produção da prova. E quais seriam os óbices à produção de prova oral por ata notarial lavrada pelo tabelião de notas? Absolutamente nenhum! O exame do CPC/15 revela inexistir qualquer óbice à produção da referida prova oral via ata notarial lavrada por tabelião de notas, muito pelo contrário, trata-se de medida que somente contribuirá para o julgamento célere e seguro da causa. Importante ressaltar que o CPC/15 trouxe diversas inovações em matéria de prova, inovando em relação ao código de 1973. De um lado, passou a adotar um modelo processual cooperativo, onde todos os sujeitos do processo, juiz e partes, devem atuar de forma coparticipativa no processo, para que se chegue a uma decisão justa e efetiva, conforme art. 6º:  Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Evidente que a produção de prova oral, na maior das vezes, é fator determinante para se chegar a uma decisão de mérito justa, cuja efetividade irá depender diretamente do seu fator temporal. Por outro lado, o CPC/15 rompeu com o princípio da identidade física do juiz, antes previsto no art. 132 do CPC/73, segundo o qual o magistrado que encerrasse a instrução processual deveria também proferir a sentença, razão pela qual nada obsta que a prova oral seja produzida perante o tabelião e registrada em ata notarial. O princípio do contraditório, por sua vez, poderia ser um óbice de difícil transposição, na medida em que a ausência da parte, através de seu advogado, quando da oitiva da testemunha colocaria por terra a higidez da referida prova. No entanto, em se tratando de prova produzida em local público, qual seja, no tabelionato de notas, perante o notário, agente dotado de fé pública, devidamente noticiada nos autos, com data e hora previamente agendada, não há razão lógica, salvo o intuito protelatório e caracterizador de litigância de má-fé, para a parte ex adversa deixar de comparecer ao ato. Recorde-se aqui o que diz o artigo 6º do CPC/15, impondo o DEVER às partes de cooperarem entre si para que se obtenha -em tempo razoável- decisão de mérito justa e efetiva. Neste sentido, buscando preservar o contraditório o NCN/RJ previu que deverá ser dada oportunidade à parte ex adversa arrolar sua testemunhas, para serem ouvidas via ata notarial, assim como comparecer ao ato no dia e hora designados para realizar as perguntas que desejar às testemunhas arroladas, tudo conforme previsto nos artigos 421 e 422 do NCN/RJ: Art. 421. Na petição apresentada ao juízo competente, o solicitante deverá indicar o serviço notarial onde praticará o ato e arrolar peritos, assistentes técnicos, parte e testemunhas que pretende sejam ouvidas pelo tabelião, requerendo seja determinado a seu ex adverso que faça também sua indicação, caso também deseje produzir prova oral.Art. 422. Deferido o pedido, o interessado deverá juntar nos autos da ação o requerimento de ata notarial formulado perante o tabelião, dando ciência ao juízo da data, horário e local agendado para prática do ato para que promova a ciência do advogado da parte contrária por meio de intimação no Diário da Justiça Eletrônico ou, se exigida, sua intimação pessoal. Logo, a parte ex adversa terá ciência inequívoca do deferimento da prova e das testemunhas que serão ouvidas, podendo indicar as suas testemunhas e comparecer ao ato no dia agendado para, querendo, formular suas perguntas e acompanhar a oitiva. No dia agendado, o procedimento deverá observar o que dispõe o art. 426 do NCN/RJ, sendo obrigatória a gravação em vídeo do depoimento, sendo permitida a gravação em vídeo, também, pelos interessados (art. 426, I, "b"). Cada depoimento deverá gerar um arquivo de vídeo próprio, o qual será vinculado a um QR Code que constará da ata notarial (art. 431, II do NCN/RJ). Importante ressaltar que o tabelião não participa de forma ativa na produção da prova, atuando de forma neutra, limitando-se a constatar e registrar os fatos (depoimentos prestados e demais intercorrência), segundo as perguntas formuladas diretamente pelos advogados às testemunhas, sendo-lhe vedado formular perguntas, a não ser aquelas determinadas pelo juízo (art. 426, I, "a" do NCN/RJ). Com efeito, não há qualquer óbice legal que impeça o deferimento da prova oral colhida por ata notarial. Por outro lado, nada impede que, após a produção da referida prova documental, a parte necessite ouvir em juízo a testemunha que já prestou depoimento via ata notarial. Neste caso, caberá ao magistrado apreciar a necessidade e, uma vez demonstrado o intuito protelatório após a sua produção, aplicar a pena de litigância de má-fé ao responsável. Também não há óbice no fato de que as perguntas, em se tratando de ata notarial, serão formuladas pelos advogados. O CPC/15 passou a admitir expressamente a possibilidade do advogado formular as perguntas diretamente à testemunha, diferentemente do CPC/73 que exigia que as perguntas passassem, necessariamente, pelo magistrado, conforme disposto no art.  459, verbis: Art. 459. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, começando pela que a arrolou, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com as questões de fato objeto da atividade probatória ou importarem repetição de outra já respondida. Referida regra assemelha-se ao sistema anglo-saxônico do direct examination, no qual as perguntas são feitas diretamente pela parte que arrolou a testemunha, diferentemente do sistema romano inquisitivo, no qual todas as perguntas passam necessariamente pelo juiz. Com efeito, o procedimento seguirá exatamente como previsto para a audiência realizada em juízo, com a única diferença de que toda a prova será produzida perante o notário, que coordenará o procedimento, que de tudo fará registrar por vídeo para posterior avaliação do juízo competente. Durante o procedimento, a falta de decoro ou ordem causado por qualquer dos presentes, permite ao tabelião encerrar o ato e comunicar o fato ao juízo competente, inclusive com encaminhamento do vídeo, perda do depósito prévio realizado e advertência de que o juízo competente poderá aplicar ao responsável a pena de litigância de má-fé. Findo o procedimento e lavrada a ata notarial, caberá ao solicitante apresentá-la aos autos do processo como documento público (art. 405 do CPC/15), o qual será devidamente apreciado pelo magistrado, nos termos do art. 371 do CPC/15: Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. Cumpre ressaltar que o CPC prevê expressamente o uso da ata notarial como meio de prova admitido no processo, dispondo em seu art. 384 que: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.  Conclusão Com efeito, a ata notarial para oitiva de testemunhas é documento público que, uma vez autorizado pelo juízo competente, instrumentaliza fato diretamente constatado pelo tabelião, com presunção de veracidade, consistente nas declarações prestadas pelas testemunhas, segundo as perguntas formuladas pelos interessados, sendo, portanto, prova legítima e apta a fundamentar a sentença judicial de mérito. Além disso, tal procedimento extrajudicial contribui diretamente para a efetividade do processo judicial, pois é sabido que existem poucos juízes para um número cada vez maior de litígios, sendo certo que a produção de prova oral é um dos momentos processuais que mais tempo demanda do magistrado e da Justiça como um todo. A produção da referida prova, através de ata notarial, da forma contemplada pelo NCN/RJ, assegura o contraditório e garante a efetividade do processo, devendo servir de exemplo a outras Corregedorias do País.  
Iniciaremos uma série de diversos artigos sobre direitos reais voltados a responder uma intricada questão: qual a natureza jurídica do direito de laje? A resposta, contudo, será dada por argumentos eminentemente técnicos, dogmáticos, e não por opiniões e soluções rápidas, com pouca ou nenhuma sustentação científica, verdadeiros achismos. Esta espécie de resposta exige sólido conhecimento das bases científicas de um ramo do Direito (no caso, do Direito das Coisas) e, por conseguinte, algo que cada vez se torna mais difícil de encontrar nos dias atuais: profundo e calmo estudo, com tempo de maturação para as ideias se assentarem e poderem ser constantemente criticadas, revistas e, enfim, aperfeiçoadas. Como se sabe, o direito de laje é um direito real autenticamente brasileiro. Não há direito real com nomen iuris assemelhado em outros ordenamentos jurídicos, assim como não há direito real com regime jurídico idêntico ao direito de laje em sistemas estrangeiros. Isto se deve, precisamente, ao fato de o direito de laje ter surgido em uma realidade peculiar brasileira, qual seja, as construções sobrepostas erigidas sobre construções-base nas favelas urbanas brasileiras. O "direito" de laje surgiu, como fenômeno social, antes de sua regulamentação formal pelo Estado, por meio da MP nº 759/2016. Por sua vez, a regulamentação do direito de laje por esta norma deu-se, declaradamente, com vistas à "regularização fundiária regularização fundiária de favelas" (item 95 da Exposição de Motivos da MP nº 759/16), "em reforço ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas" (item 113).¹ Por conta dessa peculiaridade específica do direito de laje, é impossível metodologicamente iniciar seu estudo por meio de fontes (direito positivo, doutrina, jurisprudência, etc.) estrangeiras - porque não há direito real equivalente, pelo menos prima facie, ao direito de laje em outros países.2 Sendo assim, o estudo do direito de laje deve partir necessariamente das peculiaridades (formais e informais) brasileiras que perpassam este novo direito real, incumbindo, parece-nos, propriamente à doutrina brasileira delimitar o que é, precisamente, o direito de laje. Não obstante, os autores brasileiros pouco vêm estudando sobre o direito real de laje. E, quando o estudam, na maioria dos casos, infelizmente, estudam sem grande profundidade científica, chegando a conclusões com poucos fundamentos dogmáticos. É o que ocorre, na maioria dos casos, quando se escreve sobre a natureza jurídica do direito real de laje, questão de alta complexidade, pertencente "à área cinzenta do Direito", geradora de "um acirrado debate doutrinário (autores ultraque trahunt), sem perspectivas de consenso"3. Sucintamente, o debate sobre a natureza jurídica do direito de laje se resume a seguinte questão: é o novo direito real de laje um direito real sobre coisa própria ou um direito real sobre coisa alheia? A doutrina se divide. São diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria4, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície5-6, enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real.7 No âmbito jurisprudencial, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça manifestou, mesmo que de forma incidental, e não principal, o entendimento de que o direito de laje tem natureza de direito real sobre coisa alheia.8 Enfim, parece-nos que para se alcançar uma resposta sustentável em termos dogmáticos à questão da natureza do direito de laje, deve-se previamente estudar alguns pontos específicos do regime jurídico geral dos direitos reais, do regime jurídico especial do direito de propriedade e regime jurídico especial do direito de superfície. É isto o que faremos ao longo dos próximos textos que serão aqui publicados.  ___________ 1 Exposição de motivos da Medida Provisória nº 759/16, disponível aqui. 2 Por exemplo, afirma Marco Aurélio Bezerra de Mello que "não é possível importar o modelo do direito de sobrelevação português ou suíço com algumas adaptações, pois em tais países não nos parece que a favela seja uma forma de habitação tão ricamente utilizada como ocorre no Brasil." (MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito à posse da Laje. GenJurídico, 2017. Disponível em: < genjuridico.com.br/2017/10/26/direito-posse-da-laje/ >. Acesso em: 07.06.2021). 3  FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56. 4 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Arnaldo Rizzardo (v. RIZZARDO, Arnaldo. O direito real de laje. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 986, p. 263-275, dez., 2017, passim); Eduardo Silveira Marchi (v. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de Laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018, passim); Francisco Eduardo Loureiro (v. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. Ed. In: Cezar Peluso (Coord.). Barueri: Manole, 2020, p. 1.558); César Augusto de Castro Fiuza e Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto (v. COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho; FIUZA, César Augusto de Castro. Ensaio sobre o direito real de laje como previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui; Patricia André de Camargo Ferraz (v. FERRAZ, Patricia André de Camargo. Direito de Laje: Teoria e Prática - nos termos da Lei 13.465/17. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 43 e ss.); Cristiano Chaves de Farias, Martha El Debs e Wagner Inácio Dias (v. FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56 e ss.); Nelson Rosenvald (v. ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Carlos Eduardo Elias de Oliveira (v. ELIAS DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo. Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465, de 2017: nova lei, nova hermenêutica. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Sílvio de Salvo Venosa (v. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: reais. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 689, nº 27.1); Vitor Kümpel e Bruno De Ávila Borgarelli (v. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje - Parte 1. Migalhas, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Alexandre Laizo Clápis e Raphael Marcelino (v. CLÁPIS, Alexandre Laizo; MARCELINO, Raphael. Direito real de laje. In: Estatuto fundiário brasileiro: comentários à Lei nº 13.465/17, tomo 1. Coords. Everaldo Augusto Cambler, Alexandre Jamal Batista e André Cordelli Alves. São Paulo: Editora IASP, 2018, nº III, p. 38); Marco Aurélio Bezerra de Mello (v. MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Anderson Schreiber...[et al.]. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, coms. ao art. 1.510-A, p. 1.250); MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível em: aqui. Acesso em: 09.06.2021, passim; CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147, passim; Roberto Paulino de Albuquerque Junior (este autor possui posição contraditória, como se pode verificar de artigo mencionado na próxima nota, de sua autoria) e Otavio Luiz Rodrigues Junior (v. ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. O direito real de laje: elementos para uma crítica. In: MARCHI, Eduardo C. Silveira (Coord.). Regularização fundiária urbana. 1ª. Ed. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 202 e 204). 5 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Roberto Paulino Albuquerque Júnior (v. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Conjur, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.09.2019); Frederico Henrique Viegas de Lima (v., principalmente, LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: uma visão da catedral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 82, p. 251-280, jan.-jun., 2017, nº 5, p. 265 e ss.; HENNIKA, Luís Henrique da Silva; SANTIN, Janaína Rigo. Direito de superfície e direito de laje: uma análise à luz do direito urbanístico. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 4, nº 3, p. 801-835, 2018, nº 5, p. 823 e ss.; e, também,  LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, p. 477-494, jul.-dez., 2017, passim); Marcelo de Oliveira Milagres (v. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito de laje?. Revista de Direito Privado, v. 76, São Paulo, p. 75-88, abr., 2017, passim). 6 Há, também, julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo em que se afirma que "O direito de laje, portanto, não constitui um direito real novo, mas uma modalidade de direito de superfície que era (e é) praticado por usos e costumes, nos chamados 'puxadinhos', normalmente, para acomodação de parentes e agregados que vão se incorporando a determinada família." (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1003793-19.2017.8.26.0006. 12ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Jacob Valente. Julgado em 19.12.2019). 7 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (v. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 5, 2020, p. 553, nº 2); Salomão Viana (v. STOLZE, Pablo; VIANA, Salomão. Direito de laje - Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Flávio Tartuce (v. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 567 e ss., nº 6.8.); Maria Helena Diniz (v. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 4, p. 547); Paulo Lôbo (v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Coisas. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 4, 2020, p. 320 e ss.); Ralpho Waldo de Barros Monteiro Filho (v. MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90); Rodrigo Reis Mazzei e Rodrigo Sanz Martins (v. MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.).  Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380); CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147. 8 "3. Nesse passo, como instrumento de função social, notadamente em razão da realidade urbanística brasileira, previu o legislador, recentemente, o direito real de laje (CC, art. 1225, XIII, redação da Lei 13.465/2017). O foco da norma foi o de regulamentar realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo, de alguma forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à moradia (CF, art. 6°). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art. 1.510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão - superfície sobreposta ou pavimento inferior - da construção original, conferindo destinação socioeconômica à referida construção." (Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. nº 1.478.254. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 08.08.2017. - Grifos nossos).
Introdução O fenômeno da hiperjudicialização no Brasil tem marcas singulares.  Como apontado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na 16ª edição do "Relatório Justiça em Números", o Poder Judiciário brasileiro encerrou o ano judiciário de 2019 com 77, 1 milhões de processos judiciais em tramitação.1 A 17ª edição do "Relatório Justiça em Números" aponta que, a despeito da redução do acervo processual, 75,4 milhões processos judiciais tramitaram no Brasil em 2020, volume processual sem paralelo em outros países do mundo.2 Mas não é só: com mais de 1,1 milhão de profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o país é o recordista mundial em número de advogados. Além disso, juristas como o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso e o ex-presidente da República Michel Temer sustentam que o país lidera o ranking mundial de ações trabalhistas, com mais de 3,6 milhões ações distribuídas apenas no ano de 2016. Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que conta com 360 desembargadores, detém o maior acervo processual registrado para um tribunal de justiça, com mais de 20 milhões processos judiciais em tramitação, consoante dados apresentados em 2019.3 Os números paulistas impressionam, mas seguem o padrão nacional: no período de 19 de março de 2020 a 30 de março de 2020, durante o início do agravamento da pandemia da covid-19, os servidores e magistrados atuantes na 1ª instância do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) - o terceiro em volume de processos do país - praticaram nada menos que 973.468 atos processuais.4 Já o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que possui o segundo maior número de servidores e processos em tramitação, divulgou que - desde o dia 16 de março de 2020, quando iniciou-se o Regime Diferenciado de Atendimento de Urgência (RDAU) - realizou mais de 140 milhões de movimentações processuais.5 Os números dos tribunais superiores caminham em sentido semelhante: em maio de 2020, em entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias Toffoli, afirmou que o tribunal é a suprema corte que decide o maior número de casos no mundo. Como exemplo, revelou à época que, em pouco menos de dois meses, o STF já havia recebido 1.800 casos envolvendo a covid-19, proferindo 1.600 decisões.6 Por fim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) informou que - durante o período de atendimento remoto (iniciado em 16 de março de 2020) proferiu - até o início do mês de outubro de 2021 - nada menos que 1,1 milhão de decisões.7 Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 14.04.2022.  2 Disponível aqui. Acesso em 14.04.2022. 3 Acervo das varas da Justiça de São Paulo é o menor dos últimos seis anos 4 Disponível aqui. Acesso em 14.04.2022. 5 Disponível aqui. Acesso em: 14.04.2022. 6 Disponível aqui. Acesso em: 14.04.2022. 7 Disponível aqui. Acesso em: 14.04.2022.
A adjudicação compulsória, prevista no artigo 1418 do Código Civil, na lição de Ricardo Arcoverde Credie, pode ser definida como a ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel - que tenha prometido vendê-lo através de contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura definitiva - tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado.1 A obrigação principal do promitente vendedor no compromisso de compra e venda, portanto, é outorgar a escritura definitiva ao promitente comprador que cumpriu todas as obrigações contratuais. Essa obrigação consiste num facere, juridicamente fungível, porque pode ser suprida por decisão judicial. A adjudicação compulsória nada mais é, portanto, que a emissão judicial do consentimento prometido e injustamente negado, é a substituição da vontade do promitente vendedor por meio do Poder Judiciário. A premissa fundamental da adjudicação compulsória é, assim, o inadimplemento do promitente vendedor, a recusa ou omissão do promitente vendedor em transmitir a propriedade quando o comprador já houver cumprido suas obrigações contratuais. Com a publicação da lei14.382, de 27 de junho de 2022, fruto da conversão da MP 1.085/21, a substituição da vontade do promitente vendedor passou a ser possível, também, pela via administrativa. O texto legal previsto na nova lei inseriu o art. 216-B na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), trazendo a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, que é requerida, processada e deferida perante os Cartórios de Registro de Imóveis, similarmente ao que hoje já acontece com a usucapião extrajudicial.2  Conforme o artigo 216-B, são legitimados a requerer a adjudicação compulsória extrajudicial o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado (§1º), e o pedido deve ser instruído com instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, prova do inadimplemento (recusa do vendedor em outorgar a escritura), certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação,  comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e  procuração com poderes específicos (incisos I a VI, do §1º).   A Medida Provisória nº 1.085/21 trazia, também, como requisito e como documento a instruir o pedido de adjudicação compulsória, a ata notarial, no inciso III, do §1º, do artigo 216-B: III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade; Tal inciso, infelizmente, sofreu veto presencial por ocasião da conversão da MP 1.085/21 na lei 14.382/22. Muito embora não conste mais expressamente do texto legal atual, entendemos que a ata notarial é elemento fundamental da adjudicação compulsória extrajudicial, sendo documento indispensável na instrução do requerimento a ser feito perante o Registrador de Imóveis no sentido de dar segurança quanto à autenticidade da documentação apresentada (contrato particular de promessa de compra e venda), quanto à efetiva posse do imóvel, quanto à comprovação do efetivo pagamento do preço pelo promitente comprador e quanto à comprovação do inadimplemento do promitente vendedor (recusa em outorgar a escritura definitiva do imóvel). Conforme nota Técnica nº 03/2022, emitida pelo Colégio Registral de Minas Gerais3, entende-se dispensada a subscrição dos instrumentos particulares por testemunhas, bem como o reconhecimento de suas firmas, no caso de terem sido apostas no documento, por não se tratar de elemento essencial do contrato preliminar, nos termos do artigo 462 do Código Civil. Apesar de não ser elemento essencial do contrato preliminar, a ausência do reconhecimento de firmas pode comprometer a autenticidade do documento apresentado. Entretanto, negar seguimento à adjudicação compulsória extrajudicial simplesmente pela ausência deste elemento poderia deixar "desamparados" inúmeros promitentes compradores, em razão de ser corriqueira a ausência de reconhecimento de firma nestes documentos. Desta forma, a ata notarial toma especial e essencial relevância, a fim de garantir a autenticidade dos documentos contratuais apresentados, já que o notário tem, a um, expertise para verificação de assinaturas e, a dois, a possibilidade de comparecer pessoalmente ao imóvel adjudicando, a exemplo da usucapião extrajudicial, para realizar diligências que julgar necessárias à lavratura da ata notarial, atestando a posse e fortalecendo as provas que instruirão o requerimento perante o registrador. Outro fator importante que a realização da ata notarial pode demonstrar e atestar, previamente ao ingresso do procedimento da adjudicação compulsória no Registro de Imóveis competente, é a disponibilidade ou a indisponibilidade do bem ou em nome do promitente vendedor, através de consulta pelo tabelião a Central Nacional de Indisponibilidades - CNIB, evitando, assim, que o promitente comprador "perca tempo", processando o pedido perante o Registrador de Imóveis e tendo o registro negado em razão de eventual indisponibilidade. Pois, é notório que, conforme o artigo 14, §1º, da Resolução 39/2014, do CNJ, a existência de comunicação de indisponibilidade impede o registro do direito no Registro de Imóveis, enquanto vigente a restrição. Além disto, a comprovação do pagamento do preço pelo comprador é condição essencial para o processamento do pedido de adjudicação e consequente registro em favor do adjudicante, eis que o direito à adjudicação compulsória somente nasce após o adimplemento das obrigações contratuais pelo promitente comprador. É o que está previsto no artigo 476 do Código Civil, segundo o qual um dos contratantes só pode exigir o cumprimento das obrigações pela outra parte após o adimplemento das suas próprias obrigações. Muitas vezes, o promitente comprador não tem mais o recibo de pagamento ou as notas promissórias que comprovam a quitação do preço. A ata notarial, portanto, pode atestar a quitação do negócio jurídico, mediante a apresentação ao Tabelião de diversos documentos, tais como declaração de imposto de renda, mensagens de e-mails e de texto entre os negociantes que comprovem o recebimento pelo promitente vendedor, extratos bancários, entre outros. Do mesmo modo, a recusa ou omissão do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva é premissa fundamental da adjudicação compulsória, conforme verificado no início deste artigo. Assim, a ata notarial pode contribuir também neste aspecto, comprovando fatos que não estejam demonstrados por documentos, a exemplo de troca de mensagens e e-mails entre as partes contratantes, que podem comprovar as tentativas feitas para a obtenção da escritura definitiva, evidenciando dificuldade ou impossibilidade. Conforme bem salientou Lamana Paiva, a justificativa do óbice à correta escrituração da transmissão da propriedade é essencial para que a via administrativa da adjudicação compulsória não se torne causa para burlar o direito civil, notarial e registral e tributário.4 É importante evitar que a adjudicação compulsória extrajudicial seja utilizada com finalidade fraudulenta, mediante uma simples "combinação" do promitente comprador com o promitente vendedor, comprometendo-se o último a não responder a notificação do Oficial Imobiliário, prevista no inciso II, do §1º, do artigo 216-B, a fim de caracterizar a sua recusa e permitir a transferência de propriedade ao promitente comprador sem a correta escrituração. Neste sentido, Eduardo Pereira, Leandro Corrêa e Rafael Depieri destacam que, pela própria natureza da adjudicação compulsória, de forma oposta dos divórcios e inventários, não poderá haver consenso na adjudicação compulsória extrajudicial, sob pena de, em verdade, estar-se registrando uma compra e venda por instrumento transverso ou, até mesmo, simulado.5 Portanto, além de dar segurança em relação à autenticidade do contrato preliminar, atestar a posse, dando legitimidade ao requerente da adjudicação compulsória, atestar a questão da disponibilidade do bem e comprovar a quitação do preço, a ata notarial é elemento essencial para comprovar a real recusa ou desídia do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva, evitando que a adjudicação compulsória extrajudicial seja utilizada do famoso "jeitinho" brasileiro. Neste aspecto, é muito importante, conforme bem salientaram José Luiz Germano, José Renato Nalini e Thomas Nosch Gonçalves6, que o tema seja objeto de regulamentação pelo CNJ e pelas Corregedorias dos Estados, que podem dispor sobre detalhes, como o cabimento de intimação por edital, o valor da causa, entre outros, e, também, acrescentamos nós, a orientação senão pela obrigatoriedade, pela forte recomendação no sentido do pedido de adjudicação compulsória ser instruído com ata notarial feita pelo tabelião de notas do local de situação do imóvel. A edição de tal norma complementar dará segurança aos operadores do sistema, permitindo que os pedidos de adjudicação compulsória extrajudicial sejam processados e "julgados" com tranquilidade e celeridade, garantindo que o instituto seja utilizado para o fim que foi criado: desjudicializar, permitir que o promitente comprador garanta seu direito a propriedade sem recorrer ao Judiciário quando efetivamente houver a recusa ou omissão do promitente vendedor. __________ 1CÓDIGO CIVIL COMENTADO: DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. Claudio Luiz Bueno de Godoy.( et al.); coordenação Cezar Peluso. 15. Ed. Barueri/SP: Manole, 2021. 2 Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo. § 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos:   I - instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;   II - prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;   III - (VETADO);    IV - certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação;  V - comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);   VI - procuração com poderes específicos.   § 2º (VETADO).   § 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º deste artigo, o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão.   3 COLÉGIO REGISTRAL DE MINAS GERAIS - CORI/MG.   Nota Técnica nº 03/2022.  Disponível aqui. 4 PAIVA, José Pedro Lamana. Adjudicação compulsória extrajudicial. Disponível em https://anoregrs.org.br/wp-content/uploads/2020/10/ADJUDICACAO-COMPULSORIA-COMPLETO.pdf 5 PEREIRA, Eduardo Calais. CORRÊA, Leandro Augusto Neves. DEPIERI, Rafael Vitelli. Adjudicação compulsória extrajudicial: conceitos e limites. Disponível aqui. 6 GERMANO, José Luiz. NALINI, José Renato. GONÇALVES. Thomas Nosch. Cartórios agora podem fazer adjudicação compulsória. Disponível aqui.
O Brasil foi pioneiro na implantação dos atos notariais eletrônicos, tornando-se referência para muitos outros países, graças ao incansável trabalho do Colégio Notarial do Brasil e do Conselho Nacional de Justiça. Com a entrada em vigor do Provimento nº 100, do Conselho Nacional de Justiça, em 26 de maio de 2020, foi autorizada a prática de atos notariais eletrônicos em todos os Tabelionatos de Notas do país, por meio da plataforma do e-Notariado, que foi implementada e é mantida pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal. Desde então, a modalidade eletrônica tem sido cada vez mais utilizada pela sociedade, uma vez que facilita sobremaneira a vida dos usuários, que não precisam se deslocar fisicamente até o Cartório sua confiança. Em síntese, os atos notariais eletrônicos são feitos por meio de videoconferência, que é obrigatoriamente realizada dentro da plataforma do e-Notariado, onde se faz a leitura para as partes, análise da capacidade e a confirmação se estão de pleno acordo com o conteúdo do ato notarial ali apresentado. Somente após a confirmação de todos os participantes do ato, é que eles irão assinar de forma eletrônica, por meio de certificado digital. O procedimento é bem simples e os Cartórios estão preparados para auxiliar os usuários na utilização da plataforma, motivo pelo qual sua utilização está cada vez mais frequente. Os atos notariais eletrônicos possuem a mesma segurança jurídica dos atos lavrados de forma presencial, eis que garantem a identidade, a capacidade e a livre manifestação de vontade das partes pela videoconferência e assinatura eletrônica, por meio de certificado digital. Conforme concluiu a União Internacional do Notariado - UINL, nas Diretrizes para a celebração de escrituras notariais à distância, a escritura pública eletrônica não modifica em nada as qualidades da escritura pública feita em papel. Apenas é uma modalidade distinta que permite a comunicação à distância com as partes solicitantes. De acordo com a UINL, o importante não é a presença física perante o notário, mas o comparecimento direto com o notário responsável pelo ato eletrônico, mesmo por uma plataforma tecnológica. Em princípio, todos os atos de competência do tabelião de notas podem ser feitos de forma eletrônica, pela plataforma do e-Notariado. Entretanto, um deles, o testamento público, um dos atos mais solenes do direito brasileiro, gera polêmicas quando o assunto é sua lavratura de forma on-line. Neste breve artigo, analisaremos, portanto, ainda que de forma resumida, a possiblidade de realização de testamento público de forma eletrônica, e quais seriam as regras de competência territorial mais justas a serem aplicadas ao caso. A realização de testamento público por meio eletrônico foi alvo, inicialmente, de alguns debates, e isso se deu ao fato de não ter sido mencionada a palavra "testamento" no Provimento n° 100, do CNJ.  Sendo o testamento, conforme já mencionado, um dos atos mais solenes realizados pelo notário, contendo regras específicas, a falta de menção expressa deixou dúvidas se houve ou não permissão para a lavratura do ato de forma eletrônica. Porém, com o passar do tempo, o entendimento que predominou é que o fato de não ter sido mencionada a palavra "testamento", no Provimento n° 100, não significa que a sua lavratura de forma eletrônica não estivesse autorizada, visto que o Provimento regulamenta a possibilidade de realização de todos os atos notariais, e o testamento público é um deles. Por ser o testamento um ato notarial, e não ter sido feita nenhuma exceção a ele, entendeu-se como sendo possível sua realização por meio eletrônico, da mesma forma que inventários, divórcios e partilhas, que também não são expressamente mencionados no Provimento. Afinal, se a grande motivação para possibilitar a realização de atos notariais eletrônicos foi a pandemia que, infelizmente, atingiu toda nossa população, como deixar de fora a possiblidade de realizar o testamento público, que talvez seria o ato notarial que mais precisasse desse respaldo? Diante da possibilidade de realização de atos notariais eletrônicos, não seria lógico alguém que estivesse doente, ou somente com receio de contrair a doença, e quisesse realizar um testamento público para deixar registrada sua última vontade, tivesse que ir ao tabelionato presencialmente. Outro ponto muito importante, analisado em favor da possibilidade do testamento on-line, foi o fato de que os atos notariais eletrônicos possuem a mesma segurança dos atos feitos de forma presencial: mesmo por meio eletrônico, todas as regras próprias e formalidades do testamento são facilmente cumpridas, uma vez que, com uma videoconferência una, testemunhas e testador estarão ao mesmo tempo perante o notário, que irá conferir a capacidade, a identidade e a livre manifestação de vontade do testador. Assim como na reunião presencial, na videoconferência, o contato entre a parte e o notário, neste caso entre o testador e o notário, também é realizado "face to face", apenas o meio é diferente, pois são usados processos digitais. Assim, pode-se concluir que, por meio eletrônico, é possível manter toda a segurança inerente ao ato, assim como ocorre no meio físico. Em relação à competência territorial para a prática do testamento eletrônico, antes de adentrarmos nas três correntes que se formaram sobre o tema, é importante dizer que o Provimento n° 100, do CNJ, estabeleceu competência territorial para a prática dos atos notariais eletrônicos com o objetivo precípuo de evitar concorrência predatória entre os tabelionatos de notas do país, já que o ato eletrônico não possui barreiras geográficas e há diferença grande no valor dos emolumentos praticados pelo Estados Brasileiros, que possuem tabelas de emolumentos próprias. No Brasil, a lei prevê que é livre a escolha do tabelião de notas pelas partes (art. 8º, da lei Federal 8.935/94). Contudo, o tabelião não pode praticar atos fora da circunscrição para a qual recebeu a delegação (art. 9º da mesma Lei). Assim, ao que tudo indica, o Provimento n° 100, buscando a profilaxia do ato notarial eletrônico, combinou as regras de competência previstas nestes dois artigos, de modo que, quando se fala em atos eletrônicos, estes artigos devem ser lidos conjuntamente: é livre a escolha do tabelião dentro da competência (municipal ou estadual) para o qual este recebeu a delegação. Neste cenário, compatibilizando o sistema com a jurisdição territorial, o Provimento n° 100, nos artigos 19 e 20, adotou o Município e o Estado do domicílio das partes e o local do imóvel como critérios básicos de competência territorial para a prática dos atos notariais eletrônicos. Tendo isto em mente, vamos às três correntes que se formaram em relação à competência territorial para a prática do testamento público on-line: 1º) Corrente Restritiva: O Tabelionato competente para lavrar o Testamento Público por meio eletrônico será o do domicílio do Testador. 2º) Corrente Moderada: O Testador poderá escolher qualquer Tabelionato de sua confiança, desde que dentro do Estado onde tem seu domicílio. 3º) Corrente Liberal: O Testador poderá escolher o Tabelionato de Notas de sua confiança no Brasil, independentemente do seu domicílio. A primeira corrente adota um dos critérios básicos de competência territorial eleitos pelo Provimento n° 100, o domicílio da parte, no caso, o domicílio do testador. Já a terceira corrente entende que, na falta de regra específica no Provimento n° 100 sobre a competência territorial para a prática do testamento eletrônico, deve-se seguir a regra legal existente no artigo 8º, da lei Federal 8.935/94, sendo livre a escolha do notário pelo testador, independentemente de seu domicílio. Isto porque, em tese, não se deve ampliar o alcance de uma norma restritiva. Se o Provimento n° 100 não estabeleceu expressamente competência para o testamento, é porque não quis fazê-lo, aplicando-se, como consequência, o princípio da livre escolha previsto na lei Federal 8.935/94. Além disto, por ser o testamento um ato tão solene e confidente, um ato de última vontade em que a confiança da parte no notário é ainda mais relevante que em outros atos notariais, o testador deveria ter essa liberdade preservada. E, se analisarmos de modo mais profundo, o testamento não parece ser um ato que geraria concorrência predatória, pois, por todo o contexto que envolve esse ato, e, também, pela forma de cobrança dos emolumentos correspondentes em todos os Estados, certamente o testador não irá se preocupar mais com o valor do que o conteúdo e tudo que ele significa. A primeira corrente parece limitar ao extremo a competência territorial, fazendo com que o testador não tenha escolha alguma, sendo forçado a fazer o seu testamento on-line no tabelionato de seu domicílio. Tal corrente não nos parece a mais acertada por dois motivos: I) muitas pessoas preferem fazer seus testamentos em cidades distintas de sua residência para evitar especulações sobre o documento; e, II) alguns cartórios ainda não aderiram ao e-Notariado, o que prejudica as pessoas que querem ou precisam fazer seu testamento de forma on-line, mas são privadas desta possibilidade em razão de não existir tabelionato habilitado em seu domicílio. A terceira corrente, por sua vez, que deixa completamente livre a escolha, acaba por esbarrar na preocupação do Conselho Nacional de Justiça em relação à prevenção de concorrência desleal ou predatória e todas as consequências danosas que esta acaba surtindo. Assim, parece-nos que a imposição de um limite, por mínimo que seja, de competência territorial, seria algo a evitar problemas futuros, não retirando totalmente a liberdade de escolha do testador. Mas então qual seria a regra de competência mais justa diante deste cenário? Eis que chegamos na segunda corrente, no caminho do meio, a Corrente Moderada. A segunda corrente defende que o testador pode escolher qualquer Tabelionato de sua confiança, desde que dentro do Estado onde tem seu domicílio. Tal corrente parece combinar, como numa sinfonia harmoniosa, a liberdade de escolha tão importante no testamento - para preservar a confiança do testador no notário e a confiança do testador no sigilo do documento - com a preocupação com a concorrência predatória, já que dentro do mesmo Estado, o testamento público tem o mesmo valor, independentemente do Município onde for lavrado. Desse modo, concluímos que a regra de competência menos gravosa ao Testador e que vai ao encontro do nosso ordenamento jurídico, sem ferir o Provimento n° 100, tampouco a lei Federal 8.935/94, seria justamente esta segunda corrente: a livre escolha do notário de confiança do testador, desde que dentro do Estado em que tem seu domicílio. Este entendimento traz uma ampla possibilidade de escolha, mas com um limite mínimo que visa somente coibir problemas futuros no notariado, para que este possa continuar obtendo sucesso perante a sociedade, e cada vez mais possa evoluir, facilitando a vida de todos e mantendo a segurança jurídica de sempre. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.
Introdução Neste ano, a lei 9.514/97, que introduziu no ordenamento jurídico o procedimento da execução extrajudicial de créditos imobiliários garantidos por alienação fiduciária, completou vinte cinco anos de vigência. Como se extrai do enunciado do art. 22 da lei 9.514/97, o instituto da alienação fiduciária é definido como "o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel". O interessante conceito de propriedade fiduciária não era novidade no Brasil1, contudo, por motivo da grave crise do mercado imobiliário da década de 80, que duramente impactou o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), foi somente com a Lei nº 9514/97 que o instituto fora introduzido às operações de crédito imobiliário.   Nesse sentido, o cenário econômico nacional e a alienação fiduciária - ao criarem eficiente sistema de recuperação de crédito - permitiram, em conjunto, um boom no mercado imobiliário brasileiro, barateando o custo de crédito para milhares de famílias que buscam o dito "sonho brasileiro da casa própria", tal como pretendido pelos idealizadores da lei 9.514/972. Em retrospecto, embora não previsto pelos idealizadores do texto legislativo, pode-se apontar que o procedimento extrajudicial de créditos imobiliários da lei em questão também contribuiu para não agravar as mazelas decorrentes do fenômeno da hiperjudicialização, representado pelos mais de 70 milhões de processos em tramitação no Brasil3. Ganharam os devedores, credores, o Poder Judiciário e a sociedade brasileira. Não causa surpresa, portanto, dados no sentido de que atualmente mais de 90% das operações de garantia de créditos imobiliários são realizadas por meio de alienação fiduciária. Em comparação, os números apontam que atualmente somente 6% das operações de crédito utilizam-se do instituto da hipoteca4. A discrepância entre esses dados permite concluir que se mostraram acertados os prognósticos dos idealizadores da lei 9.514/97. Há que se reconhecer, contudo, que a aceitação do procedimento extrajudicial de alienação fiduciária de bem imóvel não foi simples. Como ocorre no Brasil com textos legislativos que introduzem medidas de desjudicialização, o procedimento da execução extrajudicial de créditos imobiliários fora recepcionado à época com críticas e desconfiança por parte da comunidade jurídica5. Além disso, há os que clamam por suscitar inconstitucionalidade total ou parcial da iniciativa, o que persiste até os dias atuais6. Deve-se também conceder que a lei 9.514/97, que fora objeto de seguidas alterações desde sua promulgação, necessita de reformas em importantes pontos, como nos relativos aos procedimentos de atos executivos. Conforme amplamente noticiado pela imprensa especializada, esses e outros pontos são objeto de debates no âmbito do Congresso Nacional, por meio do PL 4.188/2021 (recentemente aprovado com alterações pela Câmara dos Deputados), inciativa legislativa também conhecida como o "Marco Legal das Garantias", cujos tópicos ali tratados, por fugirem do limitado escopo deste texto, não serão aqui examinados. Ainda assim, neste quase um quarto de século de vigência da virtuosa lei, que revolucionou o sistema de garantia imobiliária, a despeito da existência de pontos a serem reparados, é indiscutível a efetividade7 e os benefícios da lei até este momento. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 CHALUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária de bens imóveis. 20 anos de vigência. Editora Thomson Reuters. Rio de Janeiro. 2018, p. 2. 2 Dados extraídos da Exposição de Motivos do PL 3.242/97, transformado na Lei nº 9.514/97. Acesso em 14.11.2022. 3 Como aponta o Relatório "Justiça em Números" do CNJ. Acesso em 15.11.2022. 4 Dados extraídos da Exposição de Motivos do Anteprojeto do PL 4.188/2021 (recentemente aprovado com alterações pela Câmara dos Deputados. Acesso em 15.11.2022. 5 CHALUB, Melhim. op. cit. p. 2. 6 O STF, no ano passado, por sete votos a cinco, julgou constitucional o decreto-lei 76/66, que regulamenta a execução extrajudicial de dívida hipotecária (Tema 249). Além disso, o STF deverá julgar ainda neste ano o RExt nº 860631/SP, que questiona a constitucionalidade do procedimento de alienação extrajudicial previsto na lei 9514/97 (Tema 982). Confia-se que o STF - desta vez por quórum mais expressivo - rejeitará a alegação de inconstitucionalidade da indigitada lei.  7 Para precisa definição dos conceitos de vigência, vigor, eficácia e efetividade da norma, verificar: OLIVEIRA, Carlos Elias e COSTA-NETO, João. Direito Civil, Volume Único. Editora Método. Brasília, 2022. p. 8.
Às vésperas do aniversário de 28 anos da publicação da lei 8.935/1994 e da comemoração do dia dos notários e registradores, foi deferida autorização judicial para lavratura de um inventário extrajudicial com incapaz de forma desigual, com prévia e arraigada análise do Ministério Público e da autoridade judiciária: "[...] Ante a concordância do Ministério Público e não se verificando a existência de qualquer prejuízo para a herdeira incapaz, DEFIRO A EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ para autorizar a Cessão de Direitos pelo viúvo meeiro aos herdeiros filhos e o processamento do inventário dos bens deixados por M.A.B.G. pela via extrajudicial. Por consequência, DECLARO EXTINTO o processo, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil. A presente sentença valerá como permissão à realização de abertura de inventário extrajudicial dos bens deixados pela 'de cujus' M.A.B.G. Proceda a inventariante ao recolhimento das custas, sob pena de inscrição do débito na Dívida Ativa. Aguarde-se, por 30 (trinta) dias, apresentação da escritura de partilha finalizada. Oportunamente, arquivem-se os autos. Publique-se. Intime-se. Cumpra-se." Processo Digital nº: 1002024-05.2022.8.26.0457 da 2º Vara da Comarca de Pirassununga/SP. O motivo é de comemoração, o fenômeno extrajudicializante permitiu atender o dispositivo legal estabelecido no Código de Processo de Civil (artigo 610) com as mesmas cautelas e práxis do ordenamento jurídico, com prévia minuta elaborada pelo Cartório do Distrito de Cachoeira de Emas, Município e Comarca de Pirassununga, São Paulo. Com efeito, o precedente inova substancialmente a outrora solução de pagamento igualitário, nesse caso, os autores da ação demonstraram a necessidade de rápida formalização do inventário, em virtude da avançada idade do viúvo e a urgência de regularização dos imóveis e das empresas. Pretendem os interessados realizar o inventário extrajudicial dos bens deixados pela de cujus, mesmo com a existência de herdeira incapaz (pessoa com deficiência). A exordial deflagrada por advogado pirassununguense reuniu todos os precedentes desse fenômeno extrajudicializante, com as honrosas citações destes autores que cunharam essa solução disruptiva, assim como houve apresentação de tabela com o patrimônio, minuta elaborada pelo Cartório de notas com cessão de direitos, tornando os pagamentos hereditários diferenciados, e não igualitários como defendido previamente. Nesse caso, houve cessão de direitos da meação pelo cônjuge supérstite, tornando assim os pagamentos diferenciados. Com efeito, percebe-se uma economia processual e um planejamento sucessório, tendo em vista que o cônjuge cedente já possui idade avançada. Outrossim, de acordo com a petição: "...sem nenhum prejuízo ao incapaz envolvido, e que a requerente "incapaz" é pessoa com deficiência curatelada, requer desde já que seja expedido Alvará Judicial, para autorizar o processamento de Inventário pela via extrajudicial notadamente no tabelionato de Notas da Cachoeira de Emas na comarca de Pirassununga/SP, considerando-se a abertura do inventário na data da decisão de fls. 34 (09/06/2022) e inventariante a Autora." Comprometeram-se os autores a apresentar a escritura lavrada e que a ação fosse convertida em AÇÃO DE EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ JUDICIAL, para autorizar o processamento de Inventário e Cessão de Direitos pela via extrajudicial, no Tabelionato de Notas da Cachoeira de Emas, nesta comarca de Pirassununga/SP. Realmente, defendemos outrora que a desjudicialização das situações consensuais permite que a justiça se atenha à sua missão: compor litígios. O juiz é um profissional treinado para o enfrentamento do conflito. Já os delegatários do foro extrajudicial são insuperáveis na rápida e eficiente solução das situações consensuais. Enquanto a mudança legislativa não se faz, nada impede que os advogados e os tabeliães procurem obter junto aos juízes, como se fez no caso mencionado, autorização para que, em casos de partilha ideal com presença de menores ou incapazes se possa fazer a partilha ideal, ante a ausência de qualquer prejuízo para a pessoa que mais precisa ser protegida. Como premissa desse estudo, vale destacar que a mesma solução já foi implementada pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio do RESP 1.808.767 - lavratura com testamento -, assim, o inventário extrajudicial com incapaz possui o mesmo arquétipo do referido acórdão, já pacificado no STJ e replicado na normatização administrativa da maioria das Corregedorias Estaduais. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Levando os emolumentos a sério

Emolumentos e os enunciados da I Jornada em Direito Notarial e Registral da CJF/STJ. Na célebre obra "Levando os direitos a sério", Ronald Dworkin procura desenvolver uma teoria do direito assentada nas melhores práticas morais de determinada sociedade. Com uma crítica ao positivismo, Dworkin buscou, em casos práticos e factíveis, a demonstração de que o direito não deve ser compatibilizado apenas com regras, mas, principalmente, como os princípios, que têm o poder de nortear a orientação e aplicação do direito1. Em conjunto, propõe uma teoria da justiça, segundo a qual todos os juízos a respeito de políticas públicas devem se basear na ideia de que todos os membros de uma comunidade são iguais enquanto seres humanos, independentemente das suas condições sociais e econômicas2, como John Rawls já havia teorizado com o "véu da ignorância"3. Esse princípio que fundamenta o estado democrático de direito leva em consideração a necessidade de aplicação de leis a todos os cidadãos, sem um estado de exceção4, no qual a lei varia ao sabor de quem julga e de acordo quem é julgado. Na democracia, respeita-se as leis, e todos são sujeitos de direitos postos na legislação5. Observa-se no país, em alguns juízos, um esforço para, em suas decisões, não haver pagamento pelo trabalho de notários e registradores, com dimensões que buscam ultrapassar a letra da própria legislação ou muitas vezes a ignorando6. O trabalho do notário e registrador depende essencialmente dessa remuneração para a viabilidade do serviço que não consome dos cofres públicos, ao contrário, o alimenta, já que boa parte do valor é revertido para o poder judiciário e outros7. Além disso, os emolumentos financiam os cartórios deficitários, que necessitam dos valores de compensação para sobreviver8. O esforço para o não pagamento dos emolumentos esbarra no nosso sistema na previsão de que somente a lei pode prever situação de isenções9, além da violação ao princípio da igualdade da Constituição10. Esse modelo vigente no país a partir do artigo 236 da Constituição é acertada, pois seleciona os melhores profissionais por concurso público (os chamados "delegatários"), os coloca responsáveis por erros, praticam atos privados na gestão da serventia e são fiscalizados pelo próprio poder judiciário. Os níveis de corrupção são baixíssimos, porque são facilmente identificados e punidos por um sistema que funciona. Não à toa que, novamente, em 2022, na pesquisa Datafolha de quais são as instituições do país com maior confiança da população, os cartórios aparecem em primeiro lugar11. Quando colocada a lente na problemática do uso indiscriminado das indisponibilidades de bens, da baixa gratuita de gravames ou de transferências de propriedade sem o seu pagamento, ou até mesmo da concessão indistinta gratuidades de justiça nos processos judiciais, sem ao menos o cumprimento ou observância dos requisitos legais, não se está levando o direito a sério. Não se está levando o Estado de Direito a sério. Dito isto, este texto traz três importantes enunciados que dizem respeito ao assunto e foram aprovados na I Jornada de Direito Notarial e Registral. Jornada e direitos dos delegatários em pauta. Nos dias 04 e 05 de agosto de 2022, ocorreu a I Jornada de Direito Notarial e Registral do Conselho da Justiça Federal, com o propósito de unir especialistas para a elaboração de enunciados com viés orientativo. Trata-se de doutrina qualificada, com a chancela do Superior Tribunal de Justiça. Os enunciados são enviados para uma Comissão de juízes e especialistas que poderão aprová-los, editá-los ou refutá-los. Os aprovados, em seu texto original ou modificado, vão a um Plenário, composto por todos que tiveram enunciados aprovados e pelos membros das Comissões. Somente com 2/3 de aprovação os Enunciados são ao fim aprovados pela Jornada12. Participamos da construção dos enunciados 31, 36 e 78 que tratam dos temas de emolumentos13. Passamos a apresentá-los. Enunciado nº 31: "A gratuidade da Central Nacional de Indisponibilidades, prevista no Provimento nº 39/14 do CNJ, refere-se ao uso da plataforma. Os atos de averbação e cancelamento são cobrados através dos emolumentos, exceto nas hipóteses legais de isenção". O texto esclarece os efeitos da gratuidade prevista no artigo 7º, parágrafo único, do provimento nº 39/2014 do CNJ, que regulamenta a Central Nacional de Indisponibilidades (CNIB). Art. 7º. A consulta ao banco de dados da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB será obrigatória para todos os notários e registradores do país, no desempenho regular de suas atividades e para a prática dos atos de ofício, nos termos da Lei e das normas específicas. Parágrafo único. Nenhum pagamento será devido por qualquer modalidade de utilização da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB pelos registradores, tabeliães de notas, órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Apesar da previsão normativa ser clara ao tratar que a gratuidade diz respeito apenas à utilização da Central, diversos juízos ainda têm adotado entendimento equivocado sobre o tema, determinando a prática dos atos registrais de forma gratuita quando provenientes dos resultados obtidos por meio da CNIB, como base no "Convênio CNIB". O Provimento do CNJ nº 39/14, que dispõe sobre a instituição e funcionamento da - CNIB, prevê que o uso da plataforma é gratuito, mas não os atos praticados pelo Registrador. O juiz acessa e utiliza de forma gratuita o sistema disponibilizado pela CNIB, ordenando restrições e cancelamentos de maneira geral e indistinta. Mas para a prática do ato registral de cancelamento, a ser realizado nas matrículas dos imóveis de propriedade do executado, e em seu benefício, ou nos livros do Registro de Títulos e Documentos, o Registrador deve ser devidamente remunerado. Diante de interpretações equivocadas, o CNJ, ao ser instado a interpretar o referido artigo pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, já decidiu por unanimidade pela legalidade da cobrança dos emolumentos em virtude do cancelamento das indisponibilidades (Consulta nº 0002379-11.2018.2.00.0000). No voto, o Conselheiro Relator assinala: A controvérsia cinge-se sobre a possibilidade de cobrança de emolumentos pela averbação de ordens de indisponibilidades e respectivos levantamentos via CNIB. [...] A gratuidade a que se refere a norma diz respeito aos atos praticados necessários à alimentação e à consulta ao CNIB, não alcançando, por conseguinte, o ato praticado pelo serviço extrajudicial para dar cumprimento à decisão judicial. [...] Uma coisa é a alimentação da plataforma pelos seus operadores e outra são os atos praticados pelas partes envolvidas no que diz respeito averbação das ordens de indisponibilidades, isto é, a decisão judicial que determina a indisponibilidade de bens proferida pelo juízo competente e a averbação em si executada pela serventia extrajudicial. [...] Ante o exposto, entendo que a gratuidade conferida pelo parágrafo único do art. 7º do Provimento CNJ nº 39/2014 não alcança a cobrança de emolumentos pelas serventias de registro de imóveis ao averbarem as ordens de indisponibilidades e respectivos levantamentos comunicados por meio da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Portanto, o Enunciado deixa claro, mais uma vez, o direito do Registrador em ser remunerado pelos atos praticados em seus livros a partir da Central Nacional de Indisponibilidades.14 Enunciado nº 36: "Compete ao arrematante o pagamento dos emolumentos relativos aos cancelamentos dos ônus gravados na matrícula do imóvel quando do registro da carta de arrematação." Há dois tipos de emolumentos envolvendo o tema arrematação de imóveis. Cancelamento de gravames. Cancelamentos, como sinalizados, são atos de averbação em que incidem emolumentos ao Registrador (artigo 167, II da Lei Federal 6.015 combinada com as situações das leis estaduais). O cancelamento do gravame é despesa da própria execução (artigo 894 do CPC). Somente a lei pode trazer situações de gratuidade de emolumentos. E não haveria inclusive razoabilidade para a lei propor gratuidade em uma aquisição onerosa de um bem, por quem tem condição de pagar todos os atos praticados pelo cartório. Mesmo que o edital dispunha sobre o não pagamento dos emolumentos de cancelamento de gravames com o valor da arrematação, de maneira que sejam liberados para a prática do ato, é certo que o responsável pelo seu pagamento é o arrematante, pois, pelo princípio da continuidade (artigo 237 da Lei Federal 6.015), o registro do seu título aquisitivo depende do cancelamento dos gravames anteriores. É o beneficiário dos cancelamentos, pois o imóvel passa a ser seu, de sua titularidade. Este é o entendimento de diversos tribunais, citamos como exemplo o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: MANDADO DE SEGURANÇA. REGISTRO NOTARIAL IMOBILIÁRIO. LEVANTAMENTO DEGRAVAMES DO IMÓVEL LICITADO EM HASTA PÚBLICA. ORDEM JUDICIAL. INTERESSE PARTICULAR DO ARREMATANTE. DIREITO À PERCEPÇÃO DOS EMOLUMENTOS.CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE MOTIVO ENSEJADOR DEISENÇÃO DAS DESPESAS. APLICAÇÃO DO ARTIGO 789, PARÁGRAFO PRIMEIRO, DACLT. INOCORRÊNCIA. SEGURANÇA CONCEDIDA Cabe mandado de segurança de impetração do titular do cartório de registro de imóveis contra ato judicial que lhe determina levantamento de gravames registrados em matrícula de imóvel alienado em hasta pública, por impossibilidade de o impetrante, auxiliar e "longa manus" do juízo da execução, contra a ordem recorrer. O juiz tem o dever legal de fiscalizar a cobrança das custas e emolumentos, na exata medida em que a impetrante tem o direito (também legal) de perceber, no caso em análise, pagamento pelo serviço que executará. As exceções de tal obrigação devem vir expressas e delas extrai-se com maior incidência a gratuidade processual. Na expropriação, figura ator diverso às partes litigantes, o arrematante, que, ao aderir espontaneamente à licitação em hasta pública, atrai para si os ônus daí resultantes. O interesse em ver o imóvel livre das anotações de gravame e receber plenamente a propriedade imobiliária que resulta da arrematação é apenas do arrematante. Não se lhe aplica, pois, a regra contida no artigo 789,§ 1º, da CLT. Segurança concedida Registro da carta de arrematação. O segundo se refere ao emolumento devido pelo registro da carta de arrematação. O seu registro é do próprio custo da aquisição, tal qual o ITBI, que incide sobre aquisições por leilão15, e é pago pelo arrematante. Insere-se no rol do artigo 2º, II, b e seu §1º da Lei Federal de Emolumentos (Lei 10.169/2000). Ambos emolumentos são devidos imediatamente na prática do ato, pelos termos da lei federal 6.015 no seu artigo 206-A. O título, judicial, para ambos atos (cancelamento e registro) será a carta de arrematação, baixando-se os gravames e transferindo-se a propriedade. O Enunciado repete o entendimento que já é o do STJ. RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E IMOBILIÁRIO. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 282/STF. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS DE LEI FEDERAL. SÚMULA 328/STJ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. 1. ... 4. A Lei 6.015/73 prestigia o princípio da continuidade do registro como basilar para os serviços notariais e de registros imobiliários, delegados pelo Poder Público a particulares (CF, art. 236). Assim, a carta de arrematação do recorrente somente pode ser registrada após os cancelamentos dos anteriores registros de penhoras sobre o imóvel. Logo, o recorrente tem interesse não somente pelo registro da carta de arrematação, mas, também, pelos cancelamentos dos registros das penhoras. Prestado o serviço pelo cartório de imóveis, o ora recorrente deverá arcar com todos os custos inerentes. Dessa forma, fica rejeitada a apontada violação aos arts. 580, 581, 794, I, 890, §§ 1º e 2º, do CPC, porque o recorrente não está liberado do pagamento dos emolumentos referentes aos cancelamentos das anteriores penhoras que recaíram sobre o bem. 5.. (REsp n. 907.463/RN, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 5/11/2013, DJe de 18/9/2014.) Portanto, uma ordem judicial que determine a baixa gratuita de gravames e a transferência da propriedade sem o pagamento de emolumentos viola a lei de maneira gritante. Enunciado nº 78: "A gratuidade de justiça conferida a uma das partes do processo judicial não é extensível para outras partes não beneficiadas, para fins de pagamento de emolumentos extrajudiciais". O enunciado visa aclarar os efeitos da gratuidade de justiça no âmbito registral, sobretudo, no que se refere à sua extensão. A gratuidade de justiça, prevista no artigo 98 do Código de Processo Civil, consiste em benefício concedido à parte hipossuficiente da relação processual, possibilitando a realização de atos processuais sem o adiantamento das custas e demais gastos. A partir do Código de Processo Civil de 201516, a gratuidade foi estendida ao pagamento dos emolumentos, permitindo a prática de atos registrais em detrimento da parte beneficiária da gratuidade sem o adiantamento do valor devido17. Os efeitos da gratuidade se restringem apenas a parte que goza deste benefício, não abarcando os demais atores do processo. O artigo 99, § 6º do CPC expressamente estabelece que o benefício da gratuidade é pessoal, não se estendendo aos demais, salvo por meio de expresso requerimento e deferimento. No mesmo sentido o art. 10 da Lei Federal nº 1.060/195018. Mesmo com o claro texto legal e entendimento jurisprudencial no sentido do enunciado, muitas ordens, surpreendentemente, estendem ao executado/réu o direito de gratuidade de justiça conferido ao exequente/autor. Nesses autos, o benefício da parte hipossuficiente, acaba, surpreendentemente, na prática, beneficiando o executado que deu causa à ação e à execução, e que, muitas vezes, dificulta a recuperação dos créditos judiciais. É "premiado" o responsável pelo processo com a extensão ilícita da gratuidade do hipossuficiente. *** Os enunciados da I Jornada de Direito Notarial e Registral têm uma importância significativa para a pacificação de temas que interessam ao cidadão e ao operador do sistema extrajudicial. Mais que isso, os enunciados acima são fundamentais para a estabilidade do sistema, no reforço das previsões legais que identifica direitos, sujeitos e não prevê exceções, ou, pior, uma realidade de Exceção. A sua correta compreensão é um passo relevante para um sistema extrajudicial sadio. Que os direitos dos registradores e notários possam ser levados a sério. __________ 1 DORWIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Martins Fontes: São Paulo, 2007 2 CORRÊA LEITE, Taylisi de Souza. O Modelo de Regras de Ronald Dworkin. Disponível aqui. 3 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes: São Paulo 4 Para Andityas Soares de Moura Costa, Professor de filosofia do direito na UFMG, a expressão estado de exceção: designa  a  provisória suspensão da Constituição em sua inteireza ou em pontos de grande importância, como, por exemplo, os direitos e garantias fundamentais (...) Em sua obra Estado  de  Exceção, o filósofo italiano Giorgio Agamben demonstrou que a exceção autoritária não é uma espécie de negação do Estado Democrático de Direito. Ao contrário, a exceção habita dentro da democracia e do Estado de Direito, motivo pelo qual é mais correto falarmos em espaços de exceção. Tal percepção é preciosa porque nos permite refletir sobre nossas práticas político-jurídicas  cotidianas  para  nelas  descobrir  camadas  de  autoritarismo  que,  à primeira vista, parecem alheias e inexplicáveis. Somente uma leitura crítica de nossa vivência social pode evidenciar que, não obstante a perfeição e a beleza dos enunciados normativos da Constituição de 1988, nossa democracia se construiu tendo em vista uma tradição autoritária, a qual não desaparece da noite para o dia simplesmente porque mudamos nossas leis e governantes. Assim, uma das principais tarefas do pensamento crítico  consiste  em  denunciar  os  espaços  de  exceção  que  parasitam  o  cenário político-jurídico nacional. (pag.12) (Fonte: Vista do Estado de Exceção e Democracia no Brasil (ufmg.br) 5 O célebre jusfilósofo Javier Hervada, quando trata sobre o direito como justiça, diz que "o que constitui o dever jurídico ou dívida de justiça é exatamente a coisa que é direito. Isso é o que dever ser dado, nem mais nem menos: o justo" HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. Martins Fontes: São Paulo, 2008, p. 143. 6 Tomadas de decisão sem a observância do direito de todos os envolvidos não se compatibilizam com nosso estado democrático, que obriga a fundamentação de todos os atos decisórios sob pena de nulidade Nesse sentido, o artigo 11 do CPC: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". 7 O emolumento ("taxa cartorial") é o único mecanismo de remuneração da atividade notarial e registral, previsto no artigo 236 da Constituição Federal, que não depende de recursos públicos. É o que viabiliza o pagamento de todo o aparato físico da serventia (dos móveis, aparelhos ao local), contas de energia, água, papel, selos, de contratação de pessoal, tecnologia, seguros, contabilidade, jurídico, treinamentos contínuos e toda a sorte de obrigação legal. O valor ainda é transferido, a título de taxa de fiscalização, ao Tribunal de Justiça e demais beneficiários (Ministério Público, Defensoria Pública e outros, valores que podem chegar a 52% a depender do estado), pagos impostos (ISS e IRPF de 27,5%), para o que sobrar, ser a remuneração do oficial. 8 Como sabido, a remuneração dos cartórios superavitários é responsável pelo custeio dos cartórios deficitários, através dos fundos de compensação (Lei Federal 10.169/2000). 9 Vide a exemplo o julgado: RE 638026; Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI; Julgamento: 18/07/2014; Publicação: 01/08/2014 10 Celso Antônio Bandeira de Mello, na sua obra "conteúdo jurídico do princípio da igualdade (Malheiros, 2004), nos ensina que: o princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes (...). 11 O retrato não isenta as necessárias melhorias de simplificação de procedimentos na legislação e necessária acessibilidade digital à população, o que parece estar em curso com medidas como a lei 14.382 (lei do serviço eletrônico de registro público), o funcionamento e expansão das centrais eletrônicas, exemplificativamente. Ainda há desníveis significativos entre diferentes partes do país e uma expectativa de padronização dos serviços, já que cada delegação é independente. 12 Como exposto pelo Conselho da Justiça Federal: "As Jornadas de Direito buscam delinear posições interpretativas sobre as normas vigentes, adequando-as às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, a partir do debate entre especialistas e professores, com a produção de enunciados a serem publicados e divulgados sob a responsabilidade do Centro de Estudos Judiciários e supervisão da Coordenação Científica". Disponível aqui. 13 O autor Bernardo Chezzi foi convidado como Especialista da Comissão de Registro de Imóveis, foi proponente e trabalhou no aperfeiçoamento junto com os demais especialistas daquele grupo de todos enunciados dessa atribuição. O autor Gabriel Souza teve enunciado selecionado pela Comissão, sendo convidado a participar da plenária. Os enunciados aprovados 31, 32 e 78 foram propostos pelos autores. 14 Vê-se que a opção do CNJ foi, para viabilizar a indisponibilidade via CNIB, que os atos de averbação da indisponibilidade fossem pagos junto com os de cancelamento, pelo interessado, na baixa desse gravame. Todavia, o correto, nos termos do artigo 206-A da 6.015, é que o requerente, quando pessoa sob o regime privado, pague pela averbação. O pagamento a posteriori é um dos motivos de banalização do instrumento de indisponibilidade para execução de dívida. Sobre isso, veja artigo Bernardo Chezzi publicado no Jornal Estado de São Paulo e no Portal Migalhas (https://www.migalhas.com.br/depeso/375112/o-uso-da-indisponibilidade-geral-de-bens-para-constricao-de-dividas) 15 STJ, REsp 1.803.169/SP; STJ, AREsp 1425219/SP; STF ARE 1322769-AgR; STJ AgInt no AgInt no AREsp 162.397/SP, dentre outros julgados. 16 Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido. 17 Nesse sentido, destacou João Pedro Lamana Paiva: A gratuidade da justiça sofreu alterações com impacto direto nas atividades notarial e registral, conforme art. 98 da moderna norma processual. A assistência judiciária gratuita, deferida pelo juiz, foi estendida aos emolumentos dos atos praticados por notários e registradores. (PAIVA, João Pedro Lamana. O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS REPERCUSSÕES NAS ATIVIDADES NOTARIAIS E REGISTRAIS. Revista de Direito Imobiliário, vol. 83/2017, p. 159/178, Jul - Dez / 2017). 18 Art. 10. São individuais e concedidos em cada caso ocorrente os benefícios de assistência judiciária, que se não transmitem ao cessionário de direito e se extinguem pela morte do beneficiário, podendo, entretanto, ser concedidos aos herdeiros que continuarem a demanda e que necessitarem de tais favores, na forma estabelecida nesta lei.
Em 22 de abril de 2022 o CNJ - Conselho Nacional de Justiça editou a resolução 452/221, que alterou o artigo 11 da resolução CNJ 35/07, para permitir que o(a) inventariante nomeado represente o espólio "na busca de informações bancárias e fiscais necessárias à conclusão de negócios essenciais para a realização do inventário e no levantamento de quantias para pagamento do imposto devido e dos emolumentos do inventário". Permitiu-se, dessa forma, a nomeação do inventariante em escritura pública anterior à partilha ou à adjudicação (Resolução CNJ 35, art. 11, §1º), prática que já era admitida por vários Tribunais do país, bem como o seu acesso a saldos e extratos bancários de contas do de cujus e o levantamento (saque) de quantias - eventualmente existentes - com a finalidade de efetuar o pagamento do devido imposto de transmissão (ITCMD) e os emolumentos notariais e registrais do Inventário Extrajudicial. Visou-se, com isso, resolver celeuma existente no cotidiano de quem labora com o Direito das Sucessões, consistente na ilegítima recusa de algumas poucas instituições bancárias em fornecer os necessários saldos e extratos aos herdeiros, sob a alegação de que se fazia necessária a apresentação de alvará judicial. Trata-se de medida necessária e aguardada pela comunidade jurídica e pela sociedade de modo geral, com vistas a viabilizar a realização/conclusão do Inventário Extrajudicial. E não poderia ser diferente, pois o Direito deve servir à sociedade, que clama por atos e procedimentos mais céleres e eficazes. Acreditamos, entretanto, que a alteração poderia ter sido ainda melhor se tivesse contemplado o pagamento de honorários advocatícios, mesmo que parciais, pois não há como se falar em realização de Inventário, Judicial ou Extrajudicial, sem a presença obrigatória de advogado. Essa é uma questão crucial! Da mesma forma, dever-se-á permitir o levantamento de valores eventualmente existentes em conta para o pagamento de eventuais débitos tributários existentes, a fim de se possibilitar a realização do inventário pela via administrativa, de maneira a se atender à resolução 35/07 do CNJ. Fica registrada, portanto, sugestão de alteração! Outra questão de grande relevância que defendemos há algum tempo, cerne deste artigo, é a inerente à venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial, nos casos em que as partes vierem a optar pela realização do Inventário de forma extrajudicial. A explicação seria a seguinte: O CPC, atualmente, em seu artigo 619, I, in verbis, exige alvará judicial para venda de bens do espólio: "Art. 619. Incumbe ainda ao inventariante, ouvidos os interessados e com autorização do juiz: I - alienar bens de qualquer espécie; [...]" Acontece que é um contrassenso exigir que as partes, capazes e concordes, que já optaram por promover o Inventário pela via extrajudicial, precisando alienar um ou mais bens, sejam obrigadas a se dirigir ao Poder Judiciário para requerer autorização judicial. Tal previsão vai de encontro ao importante movimento de desjudicialização existente em nosso país, o qual é, inclusive, contemplado em vários dispositivos do referido Codex, a exemplo do que prevê o artigo 610, §1º, que trata do Inventário Extrajudicial e de seu artigo 733, que dispõe sobre o divórcio, a separação, e a dissolução de união estável, consensuais, por escritura pública. Além disso, fere o Princípio da Autonomia da Vontade, bem como os Princípios da Intervenção Mínima do Estado e da Economia Procedimental, na medida em que retira das partes, capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas capacidades civis, o poder de decisão/disposição e a possibilidade de venderem um ou mais bens, em momento de necessidade, obrigando-as a bater às portas do Judiciário para requerer algo que de forma simples poderia ser resolvido e evitado. Devemos lembrar que o artigo 619 do atual Código de Processo Civil replicou a regra do revogado artigo 992 do CPC de 1973, época em que ninguém sequer cogitava falar em Inventário Extrajudicial, carecendo da necessária alteração legislativa. Não há razão, portanto, de se exigir alvará judicial nesses casos, desde que inexistam débitos do espólio, dos herdeiros e do meeiro, capazes de impedir a venda. Não haverá prejuízo algum a quem quer que seja. Prejuízo existe, com a devida vênia a quem pensa diferente, ao se exigir o alvará judicial nessas situações, privando as partes de vender bens que já estão em sua esfera patrimonial, em razão do Princípio da Saisine (droit de saisine), consagrado pelo artigo 1.784 do Código Civil. Bastaria a devida autorização expressa concedida pelo cônjuge supérstite/meeiro acompanhado de todos os herdeiros e respectivos cônjuges - com exceção daqueles cujos casamentos foram realizados sob o regime da Separação de Bens - na própria escritura de nomeação de inventariante. Na prática, portanto, o inventariante devidamente nomeado e autorizado por todos os herdeiros/sucessores e seus cônjuges, bem como pelo meeiro, e que tenha prestado compromisso, sempre assistidos por advogado, em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, já estaria apto a requerer a lavratura e a representar o espólio na assinatura da competente Escritura Pública de Compra e Venda a ser outorgada ao comprador. A Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, nesse caso, contendo autorização/poderes especiais e expressos concedidos ao inventariante, substituiria o alvará judicial. Por que não? Defendemos essa "tese", pela primeira vez, em maio do corrente ano, em uma live com o amigo Davi Camboim, do @estudosnotariais, e, há algumas semanas, em outra live, dessa vez com o amigo João Massoneto, Tabelião Substituto do Tabelionato de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP. Mister se faz frisar, ainda, não se tratar de cessão de direitos hereditários, mas sim de verdadeira compra e venda de bens do espólio, com o devido recolhimento tributário e apta ao registro na Serventia Predial competente, na respectiva matrícula do imóvel. Um passo gigantesco nesse relevante e indispensável movimento de desjudicialização. Além disso, tal medida trará, seguramente, inúmeros benefícios à sociedade e ao Poder Judiciário, eis que capaz de formalizar com segurança algo que já acontece na prática, promovendo paz social e prevenindo o surgimento de litígios que certamente desembocariam na Justiça. Sabemos que inúmeros são os casos de venda de bens do espólio por instrumento particular e sem qualquer recolhimento tributário. Muitos, com a finalidade de evitar a ida ao Judiciário para pedir o alvará judicial e o tempo despendido, alienam o bem por contrato particular, sem a necessária segurança jurídica, comprometendo-se a transferir a escritura posteriormente, o que em muitos casos nunca acontece. Infelizmente, isso é mais comum do que se imagina. Assim, outro aspecto positivo é o de possibilitar o devido recolhimento do imposto de transmissão inter vivos, com a formalização do negócio jurídico através da competente Escritura Pública de Compra e Venda perante os tabelionatos de notas do país, representando grande benefício aos Fiscos Municipais. Não se pode olvidar, também, que nem sempre o espólio possui liquidez para custear as despesas advindas do Inventário, tais como, ITCMD, emolumentos notariais e registrais, honorários advocatícios e eventuais tributos capazes de impedir a realização pela via extrajudicial, sendo tal medida, a nosso ver, salutar e necessária. Lembre-se que, mesmo com a possibilidade de levantamento de valores em instituição bancária, permitida pela atual redação do artigo 11 da Resolução 35 do CNJ, nem sempre o espólio possui, em conta bancária, saldo suficiente a custear as despesas do inventário. Faz-se, portanto, imprescindível a venda de algum bem, com a finalidade de levantamento das quantias necessárias. Negar às partes esse direito é, data maxima venia, andar na contramão da desjudicialização, burocratizando-se algo que, com praticidade e segurança, poderia ser resolvido rapidamente e com menores custos na via extrajudicial. E, com relação a eventuais débitos, como ficaria a situação? Simples. Bastaria, a declaração de inexistência firmada por todos os herdeiros e meeiro, sob as penas da lei, corroborada pela apresentação de certidões negativas de débitos de protesto e do foro judicial do último domicílio do de cujus, bem como da competente certidão negativa da Central de Indisponibilidade de bens, esta última também com relação aos herdeiros e meeiro, além da apresentação da certidão de ônus reais com relação ao imóvel. Convém lembrar ainda que, com a atual redação dos artigos 54 e 55 da Lei 13.097/2015 a concentração dos atos na matrícula, fortaleceu a fé pública registral, onde privilegiou-se a segurança jurídica com a publicidade registral imobiliária. Além disso, visando trazer mais segurança, na própria escritura de nomeação de inventariante, além da necessária autorização e a adequada identificação do imóvel, poder-se-ia constar, caso essa seja a vontade das partes, o valor pelo qual desejam que o imóvel seja vendido. Trata-se, portanto, de alternativa de acesso à Justiça e de importante mecanismo de pacificação social, harmoniosa com o movimento de desjudicialização existente em nossa nação e com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, por sua rapidez, praticidade, segurança e eficácia. Mister se faz frisar, ainda, que tivemos, há alguns dias, a grata notícia de que fora publicado, no Estado do Rio de Janeiro, o provimento CGJ/RJ 77/222, de 17 de Outubro de 2022, que dispõe sobre a alienação, por escritura pública, de bens integrantes de acervo hereditário, independentemente de autorização judicial, o qual, em seu artigo 1º, assim dispõe: Art. 1º. O Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça - Parte Extrajudicial fica acrescido dos seguintes artigos: "Art. 308-A. É possível a alienação, por escritura pública, de bens integrantes do acervo hereditário, independentemente de autorização judicial, desde que dela conste e se comprove o pagamento, como parte do preço: I - da totalidade do imposto de transmissão causa mortis sobre a integralidade da herança, ressalvado o disposto no artigo 669, II, III e IV, do CPC; e II - do depósito prévio dos emolumentos devidos para a lavratura do inventário extrajudicial. § 1º. A alienação disciplinada neste artigo não poderá ser efetivada quando: I - tiver por objeto imóveis situados fora do Estado do Rio de Janeiro; II - o inventário não puder ser lavrado por escritura pública na via extrajudicial; e III - constar a indisponibilidade de bens quanto a algum dos herdeiros ou ao meeiro. § 2º. O espólio será representado por inventariante previamente nomeado em escritura declaratória, ou no próprio instrumento de alienação de bens integrantes do acervo hereditário. § 3º. Ao discriminar a forma de pagamento da parte do preço, o tabelião deverá consignar na escritura os elementos identificadores: I - de orçamento expedido por notário escolhido pelo interessado, a fazer parte integrante do ato, indicando: a) a relação dos bens do espólio que serão inventariados extrajudicialmente, incluindo o objeto da alienação; b) os dados bancários necessários ao depósito prévio dos emolumentos para a realização do inventário; c) a data de sua elaboração; d) advertência de que a não lavratura da escritura pública de inventário extrajudicial em até 90 (noventa) dias da ciência do depósito prévio importará ao alienante na perda dos emolumentos depositados pelo adquirente em favor do tabelião; II - da declaração de herança por escritura pública (HEP) e das guias para pagamento expedidas pelo órgão da Fazenda Estadual e documentos congêneres expedidos por órgãos competentes para o lançamento do imposto de transmissão causa mortis de outros entes da federação. § 4º. Caso não haja a antecipação do pagamento, será possível a alienação com cláusula resolutiva expressa de que parte do preço será pago pelo depósito prévio dos emolumentos para a lavratura do inventário, em até dez dias, e pela quitação do imposto de transmissão causa mortis da integralidade da herança. Vale muito a pena a leitura e o estudo, na íntegra, do diploma normativo. Trata-se de provimento de suma importância, a nosso ver, que tende a ter as suas disposições replicadas por outros Tribunais do país, haja vista os inúmeros benefícios da medida, como aqui já demonstrado. Permitir, assim, a realização de tal procedimento pela via administrativa, em tabelionato de notas, independentemente de autorização judicial, é, a nosso ver, medida que se impõe e alternativa inteligente e consonante com o clamor e o dinamismo social, bem como com o movimento de desjudicialização existente em nosso país, na medida em que promove paz social com efetividade, previne o surgimento de inúmeros litígios, ajuda o Poder Judiciário em sua importante missão de prestar jurisdição com efetividade àqueles que necessitam, possibilita o recolhimento dos tributos devidos, viabiliza a realização do inventário de forma extrajudicial e, atende, por sua celeridade e segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e à autonomia da vontade, ressaltando-se a obrigatória participação de advogado, assistindo as partes, no ato de autorização da venda (Escritura Pública de Nomeação de Inventariante). ______________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/377438/escritura-de-nomeacao-de-inventariante-e-a-venda-de-bens-do-espolio[1] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4503. Acesso em: 01/11/2022 2 Disponível em: http://vfkeducacao.com/portal/foi-publicado-o-provimento-cgj-rj-no-77-2022-que-dispoe-sobre-a-alienacao-por-escritura-publica-de-bens-integrantes-de-acervo-hereditario/ Acesso em: 25/10/202 ______________ *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, em Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário, com atuação, ainda, nas áreas de Direito Imobiliário e Contratual, Direito do Agronegócio e Direito Empresarial. Foi Tabelião Substituto de Serventia Extrajudicial, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país e em Revista Jurídica. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados, O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, Registro de Imóveis - Temas Aprofundados e O Registro Civil na Atualidade - A Importância dos Ofícios da Cidadania na Construção da Sociedade Atual, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.