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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Levando os emolumentos a sério

Emolumentos e os enunciados da I Jornada em Direito Notarial e Registral da CJF/STJ. Na célebre obra "Levando os direitos a sério", Ronald Dworkin procura desenvolver uma teoria do direito assentada nas melhores práticas morais de determinada sociedade. Com uma crítica ao positivismo, Dworkin buscou, em casos práticos e factíveis, a demonstração de que o direito não deve ser compatibilizado apenas com regras, mas, principalmente, como os princípios, que têm o poder de nortear a orientação e aplicação do direito1. Em conjunto, propõe uma teoria da justiça, segundo a qual todos os juízos a respeito de políticas públicas devem se basear na ideia de que todos os membros de uma comunidade são iguais enquanto seres humanos, independentemente das suas condições sociais e econômicas2, como John Rawls já havia teorizado com o "véu da ignorância"3. Esse princípio que fundamenta o estado democrático de direito leva em consideração a necessidade de aplicação de leis a todos os cidadãos, sem um estado de exceção4, no qual a lei varia ao sabor de quem julga e de acordo quem é julgado. Na democracia, respeita-se as leis, e todos são sujeitos de direitos postos na legislação5. Observa-se no país, em alguns juízos, um esforço para, em suas decisões, não haver pagamento pelo trabalho de notários e registradores, com dimensões que buscam ultrapassar a letra da própria legislação ou muitas vezes a ignorando6. O trabalho do notário e registrador depende essencialmente dessa remuneração para a viabilidade do serviço que não consome dos cofres públicos, ao contrário, o alimenta, já que boa parte do valor é revertido para o poder judiciário e outros7. Além disso, os emolumentos financiam os cartórios deficitários, que necessitam dos valores de compensação para sobreviver8. O esforço para o não pagamento dos emolumentos esbarra no nosso sistema na previsão de que somente a lei pode prever situação de isenções9, além da violação ao princípio da igualdade da Constituição10. Esse modelo vigente no país a partir do artigo 236 da Constituição é acertada, pois seleciona os melhores profissionais por concurso público (os chamados "delegatários"), os coloca responsáveis por erros, praticam atos privados na gestão da serventia e são fiscalizados pelo próprio poder judiciário. Os níveis de corrupção são baixíssimos, porque são facilmente identificados e punidos por um sistema que funciona. Não à toa que, novamente, em 2022, na pesquisa Datafolha de quais são as instituições do país com maior confiança da população, os cartórios aparecem em primeiro lugar11. Quando colocada a lente na problemática do uso indiscriminado das indisponibilidades de bens, da baixa gratuita de gravames ou de transferências de propriedade sem o seu pagamento, ou até mesmo da concessão indistinta gratuidades de justiça nos processos judiciais, sem ao menos o cumprimento ou observância dos requisitos legais, não se está levando o direito a sério. Não se está levando o Estado de Direito a sério. Dito isto, este texto traz três importantes enunciados que dizem respeito ao assunto e foram aprovados na I Jornada de Direito Notarial e Registral. Jornada e direitos dos delegatários em pauta. Nos dias 04 e 05 de agosto de 2022, ocorreu a I Jornada de Direito Notarial e Registral do Conselho da Justiça Federal, com o propósito de unir especialistas para a elaboração de enunciados com viés orientativo. Trata-se de doutrina qualificada, com a chancela do Superior Tribunal de Justiça. Os enunciados são enviados para uma Comissão de juízes e especialistas que poderão aprová-los, editá-los ou refutá-los. Os aprovados, em seu texto original ou modificado, vão a um Plenário, composto por todos que tiveram enunciados aprovados e pelos membros das Comissões. Somente com 2/3 de aprovação os Enunciados são ao fim aprovados pela Jornada12. Participamos da construção dos enunciados 31, 36 e 78 que tratam dos temas de emolumentos13. Passamos a apresentá-los. Enunciado nº 31: "A gratuidade da Central Nacional de Indisponibilidades, prevista no Provimento nº 39/14 do CNJ, refere-se ao uso da plataforma. Os atos de averbação e cancelamento são cobrados através dos emolumentos, exceto nas hipóteses legais de isenção". O texto esclarece os efeitos da gratuidade prevista no artigo 7º, parágrafo único, do provimento nº 39/2014 do CNJ, que regulamenta a Central Nacional de Indisponibilidades (CNIB). Art. 7º. A consulta ao banco de dados da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB será obrigatória para todos os notários e registradores do país, no desempenho regular de suas atividades e para a prática dos atos de ofício, nos termos da Lei e das normas específicas. Parágrafo único. Nenhum pagamento será devido por qualquer modalidade de utilização da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens - CNIB pelos registradores, tabeliães de notas, órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Apesar da previsão normativa ser clara ao tratar que a gratuidade diz respeito apenas à utilização da Central, diversos juízos ainda têm adotado entendimento equivocado sobre o tema, determinando a prática dos atos registrais de forma gratuita quando provenientes dos resultados obtidos por meio da CNIB, como base no "Convênio CNIB". O Provimento do CNJ nº 39/14, que dispõe sobre a instituição e funcionamento da - CNIB, prevê que o uso da plataforma é gratuito, mas não os atos praticados pelo Registrador. O juiz acessa e utiliza de forma gratuita o sistema disponibilizado pela CNIB, ordenando restrições e cancelamentos de maneira geral e indistinta. Mas para a prática do ato registral de cancelamento, a ser realizado nas matrículas dos imóveis de propriedade do executado, e em seu benefício, ou nos livros do Registro de Títulos e Documentos, o Registrador deve ser devidamente remunerado. Diante de interpretações equivocadas, o CNJ, ao ser instado a interpretar o referido artigo pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, já decidiu por unanimidade pela legalidade da cobrança dos emolumentos em virtude do cancelamento das indisponibilidades (Consulta nº 0002379-11.2018.2.00.0000). No voto, o Conselheiro Relator assinala: A controvérsia cinge-se sobre a possibilidade de cobrança de emolumentos pela averbação de ordens de indisponibilidades e respectivos levantamentos via CNIB. [...] A gratuidade a que se refere a norma diz respeito aos atos praticados necessários à alimentação e à consulta ao CNIB, não alcançando, por conseguinte, o ato praticado pelo serviço extrajudicial para dar cumprimento à decisão judicial. [...] Uma coisa é a alimentação da plataforma pelos seus operadores e outra são os atos praticados pelas partes envolvidas no que diz respeito averbação das ordens de indisponibilidades, isto é, a decisão judicial que determina a indisponibilidade de bens proferida pelo juízo competente e a averbação em si executada pela serventia extrajudicial. [...] Ante o exposto, entendo que a gratuidade conferida pelo parágrafo único do art. 7º do Provimento CNJ nº 39/2014 não alcança a cobrança de emolumentos pelas serventias de registro de imóveis ao averbarem as ordens de indisponibilidades e respectivos levantamentos comunicados por meio da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Portanto, o Enunciado deixa claro, mais uma vez, o direito do Registrador em ser remunerado pelos atos praticados em seus livros a partir da Central Nacional de Indisponibilidades.14 Enunciado nº 36: "Compete ao arrematante o pagamento dos emolumentos relativos aos cancelamentos dos ônus gravados na matrícula do imóvel quando do registro da carta de arrematação." Há dois tipos de emolumentos envolvendo o tema arrematação de imóveis. Cancelamento de gravames. Cancelamentos, como sinalizados, são atos de averbação em que incidem emolumentos ao Registrador (artigo 167, II da Lei Federal 6.015 combinada com as situações das leis estaduais). O cancelamento do gravame é despesa da própria execução (artigo 894 do CPC). Somente a lei pode trazer situações de gratuidade de emolumentos. E não haveria inclusive razoabilidade para a lei propor gratuidade em uma aquisição onerosa de um bem, por quem tem condição de pagar todos os atos praticados pelo cartório. Mesmo que o edital dispunha sobre o não pagamento dos emolumentos de cancelamento de gravames com o valor da arrematação, de maneira que sejam liberados para a prática do ato, é certo que o responsável pelo seu pagamento é o arrematante, pois, pelo princípio da continuidade (artigo 237 da Lei Federal 6.015), o registro do seu título aquisitivo depende do cancelamento dos gravames anteriores. É o beneficiário dos cancelamentos, pois o imóvel passa a ser seu, de sua titularidade. Este é o entendimento de diversos tribunais, citamos como exemplo o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: MANDADO DE SEGURANÇA. REGISTRO NOTARIAL IMOBILIÁRIO. LEVANTAMENTO DEGRAVAMES DO IMÓVEL LICITADO EM HASTA PÚBLICA. ORDEM JUDICIAL. INTERESSE PARTICULAR DO ARREMATANTE. DIREITO À PERCEPÇÃO DOS EMOLUMENTOS.CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE MOTIVO ENSEJADOR DEISENÇÃO DAS DESPESAS. APLICAÇÃO DO ARTIGO 789, PARÁGRAFO PRIMEIRO, DACLT. INOCORRÊNCIA. SEGURANÇA CONCEDIDA Cabe mandado de segurança de impetração do titular do cartório de registro de imóveis contra ato judicial que lhe determina levantamento de gravames registrados em matrícula de imóvel alienado em hasta pública, por impossibilidade de o impetrante, auxiliar e "longa manus" do juízo da execução, contra a ordem recorrer. O juiz tem o dever legal de fiscalizar a cobrança das custas e emolumentos, na exata medida em que a impetrante tem o direito (também legal) de perceber, no caso em análise, pagamento pelo serviço que executará. As exceções de tal obrigação devem vir expressas e delas extrai-se com maior incidência a gratuidade processual. Na expropriação, figura ator diverso às partes litigantes, o arrematante, que, ao aderir espontaneamente à licitação em hasta pública, atrai para si os ônus daí resultantes. O interesse em ver o imóvel livre das anotações de gravame e receber plenamente a propriedade imobiliária que resulta da arrematação é apenas do arrematante. Não se lhe aplica, pois, a regra contida no artigo 789,§ 1º, da CLT. Segurança concedida Registro da carta de arrematação. O segundo se refere ao emolumento devido pelo registro da carta de arrematação. O seu registro é do próprio custo da aquisição, tal qual o ITBI, que incide sobre aquisições por leilão15, e é pago pelo arrematante. Insere-se no rol do artigo 2º, II, b e seu §1º da Lei Federal de Emolumentos (Lei 10.169/2000). Ambos emolumentos são devidos imediatamente na prática do ato, pelos termos da lei federal 6.015 no seu artigo 206-A. O título, judicial, para ambos atos (cancelamento e registro) será a carta de arrematação, baixando-se os gravames e transferindo-se a propriedade. O Enunciado repete o entendimento que já é o do STJ. RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E IMOBILIÁRIO. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 282/STF. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS DE LEI FEDERAL. SÚMULA 328/STJ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. 1. ... 4. A Lei 6.015/73 prestigia o princípio da continuidade do registro como basilar para os serviços notariais e de registros imobiliários, delegados pelo Poder Público a particulares (CF, art. 236). Assim, a carta de arrematação do recorrente somente pode ser registrada após os cancelamentos dos anteriores registros de penhoras sobre o imóvel. Logo, o recorrente tem interesse não somente pelo registro da carta de arrematação, mas, também, pelos cancelamentos dos registros das penhoras. Prestado o serviço pelo cartório de imóveis, o ora recorrente deverá arcar com todos os custos inerentes. Dessa forma, fica rejeitada a apontada violação aos arts. 580, 581, 794, I, 890, §§ 1º e 2º, do CPC, porque o recorrente não está liberado do pagamento dos emolumentos referentes aos cancelamentos das anteriores penhoras que recaíram sobre o bem. 5.. (REsp n. 907.463/RN, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 5/11/2013, DJe de 18/9/2014.) Portanto, uma ordem judicial que determine a baixa gratuita de gravames e a transferência da propriedade sem o pagamento de emolumentos viola a lei de maneira gritante. Enunciado nº 78: "A gratuidade de justiça conferida a uma das partes do processo judicial não é extensível para outras partes não beneficiadas, para fins de pagamento de emolumentos extrajudiciais". O enunciado visa aclarar os efeitos da gratuidade de justiça no âmbito registral, sobretudo, no que se refere à sua extensão. A gratuidade de justiça, prevista no artigo 98 do Código de Processo Civil, consiste em benefício concedido à parte hipossuficiente da relação processual, possibilitando a realização de atos processuais sem o adiantamento das custas e demais gastos. A partir do Código de Processo Civil de 201516, a gratuidade foi estendida ao pagamento dos emolumentos, permitindo a prática de atos registrais em detrimento da parte beneficiária da gratuidade sem o adiantamento do valor devido17. Os efeitos da gratuidade se restringem apenas a parte que goza deste benefício, não abarcando os demais atores do processo. O artigo 99, § 6º do CPC expressamente estabelece que o benefício da gratuidade é pessoal, não se estendendo aos demais, salvo por meio de expresso requerimento e deferimento. No mesmo sentido o art. 10 da Lei Federal nº 1.060/195018. Mesmo com o claro texto legal e entendimento jurisprudencial no sentido do enunciado, muitas ordens, surpreendentemente, estendem ao executado/réu o direito de gratuidade de justiça conferido ao exequente/autor. Nesses autos, o benefício da parte hipossuficiente, acaba, surpreendentemente, na prática, beneficiando o executado que deu causa à ação e à execução, e que, muitas vezes, dificulta a recuperação dos créditos judiciais. É "premiado" o responsável pelo processo com a extensão ilícita da gratuidade do hipossuficiente. *** Os enunciados da I Jornada de Direito Notarial e Registral têm uma importância significativa para a pacificação de temas que interessam ao cidadão e ao operador do sistema extrajudicial. Mais que isso, os enunciados acima são fundamentais para a estabilidade do sistema, no reforço das previsões legais que identifica direitos, sujeitos e não prevê exceções, ou, pior, uma realidade de Exceção. A sua correta compreensão é um passo relevante para um sistema extrajudicial sadio. Que os direitos dos registradores e notários possam ser levados a sério. __________ 1 DORWIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Martins Fontes: São Paulo, 2007 2 CORRÊA LEITE, Taylisi de Souza. O Modelo de Regras de Ronald Dworkin. Disponível aqui. 3 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes: São Paulo 4 Para Andityas Soares de Moura Costa, Professor de filosofia do direito na UFMG, a expressão estado de exceção: designa  a  provisória suspensão da Constituição em sua inteireza ou em pontos de grande importância, como, por exemplo, os direitos e garantias fundamentais (...) Em sua obra Estado  de  Exceção, o filósofo italiano Giorgio Agamben demonstrou que a exceção autoritária não é uma espécie de negação do Estado Democrático de Direito. Ao contrário, a exceção habita dentro da democracia e do Estado de Direito, motivo pelo qual é mais correto falarmos em espaços de exceção. Tal percepção é preciosa porque nos permite refletir sobre nossas práticas político-jurídicas  cotidianas  para  nelas  descobrir  camadas  de  autoritarismo  que,  à primeira vista, parecem alheias e inexplicáveis. Somente uma leitura crítica de nossa vivência social pode evidenciar que, não obstante a perfeição e a beleza dos enunciados normativos da Constituição de 1988, nossa democracia se construiu tendo em vista uma tradição autoritária, a qual não desaparece da noite para o dia simplesmente porque mudamos nossas leis e governantes. Assim, uma das principais tarefas do pensamento crítico  consiste  em  denunciar  os  espaços  de  exceção  que  parasitam  o  cenário político-jurídico nacional. (pag.12) (Fonte: Vista do Estado de Exceção e Democracia no Brasil (ufmg.br) 5 O célebre jusfilósofo Javier Hervada, quando trata sobre o direito como justiça, diz que "o que constitui o dever jurídico ou dívida de justiça é exatamente a coisa que é direito. Isso é o que dever ser dado, nem mais nem menos: o justo" HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. Martins Fontes: São Paulo, 2008, p. 143. 6 Tomadas de decisão sem a observância do direito de todos os envolvidos não se compatibilizam com nosso estado democrático, que obriga a fundamentação de todos os atos decisórios sob pena de nulidade Nesse sentido, o artigo 11 do CPC: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". 7 O emolumento ("taxa cartorial") é o único mecanismo de remuneração da atividade notarial e registral, previsto no artigo 236 da Constituição Federal, que não depende de recursos públicos. É o que viabiliza o pagamento de todo o aparato físico da serventia (dos móveis, aparelhos ao local), contas de energia, água, papel, selos, de contratação de pessoal, tecnologia, seguros, contabilidade, jurídico, treinamentos contínuos e toda a sorte de obrigação legal. O valor ainda é transferido, a título de taxa de fiscalização, ao Tribunal de Justiça e demais beneficiários (Ministério Público, Defensoria Pública e outros, valores que podem chegar a 52% a depender do estado), pagos impostos (ISS e IRPF de 27,5%), para o que sobrar, ser a remuneração do oficial. 8 Como sabido, a remuneração dos cartórios superavitários é responsável pelo custeio dos cartórios deficitários, através dos fundos de compensação (Lei Federal 10.169/2000). 9 Vide a exemplo o julgado: RE 638026; Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI; Julgamento: 18/07/2014; Publicação: 01/08/2014 10 Celso Antônio Bandeira de Mello, na sua obra "conteúdo jurídico do princípio da igualdade (Malheiros, 2004), nos ensina que: o princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes (...). 11 O retrato não isenta as necessárias melhorias de simplificação de procedimentos na legislação e necessária acessibilidade digital à população, o que parece estar em curso com medidas como a lei 14.382 (lei do serviço eletrônico de registro público), o funcionamento e expansão das centrais eletrônicas, exemplificativamente. Ainda há desníveis significativos entre diferentes partes do país e uma expectativa de padronização dos serviços, já que cada delegação é independente. 12 Como exposto pelo Conselho da Justiça Federal: "As Jornadas de Direito buscam delinear posições interpretativas sobre as normas vigentes, adequando-as às inovações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, a partir do debate entre especialistas e professores, com a produção de enunciados a serem publicados e divulgados sob a responsabilidade do Centro de Estudos Judiciários e supervisão da Coordenação Científica". Disponível aqui. 13 O autor Bernardo Chezzi foi convidado como Especialista da Comissão de Registro de Imóveis, foi proponente e trabalhou no aperfeiçoamento junto com os demais especialistas daquele grupo de todos enunciados dessa atribuição. O autor Gabriel Souza teve enunciado selecionado pela Comissão, sendo convidado a participar da plenária. Os enunciados aprovados 31, 32 e 78 foram propostos pelos autores. 14 Vê-se que a opção do CNJ foi, para viabilizar a indisponibilidade via CNIB, que os atos de averbação da indisponibilidade fossem pagos junto com os de cancelamento, pelo interessado, na baixa desse gravame. Todavia, o correto, nos termos do artigo 206-A da 6.015, é que o requerente, quando pessoa sob o regime privado, pague pela averbação. O pagamento a posteriori é um dos motivos de banalização do instrumento de indisponibilidade para execução de dívida. Sobre isso, veja artigo Bernardo Chezzi publicado no Jornal Estado de São Paulo e no Portal Migalhas (https://www.migalhas.com.br/depeso/375112/o-uso-da-indisponibilidade-geral-de-bens-para-constricao-de-dividas) 15 STJ, REsp 1.803.169/SP; STJ, AREsp 1425219/SP; STF ARE 1322769-AgR; STJ AgInt no AgInt no AREsp 162.397/SP, dentre outros julgados. 16 Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido. 17 Nesse sentido, destacou João Pedro Lamana Paiva: A gratuidade da justiça sofreu alterações com impacto direto nas atividades notarial e registral, conforme art. 98 da moderna norma processual. A assistência judiciária gratuita, deferida pelo juiz, foi estendida aos emolumentos dos atos praticados por notários e registradores. (PAIVA, João Pedro Lamana. O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E SUAS REPERCUSSÕES NAS ATIVIDADES NOTARIAIS E REGISTRAIS. Revista de Direito Imobiliário, vol. 83/2017, p. 159/178, Jul - Dez / 2017). 18 Art. 10. São individuais e concedidos em cada caso ocorrente os benefícios de assistência judiciária, que se não transmitem ao cessionário de direito e se extinguem pela morte do beneficiário, podendo, entretanto, ser concedidos aos herdeiros que continuarem a demanda e que necessitarem de tais favores, na forma estabelecida nesta lei.
Em 22 de abril de 2022 o CNJ - Conselho Nacional de Justiça editou a resolução 452/221, que alterou o artigo 11 da resolução CNJ 35/07, para permitir que o(a) inventariante nomeado represente o espólio "na busca de informações bancárias e fiscais necessárias à conclusão de negócios essenciais para a realização do inventário e no levantamento de quantias para pagamento do imposto devido e dos emolumentos do inventário". Permitiu-se, dessa forma, a nomeação do inventariante em escritura pública anterior à partilha ou à adjudicação (Resolução CNJ 35, art. 11, §1º), prática que já era admitida por vários Tribunais do país, bem como o seu acesso a saldos e extratos bancários de contas do de cujus e o levantamento (saque) de quantias - eventualmente existentes - com a finalidade de efetuar o pagamento do devido imposto de transmissão (ITCMD) e os emolumentos notariais e registrais do Inventário Extrajudicial. Visou-se, com isso, resolver celeuma existente no cotidiano de quem labora com o Direito das Sucessões, consistente na ilegítima recusa de algumas poucas instituições bancárias em fornecer os necessários saldos e extratos aos herdeiros, sob a alegação de que se fazia necessária a apresentação de alvará judicial. Trata-se de medida necessária e aguardada pela comunidade jurídica e pela sociedade de modo geral, com vistas a viabilizar a realização/conclusão do Inventário Extrajudicial. E não poderia ser diferente, pois o Direito deve servir à sociedade, que clama por atos e procedimentos mais céleres e eficazes. Acreditamos, entretanto, que a alteração poderia ter sido ainda melhor se tivesse contemplado o pagamento de honorários advocatícios, mesmo que parciais, pois não há como se falar em realização de Inventário, Judicial ou Extrajudicial, sem a presença obrigatória de advogado. Essa é uma questão crucial! Da mesma forma, dever-se-á permitir o levantamento de valores eventualmente existentes em conta para o pagamento de eventuais débitos tributários existentes, a fim de se possibilitar a realização do inventário pela via administrativa, de maneira a se atender à resolução 35/07 do CNJ. Fica registrada, portanto, sugestão de alteração! Outra questão de grande relevância que defendemos há algum tempo, cerne deste artigo, é a inerente à venda de bens do espólio, independentemente de autorização judicial, nos casos em que as partes vierem a optar pela realização do Inventário de forma extrajudicial. A explicação seria a seguinte: O CPC, atualmente, em seu artigo 619, I, in verbis, exige alvará judicial para venda de bens do espólio: "Art. 619. Incumbe ainda ao inventariante, ouvidos os interessados e com autorização do juiz: I - alienar bens de qualquer espécie; [...]" Acontece que é um contrassenso exigir que as partes, capazes e concordes, que já optaram por promover o Inventário pela via extrajudicial, precisando alienar um ou mais bens, sejam obrigadas a se dirigir ao Poder Judiciário para requerer autorização judicial. Tal previsão vai de encontro ao importante movimento de desjudicialização existente em nosso país, o qual é, inclusive, contemplado em vários dispositivos do referido Codex, a exemplo do que prevê o artigo 610, §1º, que trata do Inventário Extrajudicial e de seu artigo 733, que dispõe sobre o divórcio, a separação, e a dissolução de união estável, consensuais, por escritura pública. Além disso, fere o Princípio da Autonomia da Vontade, bem como os Princípios da Intervenção Mínima do Estado e da Economia Procedimental, na medida em que retira das partes, capazes e concordes, no livre uso e gozo de suas capacidades civis, o poder de decisão/disposição e a possibilidade de venderem um ou mais bens, em momento de necessidade, obrigando-as a bater às portas do Judiciário para requerer algo que de forma simples poderia ser resolvido e evitado. Devemos lembrar que o artigo 619 do atual Código de Processo Civil replicou a regra do revogado artigo 992 do CPC de 1973, época em que ninguém sequer cogitava falar em Inventário Extrajudicial, carecendo da necessária alteração legislativa. Não há razão, portanto, de se exigir alvará judicial nesses casos, desde que inexistam débitos do espólio, dos herdeiros e do meeiro, capazes de impedir a venda. Não haverá prejuízo algum a quem quer que seja. Prejuízo existe, com a devida vênia a quem pensa diferente, ao se exigir o alvará judicial nessas situações, privando as partes de vender bens que já estão em sua esfera patrimonial, em razão do Princípio da Saisine (droit de saisine), consagrado pelo artigo 1.784 do Código Civil. Bastaria a devida autorização expressa concedida pelo cônjuge supérstite/meeiro acompanhado de todos os herdeiros e respectivos cônjuges - com exceção daqueles cujos casamentos foram realizados sob o regime da Separação de Bens - na própria escritura de nomeação de inventariante. Na prática, portanto, o inventariante devidamente nomeado e autorizado por todos os herdeiros/sucessores e seus cônjuges, bem como pelo meeiro, e que tenha prestado compromisso, sempre assistidos por advogado, em Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, já estaria apto a requerer a lavratura e a representar o espólio na assinatura da competente Escritura Pública de Compra e Venda a ser outorgada ao comprador. A Escritura Pública de Nomeação de Inventariante, nesse caso, contendo autorização/poderes especiais e expressos concedidos ao inventariante, substituiria o alvará judicial. Por que não? Defendemos essa "tese", pela primeira vez, em maio do corrente ano, em uma live com o amigo Davi Camboim, do @estudosnotariais, e, há algumas semanas, em outra live, dessa vez com o amigo João Massoneto, Tabelião Substituto do Tabelionato de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP. Mister se faz frisar, ainda, não se tratar de cessão de direitos hereditários, mas sim de verdadeira compra e venda de bens do espólio, com o devido recolhimento tributário e apta ao registro na Serventia Predial competente, na respectiva matrícula do imóvel. Um passo gigantesco nesse relevante e indispensável movimento de desjudicialização. Além disso, tal medida trará, seguramente, inúmeros benefícios à sociedade e ao Poder Judiciário, eis que capaz de formalizar com segurança algo que já acontece na prática, promovendo paz social e prevenindo o surgimento de litígios que certamente desembocariam na Justiça. Sabemos que inúmeros são os casos de venda de bens do espólio por instrumento particular e sem qualquer recolhimento tributário. Muitos, com a finalidade de evitar a ida ao Judiciário para pedir o alvará judicial e o tempo despendido, alienam o bem por contrato particular, sem a necessária segurança jurídica, comprometendo-se a transferir a escritura posteriormente, o que em muitos casos nunca acontece. Infelizmente, isso é mais comum do que se imagina. Assim, outro aspecto positivo é o de possibilitar o devido recolhimento do imposto de transmissão inter vivos, com a formalização do negócio jurídico através da competente Escritura Pública de Compra e Venda perante os tabelionatos de notas do país, representando grande benefício aos Fiscos Municipais. Não se pode olvidar, também, que nem sempre o espólio possui liquidez para custear as despesas advindas do Inventário, tais como, ITCMD, emolumentos notariais e registrais, honorários advocatícios e eventuais tributos capazes de impedir a realização pela via extrajudicial, sendo tal medida, a nosso ver, salutar e necessária. Lembre-se que, mesmo com a possibilidade de levantamento de valores em instituição bancária, permitida pela atual redação do artigo 11 da Resolução 35 do CNJ, nem sempre o espólio possui, em conta bancária, saldo suficiente a custear as despesas do inventário. Faz-se, portanto, imprescindível a venda de algum bem, com a finalidade de levantamento das quantias necessárias. Negar às partes esse direito é, data maxima venia, andar na contramão da desjudicialização, burocratizando-se algo que, com praticidade e segurança, poderia ser resolvido rapidamente e com menores custos na via extrajudicial. E, com relação a eventuais débitos, como ficaria a situação? Simples. Bastaria, a declaração de inexistência firmada por todos os herdeiros e meeiro, sob as penas da lei, corroborada pela apresentação de certidões negativas de débitos de protesto e do foro judicial do último domicílio do de cujus, bem como da competente certidão negativa da Central de Indisponibilidade de bens, esta última também com relação aos herdeiros e meeiro, além da apresentação da certidão de ônus reais com relação ao imóvel. Convém lembrar ainda que, com a atual redação dos artigos 54 e 55 da Lei 13.097/2015 a concentração dos atos na matrícula, fortaleceu a fé pública registral, onde privilegiou-se a segurança jurídica com a publicidade registral imobiliária. Além disso, visando trazer mais segurança, na própria escritura de nomeação de inventariante, além da necessária autorização e a adequada identificação do imóvel, poder-se-ia constar, caso essa seja a vontade das partes, o valor pelo qual desejam que o imóvel seja vendido. Trata-se, portanto, de alternativa de acesso à Justiça e de importante mecanismo de pacificação social, harmoniosa com o movimento de desjudicialização existente em nossa nação e com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, por sua rapidez, praticidade, segurança e eficácia. Mister se faz frisar, ainda, que tivemos, há alguns dias, a grata notícia de que fora publicado, no Estado do Rio de Janeiro, o provimento CGJ/RJ 77/222, de 17 de Outubro de 2022, que dispõe sobre a alienação, por escritura pública, de bens integrantes de acervo hereditário, independentemente de autorização judicial, o qual, em seu artigo 1º, assim dispõe: Art. 1º. O Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça - Parte Extrajudicial fica acrescido dos seguintes artigos: "Art. 308-A. É possível a alienação, por escritura pública, de bens integrantes do acervo hereditário, independentemente de autorização judicial, desde que dela conste e se comprove o pagamento, como parte do preço: I - da totalidade do imposto de transmissão causa mortis sobre a integralidade da herança, ressalvado o disposto no artigo 669, II, III e IV, do CPC; e II - do depósito prévio dos emolumentos devidos para a lavratura do inventário extrajudicial. § 1º. A alienação disciplinada neste artigo não poderá ser efetivada quando: I - tiver por objeto imóveis situados fora do Estado do Rio de Janeiro; II - o inventário não puder ser lavrado por escritura pública na via extrajudicial; e III - constar a indisponibilidade de bens quanto a algum dos herdeiros ou ao meeiro. § 2º. O espólio será representado por inventariante previamente nomeado em escritura declaratória, ou no próprio instrumento de alienação de bens integrantes do acervo hereditário. § 3º. Ao discriminar a forma de pagamento da parte do preço, o tabelião deverá consignar na escritura os elementos identificadores: I - de orçamento expedido por notário escolhido pelo interessado, a fazer parte integrante do ato, indicando: a) a relação dos bens do espólio que serão inventariados extrajudicialmente, incluindo o objeto da alienação; b) os dados bancários necessários ao depósito prévio dos emolumentos para a realização do inventário; c) a data de sua elaboração; d) advertência de que a não lavratura da escritura pública de inventário extrajudicial em até 90 (noventa) dias da ciência do depósito prévio importará ao alienante na perda dos emolumentos depositados pelo adquirente em favor do tabelião; II - da declaração de herança por escritura pública (HEP) e das guias para pagamento expedidas pelo órgão da Fazenda Estadual e documentos congêneres expedidos por órgãos competentes para o lançamento do imposto de transmissão causa mortis de outros entes da federação. § 4º. Caso não haja a antecipação do pagamento, será possível a alienação com cláusula resolutiva expressa de que parte do preço será pago pelo depósito prévio dos emolumentos para a lavratura do inventário, em até dez dias, e pela quitação do imposto de transmissão causa mortis da integralidade da herança. Vale muito a pena a leitura e o estudo, na íntegra, do diploma normativo. Trata-se de provimento de suma importância, a nosso ver, que tende a ter as suas disposições replicadas por outros Tribunais do país, haja vista os inúmeros benefícios da medida, como aqui já demonstrado. Permitir, assim, a realização de tal procedimento pela via administrativa, em tabelionato de notas, independentemente de autorização judicial, é, a nosso ver, medida que se impõe e alternativa inteligente e consonante com o clamor e o dinamismo social, bem como com o movimento de desjudicialização existente em nosso país, na medida em que promove paz social com efetividade, previne o surgimento de inúmeros litígios, ajuda o Poder Judiciário em sua importante missão de prestar jurisdição com efetividade àqueles que necessitam, possibilita o recolhimento dos tributos devidos, viabiliza a realização do inventário de forma extrajudicial e, atende, por sua celeridade e segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e à autonomia da vontade, ressaltando-se a obrigatória participação de advogado, assistindo as partes, no ato de autorização da venda (Escritura Pública de Nomeação de Inventariante). ______________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/377438/escritura-de-nomeacao-de-inventariante-e-a-venda-de-bens-do-espolio[1] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4503. Acesso em: 01/11/2022 2 Disponível em: http://vfkeducacao.com/portal/foi-publicado-o-provimento-cgj-rj-no-77-2022-que-dispoe-sobre-a-alienacao-por-escritura-publica-de-bens-integrantes-de-acervo-hereditario/ Acesso em: 25/10/202 ______________ *Anderson Nogueira Guedes é advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito Notarial e Registral, em Direito de Família e Sucessões e em Direito Tributário, com atuação, ainda, nas áreas de Direito Imobiliário e Contratual, Direito do Agronegócio e Direito Empresarial. Foi Tabelião Substituto de Serventia Extrajudicial, por mais de 15 anos. Palestrante. Membro Efetivo da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões e da Comissão de Estudos das Questões Jurídicas do Agronegócio, da OAB/MT. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em sites especializados em Direito Notarial e Registral do país e em Revista Jurídica. Coautor das obras: Tabelionato de Notas - Temas Aprofundados, O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívida - Os Cartórios de Protesto na Era dos Serviços Digitais, Registro de Imóveis - Temas Aprofundados e O Registro Civil na Atualidade - A Importância dos Ofícios da Cidadania na Construção da Sociedade Atual, publicados pela Editora Juspodivm, e da obra O Direito Notarial e Registral em Artigos Vol IV, publicado pela YK Editora. Aprovado em vários concursos públicos para ingresso na Atividade Notarial e Registral.
O escopo desse estudo reflexivo e intuitivo se consubstancia no levantamento de algumas perguntas práticas decorrentes da problemática apresentada e seus efeitos imediatos, notariais e registrais, perscruta assim contribuir com o Poder Judiciário Paulista e com as instâncias extrajudiciais na melhor intelecção desse fenômeno. Ademais, apresentamos reflexões desta celeuma, com a proposição de algumas possibilidades para uma nova proficuidade. O recente precedente do Conselho Superior da Magistratura na Apelação 1109321-12.2021.8.26.01001 estabeleceu que o acréscimo patrimonial, obtido de forma não onerosa, impõe a declaração e o recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e por Doação - ITCMD ou a comprovação da sua não incidência por declaração do órgão competente, obrigando o Oficial Registrador promover a fiscalização do pagamento desse imposto. No entanto, o voto vencido, de lavra do doutor Fernando Antonio Torres Garcia - Corregedor Geral da Justiça - demonstrou a melhor solução - com respeito e a máxima venia aos demais nobres julgadores, aos quais aproveitamos, inclusive, para renovar nossos protestos de elevada estima e distinta consideração. Pois bem, apresentamos a seguir algumas perguntas, baseadas em fundamentos jurídicos, para que os leitores possam perscrutar prévias reflexões práticas: Tendo em vista este último precedente e seu voto vencedor, seria cabível a orientação notarial para lavratura de duas compras e vendas recíprocas? Essa conclusão poderá levar os usuários a "mentir" ou modular a manifestação de vontade - simulação -, com intuito de economizar a "suposta e inexistente doação" dentro no negócio jurídico eminentemente oneroso? Como estabilizar os anseios subjetivos e a complexidade dos objetos imóveis em face da efêmera sociedade? Exemplo prático disso já foi demonstrado pela decisão da Doutora Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, da 1ª VRPSP - Processo: 1127941-72.2021.8.26.01002, na qual houve a permuta de um sítio em Tatuí por um apartamento, uma sala comercial e uma vaga dupla de garagem na Capital Paulista. O imóvel rural - com tamanho e estrutura de lazer limitado -, tem potencial de gerar mais custos para manutenção, ao passo que nos urbanos se presume um potencial de frutos civis - aluguéis- produzidos periodicamente. A seguir, ofertamos um trecho da decisão que explora a causalidade subjetiva inerente a permuta, além de uma análise tributária necessária: " .... De fato, para os contratantes, o valor intrínseco dos bens pode ser bastante variável, ganhando relevante valorização por questões personalíssimas de fundo emocional e afetivo ou tornando-se desinteressantes e até desprezíveis por alterações na condição de vida de cada um, como no caso da requerente que informa ter se mudado para Portugal, o que a impede de usufruir o imóvel rural, preferindo imóveis urbanos com a expectativa de retorno financeiro que não alcançaria com o sítio. É nesse contexto que, sob o aspecto das relações privadas, o preço dos bens envolvidos em um contrato de permuta pode não ser integrativo do negócio jurídico. Contudo, para efeitos tributários, a expressão econômica dos bens negociados é essencial para a fixação de uma base de cálculo objetiva, que não pode variar conforme a conveniência dos contratantes. No caso concreto, a parte recebeu imóveis cuja soma do valor venal totalizou R$ 1.196.011,00 e, na condição de contribuinte, calculou o ITBI recolhido tomando por base esse valor. Por outro lado, o sítio que entregou na permuta estava avaliado, para fins tributários, em R$830.666,00 conforme Declaração do ITR para o exercício de 2018, o que resulta em diferença de R$365.345,00, para a qual não houve compensação financeira. Não resta dúvida de que se tratou de negócio oneroso, ao menos em parte, pois, embora não tenha havido pagamento em dinheiro, houve troca de patrimônio com a entrega do imóvel rural. Portanto, é inquestionável a incidência do ITBI. Contudo, pode a permuta ser considerada um negócio complexo (parte oneroso e parte gratuito), ensejando a incidência simultânea e complementar de ITBI e de ITCMD? O acréscimo patrimonial auferido pela parte que recebeu imóveis de maior valor sem a correspondente compensação financeira pode caracterizar doação sujeita à incidência do ITCMD? Embora a tese da caracterização de doação tributável seja sedutora, uma análise sistemática indica que a resposta deve ser negativa, sobretudo pela bitributação que acarretaria. " 3. Seria possível a criação de uma dívida recíproca por instrumento particular (aparente simulação) para que ambos possam instrumentalizar uma dação em pagamento de forma mútua? Ou seja, afastar completamente o ato gratuito, não havendo possibilidade de controle como no mencionado acordão do Egrégio Conselho Superior Magistratura. Em outras palavras, as partes fomentarão instrumentos particulares para projetarem o programa obrigacional e a consequente formalização em dação em pagamento, acertando os aspectos contábeis da tributação por meio desses instrumentos, em um verdadeiro diálogo transacional. Ou ainda, simular uma permuta com torna estabelecendo determinado valor mínimo para subsunção da ratio decidendi da Apelação Cível: 1099753-06.2020.8.26.01003? Vale ressaltar que nesse precedente do CSM/SP foi afastado completamente o recolhimento do ITCMD conforme a ementa: "REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura pública de permuta de bens imóveis com valores distintos e torna. Negócio jurídico oneroso. ITBI recolhido. Inexistência de fato gerador do ITCMD. Exigência de comprovação do pagamento do imposto estadual afastada. Recurso provido para julgar improcedente a dúvida determinando o registro do título. " 4. Ainda sobre a pergunta anterior, qual é o limite da qualificação registral na escritura de dação em pagamento, notadamente no dispositivo notarial que menciona a origem da dívida? Essa resposta pode ser a bússola interpretativa para solução das permutas imobiliárias, devendo os notários, por meio da prudência notarial, desenvolverem dispositivos hermenêuticos de orientação e explicação para futura qualificação registral e de eventual fiscalização tributária, afastando por completo a gratuidade - animus donandi4 -, demonstrando uma causalidade específica para aquele negócio, em uma verdadeira operação de abstração jurídica. 5. É justo estabelecer o valor venal atribuído pelo Fisco como valor absoluto? Essa resposta por si só impede a solução que está sendo adotada no respeitável acordão. Caso analisado dentro de um mesmo município - imóveis permutantes-, é possível afirmar determinada isonomia, na medida em que os valores estabelecidos, seja venal ou de referência, coadunam com a mesma fórmula aritmética de elementos como: potencial construtivo, zoneamento, etc. Por outro lado, caso sejam imóveis de municípios diferentes, haverá uma patente injustiça. Dessa forma, como compatibilizar, por exemplo, o valor estimado de mercado ou do valor do IPTU da cidade de Pirassununga/SP com o valor venal de referência de Campinas/SP? As diferenças são exorbitantes, mas será que não é possível a permuta de uma casa de Pirassununga por outra de Campinas? Sem nenhum tipo de torna? Mesmo os valores venais totalmente diferentes? Além disso, há inúmeros precedentes do STJ que inviabilizam essa automática interpretação. Mesmo sendo precedentes repetitivos, devemos desconsiderá-los? 6. Há doação sem o animus donandi? Há novação sem animus novandi? Seria possível interpretarmos uma manifestação de vontade ou presumir uma vontade desse tipo? Para Antônio Junqueira de Azevedo, o animus donandi é um elemento categorial da natureza jurídica específica do tipo do negócio jurídico, posicionando como pressuposto existencial. Em outras palavras, aplicando-se regime de presunção que ocorreu uma doação, seria aplicado todo arquétipo inerente à doação, todos efeitos, como por exemplo antecipação da legítima, caso seja uma permuta entre genitores e filhos?  Como sabemos, o Código Civil Brasileiro não previu a causa como pressuposto de existência, muitos menos como requisito de validade dos negócios jurídicos. No entanto, caso lavre uma escritura de dação em pagamento e não conste a origem da dívida, certamente será qualificada de forma negativa pelo Registrador. Isso demonstra uma possível aplicação analógica, ainda que mitigada, de um negócio jurídico causal (causa como elemento estruturante), requerendo necessariamente uma análise fática preexistente para perfectibilização do ato notarial na tábua registral. Para Emilio Betti, os negócios distinguem-se em causais e abstratos, conforme a função econômico-social - causa - que os informa, seja ou não, manifesta e reconhecível pela sua estrutura, de modo que haverá influência direta ou indireta na irradiação do tratamento jurídico e dos seus efeitos. Para o referido autor, há negócios que revelam a causa de forma automática, implícita, em um verdadeiro exercício de abstração, não revelando uma necessidade individual e específica na satisfação do programa negocial. Neste sentido, a causa em determinados negócios tem relevância direta, diferente dos negócios abstratos, como o autor cita os cambiários, por exemplo. Nessa modalidade negocial há previsão legal de abstração e autonomia dos negócios genéticos. De outro bordo, há na permuta uma causa integrante da simbiótica relação jurídica, um desejo, a vontade de trocar um bem pelo outro, com objetivos subjetivos únicos e diferenciados, inerentes de cada negócio jurídico. Utilizando-se do arquétipo jurídico existente e a capacidade prudencial dos notários, defendemos a possibilidade da criação de um dispositivo de circunspecção notarial - irradiação prática dessa característica prudencial segundo São Tomás de Aquino5 - na escritura pública, muito similar ao dispositivo de origem da dívida constantes na dação em pagamento. Assim, poderá auxiliar a qualificação registral do Registrador para o afastamento total de eventual burla tributária ou ato volitivo de gratuidade. Outrossim, ressaltamos que é possível ainda praticar o ato registral e comunicar o Fisco competente para eventual fiscalização, caso seja necessária. Devemos sempre nos pautar nos precedentes consolidados, notadamente que não deve o Oficial Registrador verificar o quantum recolhido, apenas se houve ou não o pagamento, com exceção de flagrante irregularidade, devendo tal aferição ser atribuição exclusiva do ente fiscal. Por outro lado, o recente o PARECER PGFN/CRJ/COJUD SEI N° 8694/2021/ME (com precedentes do STJ) que resultou no Despacho PGFN nº 167, de 08 de abril de 20226, entalhou o seguinte: "...Contrato de permuta, sem parcela complementar. Resumo: O contrato de troca ou permuta não deve ser equiparado, na esfera tributária, ao contrato de compra e venda, pois não haverá, em regra, auferimento de receita, faturamento ou lucro na troca. O art. 533 do Código Civil apenas ressalta que as disposições legais referentes à compra e venda se aplicam, no que forem compatíveis, com a troca no âmbito civil, definindo suas regras gerais. Como corolário, não havendo comprovação documental em sentido contrário, nem parcela complementar, o valor do imóvel recebido nas operações de permuta com outro imóvel não deve ser considerado receita, faturamento, renda ou lucro para fins do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS apurados pelas empresas optantes pelo lucro presumido. Precedentes: REsp nº 1.733.560/SC, AgInt no REsp nº 1.758.483/SC, AgInt no REsp 1.796.877/SC, AgInt no AgInt no REsp nº 1.639.798/RS, AgInt no REsp 1.737.467/SC, AgInt no REsp 1.800.971/SC, AgInt no REsp nº REsp 1.868.026/PB, REsp nº 1.754.618/SC, REsp nº 1.798.211/RS, REsp nº 1.801.839/RS, REsp nº 1.850.377/SC, REsp nº 1.737.790/RS e REsp nº 1.738.667/SC. Data de início da vigência da dispensa: 08/04/2022. Referência: Parecer SEI nº 8.694/2021/ME."Encaminhe-se à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil para ciência, consoante sugerido. Outrossim, restitua-se à Procuradoria-Geral Adjunta de Consultoria e Estratégia da Representação Judicial para adoção das providências pertinentes, em especial, aquelas apontadas no item 15 do PARECER PGFN/CRJ/COJUD SEI N° 8694/2021/ME (SEI nº 16442676)."( grifo nosso)                Em outras palavras, a Procuradoria da Fazenda Nacional manifestou-se no sentido de não tributação da permuta como na compra e venda, demonstrando por si só, o reconhecimento de um negócio causal diferente da compra e venda.  Corrobora ainda nesse sentido, o Recurso Especial Repetitivo7 Nº 1.937.821 - SP (2020/0012079-1), sob relatoria do Ministro Gurgel de Faria, com fulcro no artigo 1.039 do Código de Processo Civil, na qual firmou as seguintes teses: "... a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU,que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 1488 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente."(grifo nosso) Em outros termos, como afastar a declaração dos contribuintes de forma direta sem a regular instauração do processo administrativo próprio? Ou pior, como presumir que a diferença se trata de doação com a consequente bitributação (ITBI e ITCMD). De acordo com o Ministro Gurgel de Faria: " verifica-se que a base de cálculo do ITBI é o valor venal em condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo, pode sofrer oscilações diante das peculiaridades de cada imóvel, do momento em que realizada a transação e da motivação dos negociantes". Vale enfatizar que o sistema não presume a má-fé dos contratantes, a presunção é pela boa-fé conforme disposto:  Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) V - correspondera qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)  De forma objetiva, a ideia é desenvolver uma nova interpretação partindo dessas premissas, ou ainda uma alteração lege ferenda nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, capítulo XVI - Do Tabelionato de Notas - para incluir uma recomendação na formalização da permuta, a descrição da finalidade e causa da troca do negócio jurídico, demonstrando circunspectivamente as vontades da relação contratual sem a necessária contraprestação, similar ao que acontece com a dação em pagamento, notadamente na obrigatoriedade de constar a origem da dívida no título notarial. Isto é, aplicar o mesmo raciocínio da dação em pagamento na permuta! Em arremate, mais uma vez em formato objetivo, concluímos: 1. Se não houver mudança nesse entendimento jurisprudencial, a comunidade jurídica elegerá outros meios para formalização desses negócios jurídicos, podendo inclusive impactar na diminuição de atos extrajudiciais, prejuízo ao erário e insegurança jurídica. 2. Valorização da arte notarial por meio da previdência, na medida em que os notários desenvolverão dispositivos hermenêuticos de orientação e explicação para futura qualificação registral e de eventual fiscalização tributária, afastando por completo a gratuidade, demonstrando uma causalidade específica para aquele negócio, em uma verdadeira operação de abstração jurídica. Dessa forma, o dispositivo de circunspecção notarial - irradiação prática dessa característica prudencial segundo São Tomás de Aquino - terá roupagem muito similar ao dispositivo de origem da dívida constante na dação em pagamento, amplamente consolidada nas instâncias extrajudiciais. 3. No tocante aos aspectos tributários, a premente necessidade de releitura da Jurisprudência Administrativa em face do Despacho PGFN nº 167, de 08 de abril de 2022, que encampado em inúmeros precedentes do STJ, afastou por completo a equiparação na esfera tributária do contrato de permuta com a compra e venda - decerto a doação - pois em regra não haverá auferimento de receita, nem parcela complementar, o valor do imóvel recebido nas operações de permuta com outro imóvel não deve ser considerado receita, faturamento, renda ou lucro para fins do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS apurados pelas empresas optantes pelo lucro presumido. Além disso, a citada decisão da Doutora Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, afora todos fundamentos, ressaltou sobre a bitributação e competência tributária em face da hipótese de incidência presente na permuta. Portanto, a ocorrência de eventual ganho de capital a ensejar renda tributável é matéria distinta, relativa a hipótese de incidência em concreto diverso e suscetível a legislação e fiscalização própria. 4. Não equiparar as questões de valor venal de imóveis de municípios diferentes na permuta, até porque, a formula de criação dos valores são diferentes, seja o valor de mercado, seja o valor atribuído unilateralmente pela municipalidade, são realidades e premissas diferentes (isonomia formal versus isonomia material). 5. Aplicação imediata do Precedente qualificado que consubstanciou no tema 1113 do STJ, na qual a Primeira Seção estabeleceu que base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, embora seja possível delimitar um valor médio dos imóveis no mercado, a avaliação de cada bem negociado pode sofrer oscilações positivas ou negativas, a depender de circunstâncias específicas. _________________ 1 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/permuta-sem-torna-acrescimo-de-patrimonio-itcmd-recolhimento-tributos-fiscalizacao.pdf Acesso em 05/11/2022 2 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/39683.pdfAcesso em 05/11/22 3 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/escritura-de-permuta-com-torna-valores-distintos-titulo-oneroso-itbi-itcmd-fato-gerador-ausencia.pdf acesso em 08/11/2022. 4 Conforme leciona Maria Celina Bodin de Moraes (2013): "Identifica-se, assim, mais propriamente, noanimus donandio motivo individual e contingente que impulsiona o doador, configurando-se comoo elemento psicológico, ou seja, a finalidade prática, a razão determinante para a conclusão do contrato, mas não para a sua qualificação. O motivo é o objetivo que faz com que o contratante realize o negócio. Normalmente, ele é irrelevante porque depende exclusivamente de questões internas do próprio contratante. Alguém pode querer doar  para  ser  reconhecido,  por estar  agradecido,  por  visar  a  um  interesse  ulterior:  não  importam  os  seus  motivos particulares.  Excepcionalmente, o  ordenamento  atribui-lhes  relevância  causal  como quando prevê que a remuneração e o casamento, expressos nas finalidades do contrato de doação, não permitem a sua revogação por ingratidão (Código Civil, art. 564).Exclui-se,  pois,  da  causa  do  negócio  a  referência  ao animus  donandi,  bem  como  se diferencia a gratuidade da ausência de sinalagmaticidade, correspondendo esta última, justamente,  ao  efeito  essencial  do  contrato.  Superada a  teoria  voluntarista  do animus donandi, o conceito de liberalidade, constante do art. 538 do Código Civil, deve assumir o  significado  de  finalidade,  típica  e  constante,  de  conferir  a  outrem  uma  vantagem patrimonial sem qualquer correspectivo." (grifo nosso) 5 Art7ºSe a circunspecção pode ser parte da prudência. -  No Tratado da Prudência, Tomás de Aquino:  "Solução: Da prudência é próprio, como dissemos, principalmente ordenar com acerto os meios para o fim. O que não se fará retamente, se o fim não for bom e não for também bom e conveniente o meio ordenado ao fim. Ora, a prudência versa como dissemos, sobre os atos particulares, em que concorrem muitas circunstâncias. Por isso, pode dar-se que um meio seja, em si mesmoconsiderado, bom e conveniente ao fim, que, contudo, por certas circunstâncias que nele concorrem, se torna mau ou não conducente ao fim.". (grifo nosso)  6 Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=123595 Acesso em 05/11/2022 7 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1113&cod_tema_final=1113 acesso em 08/11/2022    8 Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (BRASIL, 1966) (grifo nosso). _________________ BODIN  DE  MORAES,  Maria  Celina. Notas  sobre  a  promessa  de  doação. Civilistica.com.Rio  de  Janeiro, a. 2,  n.  3,  jul.-set./2013.  Disponível  em:  . Data de acesso. 08/11/2022 EMILIO BETTI, Teoria generale  Del negozio giuridico, Torino, UTET, 1952, 2a ed. EMILIO BETTI, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Trad. Servanda Editora, Campinas. SP: 2008. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Estudos e pareceres de direito privado. . São Paulo: Saraiva, 2004. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. . São Paulo: Saraiva.  2010. TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2001-2006, 11v.  
  Dando seguimento aos debates técnicos e práticos da nossa Oficina Notarial e Registral (Migalhas Notariais e Registrais), apresento-lhes um caso interessante de apresentação a registro de título consistente de certidão expedida pelo Registro de Títulos e Documentos de instrumento particular ali registrado. O assunto não é exatamente inédito. Há precedentes que apontam a uma orientação já pacificada no âmbito da justiça registral. O que chama a atenção, na verdade, é a viragem representada pela reforma da Lei de Registros Públicos pelo advento da lei 14.382/22. Como veremos mais à frente, o novo marco legal pode levar a uma rediscussão dos temas postos na dúvida suscitada, afinal julgada procedente, razão pela qual a veiculo por aqui. Vamos ao caso concreto. Tema da dúvida Foi-nos apresentado para registro um título consistente em certidão de RTD extraída de microfilme do contrato particular de compromisso de compra e venda datado do início da década de 90, expedida em 2021 pelo Oficial de RTD competente. O título foi devolvido por nota devolutiva contra a qual o interessado se insurgiu, reingressando com o requerimento de suscitação de dúvida, nos termos do art. 198 da lei 6.015, de 1973. Quais foram basicamente as razões de recusa? Os motivos impedientes para o acesso do título foram os seguintes: (a) certidão de RTD ou cópia reprográfica não são títulos hábeis para ingresso no fólio real e (b) o título é omisso quanto o estado civil do adquirente. A necessidade de determinação do sujeito de direito na aquisição de direitos parece extreme de dúvidas. A lei 6.015/1973 impõe, como requisito formal do registro (e, portanto, do próprio título que lhe sirva de base) a indicação da qualificação completa do promitente comprador (art. 176, § 1º, III, 2, "a"). Entretanto, só isto não basta; é necessário, também, sendo casado, que se indique o nome e a qualificação do cônjuge, bem como a indicação do regime de bens no casamento e se este se realizou antes ou depois da lei 6.515/77. Deverá ser sempre indicado o número do CPF (Instrução Normativa RFB 1.548, de 13/2/2015, art. 3º, II, "a" e "d"). Sempre será possível suprir tal exigência por aditamento ao título ou mediante a juntada de documentos pessoais (RG, CPF, certidão de casamento atualizada e, se for o caso, escritura de pacto antenupcial e certidão de seu registro, tudo no original ou em cópia autenticada). Parece não haver dúvidas a esse respeito. O tema central, e mais relevante, da dúvida, era outro. Vamos desde logo a ele. Título - via original A questão fulcral repousa no fato de que o interessado juntou certidão de RTD e cópia de promessa de compra e venda, conjunto que retraça uma sucessão desencadeada a partir da proprietária tabular. Ela teria prometido a venda do imóvel a determinado promitente comprador e este, por seu turno, o prometeu vender a terceiro. À parte a incorreção consistente na intitulação do instrumento como "promessa de compra e venda", superável com espeque no art. 112 do CC, atentando-se mais à intenção das partes do que ao sentido literal da linguagem, havia um obstáculo mais sério: como admitir a registro uma certidão de RTD que ostenta, segundo o interessado, o "mesmo valor probante que o original" (art. 217 do CC e art. 161 da LRP)? Tradicionalmente, sempre se entendeu que tais títulos não merecem o ingresso. Citemos uma decisão do Conselho Superior da Magistratura que indica várias outras que se orientaram no mesmo sentido: "No que respeita às certidões expedidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, a partir dos assentamentos mantidos como fruto de sua atividade, este Conselho Superior já firmou orientação no sentido de sua irregistrabilidade, vez que distingue-se o valor probante previsto no artigo 161 da Lei Federal n.6015/73 da forma específica reclamada para o ingresso dos títulos no registro predial e imposta, restritivamente, pelo artigo 221 do mesmo diploma legal (Apelações Cíveis 3.332-0, da Comarca de Guarujá; 3.522-0, da Comarca de Barueri; 6.391-0, da Comarca de Atibaia; 10.962-0/8, da Comarca da Capital; 14.797-0/3, da Comarca da Capital). A possibilidade de certidões serem admitidas como títulos registráveis se limita a sua extração de autos judiciais e, implicitamente, quando expedidas por notários, a partir de instrumentos por estes lavrados, não se incluindo, neste âmbito, as certidões emitidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, de atos praticados com base em instrumentos particulares, sob pena, inclusive, de se tornar letra morta o disposto no artigo 194 da Lei de Registros Públicos, que determina, ao registrador imobiliário, que, diante da recepção de um instrumento particular, promova seu arquivamento"1. Além disso, pode-se questionar: qual o valor probante das certidões extraídas do RTD? O Código Civil prevê no seu artigo 217 que terão "a mesma força probante os traslados e as certidões, extraídos por tabelião ou oficial de registro, de instrumentos ou documentos lançados em suas notas". Já a LRP prevê em seu artigo art. 161 que as "certidões do registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo". Paleologia registral O tema versado na dúvida é tradicional no direito pátrio. A validade e o valor probante dos instrumentos registrados em RTD foram objeto de acesa diatribe que envolveu os advogados no antigo Instituto da Ordem dos Advogados de S. Paulo. Na sessão plenária do dia 16/4/1929 foi a debates e discussões a tese proposta por LIMA PEREIRA e SPENCER VAMPRÉ acerca do valor probante das certidões expedidas pelo RTD. O Professor AZEVEDO MARQUES resolveria a questão adequadamente - e as suas lições atravessariam a noite dos tempos e nos chegariam com o mesmo vigor, atualidade e pertinência. Diz o lente das Arcadas que a "certidão extraída por oficial do Registro de Títulos e Documentos Particulares, de transcrição integral do documento, sendo impugnada, não contém, por si só, desacompanhada do original, valor probante algum"2. As objeções levantadas no começo do século passado foram acolhidas e hoje se acham assimiladas, malgrado o fato da redação dada ao art. 161 da LRP após o advento da lei 14.382/22. De fato, não se pode admitir a quebra do sistema de segurança jurídica do Registro de Imóveis com a admissão de títulos cuja validade, integridade e autenticidade não sejam previamente certificadas ou notarizadas, consoante a regra do inc. II do art. 221 da LRP3. Acerca da legitimidade das obrigações, fazemos nossas as advertências do mesmo Professor AZEVEDO MARQUES, que qualificaria de "monstruosidade" considerar, de modo absoluto, que a certidão expedida pelo RTD possa ostentar o mesmo valor probante que todo e qualquer original ali registrado: de outro modo resultaria que "qualquer documento falso, uma vez registrado, tornar-se-ia válido e provado!"4. CARVALHO SANTOS mais tarde defenderia a ideia de que as certidões extraídas dos instrumentos particulares registrados em RTD fazem a mesma prova que os originais, "vale dizer, [o mesmo valor probante] que esses livros". E conclui: "o valor probante que serve de paradigma, portanto, tem de ser o dos livros", jamais do título neles registrado5. Há uma confusão subjacente entre atribuições próprias de notários em contraste com registradores de RTD. Distinguindo as hipóteses, indaga o mesmo CARVALHO SANTOS: por que razão a certidão (ou o traslado) faz prova como o original? Responde-nos: "Precisamente porque pressupõe a lei que o original tenha sido feito pelo oficial público, cujos atos merecem inteira fé". E concluiu: a "certidão poderá merecer fé que houve o registo do documento, mas nunca que o documento é verdadeiro e para os devidos efeitos do registo é que a sua certidão não pode merecer fé"6. Justamente por essa razão, não sendo o título extraído das notas ou do processo judicial, o instrumento particular original deveria ser mantido no arquivo do Registro de Imóveis, nos termos da redação anterior do art. 194 da LRP, a fim de prover a fonte primária para eventual prova de autenticidade. Precedente da 1VRPSP Por dever de lealdade é preciso dar notícia de existência de precedente da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo que deferiu registro nas condições aqui debatidas. Trata-se do Processo 1106944-05.2020.8.26.01007, cujos fundamentos para julgamento da dúvida improcedente foram os seguintes: a) O art.161 da Lei de Registros Públicos revela que as certidões RTD "terão o mesmo valor probante dos originais, ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em juízo". Do mesmo jaez o item 44.1, Cap. XVIII, das NSCGJSP. b) O registro no RTD "é uma forma de garantir autenticidade, conservação, publicidade e segurança de um documento original, a fim de manter intacto o conteúdo do documento em caso de extravio, desgaste pelo tempo ou mesmo na ausência do original". c)  O documento "autenticado" pelo Oficial de RTD "equipara-se ao original para qualquer finalidade a que se destina, ainda mais se considerarmos que atualmente vigoram as certidões eletrônicas, em substituição aos papéis, o facilita o trânsito pela via digital, não sendo mais necessária a apresentação de papéis pelos usuários". São respeitáveis os argumentos que fundamentaram a R. decisão. Todavia, as peculiaridades do caso concreto - em que se busca o registro de promessas instrumentalizadas por certidão de RTD e cópia reprográfica - autorizam o questionamento e o reavivamento das questões decididas em isolado precedente. Além disso, a decisão do caso concreto não se revestiu de "caráter normativo", razão pela qual reitero os fundamentos jurídicos que se mantêm como razão de denegação de registro. Como vimos, o art. 161 da LRP não livra o título registrado de eventual invalidade por inautenticidade. A eficácia do registro em RTD não é saneadora. Não é adequado, sob pena de subverter o sistema de segurança jurídica preventiva, que se admita o registro de documentos que podem se revelar inquinados de vício de inautenticidade. Já nos alvores do século XX, o mesmo professor AZEVEDO MARQUES vislumbrava uma distinção essencial entre os documentos que eram registrados para mera perpetuação e aqueles que geram obrigações. Diz ele: "Há a distinguir duas espécies de documentos: os meramente graciosos, que se registram para serem conservados ou perpetuados (expressões sinônimas), e os que geram obrigações, os quais são registrados para marcar o início dos seus efeitos contra terceiros. As certidões destes últimos nada provam, senão a época, ou a data em que produzem efeitos contra terceiros, se 'apresentados em juízo os respectivos originais', forem contestados por terceiros. A certidão do registro, portanto, não supre o original, quando a sua apresentação for necessária por versar a controvérsia sobre o próprio original. Eis porque é desnecessária a formalidade complicada e prematura da conferência no ato do registro"8. O registro no RTD, tal e como conformado atualmente pelas recentes reformas, provaria unicamente a data do registro e eventual início de prova de sua existência e validade - nada que um bom sistema de blockchain não supriria com vantagens, inclusive econômicas. As declarações consubstanciadas em instrumentos particulares, desde que assinados, presumem-se verdadeiras em relação aos signatários (art. 219 do CC) e não dependem a priori da formalidade de registro no RTD. Diferentemente, a eficácia jurídica em face de terceiros dos instrumentos particulares que tenham por objeto um direito real se consuma com o seu registro no Registro de Imóveis. O art. 221 da LRP impõe o preenchimento de certos requisitos formais que o simples registro no RTD não supre. Enfim, o registro residual, feito no RTD, com as degradadas garantias formais, não se presta a mais do que assinalou a seu tempo AZEVEDO MARQUES - as certidões do RTD nada provam, "senão a época, ou a data em que produzem efeitos contra terceiros, se 'apresentados em juízo os respectivos originais'". Por outro lado, as certidões eletrônicas e os títulos apresentados ao Registro de Imóveis, assinados digitalmente, devem conformar-se ao disposto no § 2º do art. 5º da Lei 14.063, de 23/9/2020, que exige a utilização da chamada assinatura digital qualificada - aquela que utiliza o certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2, de 24/8/20019. Seja como for, o fundamento que permitiria o ingresso de títulos pela via eletrônica impõe a autenticidade dos firmantes e o preenchimento dos requisitos exigidos pela lei para aptificá-los à produção dos potentes efeitos que se alcançam com o registro público de direitos. Títulos em cópia reprográfica Por fim, resta enfrentar a questão remanescente que se relaciona com a promessa apresentada em cópia simples - a compromisso de compra e venda de 15/12/14, anexo. As cópias simples não ingressam no Registro de Imóveis. Brevitatis causa: "A cópia constitui mero documento e não instrumento formal previsto como idôneo a ter acesso ao registro e tendo em vista uma reavaliação qualificativa do título, vedado o saneamento intercorrente das deficiências da documentação apresentada"10. Julgamento da dúvida A dúvida por nós suscitada foi afinal julgada procedente. No julgamento, a MM. Juíza, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, observou que o art. 217 do Código Civil, o art. 161 da LRP e o item 44.1 do Capítulo XVIII da NSCGJSP "reconhecem a equivalência das certidões extraídas por Tabeliães ou Registradores com os documentos originais, mas apenas para o fim específico de prova, o que não os torna instrumentos hábeis ao ingresso no fólio real". E segue: "A possibilidade de certidões serem admitidas como títulos registráveis se limita a sua extração de autos judiciais e, implicitamente, quando expedidas por notários, a partir de instrumentos por estes lavrados, não se incluindo, neste âmbito, as certidões emitidas pelos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos, de atos praticados com base em instrumentos particulares, sob pena, inclusive, de se tornar letra morta o disposto no artigo 194 da Lei de Registros Públicos, que determina, ao registrador imobiliário, que, diante da recepção de um instrumento particular, promova seu arquivamento. De fato, a qualificação pelo registrador imobiliário, que envolve análise da higidez do documento, não pode prescindir do título original, acerca do que este juízo já emitiu entendimento (autos n. 1098944-89.2015.8.26.066311), tendo em vista a necessária segurança jurídica que norteia a sua atividade, notadamente quando se trata de certidão de instrumento particular (fls.), o que vale também para o contrato entregue em cópia simples, que se pretende registrar posteriormente (fls.). Acerca da necessidade de apresentação do original, este juízo já fixou entendimento (processo de autos 1098944-89.2015.8.26.0663), destacando a farta jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura (Apelações Cíveis 33.624-0/412, 94.033-0/313, 278-6/014, 38.411-0/915, 77.181-0/316 e 516-6/717, por exemplo)18. Posteriormente, em recurso de apelação, o CSMSP acabou por não conhecer da dúvida pela ocorrência de impugnação parcial, sem cumprimento tempestivo da exigência remanescente, o que impôs o não conhecimento do recurso19. Lei 14.382/22 O tema ainda haverá de ser revolvido pelas recentes alterações perpetradas na lei 6.015/73, algumas criticáveis, outras importantes e necessárias. Os instrumentos particulares são agora uma espécie de corpo extravagante no sistema da LRP. O art. 194, reformado pela recente lei 14.382/22, indica que os "títulos físicos", depois de digitalizados, serão devolvidos às partes, mantido o seu representante digital em repositórios da Serventia20. Somente os representantes digitais dos "títulos físicos" serão mantidos, os demais, não - físicos, natodigitais ou digitalizados21. A prova ou perícia (art. 23 da LRP), na hipótese de ocorrência de arguição de falsidade, se dará com base no representante digital, não no original devolvido à parte. O Oficial do Registro de Imóveis, por seu turno, dará fé, por certidão, do representante digital, não do documento em si, que foi dispensado (art. 18 da LRP). E voltamos à velha questão do registro em RTD - agora na perspectiva do RI: válido e autêntico, para todos os efeitos, será o registro, portado por certidão extraída do representante digital, não do título em si mesmo considerado. Ou como disse CARVALHO SANTOS, acima citado: "o valor probante que serve de paradigma, portanto, tem de ser o dos livros", jamais do título registrado. A defectiva redação do art. 194 foi criticada nos estudos sobre gestão documental do Registro de Imóveis22. Importante ressaltar, aqui, alguns poucos aspectos relevantes. Destaque-se que os registros feitos no RTD agora não exigem mais do que simples autenticação pelo apresentante do título. O RTD foi pouco a pouco reconformado a mero sistema de arquivamento digital de documentos, com a progressiva supressão de requisitos formais - como reconhecimento de firmas e a comprovação de autenticidade e integridade dos documentos que lhe são submetidos a registro (artigos 127 e 129 da LRP). A responsabilidade pela autenticidade caberá, agora, "exclusivamente ao apresentante" (§2º do art. 130 da LRP, na redação dada pelo novo diploma legal, ainda na vacatio), in verbis: "§ 2º O registro de títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, cabendo exclusivamente ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular". O privado inesperadamente foi investido de um mister jurídico de afiançar, sob sua responsabilidade, a autenticidade de documentos particulares submetidos a registro, suprimindo-se a notarização pela via do reconhecimento de firmas. Já vimos o engenheiro que virou suco23, agora nos defrontamos com o privado investido de superpoderes e responsabilidades autenticatórios, uma espécie de notário ad hoc. Desenha-se no cenário pátrio situações tragicômicas ocorrentes em outros meridianos24. Ora, se antes já se negava o acesso ao RI de certidões de RTD extraídas de instrumentos particulares que se quer convertidas em títulos em sentido próprio (inc. II do art. 221 da LRP), pelos bons fundamentos que se colhem nos precedentes citados, agora, com muito mais razão, deve-se obstar o seu acesso no Registro de Imóveis. Com esta malsinada reforma agravou-se o quadro de incidentes de falsidade de documentos privados. Nos termos do art. 428 do CPC, cessa a fé do documento particular "quando for impugnada a sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade". Nota bene: a simples impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento particular. E isto por uma singela razão: tais títulos não gozam de fé pública, competência que só aos notários se reconhece e que vai impressa em todos os seus atos (inc. I do art. 411 do CPC cc. art. 3º da lei 8.935/1994). Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a "impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor"25. Desenha-se uma perfeita anomalia no sistema de registro de direitos, vale dizer: dos chamados registros de segurança jurídica preventiva. Ao admitirmos o acesso de instrumentos particulares ao Registro, "autenticado" sob responsabilidade de meros privados - apresentante a quem a lei atribuiu a "responsabilidade pela autenticidade das assinaturas constantes em documento particular" - admitimos que os registros jurídicos passaram a equivaler a qualquer birô privado de arquivamento de papeis e documentos, sejam eles físicos, natodigitais, digitalizados ou não, cuja validade, autenticidade e eficácia estarão sempre na dependência de ulterior reconhecimento judicial quando ocorrente a hipótese de instauração de querela di falso. Os tribunais inclinam-se à tese de que cessaria a fé do documento particular quando impugnada sua autenticidade e enquanto não se comprovar sua veracidade26. O fenômeno aqui discutido acaba por desconstituir a eficácia probatória (= deixam de provar), cabendo à parte que produziu o documento o ônus da prova de autenticidade e validade (inc. II do art. 429 do CPC). Nos documentos oriundos do financiamento imobiliário ou nos casos dos contratos de incorporações imobiliárias - em que as cláusulas são predispostas pelo agente financeiro ou pelo incorporador - avultam os riscos e os cuidados que o sistema deve ter para garantir a segurança dos consumidores27. Enfim, o RTD, no passado um bom sistema de prevenção de conflitos e litígios, passa a figurar no rol dos sistemas de meros registros administrativos28, cuja validade e eficácia busca o apoio na contraparte de certeza e higidez ocorrentes em proclamações judiciais, em que se estabilizam e sacramentam as relações jurídicas ex post. Está em causa a instituição de sistemas registrais de tutela forte ou fraca, como preleciona MÓNICA JARDIM29. O sistema brasileiro paulatinamente movimenta-se para o segundo caso, talvez por conta de uma certa racionalidade econômica ou tecnológica não provada. Adiro às conclusões da r. decisão. De fato, os defeitos congênitos que eventualmente possam inquinar os instrumentos particulares não podem ultrapassar as barreiras formais (inc. II do art. 221 da LRP) e contaminar o Registro de Imóveis. Com a nova lei, adentramos os átrios de um admirável mundo novo das novas tecnologias a nos impor um novo paradigma. Como disse alhures, "mudam os ventos, mas as velhas árvores resistem". ___________ 1 Ap. Civ. 65.430-0/8, São Paulo, j. 23/12/1999, DJ 3/2/2000, rel. des. Sérgio Augusto Nigro Conceição. Acesso: http://kollsys.org/11w. Adite-se para indicar que o art. 194 da LRP acaba de ser reformado pela Lei 14.382/2022 que dispôs que somente os "títulos físicos" serão digitalizados e devolvidos aos apresentantes, mantidos exclusivamente em arquivo digital. 2 RT 70/297, maio de 1929. 3 A propósito, indico as seguintes considerações: JACOMINO. Sérgio. MP 1.085/2021 - O vinho e a água chilra. Migalhas Notariais e Registrais. Acesso: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/362724/mp-1-085-21--o-vinho-e-a-agua-chilra. 4 Idem, ibidem. 5 CARVALHO SANTOS. J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado. Vol. III, 14ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991, p. 190 e 191, passim. 6 CARVALHO SANTOS. J. M. Op. cit. p. 190. No mesmo sentido: SERPA LOPES. M. M. de. Tratado. Vol. II, 4ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 113. 7 Processo 1106944-05.2020.8.26.0100, j. 13/1/2021, DJ 15/1/2021, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://kollsys.org/pto. 8 Idem, ibidem nota 2. 9 Mesmo após o advento da Lei 14.382/2022, seguimos sustentando que para a prática de atos de registro imobiliário é necessária a assinatura digital qualificada. CAMPOS. Ricardo. JACOMINO. Sérgio.  Assinaturas Eletrônicas. Notas e Registros Públicos: implicações da Lei 13.482/2022 e o Valor Probatório no Sistema Legal Brasileiro. No prelo. 10 Ap. Civ. 33.624-0/4, Ribeirão Preto, j. 12/9/1996, rel. des. Márcio Martins Bonilha. No v. aresto há citação de inúmeros precedentes. Acesso: http://kollsys.org/dc. 11 Processo 1098944-89.2015.8.26.0100, , j. 26/10/2015, Dje 29/10/2015, Dra. Tânia Mara Ahualli. Acesso: http://kollsys.org/ies. 12 Ap. Civ. 33.624-0/4, Ribeirão Preto, j. 12/9/1996, DJ 21/11/1996, Rel. Des. Márcio Martins Bonilha. Acesso: http://kollsys.org/dc. 13 Ap. Civ. 94.033-0/3, São Paulo, j. 13/9/2002, DJ 13/11/2002, Rel. Des. Luiz Tâmbara. Acesso: http://kollsys.org/cci. 14 Ap. Civ. 278-6/0, Santos, j. 20/1/2005, DJ 11/3/2005, Rel. Des. José Mário Antonio Cardinale. Acesso: http://kollsys.org/70x. 15 Ap. Civ. 38.411-0/9, São Vicente, j. 7/4/1997, DJ 9/5/1997, Rel. Des. Márcio Martins Bonilha. Acesso: http://kollsys.org/jj. 16 Ap. Civ. 77.181-0/3, São Paulo, j. 8/3/2001, DJ 3/4/2001, Rel. Des. Luís de Macedo. Acesso: http://kollsys.org/8e5. 17 Ap. Civ. 516-6/7, Novo Horizonte, j. 18/5/2006, DJ 12/7/2006, Rel. Des. Gilberto Passos de Freitas. Acesso: http://kollsys.org/8q5 18 Processo 1095809-59.2021.8.26.0100, j. 28/10/2021, Dje 28/10/2021, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso: http://kollsys.org/s5z. 19 Ap. Civ. 1095809-59.2021.8.26.0100, São Paulo, j. 1/9/2022, Dje 26/10/2022, rel. Des. Fernando Antônio Torres Garcia. Acesso: http://kollsys.org/s59. 20 Não há qualquer especificação acerca dos repositórios digitais das Serventias. V. nota 22, abaixo. Sobre os representantes digitais, v. definição em Organização de Representantes Digitais no Arquivo Nacional - Manual De Procedimentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2021, p. 9, n. 12. 21 Um efeito colateral, provavelmente não antevisto, é que o sistema imperfeito acaba por fortalecer a fé pública registral, admitindo-se que os títulos digitalizados (ou natodigitais) não remanescerão na Serventia, bastando, apenas, uma presunção que decorre do próprio ato de registro. 22 JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no registro de imóveis. A reforma da LRP pela Lei 14.382/2022. RDI 93, ago./dez. 2022, no prelo.   23 CAFARDO. Renata in O Estado de São Paulo, ed. 27/7/2008. A jornalista conta a curiosa história do engenheiro desempregado que virou dono de lanchonete e símbolo de um período difícil. 24 V. JACOMINO. Sérgio. Tio Sam e a fé pública in Observatório do Registro, 5/12/2008. Acesso: https://wp.me/p6rdW-5R. V. também: JACOMINO. Sérgio.  Hipotecas podres, King Kong, notários e registradores. In Observatório do Registro, 5/12/2008. https://wp.me/p6YdB6-aC. 25 ARENHART. Sérgio Cruz. Breves Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo: RT, 2015, p.1.087. 26 V. RESP 1846649/MA, j. 24/11/2021, DJE 9/12/2021, rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE. No REsp 1.313.866/MG, j. 15/06/2021, DJe 22/6/2021, Rel. Ministro MARCO BUZZI, colhe-se: "a fé do documento particular cessa com a contestação do pretenso assinante consoante disposto no artigo 388 do CPC/73, atual artigo 428 do NCPC, e, por isso, a eficácia probatória não se manifestará enquanto não for comprovada a fidedignidade". 27 "Será correto o maior interessado - a raposa - guardar o conteúdo, a integridade e legalidade do contrato?" - pergunta-nos CLÁUDIA LIMA MARQUES e BRUNO MIRAGEM no artigo A raposa e o galinheiro: a MP 1.085/2021 e os riscos ao consumidor. Acesso:https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-raposa-e-o-galinheiro-a-mp-1-085-2021-e-os-riscos-ao-consumidor/ 28 V. JACOMINO, Sérgio. op. cit. nota 3, especialmente o sumidouro registral e a ineficiência do sistema. 29 JARDIM. Mónica. Os Sistemas Registrais e a sua Diversidade, Revista Argumentum. v. 21, n. 1, jan.-abr./2020. Vide também OLIVEIRA. Carlos Eduardo Elias de. Sistemas de registros públicos na visão da professora Mónica Jardim: breves notas e reflexões sobre o modelo brasileiro. 25/8/2021, Migalhas. Acesso: : https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/350651/sistemas-de-registros-publicos-na-visao-da-professora-monica-jardim.
1. Resumo Antes de começamos o artigo, antecipamos um resumo das suas conclusões em forma de tópicos: 1. Havendo ação cobrando a dívida, o depósito, pelo devedor, em juízo para fins de garantia ou a penhora da coisa não afasta os encargos moratórios por falta de fundamento legal. Os rendimentos da conta judicial, porém, devem ser considerados como antecipação de parte desses encargos moratórios, resguardado o direito à cobrança do excedente. 2. Não é, pois, aplicável a essa hipótese o art. 335, V, do CC, que autoriza a consignação em pagamento quando o objeto da obrigação for litigioso. A bem da verdade, o entendimento do STJ, com sua inevitável amplificação nos termos deste artigo, esvaziou a aplicação prática do inciso V do art. 335 do CC. 2. Caso o devedor queira afastar os encargos moratórios, cabe-lhe extinguir a obrigação por meio do pagamento (pagamento direto). 3. Esse pagamento pode ocorrer: (a) entrega da coisa devida diretamente ao credor; (b) depósito, em juízo, para fins de pagamento; (c) autorizar o credor a levantar a quantia depositada em juízo. 3. Em relação às duas últimas maneiras - que envolvem pendência de ação judicial de cobrança da dívida -, entendemos que, a partir da data de protocolo da petição autorizando o levantamento da quantia pelo credor, já há o pagamento (pagamento direto) a extinguir a obrigação. 4. Caso o devedor pretenda discutir o cabimento da dívida (o an debeatur ou o quantum debeatur), é preciso tomar cuidado: em já havendo ação judicial em curso cobrando a dívida, o pagamento deve ser feito "com ressalvas" explícitas, sob pena de possível preclusão lógica. 5. Se o devedor pagar a dívida ou depositar a coisa em juízo (seja para fins de pagamento, seja para fins de garantia) e se, posteriormente, vencer demanda judicial impugnando o an debeatur ou o quantum debeatur, entendemos que caberá à outra parte pagar os encargos moratórios a título de indenização mínima (art. 302, CPC). A exceção dá-se se a coisa tiver sido depositada em juízo para fins de garantia sem qualquer pedido ou provocação do credor. 5. O STJ entendia que era viável o afastamento da mora no caso de propositura de ação revisional de contratos, desde que o devedor tenha depositado o valor incontroverso e haja plausibilidade jurídico do pleito. Doravante, deve-se firmar que o entendimento acima não afasta o direito do credor a cobrar os encargos moratórios no caso de malogro do devedor na ação revisional. Se o devedor perder o pleito revisional, terá de pagar os valores controvertidos atrasados, com acréscimos de todos os encargos moratórios, deduzidos os rendimentos da conta judicial. Na prática, o entendimento acima servirá apenas para inibir que, na pendência da ação, o credor possa valer-se de medidas de índole coercitiva ou executiva, como negativação do nome do devedor em cadastro de inadimplentes, busca e apreensão, reintegração de posse etc. 6. Recomendação informal e prática: se o leitor for questionar judicialmente a dívida, a recomendação é depositar o valor integral da dívida, externando que a finalidade é de pagamento "com ressalvas", ou seja, ressalvando o direito à repetição de indébito no caso de vitória na impugnação judicial do crédito. No caso de penhora do valor, a recomendação é que o leitor peticione autorizando o levantamento da quantia pelo credor, ressalvando, porém, o direito à repetição de indébito no caso de vitória na insurreição. Com isso, o leitor não sofrerá a surpresa de, após anos de judicialização, ter de pagar encargos moratórios atrasados. Essa recomendação, porém, não deve ser seguida se: (1) o leitor verificar que há sério risco de a outra parte "dar um calote" na hora de devolver o valor ao final da ação; e (2) o valor estimado dos encargos moratórios for irrelevante dentro das circunstâncias do caso concreto. Nessas hipóteses, é melhor que o leitor sequer faça o depósito em juízo do valor, nem mesmo para fins de garantia. É economicamente mais vantajoso deixar esse valor em alguma aplicação financeira pessoal, que certamente renderá mais do que os tímidos rendimentos das contas judiciais. 7. Sugestão de mudanças do Poder Judiciário: é conveniente que o Poder Judiciário reveja os convênios mantidos com bancos que mantêm contas judiciais vinculadas. O ideal é que esses convênios prevejam o direito da parte que depositou o valor em juízo em direcionar o valor da conta judicial a alguma aplicação financeira segura (de "renda fixa"), como títulos da dívida pública, Letras de Crédito Imobiliária (LCI) ou Letras de Crédito Agrária (LCA). Em outras palavras, os valores custodiados judicialmente, a critério de quem o depositou, devem ser submetidos a aplicações que um investidor "comum e conservador" (homo medius) deixa. Não há motivos para o valor ficar sendo derretido em uma conta judicial de rendimentos absolutamente atrofiados. Isso também vale para valores penhorados ou bloqueados judicialmente. 2. Introdução Um tema de interesse de todos os juristas é saber como estancar os encargos moratórios (juros moratórios, correção monetária e multa) no caso de controvérsia sobre a existência da dívida (an debeatur) e o seu valor (quantum debeatur). A questão parece-nos ter assumido novos ventos após a recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 1.820.963/SP no dia 19 de outubro de 2022. O acórdão ainda está pendente de publicação, mas a sessão de julgamento está disponível no YouTube1. Neste artigo, erguemos reflexões preliminares com base na sessão de julgamento que acompanhamos, sem prejuízo de novas reflexões após a publicação oficial do acórdão. A questão interessa não apenas a advogados, magistrados e outros profissionais que atuam diretamente em litígios judiciais, mas também de tabeliães de notas e de tabeliães de protestos (por lidarem quotidianamente com as obrigações). A resposta costumava ser a consignação em pagamento, que consiste no depósito da quantia em juízo ou em outro meio legal. O corriqueiro é que essa consignação em pagamento seja feita de forma incidental a um processo judicial em que se controverte a dívida. O advogado deposita o valor em juízo, a quantia fica rendendo em uma conta judicial e, ao final da ação, o montante final (com os rendimentos) seja "sacado" ("levantado") por quem venceu a demanda judicial mediante um alvará de levantamento expedido pelo juiz. O grande problema é definir se esse depósito em juízo faz cessar ou não a incidência dos encargos moratórios. Há inegável interesse financeiro do credor nesse tema. Imagine que um devedor esteja em mora no pagamento do valor de 10 milhões de reais. Por esse atraso, incidem, a título de encargos moratórios, juros moratórios de 1% a.m. e correção monetária de 0,5% a.m. Veja que, a cada mês de atraso, a dívida "engorda" 1,5% a.m. No primeiro mês, a dívida aumentará em R$ 150 mil. No segundo mês, subirá mais R$ 152,25 mil. Perceba o quão expressivo é o valor acrescido a título de encargos moratórios nesse exemplo. Imagine que o devedor entenda que a dívida é indevida por algum motivo (ex.: nulidade de um contrato). O credor, porém, está a cobrar a dívida. Há, pois, controvérsia sobre o cabimento da dívida. Indaga-se: o que o devedor poderá fazer para "estancar" a copiosa sangria de encargos moratórios enquanto se discute judicialmente se a dívida é ou não devida? A praxe era, no caso acima, o devedor depositar o valor em juízo (os 10 milhões de reais) incidentalmente à demanda judicial em que se discute o cabimento da dívida (ação de cobrança, ação de nulidade do contrato, ação de inexigibilidade da dívida, embargos do devedor, impugnação ao cumprimento de sentença etc). Ao final da demanda, o dinheiro depositado em juízo, com os rendimentos da conta judicial, seria levantado pelo vencedor. Assim, se a dívida for judicialmente tida por indevida, o devedor poderia levantar o dinheiro de volta, com os rendimentos da conta judicial. Caso, porém, a dívida seja tida por devida, o credor poderá levantar a quantia depositada com os rendimentos da conta judicial. Acontece que o rendimento da conta judicial costuma ser inferior ao dos encargos moratórios. Indaga-se: pode-se cobrar a diferença? No exemplo acima, os encargos moratórios estavam a render cerca de R$ 150 mil mensalmente. Suponha que o rendimento da conta judicial tenha sido apenas de R$ 100 mil mensais. Pergunta-se: pode-se cobrar os R$ 50 mil de diferença ao final da demanda? Até o supracitado julgado do STJ, não havia essa cobrança da diferença, seja pelo relativo consenso dos profissionais do Direito, seja pela forte inclinação jurisprudencial em considerar que o depósito em juízo no exemplo acima afastava a mora. Com o mencionado o julgado, entendemos que novos ventos passam a guiar a questão. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Concessão de uso do privado ao poder público

Condomínio de lotes  O desenvolvimento urbano das cidades brasileiras convive, desde a década de 1970, com empreendimentos imobiliários "fechados", tais como condomínios horizontais e loteamentos de acesso restrito à população não residente. A despeito de ser um produto imobiliário desejado por parcela significativa da população, especialmente nas classes A e B, tais modalidades de empreendimento se desenvolveram mesmo antes do advento da normatização jurídica que garantiu a adequada aprovação e legalização destes, tendo sido objeto de diversas discussões no mercado imobiliário e na seara de registro de imóveis. Nesta linha, destaca-se que muitos empreendimentos imobiliários "fechados" foram, na realidade, constituídos como loteamentos regidos pela lei 6.766/79 e outros como condomínios horizontais de casas térreas ou assobradadas regulados pela lei 4.591/64. O produto buscado em ambos os casos, independentemente da figura jurídica levada à registro, era o lote urbanizado em empreendimentos fechados. Quando qualificados como loteamentos (lei 6.766/79), operava-se o fechamento do empreendimento com a posterior concessão ou permissão, mediante ato administrativo específico do Poder Público Municipal, do uso das vias públicas e de áreas públicas localizadas no interior dos fechamentos às associações de moradores, as quais passavam a administrar, conservar e manter tais áreas. A figura do "loteamento fechado", portanto, se configurava como uma adaptação da figura jurídica existente - loteamento regido pela lei 6.766/79 - como resposta à demanda desse produto imobiliário. De outro lado, quando constituídos sob a forma de condomínio horizontal de casas térreas ou assobradadas (lei 4.591/64), dada a necessidade de vinculação de área construída à futura unidade autônoma, inúmeros empreendimentos permitiam a substituição da planta da casa padrão (unidade autônoma) decorrente da incorporação imobiliária, para posterior regularização. A figura do "Condomínio Fechado", neste sentido, também operava como uma adaptação do condomínio legalmente normatizado, visto que a possibilidade de substituir a planta da unidade autônoma sem qualquer área construída significava, na prática, a venda apenas do lote, para posterior regularização da área construída de acordo com a personalização de cada adquirente. Nota-se, portanto, uma demanda considerável por empreendimentos fechados que possibilitem a aquisição apenas do lote urbanizado para posterior edificação de acordo com as próprias necessidades do adquirente. Dessa demanda nasceram as modalidades - todas elas adaptadas - de empreendimentos que atendessem essas características. Como resposta a tal demanda e como resultado de históricas discussões, a lei 13.465/17, por meio do seu artigo 78, instituiu a figura do Loteamento de Acesso Controlado, com a inserção, basicamente de dois dispositivos na lei 6.766/79 - §8º ao artigo 2º e artigo 36-A - e instituiu o Condomínio de Lotes por meio do artigo 58, promovendo tal inovação ao incluir uma Seção ao Capítulo VII do Título III do Código Civil, que trata do condomínio edilício, para melhor regulamentar os empreendimentos fechados. Ademais, promoveu importante equiparação com a redação inserida no §7° ao artigo 2° da lei 6.766/79, ao dispor: "Art. 2° (...) (...) § 7° - O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes. "  É certo que mesmo antes do advento da lei 13.465/17 já se defendia a existência da figura do condomínio de lotes mediante a interpretação sistemática do artigo 8º da Lei de Incorporações (lei 4.591/64) com o artigo 3º do decreto-lei  271/67. Face à insegurança de tal interpretação e anterior consulta pública processo nº 2014/1412941, que culminou com a aprovação do Parecer pela inviabilidade e consequente exclusão do regramento dos chamados "condomínio de lotes" e a supressão dos itens 222.2 e 229, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, a lei 13.465/2017 deu maior clareza à plausibilidade jurídica dessa figura. Todavia, mesmo diante da normatização, o novo instituto deve ser concebido como figura "híbrida" do ponto de vista da disciplina jurídica aplicável, sendo inevitável considerar tanto as regras da lei 4.591/64 quanto, suplementarmente, da lei 6.766/79. Nesta linha, destaca-se que a normatização do condomínio de lotes a partir da lei 13.465/17 não afastou, na prática, a coordenação de legislações diversas para fins de delimitação do regramento aplicável. Os caminhos possíveis a tal disciplina, entretanto, apresentam necessidades de adaptações, seja do ponto de vista jurídico, quanto urbanístico, tributário e registral, como veremos a seguir. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 16/10/2022.
A Constituição Federal dispõe em seu art. 226 que a família é a base da sociedade, merecendo proteção especial do Estado quanto ao reconhecimento, desenvolvimento e tutela das mais diversas formas de composição da entidade familiar, bem como de seus membros. Tradicionalmente o casamento era a única forma legítima de arranjo familiar. A Constituição Federal de 1988 ampliou as hipóteses de arranjos afetivos classificados como família (união estável, núcleo monoparental, além do casamento), consagrando uma estrutura paradigmática aberta, fundada no princípio da afetividade - o que proporcionou avanços infraconstitucionais, doutrinários e jurisprudenciais significativos: família anaparental, mosaico ou reconstituída, família unipessoal, família solidária e etc. Dentre as diversas categorias de família - muitas ainda em formação e desenvolvimento doutrinário, legal e/ou jurisprudencial - merece grande destaque o instituto da união estável, ombreado inúmeras vezes quanto aos seus efeitos jurídicos com o casamento. A união estável é a união contínua, pública e duradoura, com o objetivo de constituição de família, conforma conceito trazido pelo art. 1.723 do Código Civil. (KARINE BOSELLI, IZOLDA ANDREA RIBEIRO e DANIELA MRÓZ - no livro: Registros Públicos, Coord. ALBERTO GENTIL. - 2. Ed. - Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021. p.270). Diversamente do casamento que é obrigatoriamente constituído por um complexo de atos formais previstos rigorosamente em lei com ingresso obrigatório o Registro Civil das Pessoas Naturais (fase de documentação, fase de proclamas, fase de certidão e fase de registro), a união estável decorre apenas da constatação fática da presença dos quatro elementos essenciais indicados no art. 1723, do Código Civil. Ou seja, constatando-se na união amorosa entre duas pessoas à publicidade, continuidade, estabilidade e o objetivo de constituir família será reconhecida a união estável, independentemente da existência de um instrumento jurídico ou procedimento de constituição. É notória a facilitação de criação de núcleo familiar advindo da união estável (modelo adotado por milhares de famílias brasileiras), mas também sua dificuldade de conhecimento por terceiros da nova situação jurídica e todo o universo de implicações (como por exemplo: para o registro de imóveis, para aquisições e alienações de bens, penhoras em ações judiciais, direitos sucessórios, direitos previdenciários, securitários e afins). De todo modo, admitia-se como instrumento declaratório bastante para materialização da união estável a sentença judicial e a escritura pública, facultando-se o ingresso do título no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tinham sua última residência para alcance de melhor publicidade - conforme Provimento CGJ/SP 41/12 e o Provimento CNJ 37/14. A lei 14.382/22, de maneira ampliativa e objetivando normatizar a materialização da união estável, introduziu o art. 94-A na Lei de Registros Públicos, tipificando três instrumentos declaratórios de união estável, igualmente válidos e de pronta eficácia (independentemente de qualquer regramento administrativo complementar, que ainda que bem-vindo não é um condicionante para utilização): sentença judicial, escritura pública e o termo declaratório. Repise-se que a união estável não prescinde do instrumento jurídico de materialização para alcance dos seus efeitos legais, entretanto há notório benefício aos companheiros, bem como aos terceiros, na confecção de documento com tal propósito, que pode ou ser não registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais (como a própria confecção do instrumento, também é facultativo o registro, mas importantíssimo para fins de publicidade e amplo conhecimento de terceiros). Dentre as três figuras de instrumentalização da união estável, incluídas no art. 94-A da Lei de Registros Públicos, a única ainda não experimentada por muitos na prática e que merece destaque, no presente trabalho, é o inovador termo declaratório confeccionado perante o Registrador Civil das Pessoas Naturais. Em linhas gerais, conceitua-se o termo declaratório de união estável confeccionado pelo Registrador Civil das Pessoas Naturais como o instrumento de concentração da declaração de vontade, livre e consciente, dos companheiros, no tocante a existência de união amorosa pública, continua, estável e com o objetivo de constituir família, facultando-se o acréscimo de incrementos de funcionamento do já estabelecido núcleo familiar - nos termos e direitos conferidos pela legislação civil. Dentre os diversos aspectos relevantes sobre o termo, dois são os temas que aqui merecem maior atenção: 1. O procedimento para instrumentalizar o termo declaratório; 2. O conteúdo jurídico que pode ser mencionado no termo declaratório. 1. Procedimento para instrumentalizar o termo declaratório: Inicialmente, cabe aos companheiros, devidamente qualificados (com apresentação de documentos válidos e atualizados), formular pedido conjunto, pessoalmente ou por meio de procuradores constituídos, solicitando a confecção do termo declaratório de união estável perante qualquer Registro Civil das Pessoas Naturais do país - abertura louvável de atuação ao Oficio da Cidadania de maneira plena (em atenção aos objetivos e disposições da lei 13.484/17), ante a sua presença na integralidade dos Municípios brasileiros e confiabilidade do serviço público prestado à sociedade. Reforço que não há sentido maior em possibilitar que a atividade extrajudicial que realiza o procedimento e o registro do casamento também atue na instrumentalização da união estável, modelo familiar também reconhecimento constitucionalmente. Os companheiros deverão declarar no pedido formulado ao Registro Civil das Pessoas Naturais a existência de união amorosa pública, continua, estável e com o objetivo de constituir família (nos termos do art. 1.723, do CC), facultando-se acréscimos de funcionamento do núcleo familiar quanto a contribuição econômica de cada um para gestão familiar, disposições patrimoniais em geral, nome que passam a adotar em virtude da união estável, desde que não colidentes com o sistema legal vigente. Recebido o pedido caberá ao Registrador Civil das Pessoas Naturais qualificar a vontade declarada e confeccionar o termo de declaração de união estável. O ato de qualificação (atividade típica dos registradores) deverá observar os limites legais para tanto, ou seja, constatação sobre a possibilidade da confecção do termo, ante as limitações do art. 94-A, parágrafo primeiro, da LRP (que apesar de fazer referência apenas ao ato de registro deve ser utilizado também para confecção do termo declaratório pelo Ofício da Cidadania), além do exame sobre a possibilidade legal das demais declarações desejadas quanto ao nome, efeitos patrimoniais pretendidos e afins. Positivamente qualificado o documento apresentado o Registrador Civil confeccionará o termo declaratório de união estável (entregando aos companheiros o instrumento); do contrário, não atendidos os limites e preceitos legais, caberá ao Registrador Civil apresentar nota devolutiva recusando a confecção do termo, apontando as falhas do pedido inicial dos apresentantes-companheiros. 2. O conteúdo jurídico que pode ser mencionado no termo declaratório, em princípio (desde que observados os limites legais), pode ser: declaração sobre o momento de início da união estável; declaração e reconhecimento de filhos advindos da união estável (o que pode ocorrer por qualquer instrumento público ou particular, nos termos da lei 8.560/92, art. 1º, II); declaração quanto ao nome que os companheiros passam a adotar em virtude da união estável; declaração sobre os efeitos patrimoniais aplicáveis aos companheiros. Vale mencionar que o art. 94-A da Lei de Registros Públicos não impôs a presença e assessoramento do advogado para solicitação de confecção do termo declaratório pelos companheiros perante o Registro Civil. Ainda que recomendável a consulta prévia à um profissional de confiança dos interessados, a ausência de obrigatoriedade não é uma anomalia ao sistema extrajudicial, pois diversos são os procedimentos administrativos que não exigem o advogado - como por exemplo: pedido de retificação de nome, pedido de consolidação de propriedade resolúvel na alienação fiduciária em garantia; pedido de retificação imobiliária; pedido de habilitação de casamento, pedido de registro ou averbação de título no Registro de Imóveis; pedido de suscitação de dúvida ou mesmo a impugnação na dúvida; tampouco a maioria dos atos notariais exigem em caráter obrigatório o advogado (exemplificativamente, como: para lavratura de ata notarial, testamento, compra e venda, permuta, doação e etc.) Reforça-se ainda que o ato de publicidade do termo declaratório com o ingresso no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm sua residência não é automático ou obrigatório, mas recomenda-se fortemente que seja realizado, pois é exatamente da publicidade do termo que terceiros poderão ter conhecimento da união estável e dos contornos jurídicos entabulados. A título exemplificativa, vale trazer à colação alguns julgados emblemáticos do E. Superior Tribunal de Justiça no tocante as implicações jurídicas da falta de publicidade da existência de uma união estável: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. UNIÃO ESTÁVEL. INSTRUMENTO PARTICULAR ESCRITO. REGIME DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. VALIDADE INTER PARTES. PRODUÇÃO DE EFEITOS EXISTENCIAIS E PATRIMONIAIS APENAS EM RELAÇÃO AOS CONVIVENTES. PROJEÇÃO DE EFEITOS A TERCEIROS, INCLUSIVE CREDORES DE UM DOS CONVIVENTES. OPONIBILIDADE ERGA OMNES. INOCORRÊNCIA. REGISTRO REALIZADO SOMENTE APÓS O REQUERIMENTO E O DEFERIMENTO DA PENHORA DE BENS MÓVEIS QUE GUARNECIAM O IMÓVEL DOS CONVIVENTES. POSSIBILIDADE. REGISTRO EM CARTÓRIO REALIZADO ANTERIORMENTE À EFETIVAÇÃO DA PENHORA. IRRELEVÂNCIA. INOPONIBILIDADE AO CREDOR DO CONVIVENTE NO MOMENTO DO DEFERIMENTO DA MEDIDA CONSTRITIVA. 1- Ação de embargos de terceiro proposta em 12/2/19. Recurso especial interposto em 22/10/21 e atribuído à Relatora em 6/4/22. 2- O propósito recursal é definir se é válida a penhora, requerida e deferida em junho/2018 e efetivada em agosto/2018, de bens móveis titularizados exclusivamente pela convivente, para a satisfação de dívida judicial do outro convivente, na hipótese em que a união estável, objeto de instrumento particular firmado em abril/14, mas apenas levado a registro em julho/18, previa o regime da separação total de bens. 3- A existência de contrato escrito é o único requisito legal para que haja a fixação ou a modificação, sempre com efeitos prospectivos, do regime de bens aplicável a união estável, de modo que o instrumento particular celebrado pelas partes produz efeitos limitados aos aspectos existenciais e patrimoniais da própria relação familiar por eles mantida. 4- Significa dizer que o instrumento particular, independentemente de qualquer espécie de publicidade e registro, terá eficácia e vinculará as partes e será relevante para definir questões interna corporis da união estável, como a sua data de início, a indicação sobre quais bens deverão ou não ser partilhados, a existência de prole concebida na constância do vínculo e a sucessão, dentre outras. 5- O contrato escrito na forma de simples instrumento particular e de conhecimento limitado aos contratantes, todavia, é incapaz de projetar efeitos para fora da relação jurídica mantida pelos conviventes, em especial em relação a terceiros porventura credores de um deles, exigindo-se, para que se possa examinar a eventual oponibilidade erga omnes, no mínimo, a prévia existência de registro e publicidade aos terceiros. 6- Na hipótese, a penhora que recaiu sobre os bens móveis supostamente titularizados com exclusividade pela embargante foi requerida pela credora e deferida pelo juiz em junho/18, a fim de satisfazer dívida contraída pelo convivente da embargante, ao passo que o registro em cartório do instrumento particular de união estável com cláusula de separação total de bens somente veio a ser efetivado em julho/18. 7- O fato de a penhora ter sido efetivada apenas em agosto/18 é irrelevante, na medida em que, quando deferida a medida constritiva, o instrumento particular celebrado entre a embargante e o devedor era de ciência exclusiva dos conviventes, não projetava efeitos externos à união estável e, bem assim, era inoponível à credora. 8- Recurso especial conhecido e não-provido, com majoração de honorários. (REsp 1.988.228/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/6/22, DJe de 13/6/22.) E AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. NEGÓCIO JURÍDICO. COMPRA E VENDA. UNIÃO ESTÁVEL. OUTORGA UXÓRIA. IMPRESCINDÍVEL PUBLICIDADE OU CARACTERIZAÇÃO DE MA-FÉ. 1. Ausente incursão na seara fático-probatória ao analisar o recurso especial, pois foi alcançada a conclusão de que o aresto recorrido deveria ter sido reformado com base nas afirmações constantes no próprio acórdão impugnado pelo recurso especial, visto que a realidade dos autos retratada no aresto recorrido estava em dissonância com o entendimento que esta Corte. 2. Necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável, tendo em vista que o regime da comunhão parcial de bens foi estendido à união estável pelo art. 1.725 do CCB, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, na forma do art. 5º da lei 9.278/96. 3. A invalidação de atos de alienação praticado por algum dos conviventes, sem autorização do outro, depende de constatar se existia: (a) publicidade conferida a união estável, mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, a época em que firmado o ato de alienação, ou (b) demonstração de má-fé do adquirente. 4. No caso, nem foi apontada a configuração de má-fé, nem existia qualquer publicidade formalizada da união estável na época em que firmado o contrato de alienação, de modo que não pode ser invalidado com base na ausência de outorga da convivente, ora recorrida. 5. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp 1.706.745/MG, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/11/20, DJe de 17/3/21.) A novidade legislativa é extremamente bem-vinda, busca facilitar e democratizar ao extremo a materialização da declaração de união estável, utilizando-se da capilaridade do serviço extrajudicial - presente em todos os Municípios brasileiros - e da reconhecida confiança no valoroso serviço técnico-jurídico dos delegatários. Oxalá a sensibilidade do Legislador em simplificar a instrumentalização da união estável e o próprio registro no Livro E do RCPN sejam rapidamente aplicados em sua inteireza pelos Registradores de Pessoas Naturais.
Hoje, encerraremos o artigo publicado nas duas últimas semanas na Coluna Migalhas Notariais e Registrais. Mais um princípio relevante quando tratamos do nome civil é o da dignidade do nome. O nome deve ser digno. Deve promover a dignidade da pessoa humana. Deve prestigiar a identidade autopercebida pela pessoa, respeitado, porém, a segurança jurídica de terceiros. Sob essa ótica, o ordenamento censura nomes que exponham a pessoa ao ridículo. O registrador deve negar-se a registrá-los, assegurado aos pais provocar o juiz em um procedimento que entendemos ser de natureza administrativa e que atrai subsidiariamente as regras do procedimento de dúvida (art. 55, § 1º, LRP). Outro princípio é o da publicidade do nome. Considerando que o nome identifica a pessoa perante terceiros, é fundamental sua publicidade. No caso de mudança de nome, a regra é que terceiros tenham condições de saber o histórico de nomes. Sob essa ótica, o § 2º do art. 56 da LRP exige que as certidões deverão exibir o histórico no caso de alteração extrajudicial do prenome. Igualmente, é dever do registrador comunicar a mudança do prenome para os entes públicos incumbidos da emissão de documentos de identificação para efeito de atualização e ciência do histórico. Há uma particularidade quando se trata de mudança de sexo e de nome da pessoa transexual. Essa hipótese é tratada no Provimento nº 73/2018-CNJ. O fato de culturas preconceituosas ainda resistirem à movimentação jurídica em favor da liberdade exige que essa publicidade seja parcialmente restringida, tudo em proteção à própria pessoa. Desse modo, as certidões, em regra, não veicularão o histórico no caso de mudança de nome e de sexo envolvendo pessoas transexuais. Só a própria pessoa ou o juiz poderão furar esse sigilo parcial (art. 5º do Provimento 73/2018-CNJ). O último princípio é o da imutabilidade relativa do nome. O nome, em regra, não deve ser modificado diante da necessidade de estabilização das relações sociais em nome da proteção a terceiros. A exceção deve dar-se apenas quando o ordenamento permitir de modo excepcional. O ordenamento admite hipóteses de mudanças de nome. O primeiro grupo de hipóteses é o de mudança na via extrajudicial. Os casos estão nos arts. 55, § 3º, da LRP (alteração pela oposição fundamentada de um dos consortes) bem como no art. 56 da LRP (alteração do prenome) e no art. 57 da LRP (alteração de sobrenome), com exceção do § 7º deste último dispositivo (o qual exige expressamente decisão judicial para mudança de nome por conta de programa de proteção à testemunha). O segundo grupo de hipóteses é o de mudança na via judicial. Após a Lei do SERP, não ficou mais positivada essa hipótese. Mas ela é implícita à luz dos princípios supracitados e da dignidade da pessoa humana. Poderá qualquer pessoa pleitear judicialmente a mudança de nome fora dos casos extrajudiciais acima, desde que haja algum justo motivo, conceito aberto a ser analisado pelo juiz à luz da equidade, da proteção a terceiros e da dignidade da pessoa humana. O filho do famoso narcotraficante Pablo Escobar, por exemplo, obteve a supressão do seu sobrenome "Escobar", alegando, como justo motivo, os constrangimentos e os riscos que sofria por carregar o referido sobrenome1. Trata-se de um exemplo de justo motivo, que poderia ser acolhido no Brasil. Sob essa ótica, cabe um esclarecimento em relação art. 58 da LRP, que admite a substituição do prenome por "apelidos públicos notórios". Se a pessoa nunca tiver alterado o prenome na via extrajudicial após a entrada em vigor da Lei do SERP, essa substituição deverá ocorrer perante o RCPN, com base no art. 56 da LRP. Se, porém, ele já tiver alterado o prenome extrajudicialmente, a via do art. 56 da LRP estará fechada: sobra-lhe pedir a substituição do prenome por apelido público notório na via extrajudicial. Essa é a interpretação mais adequada do art. 58 da LRP. Igualmente, também há direito à mudança do nome (prenome e sobrenome) no caso de programa de proteção à testemunha (arts. 57, § 7º, e 58 da LRP). Trata-se de hipótese de alteração judicial do nome: o § 7º do art. 57 da LRP é textual em exigir decisão judicial. Em suma, a mudança judicial do nome dá-se nestes casos: a) programa de proteção à testemunha (arts. 57, § 7º, e 58 da LRP); b) segunda, terceira ou posteriores alterações do prenome, inclusive para a substituição por apelido público notório, desde que haja justo motivo (arts. 57 e 58, LRP); e c) justo motivo, desde que não se encaixe nas demais hipóteses legais de alteração extrajudicial do nome Entendemos que a via judicial não pode ser utilizada quando a hipótese encaixar-se em umas das vias hipóteses legais de alteração extrajudicial do nome. Faltaria "interesse de agir", uma das condições da ação. O Poder Judiciário não deve ser demandado se uma via menos onerosa e menos burocrática foi fornecida ao cidadão. Associando-se todos os princípios acima (especialmente o princípio da individualização do nome com o princípio da veracidade, entende-se o porquê de a legislação ter severa restrição em admitir mudança do sobrenome. A flexibilidade legal é apenas com o prenome. É que a função primordial do sobrenome é vincular a pessoa à sua verdade familiar. A função de identificação é secundária. Já o papel principal do prenome é a identificação da pessoa (não só perante terceiros, mas também perante si mesma). O prenome é o elemento do nome mais associado ao princípio da dignidade da pessoa. Sob essa ótica, a alteração imotivada na via extrajudicial é admitida apenas para o prenome após a maioridade civil (art. 56, LRP). Qualquer pessoa pode, por uma vez, mudar seu prenome sem necessidade de decisão judicial. Trata-se de um direito absolutamente legítimo em prestígio à dignidade da pessoa, que, por qualquer motivo, não se satisfez com o prenome que recebeu de seus genitores (ou de outro declarante). Cuida-se de um prestígio que o ordenamento defere à autopercepção da pessoa, como uma expressão da dignidade da pessoa humana. Até mesmo no caso de mudança de sexo e de nome de pessoa transexual, o ordenamento permite-lhe a mudança apenas do prenome. Não pode alterar o sobrenome, pois tem a função primordial de espelhar a linha familiar. Ainda sob a ótica acima, a alteração do sobrenome na via extrajudicial não autoriza supressão do que chamamos de "sobrenomes nativos", assim chamados os que foram recebidos pela pessoa quando do registro de nascimento. A alteração recai apenas em hipóteses de acréscimos ou - em alguns casos - de exclusão de "sobrenomes supervenientes", assim entendidos os que foram acrescidos à pessoa posteriormente. É o que está no art. 57 da LRP. __________ 1 Juan Pablo Escobar mudou nome para Sebastián Marroquín por questões de segurança e apresenta palestras nas quais fala sobre crimes do pai (Fonte).
Hoje, continuaremos o artigo que foi publicado na semana passada, na Coluna Migalhas Notariais e Registrais. Cenário normativo atual sobre o nome A legislação, ao lidar com o nome, parte de alguns princípios, à luz dos quais é mais fácil compreender o cenário normativo. O primeiro princípio é o que chamamos de princípio da individualização do nome. Por esse princípio, o nome deve buscar, ao máximo, identificar a pessoa de modo singular. O foco desse princípio recai sobre o prenome, que é o elemento do nome civil mais vocacionado a individualizar o indivíduo. Alerte-se que o sobrenome possui uma função primordial diversa: a de associar o indivíduo à sua linha familiar. Desse princípio, decorrem algumas regras destinadas a evitar a homonímia. Um exemplo é o art. 54, § 3º, e 63, LRP. No caso de irmãos, o ordenamento censura prenomes simples iguais. Imagine a confusão que haveria a terceiros se dois irmãos tivessem o mesmo prenome simples. Assim, caso os pais queiram conferir um mesmo prenome aos filhos, eles terão de valer-se de um prenome composto, admitido que apenas um dos elementos do prenome composto seja igual. Se se tratar de gêmeos, ambos terão de ter prenomes compostos. Se não se tratar de gêmeos, o segundo filho teria de ter prenome composto. Exemplifiquemos.  Suponha que os pais queiram que ambos os filhos chamem-se Eduardo. Se ambos forem gêmeos, como o registro civil será feito no mesmo momento diante da simultaneidade do nascimento, os dois terão de ter um prenome composto. Um deles poderia chamar-se João Eduardo, e outro, Luís Eduardo. É vedado que ambos se chamem, por exemplo, apenas "Eduardo". Ainda no mesmo exemplo, se não se tratar de gêmeos, o primeiro filho até pode receber o prenome simples de "Eduardo". O segundo filho, porém, quando futuramente vier a nascer, terá de ter prenome composto, como "Carlos Eduardo". Outro exemplo é o art. 55, § 3º, da LRP, o qual exige que o registrador oriente os pais a acrescerem sobrenomes com o objetivo de reduzir o risco de homonímia. Imagine, por exemplo, um filho chamado apenas "Bruno Silva". O risco de homonímia é brutal no Brasil. É conveniente alongar o nome com mais sobrenomes a fim de reduzir o risco de homonímia. O registrador não pode, porém, obrigar os pais a tanto. Seu dever é apenas de orientar, e não de impor. Outro exemplo é o art. 55, § 2º, da LRP. No silêncio do declarante, cabe ao registrador acrescer um sobrenome do pai e outro da mãe ao nome da criança registrada. Não há ordem preferencial, nem mesmo por questão de gênero: homens e mulheres têm direitos iguais. Cabe ao registrador suprir o silêncio do declarante e coletar um sobrenome paterno e um sobrenome materno. Essa escolha deverá ser feita de modo a reduzir riscos de homonímias: esse é o critério da escolha. Havendo diferentes opções empatadas sob esse critério, cabe ao registrador decidir por equidade. Por exemplo, entendemos que, caso algum dos genitores possua um sobrenome estrangeiro, este deverá ser o último sobrenome, porque o risco de homonímia será menor. É que, dentro do costume brasileiro (e de vários outros países), as pessoas costumam ser chamadas apenas pelo prenome e pelo seu último sobrenome. Publicações acadêmicas, por exemplo, seguem esse perfil de citação dos autores das obras1. Mais um exemplo é o uso do agnome. Este serve exatamente para distinguir a pessoa que receberá um nome igual ao de outro familiar. O agnome é elemento final ao nome que fará essa distinção. São exemplos de agnome "Filho", "Júnior", "Neto", "Primeiro" etc. O segundo princípio que rege o nome civil é o da veracidade. Preferimos batizar como princípio da veracidade do sobrenome, porque o seu foco recai sobre o sobrenome. Por esse princípio, os sobrenomes devem retratar a verdade familiar da pessoa. Devem espelhar a árvore genealógica dela, ou seja, a sua linhagem familiar. Por isso, é proibido incluir sobrenomes inexistentes na linha ascendente da pessoa, salvo lei em contrário (como os casos excepcionais de acréscimos posteriores de sobrenome do consorte (cônjuge ou companheiro) ou do padrasto ou madrasta - art. 57, II e § 8º, LRP). No caso de sobrenomes presentes apenas em ascendentes de segundo ou maior grau, é necessário comprovar a cadeia familiar perante o registrador (art. 55, caput, in fine, LRP). Questão controversa é definir se o filho poderá carregar sobrenomes apenas de ascendentes de segundo ou maior grau, ainda que seus genitores não possuam esse sobrenome. Entendemos inexistir obstáculo legal: o texto do caput do art. 55 da LRP não faz essa restrição. Suponha, por exemplo, que o pai se chama "Manoel Silva" e a mãe "Patrícia Araújo". Indaga-se: o filho poderia ser batizado como "Luís Corleone", considerando que o sobrenome Corleone é comprovadamente o do seu avô paterno? A resposta, a nosso sentir, é positiva. Todavia, entendemos que o registrador deve aconselhar os genitores a incluírem também o sobrenome de ambos ao para evitar desconfortos futuros. Realmente, em vários países, é costume associar os filhos aos genitores pela coincidência dos sobrenomes. No referido exemplo, os genitores poderão sofrer constrangimentos em viagens internacionais diante de suspeitas das autoridades imigratórias acerca da veracidade do vínculo de filiação. Apesar disso, o art. 55, caput, da LRP não faz qualquer restrição. Aliás, ele permite expressamente a inclusão de sobrenome de ascendentes distantes mediante comprovação da cadeia familiar. Outra questão é se o filho poderá ter o sobrenome de apenas um dos genitores. Não há restrição legal. Apesar da inconveniência, entendemos ser viável. Pense neste exemplo: o pai se chama "Manoel Corleone" e a mãe "Patrícia Araújo". Nesse caso, o filho poderia ser chamado apenas de "Luís Araújo". O registrador, porém, deve orientar os pais acerca da inconveniência disso, mas não os podem impedir a tanto. Entendemos que a intenção do legislador é proposital. Preferiu deixar a escolha para os declarantes, diante da existência de inúmeras variáveis. No exemplo acima, o pai poderá ter alguma razão de foro íntimo a justificar a sua vontade de não repassar o sobrenome "Corleone" ao filho. O pai poderia, por exemplo, associar esse sobrenome a algum passado vergonhoso de algum ascendente na prática de crimes cruéis. Portanto, a regra é a liberdade de escolha dos pais para os sobrenomes do filho menor. Quando o filho tornar-se maior, ele poderá acrescer outros sobrenomes, se quiser (art. 57, I, LRP). O terceiro princípio é o da isonomia entre os genitores. Não há preferência entre os genitores, independentemente do gênero. A ideia de prestigiar a vontade do homem já foi enterrada, há muito tempo, no cemitério da história. Homens e mulheres são plenamente iguais. Por isso, ambos os genitores têm direitos iguais na definição do nome do filho. Uma decorrência disso é o direito de oposição ao nome escolhido pelo outro genitor (art. 55, caput e § 3º, LRP). Se um dos genitores, sozinho, declarar o nascimento do filho e escolher um nome, poderá o outro genitor opor-se essa escolha no prazo de 15 dias do registro. A oposição tem de ser motivada, diz o § 3º do art. 55 da LRP. Entendemos que o jurista deverá ser bem flexível nessa exigência de motivação, limitando-se a exigir que o genitor opoente, no mínimo: (1) esclareça que não havia consentido com o nome escolhido pelo outro genitor; e (2) indique o nome desejado. Sem essa motivação, a oposição há de ser rejeitada. A oposição ao nome escolhido pelo outro genitor é apresentada perante o RCPN (Registro Civil das Pessoas Naturais) onde foi lavrado o assento de nascimento. Apesar do silêncio legal, deverá o registrador intimar o outro genitor para manifestar-se. Caso ele concorde com o nome indicado pelo opoente, o registrador promoverá a retificação do registro (arts. 55, § 3º, e 110, LRP). Se, porém, ele discordar, o registrador encaminhará os autos ao juízo competente. Entendemos que o juízo competente é o mesmo incumbido do julgamento de dúvidas registrais, pois o procedimento aí previsto tem natureza administrativa, e não jurisdicional. As regras do procedimento de dúvida devem ser aplicadas subsidiariamente. Qual o critério a ser adotado pelo juiz para decidir qual o nome deve prevalecer: o nome escolhido pelo pai ou o nome desejado pela mãe? Entendemos que o juiz deverá guiar-se por critérios objetivos e consonantes com os princípios jurídicos em pauta. Em primeiro lugar, deverá o juiz rejeitar nomes que sejam repetições de nome de algum familiar. Isso violaria o princípio da isonomia entre os genitores. É injusto e egoísta que o filho seja, por exemplo, batizado com o mesmo nome do avô materno, se o pai discorda disso. Em segundo lugar, deve o juiz buscar nomes que sejam mais imparciais em relação a ambos os genitores. Em sendo possível, deverá o juiz adotar prenomes compostos (contemplando os prenomes indicados por cada um dos pais) e incluir um sobrenome de cada genitor (conforme escolha deste ou, no seu silêncio, de acordo com a busca de evitar homonímias). Suponha que o pai queira o nome Manoel Araújo; e a mãe, Luís Oliveira. O juiz poderia decidir por uma mistura dessas opções em conflito: Luís Manoel Araújo Oliveira. Em terceiro lugar, o juiz deverá buscar evitar homonímias na formação do nome. Se, por exemplo, os pais litigam, entre si, acerca da ordem dos sobrenomes, deverá o juiz decidir pela ordem que reduza o risco de homonímia. Por esse motivo, conforme já exposto anteriormente, sobrenomes menos comuns no Brasil devem ser colocados prioritariamente ao final do nome. Em quarto lugar, na hipótese de os nomes em disputa empatarem à luz dos critérios acima, caberá ao juiz decidir de acordo com a equidade, buscando a solução que, ao seu sentir, satisfaça mais o interesse presumível da criança. O prazo de 15 dias para a apresentação de oposição fundamentada é decadencial. Transcorrido esse prazo, não há mais o direito de oposição extrajudicial ao nome escolhido pelo outro genitor. A decadência, porém, restringe-se ao uso da via extrajudicial. Entendemos que subsistirá o direito de o genitor insurgir-se judicialmente, desde que apresente motivos razoáveis que justifiquem a sua inércia naquela quinzena decadencial, como, por exemplo, uma internação hospitalar prolongada. Pense, por exemplo, na mãe que ficou internada por um mês após o parto enquanto o pai fez a declaração de nascimento do filho e escolheu um nome não acordado previamente com a mãe. Continuaremos a tratar do assunto na próxima Coluna Migalhas Notariais e Registrais. __________ 1 Há países com costume diferente. É o caso da Espanha, em que as citações acadêmicas focam no primeiro sobrenome, e não no último.
Introdução Este artigo centra-se em expor como ficou o cenário normativo acerca do nome civil após a Lei do SERP1 (lei 14.382/22). Nome enquanto direito da personalidade O nome é um direito da personalidade. É um direito existencial. É inerente à condição de pessoa. Por meio dele, a pessoa identifica-se perante terceiros e forma a própria visão de si. A importância do nome para a pessoa natural é inegável. Mas não se pode negar que, especialmente nos tempos atuais, outros direitos da personalidade concorrem com o nome em termos de identificação. O número de CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) é um exemplo. Sua vocação inicial era no campo do Direito Tributário, para identificação dos contribuintes na sua relação fiscal. Todavia, as suas vantagens em termos de singularização da pessoa acabaram fazendo-o desbordar para o ramo do Direito Civil, tornando-se um elemento de identificação da pessoa natural. Nesse sentido, o CPF deve ser considerado um direito da personalidade. É mais seguro identificar uma pessoa pelo seu CPF do que pelo seu nome civil. Pelo nome, há riscos grandes de confusões decorrentes de homonímias. A própria legislação exige o CPF como elemento essencial na qualificação das pessoas em atos jurídicos e em processos judiciais. Outro exemplo são os codinomes utilizados em perfis de redes sociais. A identidade digital da pessoa é um direito da personalidade decorrente da proliferação da Internet no quotidiano dos indivíduos. Em termos jurídicos, consideramos que esses codinomes digitais devem ser protegidos enquanto um direito da personalidade. O foco deste artigo está apenas no nome civil. O nome é decomposto em três elementos: (1) prenome, que pode ser simples ou composto; (2) sobrenome, também chamado de nome de família, patronímico (quando oriundo da linha paterna), matronímico (quando derivado da linha materna) ou sobrenome familiar; e (3) agnome. Este último, a rigor, é parte integrante do segundo, mas, por questão didática, a doutrina o trata em apartado. É por isso que o art. 16 do CC2 e o caput do art. 55 da LRP3 não o mencionam expressamente. Ilustrando, o nosso nome (Carlos Eduardo Elias de Oliveira) envolve um prenome composto (Carlos Eduardo) e dois sobrenomes (Elias de Oliveira). Os principais dispositivos que tratam do nome são estes: a) arts. 16 a 19 do CC: cuidam da proteção do nome (e do pseudônimo) com foco externo, ou seja, preocupando-se com possíveis agressões praticadas por terceiros. b) arts. 55 a 58 da LRP: cuidam do nome com foco interno, ou seja, assegurando o direito da pessoa em determinar qual será o nome. Apesar de o nome ser um direito da personalidade da pessoa, há interesse público em proteger terceiros que poderiam ser prejudicados se houvesse uma tutela mais individualista do nome pelo ordenamento. Basta pensar, por exemplo, em uma pessoa que, de má-fé, causasse danos a terceiros e, depois, "desaparecesse" com um novo nome e uma nova identidade. Na próxima semana, continuaremos tratando do assunto, expondo o cenário normativo atual sobre o nome civil após a lei 14.382/22. __________ 1 SERP: Sistema Eletrônico de Registros Públicos 2 Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. 3 Art. 55. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome (...).
Objetivamos levantar reflexões sobre a formação da lei e sobre os limites da atuação de cada um dos Três Poderes diante da lei. A pretensão é apontar que o Estado Democrático de Direito, para sua estabilidade, envolve a necessidade de cautela de cada um dos Poderes no exercício de seu papel. O tema é fundamental para os juristas em geral, inclusive os que lidam com Direito Notarial e Registral, pois esclarece como as leis devem ser tratadas na prática pelos operadores do Direito. Seremos objetivos. A intenção é ser o mais prático possível na abordagem. A análise levará em conta não apenas experiências acadêmicas, mas também profissionais no âmbito dos Três Poderes. No Judiciário, a oportunidade de ter atuado como assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) possibilitou-nos testemunhar como os magistrados se comportam na prolação de suas decisões interpretando as leis. No Executivo, a experiência como Advogado da União por cerca de três anos, com foco em correições nos órgãos da Advocacia-Geral da União (especialmente órgãos vinculados à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, à Consultoria-Geral da União, à Procuradoria-Geral da União e à Procuradoria-Geral Federal) permitiu-nos analisar o modo como os agentes do Poder Executivo se portam diante da aplicação das leis. No Legislativo, no cargo de Consultor Legislativo do Senado Federal, o auxílio na elaboração das leis (por meio de estudos e do oferecimento de sugestões de textos) franquea-nos acompanhar como elas são elaboradas. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
O art. 94-A da Lei de Registros Públicos (LRP) prevê o registro facultativo da união estável e foi fruto da Lei do SERP (Lei n. 14.382/2022) - Capítulo 1. O art. 94-A da LRP positiva, com alguns ajustes adicionais, o que já era permitido pelo Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), norma que precisará ser atualizada - Capítulo 2. Apesar da atecnia do texto do art. 94-A da LRP, o registro da união estável é uma faculdade, e não um dever, haja vista sua natureza declaratória, extraída da leitura sistemática do referido dispositivo, com o art. 1.723 do CC - Capítulo 2. Cabe ao Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), na qualificação registral do título declaratório de existência de união estável, avaliar se o casal incorre ou não em algum impedimento matrimonial, causa suspensiva ou outro obstáculo ao casamento, observadas as particularidades da união estável, como a viabilidade de pessoas casadas formarem união estável se estiverem separadas. Nesta última hipótese, o registro facultativo só será admitido se a separação estiver devidamente formalizada mediante averbação da separação judicial ou extrajudicial no assento de casamento. Mera separação de fato, sem a devida formalização, impede o registro facultativo da união estável. - Capítulo 3. No caso de o título ser uma sentença declaratória de união estável, a qualificação registral negativa só se justificará se o impedimento matrimonial ou outro óbice jurídico surgir supervenientemente à sentença - Capítulo 3. No caso de causa suspensiva do casamento, o registro da união estável poderá ser feito, com uma advertência, qual seja a de que o regime de bens necessariamente será o da separação legal de bens (arts. 1.641, inc. I, e 1.723, CC) - Capítulo 3. A declaração da união estável deverá ser objeto de ato de registro stricto sensu, ao passo que a extinção da união estável deverá ser objeto de averbação no assento de união estável - Capítulo 4. Os arts. 106 e 107 da Lei de Registros Públicos, que tratam do dever de anotação e de comunicação envolvendo o assento de casamento, devem ser estendidos ao assento de união estável por analogia, tendo em vista a existência de lacuna legislativa - Capítulo 4. Para o registro da declaração da união estável ou para averbação de sua extinção, admitem-se um título judicial - sentença declaratória - ou dois títulos extrajudiciais - escritura pública declaratória lavrada por Tabelião de Notas ou termo declaratório lavrado perante o Registrador Civil das Pessoas Naturais - Capítulo 7. É dispensável a assistência de advogado para os títulos declaratórios existência ou de extinção da união estável - Capítulo 6.  O conteúdo do título declaratório de união estável deve conter, no mínimo, as informações essenciais à lavratura do registro. Este, por sua vez, obrigatoriamente deverá conter dados indispensáveis para a identificação: a) da data do registro (art. 94-A, inc. I, da LRP); b) dos envolvidos (art. 94-A, inc. II a IV, da LRP); c) da origem do título (art. 94-A, inc. V e VI, da LRP); d) do regime de bens (art. 94-A, inc. VII, da LRP); e) do novo nome dos companheiros, se for o caso (art. 94-A, inc. VIII, da LRP) -  Capítulo 6. O conteúdo do título declaratório da extinção da união estável satisfaz-se com a declaração dos companheiros, acompanhada das informações necessárias à identificação deles. É conveniente, mas não obrigatória, a menção aos dados do assento da união estável - Capítulo 6. É irrelevante, para efeito da averbação da declaração de extinção da união estável, que o título tenha tratado de questões jurídicas conexas, como partilha de bens, alimentos, guarda de filhos, entre outros temas - Capítulo 6. Título judicial ou extrajudicial estrangeiro de declaração de existência ou extinção da união estável envolvendo, ao menos, um brasileiro poderá ser inscrito diretamente no Livro "E" do 1º Ofício de RCPN do domicílio atual de qualquer dos companheiros no Brasil ou do último domicílio que qualquer deles teve no Brasil. O título deverá ser acompanhado de tradução juramentada e de sua legalização ou apostilamento, dispensado seu registro no RTD (art. 94-A, §§ 3º e 4º, da LRP) - Capítulo 7. No caso de título estrangeiro de declaração de "união estável" à luz da legislação estrangeira, o oficial deverá recusar o registro se o instituto estrangeiro de união não puder ser objeto de adaptação lato sensu para o instituto brasileiro correspondente. O registro facultativo de união estável previsto no art. 94-A da LRP deve ser disponibilizado pelos serviços consulares, observados, mutatis mutandi, por analogia, o art. 32 da LRP e outras normas relativas a casamento consular de brasileiro.  Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
A Lei do SERP (lei 14.382/2022) promoveu diversas alterações de alta complexidade mediante um processo legislativo mais acelerado, o que deixou alguns pontos abertos ou dúbios a atrair a intervenção da doutrina, das normas infralegais e da jurisprudência - Capítulo 1. Os nubentes têm o direito de apresentar o requerimento de habilitação e a documentação pertinentes eletronicamente (art. 67, § 4º-A, LRP) - Capítulo 2. A celebração do casamento poderá ocorrer por videoconferência, desde que sejam asseguradas ampla publicidade para terceiros acompanharem sincronamente e a manifestação de vontade dos nubentes, das testemunhas e da autoridade celebrante (art. 67, § 8º, LRP; art. 1.534 do CC) - Capítulo 2. A celebração do casamento tem de ser anotada nos autos do procedimento de habilitação, exigido que o registrador, se necessário, faça as notificações devidas (art. 67, § 6º, LRP) - Capítulo 3. Não há mais obrigação de duplo registro e de dupla publicação do edital de proclamas na hipótese de os nubentes residirem em diferentes distritos do RCPN (revogação do § 4º do art. 67 da LRP; caput do art. 67 da LRP) - Capítulo 4. Foi abolida a obrigação de afixação do edital de proclamas na serventia, pois houve  a revogação expressa do § 3º do art. 67 da LRP e a revogação tácita do caput do art. 1.517 do CC -  Capítulo 5. Fica extinta a ultrapassada exigência de publicação de proclamas na imprensa local (revogação expressa do § 1º do art. 67 da LRP e revogação tácita do caput do art. 1.517 do CC) - Capítulo 6. O prazo para terceiros apresentarem impugnação na fase de habilitação é de 15 dias da publicação dos editais de proclamas, por aplicação analógica do § 4º art. 216-A da LRP, necessária diante da lacuna legal - Capítulo 7. O incidente de impugnação no procedimento de habilitação é esmiuçado pelo § 5º do art. 67 da LRP, que deve ser lido em conjunto com os arts. 1.527 e 1.531 do CC - Capítulo 8. Não há mais a necessidade de manifestação do Ministério Público nos procedimentos de habilitação de casamento, salvo quando tiver sido instaurado o incidente de impugnação (revogação expressa § 1º do art. 67 da LRP e revogação tácita do art. 1.526 do CC). A dispensa de publicação de proclamas pela existência de urgência no casamento é decidido administrativamente pelo próprio registrador, com recurso ao juiz corregedor e sem oitiva do Ministério Público (art. 69 da LRP) - Capítulo 10. A visão completa de como ficou o procedimento do casamento está no capítulo 11 deste artigo. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
A recente reforma da Lei de Registros Públicos suscitou muitas dúvidas e questões e a necessidade imperiosa de se promover amplo debate com vistas a dar subsídios à regulamentação da infraestrutura criada pela lei 14.382/2022. Os comentários, aqui lançados, visam a alguns poucos objetivos: proporcionar elementos para o estudo e reflexão a respeito do novo diploma legal, fruto extemporâneo dos escassos debates e discussões que deveriam ter antecedido a edição da medida provisória afinal convertida em lei. A Corregedoria Nacional de Justiça haverá, eventualmente, de remediar os desvios sistemáticos que vimos de denunciar na série de artigos aqui mesmo já publicados1. A lei 14.382/2022 indica, entre os objetivos do SERP, uma série de atividades que, a rigor, são próprias de registradores e, pois, insuscetíveis de subdelegação. Há, nos incisos do art. 3º do diploma, disposições que acabam por descaracterizar o perfil institucional e constitucional da atividade, atingindo a natureza de estatalidade que permeia a prestação de serviços notariais e registrais, atividades públicas e de caráter eminentemente jurídico, pela via da criação de entes privados (§ 4º do art. 3º). Vamos analisar separadamente cada um dos incisos do dito artigo 3º, iniciando pelo inciso I, que trata do SERP. SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos A lei 14.382/2022 cravou no inciso I do art. 3º que o SERP tem por objetivo viabilizar "o registro público eletrônico dos atos e negócios jurídicos". Iniciemos, pois, afirmando, categoricamente, que o SERP não é um registro público em sentido próprio2. Como veremos abaixo, o SERP é mera plataforma de interação eletrônica na internet, anel acessório, vinculado ao principal, que é o Registro Público de Imóveis eletrônico propriamente dito. A Carta Política de 1988 recolheu a larga tradição do direito brasileiro de outorga da delegação de notas e de registro a particulares em colaboração com a administração na condição de delegados de função ou de ofício público, consoante clássica doutrina de BANDEIRA DE MELLO. A distinção entre as atividades de oficiais de registros públicos e as de entes personalizados já se achava na base de toda a formulação teórica original de OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, estudos pioneiros que se radicalizariam na melhor doutrina e na jurisprudência formada no curso do tempo. Os delegados de função pública, ou serviços públicos, diz ele, classificam-se como "ofício ou empresa, segundo o seu conteúdo seja uma atividade profissional, em cumprimento de simples atos de efeitos jurídicos ou atividade de prestação de comodidade de obra ou de coisa"3. Os primeiros atuam prestando serviços de caráter jurídico, ao passo que os demais são os concessionários, "constituídos para a execução, com privilégio exclusivo, de serviço administrativo, de caráter industrial, de prestação de comodidades de obras ou coisas"4. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Encaminho o leitor interessado à série de artigos publicados no Portal Migalhas Notariais e Registrais.  2 Propositadamente, fizemos um recorte destacando o SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis das demais especialidades, especialmente porque a plataforma ONR/SREI foi preservada na nova lei (inc. V do art. 7º da Lei 14.382/2022 c.c. art. 76 da Lei 13.465/2017). 3 BANDEIRA DE MELLO. Oswaldo Aranha. Teoria dos Servidores Públicos. In RDP 1, jul./set. 1967. São Paulo: RT, 1967, p. 52, n. 28. 4 Idem, loc. cit.
Resumo O artigo aprofunda a discussão acerca dos Fundos de Investimento sob uma perspectiva do Direito Civil, do Direito Notarial, dos Registros Públicos e do Processo Civil, especialmente em razão do fato de essa matéria ter sido inserida no Livro de Direito das Coisas do Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019). Aborda também os principais julgados do STJ sobre fundos de investimento. Fundo de investimento é ente despersonalizado e configura um condomínio de natureza especial em que os cotistas são os condôminos. A finalidade dos cotistas é "investir" seu dinheiro adquirindo cotas do fundo de investimento, que, a seu turno, buscará o lucro por meio de operações de investimento guiadas por especialistas (capítulos 2 e 8). Como o fundo de investimento é um condomínio de natureza especial, não se aplicam as regras próprias do condomínio tradicional ou do condomínio edilício (art. 1.368-C, § 1º, do CC), do que dá exemplo o fato de que o cotista não teria legitimidade para, sozinho, propor ação para defender bens do fundo (capítulo 8.3.). A disciplina dos fundos de investimento atípicos está nos arts. 1.368-C ao 1.368-F do CC e em atos infralegais da CVM (especialmente a Instrução Normativa CVM nº 555/2014). Há, porém, fundos de investimento típicos, assim entendidos os que possuem uma disciplina legal ou infralegal própria, a exemplo do Fundo de Investimento Imobiliário. As regras gerais do CC se aplicam subsidiariamente aos fundos típicos por força do art. 1.368-F (capítulo 3). A responsabilidade do cotista pelas dívidas do fundo é, em regra, ilimitada. A exceção corre à conta de previsão, no regulamento do fundo, de responsabilidade limitada ao valor da cota, conforme art. 1.368-D, I, do CC (capítulo 4). Mudança no regulamento para tornar limitada a responsabilidade dos cotistas só alcançam dívidas nascidas posteriormente, tudo em respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, conforme art. 1.368-D, § 1º, do CC (capítulo 5). A CVM é autarquia criada para, em suma, proteger os investidores de "golpistas" e de "aventureiros". O CC reconheceu o papel regulamentar dela ao entregar-lhe a incumbência de regulamentar e de registrar os fundos de investimento, consoante o seu art. 1.368-C, §§ 2º e 3º (capítulo 6). O fundo de investimento nasce com o registro do regulamento na CVM. Antes do registro, o regulamento apenas prova um "fundo de fato", que, na prática, deve ser considerado como um mero contrato (capítulo 7). O fundo de investimento tem autonomia pessoal, patrimonial, processual e obrigacional em relação aos cotistas e aos prestadores de serviço, como o administrador, o gestor e o custodiante (capítulos 7 e 9). O fundo de investimento não é pessoa jurídica, e sim um ente despersonalizado, e, nessa condição, pode figurar como titular de bens no Registro de Imóveis e como parte em contratos e em processos judiciais. Pode, inclusive, sofrer dano moral, apesar de haver quem entenda pelo descabimento de dano moral contra entes despersonalizados (capítulo 8). Antes da Lei da Liberdade Econômica, havia dúvida jurídica razoável acerca da possibilidade de o fundo de investimento figurar como o titular de bens nos Registros Públicos e como parte em contratos e em processos judiciais. Havia quem entendesse que o nome do administrador é que deveria ser levado em conta. Entendemos ser viável a retificação dos registros públicos, do polo contratual e do polo judicial para colocar o fundo de investimento no lugar do administrador (capítulo 13.1.). No caso do Fundo de Investimento Imobiliário (FII), a sua lei específica (Lei nº 8.668/1993) está em aparente conflito com o CC (após sua alteração pela Lei da Liberdade Econômica em 2019) relativamente à natureza jurídica de ente despersonalizado do fundo de investimento, pois prevê que o registro dos bens do fundo deverá ser feito em nome do administrador na condição de titular da propriedade fiduciária. Entendemos que, à luz do diálogo das fontes, deve prevalecer as regras do CC, de maneira que os registros públicos, os contratos e os processos judiciais em nome do administrador anteriormente à Lei da Liberdade Econômica devem ser atualizados para que fazer constar o nome do fundo (capítulo 13.2.). Os prestadores de serviço do Fundo de Investimento só respondem civilmente por dolo ou má-fé, desde que estejam atuando de acordo com as regras de funcionamento do fundo. Se, porém, atuarem contrariamente às regras de funcionamento, a sua responsabilidade civil se satisfaz com a mera presença de culpa. Essa é a interpretação restritiva mais adequada do art. 1.368-E do CC. Há tendência da jurisprudência em incluir a culpa grave no conceito de dolo. O regulamento, porém, pode endurecer ou aliviar esse regime de responsabilidade dos prestadores de serviço, caso em que estes poderão se recusar a prestar o serviço ou aumentar a remuneração para absorver financeiramente o maior risco (capítulos 10 e 11). No caso de Fundo de Investimento Imobiliário, o art. 8º da sua lei específica (Lei nº 8.668/1993) responsabiliza o administrador no caso de "má gestão, gestão temerária, conflito de interesses, descumprimento do fundo ou determinação da assembleia de quotistas". Entendemos que esse dispositivo deve ser interpretado em harmonia com o art. 1.368-E do CC, de maneira que, se o administrador tiver agido dentro das regras de funcionamento do fundo, ele só responderá por dolo ou má-fé (capítulo 13.3.). Não há solidariedade entre os prestadores de serviço por danos causados aos investidores, salvo se eles, por ato próprio de vontade, assim pactuarem. É insuficiente a mera previsão no regulamento da solidariedade. Essa é a interpretação que reputamos mais adequada ao inciso II do art. 1.368-D do CC (capítulo 10). Embora a responsabilidade civil seja subjetiva, os prestadores de serviço estão sujeitos à responsabilização administrativa perante a CVM, que fiscaliza a atividade deles e que pode aplicar-lhes punições no caso de condutas negligentes, de maneira que a absolvição na esfera civil não afasta necessariamente eventual responsabilização administrativa (capítulo 10). Mesmo antes de o CC passar a disciplinar os fundos de investimento, o STJ firmara sua jurisprudência no sentido de negar pretensões indenizatórias formuladas por investidores que alegavam ter sofrido prejuízo com alguma operação malograda do administrador ou do gestor dos fundos de investimento, salvo se tivesse havido comprovação de gestão temerária ou se tivesse havido violação do dever de informação. Há, porém, uma presunção de ciência pelo investidor dos riscos de insucessos do fundo de investimento, pois, se o investidor não quisesse riscos, contentar-se-ia com os rendimentos mais modestos da poupança (capítulo 11). O regulamento pode fixar regime de patrimônio de afetação em favor de classes específicas de cotistas (capítulo 12). A cota do fundo de investimento é um bem móvel por determinação legal, o que afasta a incidência de ITBI ou a exigência da autorização conjugal do art. 1.647 do CC no caso de sua negociação (capítulo 13.4.). A cota é um bem do cotista e, por isso, por inexistir proibição legal, poderia ser objeto de atos voluntários de alienação e de oneração bem como de atos involuntários, como a penhora ou a sucessão causa mortis. Na prática, porém, com suporte em atos infralegais da CVM, os regulamentos do fundo costumam proibir atos voluntários de alienação, restringindo o poder do cotista ao de resgatar ou não suas cotas. Apesar de essa situação ser lícita, é desejável que o legislador reflita sobre a conveniência de mudar essa parcial indisponibilidade voluntária das cotas. Isso vale mesmo para a cessão fiduciária de cota de fundo de investimento em garantia de locação urbana, pois a lei específica exige autorização do regulamento do fundo para sua pactuação (art. 88, §§ 6º e 7º, Lei nº 11.196/2005 e art. 37, IV, da Lei nº 8.245/91). Entendemos, porém, estar implícita no CC a proibição de o regulamento vedar atos involuntários de transmissão da cota, como os decorrentes de sucessão causa mortis ou os decorrentes de penhoras judiciais (capítulo 13.5.). Urge que o legislador adapte a legislação à realidade contemporânea de desmaterialização da propriedade. Na prática, o patrimônio de inúmeros indivíduos é majoritariamente incorpóreo, e a legislação não está adequadamente preparada para essa nova realidade desmaterializada (capítulo 13.6.). O banco que orienta seus clientes a adquirem cotas de fundo de investimento não responde por insucessos futuros, salvo se violarem o dever de informação (não esclarecendo o cliente acerca dos riscos) ou se fizerem a aquisição da cota sem o consentimento do cliente. O STJ tem julgados nesse sentido (capítulo 13.7). Os Fundos de Investimento em Direito Creditório são instituições financeiras e, como tal, pode cobrar juros além do limite da Lei de Usura e pode exigir fiança como garantia das cessões de crédito pro solvendo. Esse é o entendimento do STJ (capítulo 13.8.). Clique aqui e confira a íntegra do texto.
A lei 14.382, publicada em 28 de junho de 2022, oriunda da conversão da Medida Provisória 1.085/2021, além de criar o "Sistema Eletrônico dos Registros Públicos" (SERP), promoveu relevantes alterações nas leis 4.591/64, 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP), 6.766/79, 8.935/94, 10.406/2002 (Código Civil), 11.977/09, 13.097/2015, e 13.465/17. O projeto gestado inicialmente no Ministério da Economia tem por objeto principal promover a integração entre as especialidades das delegações extrajudiciais (CF, art. 236), buscando concentrar o acesso pelos utentes desses serviços públicos de notável repercussão social no ambiente eletrônico e com interoperabilidade entre eles.     Sem embargo, após idas e vindas no processo legislativo, a lei 14.382/22 foi publicada com relevantes alterações para os Ofícios de Registro de Imóveis, ganhando notável destaque o tema da incorporação imobiliária. O legislador houve por bem revolver a intricada e complexa questão atinente ao adequado tratamento registral dado para as frações ideais do terreno que corresponderão às unidades futuras quando da fase de incorporação de um empreendimento imobiliário (Lei 4.591/64). Como a lei, antes da reforma, em nenhuma passagem havia dado uma diretriz concreta a respeito do tema, no âmbito das normatizações administrativas dos Estados, sobretudo das Corregedorias Gerais da Justiça, descortinaram-se duas posições bem delineadas: a primeira, que sustentava a impossibilidade de abertura de matrícula própria para as unidades em construção, pautando-se principalmente em sua inexistência físico-jurídica e eventuais consectários negativos de o empreendimento não progredir;1 e a segunda, que sustentava a plena possibilidade de se promover o descerramento de matrículas para as unidades futuras, após o registro da incorporação imobiliária, com arrimo em sua existência jurídica sob a ótica das frações ideais, ainda que por ficção legal.2 A primeira orientação, mais conservadora, é adotada de há muito pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo que criou a interessante e complexa sistemática das fichas complementares para serem escrituradas por ocasião da fase de incorporação imobiliária. A ideia fundamental é a segregação dos atos relativos apenas às unidades autônomas determinadas, em fichas individualizadas para cada uma delas, sem, no entanto, que isso implique em abertura de matrícula na fase de incorporação imobiliária. De tal modo, as fichas complementares ficam vinculadas à matrícula mestra do imóvel incorporado, de sorte que após a averbação da construção, com o registro da instituição e especificação do condomínio edilício, as mencionadas fichas complementares convolam-se, ipso facto, em matrículas autônomas; circunstância esta que é devidamente publicizada em cada uma das respectivas fichas através de averbação enunciativa.3      A redação das Normas de Serviço da Corregedoria paulista é bem ilustrativa e permite melhor visualização da sistemática de escrituração engendrada: 221.1. Independentemente da ficha auxiliar a que se refere o item 220, quando do ingresso de contratos relativos a direitos de aquisição de frações ideais e de correspondentes unidades autônomas em construção, serão abertas fichas complementares, necessariamente integrantes da matrícula em que registrada a incorporação. 221.2. Nessas fichas, que receberão numeração idêntica à da matrícula que integram, seguida de dígito correspondente ao número da unidade respectiva (Ex.: Apartamento: M.17.032/A.1; Conjunto: M.17.032/C.3; Sala: M.17.032/S.5; Loja: M.17.032/L.7; Box: M.17.032/B.11; Garagem: M.17.032/G.15, etc.), serão descritas as unidades, com nota expressa de estarem em construção, lançando-se, em seguida, os atos de registro pertinentes (modelo padronizado). 221.3. A numeração das fichas acima referidas será lançada marginalmente, em seu lado esquerdo, nada se inserindo no campo destinado ao número da matrícula. 221.4. Eventuais ônus existentes na matrícula em que registrada a incorporação serão, por cautela e mediante averbação, transportados para cada uma das fichas complementares. 222. Uma vez averbada a construção e efetuado o registro da instituição e especificação do condomínio, proceder-se-á à averbação desse fato em cada ficha complementar, com a nota expressa de sua consequente transformação em nova matrícula e de que esta se refere a unidade autônoma já construída, lançando-se, então, no campo próprio, o número que vier a ser assim obtido (modelo padronizado). 222.1. Antes de operada a transformação em nova matrícula, quaisquer certidões fornecidas em relação à unidade em construção deverão incluir, necessariamente, a da própria matrícula em que registrada a incorporação. 223. Para os cartórios que, na forma da determinação emergente do item 221, já adotem a prática rigorosa de registrar todos os atos relativos a futuras unidades autônomas na própria matrícula em que registrada a incorporação, será facultativa a adoção do sistema estabelecido nos itens 221.1 a 221.4, 222 e 222.1.  De outro bordo, a segunda orientação, adotada pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, autoriza o Oficial de Registro de Imóveis a proceder de plano, após o registro da incorporação imobiliária, a abertura de matrículas para as unidades autônomas que serão construídas, conforme descritivo constante do memorial de incorporação. A autonomia jurídico-registral das unidades, cada qual com seu fólio real próprio, parece atender com mais eficiência os princípios da unicidade matricial e da publicidade, facilitando sobremaneira a expedição de certidões. Simbolicamente, confira-se a redação da normativa fluminense: Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas. § 1º. Com o registro da incorporação imobiliária, a qualquer tempo é facultado ao incorporador requerer a abertura de tantas matrículas quantas sejam as unidades decorrentes do registro da incorporação realizada, entendida aí a descrição da futura unidade autônoma.  Argumenta-se a favor dessa corrente a necessidade de visão mais contemporânea e funcional do direito de propriedade, que não necessariamente - consideradas as vicissitudes sociais e econômicas próprias dos dias correntes -, devem respaldar o espelhamento no fólio real apenas de bens ou direitos tangíveis, concretos ou com lastro territorial determinado. É dizer, as inúmeras relações jurídicas emanadas da vida em sociedade e que, por força de lei refletem nos direitos reais sobre imóveis, como é o caso do direito real de laje, da multipropriedade imobiliária (time sharing) e dos multifacetados regimes condominiais (edilício - seja de casas, de apartamentos -, de lotes, urbano simples, etc.)4 merecem tutela registral mais eficiente; o que se alcança com descerramento de matrículas próprias para a laje, para a fração de tempo e para as unidades em construção, etc. Há ainda importante argumento atrelado à Análise Econômica do Direito (AED): ao se deferir a abertura de matrícula para cada unidade em construção de um empreendimento, esta providência gera indissociável redução da assimetria informacional, permitindo-se que os players do mercado imobiliário possam contratar com mais segurança e eficiência sobre referidas unidades. Ainda hoje se observa que a vinculação das unidades autônomas em construção à matrícula-mãe gera certo atravancamento das negociações, dificultando liberações de crédito e concessões de financiamentos imobiliários. Em suma, ao se descerrar matrículas para as unidades individualmente, corrobora-se para evidente redução dos custos de transação, o que é extremamente positivo para o mercado imobiliário e, ao fim e ao cabo, para a economia nacional.   Foi exatamente com esse espírito que o legislador, através da lei 14.382/22, resolveu inovar sobre a matéria incluindo na Lei de Registros Públicos a possibilidade de abertura de matrículas para as unidades autônomas em construção após o registro da incorporação. Eis a redação do art. 237-A, § § 4º e 5º, da LRP: § 4º É facultada a abertura de matrícula para cada lote ou fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma, após o registro do loteamento ou da incorporação imobiliária.   § 5º Na hipótese do § 4º deste artigo, se a abertura da matrícula ocorrer no interesse do serviço, fica vedado o repasse das despesas dela decorrentes ao interessado, mas se a abertura da matrícula ocorrer por requerimento do interessado, o emolumento pelo ato praticado será devido por ele. É certo que os dispositivos gozam de patente heterotopia. Sua alocação em parágrafos de norma geral que trata de emolumentos não foi a mais feliz. No entanto, isso não lhes retiram a importância enquanto inovação legislativa para o sistema registral imobiliário, consolidando-se a ideia - é bom que se diga uma vez mais: já ventilada anterior e indiretamente por outras leis reformadoras - de que o princípio da unitariedade matricial não só existe como é a viga-mestra do sistema registral brasileiro, mas deve partir da premissa de que o objeto retratado na matrícula é um imóvel (ou direito a ele correlato), enquanto unidade econômica e não mais como unidade física, atrelada exclusivamente ao solo.  Na busca da melhor técnica registral, boa providência para descerrar a matrícula para cada unidade autônoma na fase de incorporação é promover sua descrição no preâmbulo matricial tal como apresentada no memorial da incorporação e, em ato subsequente, lançar a averbação noticiando que se trata de unidade em fase de construção. A ideia do averbamento enunciativo é informar que se trata efetivamente de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada. Tal providência permite melhor graficidade da matrícula, mormente quando, por ocasião do término das obras, for promovida a averbação da construção e a instituição do condomínio. Assim, ao final, não constará do preâmbulo da matrícula a expressão "em construção" ou outra congênere, evitando-se de modo mais eficiente interpretações equivocadas por parte dos consulentes do fólio. Bem vistas as coisas, os dispositivos em testilha são harmônicos com as introduções feitas pela lei 14.382/22 na lei 4.591/64 ao criar um regime de condomínio especial que vigora temporariamente e com termos bem definidos: do registro do memorial de incorporação até a instituição do regime de condomínio edilício. Note-se que referido condomínio de frações ideais é peculiar, próprio do seu gênero, e não se confunde com o regime final, desejado, do condomínio edilício. Por esse motivo o legislador expressamente declarou no art. 32, § 1º-A, da lei 4.591/64 que "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos".5 Na mesma medida, à luz da atual redação da lei 4.591/64, esse regime especial e intermediário de frações ideais (que corresponderão às futuras unidades) nasce com o registro do memorial de incorporação, (art. 32, caput), sendo certo que sua constituição é efeito automático daquele registro (art. 32, § 15). Em outras palavras, não se faz necessário qualquer providência registral adicional nesta fase de incorporação.6 Aqui reside a harmonia autorizante da abertura de matrículas para as unidades em construção, após o registro da incorporação imobiliária. Coloca-se em evidência que este regime condominial especial,7 congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro (leia-se: de condomínio de frações ideais para o condomínio edilício). Noutras palavras, o registro da incorporação, que antecede a edificação do prédio e serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, em nada se relaciona com o nascimento jurídico das unidades em regime de condomínio edilício, ainda não instituído.8 Por possuírem naturezas e efeitos jurídicos distintos, o registro da incorporação não se presta a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial.9 Assim, simultaneamente ao ato de averbação da construção, deve ser feito o registro da instituição e especificação do condomínio, a fim de que, a partir desse instante, as unidades autônomas edilícias passem a existir juridicamente. Há, assim, contemporaneidade necessária entre o ato de registro da instituição condominial e o ato de averbação da construção do edifício. Se este último tem o efeito jurídico da individualização e discriminação das unidades autônomas, insta, à evidência, que essas mesmas unidades, naquele instante, existam jurídica e registrariamente, o que só se dá com o registro da instituição e especificação do condomínio.10 Tal conclusão não necessita de qualquer esforço hermenêutico, e pode ser haurida sem dificuldade da simples leitura do art. 7º da lei 4.591/1964.11 Demais disso, a própria Lei de Registros Públicos no seu art. 167, I, nº 17, exige o registro da instituição do condomínio edilício com autonomia em relação ao registro da incorporação.12 Este é o entendimento consolidado na Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo há, ao menos, quatro décadas: Ora, é translúcido que, como, por hipótese, a construção não está ainda concluída, não havendo excogitar sequer da realidade física dos apartamentos, os negócios jurídicos só podem respeitar a direitos de aquisição, concernentes às acessões em obras e às respectivas frações ideais de terreno. A esses atos jurídicos é que a Lei se refere no exemplificar os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas (art. 32, § 1º, da Lei 4.591/64). Jamais poderiam entender com as unidades autônomas, no seu rigoroso sentido técnico, que se trata de realidades jurídicas por nascerem de providências consequentes, ou seja, do registro da instituição condominial. Nem mesmo sob a vigência do Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, se controverteu que o exsurgimento jurídico do condomínio em edifício, ou propriedade horizontal, depende do registro do título constitutivo e individuante das unidades autônomas (cf. SERPA LOPES, "Tratado dos Registros Públicos", Freita Bastos, 5ª ed., 1962, vol. IV, págs. 274 e 275, nº 680). E incisiva, no particular, a disposição do art. 7º, cc. art. 44 e §§, da Lei 4.591/64, que assentou o princípio de que "o registro é requisito formal ad substantiam, e, que sem ele, não há condomínio por unidades autônomas" (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, "Condomínio e Incorporações", Forense, 1ª ed., 1965, pág. 98, nº 54. Grifos do original)'. Tem-se, pois, que até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios, situação que, aliás, foi considerada pelo legislador ao dispor no item 3 da Tabela II da Lei Estadual nº 11.331/02 que: "Com respeito à aquisição de frações ideais de terreno vinculadas a futuras unidades autônomas, no regime de incorporação, a cobrança de emolumentos será feita em duas etapas. Quando do registro de alienações de frações ideais do terreno, os emolumentos serão calculados sobre o valor da fração ideal do terreno, constante da escritura ou seu valor venal correspondente, o que for maior. Efetivada a instituição do condomínio especial, sem prejuízo dos emolumentos devidos por este ato, serão cobrados emolumentos referentes a cada unidade autônoma, considerando o valor derivado da edificação realizada ou do negócio jurídico celebrado, o que for maior"13  Dito de outro modo, o contrato de incorporação extingue-se com a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações e sua entrega aos adquirentes em condição de habitabilidade. Bem se vê, destarte, que o registro da incorporação imobiliária não pode se prestar a suprir o registro posterior da instituição e especificação condominial. Consoante já se observou, este último registro é, afinal, aquele que dá existência jurídica às unidades autônomas construídas. Sem ele, pois, não se terá mais que uma realidade física, se muito, representada pela edificação, mas não levada ao registro. Vale lembrar, ainda, que o art. 1.332 do Código Civil também é claro ao disciplinar a instituição do condomínio edilício como instituto diverso e autônomo à incorporação imobiliária: Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III - o fim a que as unidades se destinam.  Na mesma diretriz é a didática lição de Ademar Fioranelli: Ledo engano pensar que o condomínio nasça com o registro da incorporação; no entanto, sem ele, obviamente não se chega àquele. Trata-se de um procedimento inicial de efeito temporário cuja principal finalidade é proteger os aderentes do empreendimento, desde que se faça o arquivamento no Registro de Imóveis competente de toda documentação elencada no artigo 32 da lei 4.591/64, até a efetiva entrega das unidades autônomas.14  Em arremate, com a reforma legislativa perpetrada pela lei 14.382/22, pode-se concluir que optando o empreendedor pelo regime de incorporação imobiliária e todos seus benefícios subjacentes: (i) exsurge com o seu registro a possibilidade de alienar as unidades futuras em construção (art. 32, caput); (ii) unidades futuras essas que poderão contar desde logo com matrícula própria, distinta da matriz registral do empreendimento (LRP, art. 237-A, §§ 4º e 5º), já que o registro da incorporação gera, ope legis, um condomínio especial sobre as frações ideais (Lei 4.591/1964, art. 32, §1º-A e § 15); (iii) sendo indispensável, após a expedição do "habite-se", a averbação da construção e o registro em sentido estrito da instituição e especificação do condomínio edilício (Lei 4.591/1964, art. 7º c.c. LRP, art. 167, I, nº 17).  _______________ 1 A título de ilustração, esta diretriz era traçada, dentre outros, nos Estados de São Paulo e do Paraná. Confira-se a redação da normativa paulista a este respeito: "221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas". 2 Já adotavam este entendimento, dentre outras, as normativas estaduais de Goiás, do Rio Grande do Sul e do Rio de janeiro. Ilustre-se a intelecção com a redação da norma goiana: "Art. 1.060. Antes de concluída a obra, poderão ser abertas matrículas para as unidades autônomas, a pedido o incorporador ou em razão do registro de contratos, transportando-se os eventuais ônus existentes. Parágrafo único. Na hipótese de que trata o caput, deverá constar averbação expressa de que se trata de obra projetada, em fase de incorporação, pendente de regularização por meio de averbação da construção e registro de instituição de condomínio, quando finalizada".  3 Importa salientar que esta sistemática é de adoção facultativa pelo registrador de imóveis que, por técnica de registro, pode optar, na fase de incorporação, pelo lançamento de todos os atos de registro ou de averbação, referentes a todas as unidades do empreendimento, na matrícula matriz. No entanto, não é difícil imaginar que a manutenção de única matriz tabular para lançamento de atos relativos a todas as unidades de empreendimentos que possuem centenas delas gera uma complexidade imensa de controle da disponibilidade e, na mesma medida, dificulta a publicidade registral. 4 Registre-se que a lei 14.382/22, em espírito inovador, houver por bem criar interessante regime híbrido entre as modalidades de parcelamento do solo e a incorporação imobiliária. Eis a nova disciplina do art. 68 da Lei 4.591/1964: "Art. 68. A atividade de alienação de lotes integrantes de desmembramento ou loteamento, quando vinculada à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 desta Lei ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, caracteriza incorporação imobiliária sujeita ao regime jurídico instituído por esta Lei e às demais normas legais a ele aplicáveis. § 1º A modalidade de incorporação de que trata este artigo poderá abranger a totalidade ou apenas parte dos lotes integrantes do parcelamento, ainda que sem área comum, e não sujeita o conjunto imobiliário dela resultante ao regime do condomínio edilício, permanecendo as vias e as áreas por ele abrangidas sob domínio público.  § 2º O memorial de incorporação do empreendimento indicará a metragem de cada lote e da área de construção de cada casa, dispensada a apresentação dos documentos referidos nas alíneas e, i, j, l e n do caput do art. 32 desta Lei. § 3º A incorporação será registrada na matrícula de origem em que tiver sido registrado o parcelamento, na qual serão também assentados o respectivo termo de afetação de que tratam o art. 31-B desta Lei e o art. 2º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, e os demais atos correspondentes à incorporação. § 4º Após o registro do memorial de incorporação, e até a emissão da carta de habite-se do conjunto imobiliário, as averbações e os registros correspondentes aos atos e negócios relativos ao empreendimento sujeitam-se às normas do art. 237-A da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos)". 5 O discrímen fica evidente quando a mesma lei 14.382/22, no que toca ao regime das retificações de registro, e a necessidade de anuência ou notificação dos confinantes, deliberou que no caso de condomínio edilício será de rigor sua representação pelo síndico; já no caso do condomínio de frações ideais sua representação será pela comissão de representantes (LRP, art. 213, § 10, II). Fosse o mesmo condomínio tratado pelo legislador, à evidência, não haveria necessidade da distinção.  6 Art. 32, § 15, da lei 4.591/64. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.  7 De ver-se que o § 15 do art. 32 não cuida propriamente de novidade. O legislador apenas incorporou no texto da norma aquilo sempre existiu como efeito jurídico do registro da incorporação imobiliária. Veja-se passagem emblemática da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo a este respeito: "O registro da instituição e especificação do condomínio, portanto, é essencial para que deixe de existir o regime de comunhão em frações ideais sobre o terreno e passe a existir o instituto do condomínio edilício que importa em coexistência de propriedade exclusiva sobre as unidades autônomas (apartamentos, lojas, garagens etc.) e copropriedade sobre o todo do terreno e sobre as partes do edifício de uso comum dos condôminos" (CGJSP - Processo 0029914-40.2017.8.26.0576, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j.26/04/2019).  8 "Como é curial, e claramente depreendido dos termos do art. 32 da lei 4.591, o registro da incorporação serve antes de tudo a viabilizar o início da negociação das unidades autônomas a serem erigidas, com garantia e segurança dos adquirentes. Evidentemente, tal registro em nada se relaciona com o nascimento jurídico destas unidades do condomínio, ainda não instituído. A situação da incorporação é por natureza efêmera, pois não vai além da conclusão da edificação. A incorporação reveste índole de transitoriedade, exaurindo-se com o término da edificação" (CGJSP - Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994).  9 A instituição de condomínio é fase superveniente à construção e se destina à individualização das unidades autônomas a que são vinculadas as frações ideais relativamente ao terreno e às partes comuns do edifício e à indicação do fim a que se destinam, constituindo, assim, autêntico procedimento divisório entre os comunheiros, como ensinam Nisske Gondo e Nascimento Franco: "Como se vê, a especificação do condomínio, com a atribuição aos condôminos, de partes ideais do terreno, áreas e coisas de uso comum, é um autêntico procedimento divisório entre os comunheiros" (FRANCO, João Nascimento; GONDO, Nisske. Condomínio em edifícios. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 27).  10 CGJSP - Processo 1005346-86.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.09/02/2021.  11 Art. 7º da lei 4.591/64. O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dele constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade.  12 Art. 167, I, nº 17, da LRP. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: 17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio. 13 CGJSP - Processo 1014097-36.2020.8.26.0309, Des. Ricardo Mair Anafe, j.06/10/2021. Nesse sentido é farta a jurisprudência paulista, que vem sendo reiterada há décadas: CSMSP - Apelação Cível 1.176-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.28/06/1982; CSMSP - Apelação Cível 1.846-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.19/04/1983; CSMSP - Apelação Cível 2.145-0, Rel. Des. Bruno Affonso de André, j.04/04/1983; CSMSP - Apelação Cível 286.693, Rel. Des. Humberto de Andrade Junqueira, j.17/12/1979; CGJSP - Processo 1.403/1994, Des. Antonio Carlos Alves Braga, j.12/08/1994; CGJSP - Processo 511/2005, Des. José Mário Antonio Cardinale, j.15/09/2005; CGJSP - Processo 1004386.56.2019.8.26.0344, Des. Ricardo Mair Anafe, j.11/02/2021; 14 FIORANELLI, Ademar. Condomínio Edilício Incorporação Imobiliária: Registro de Atribuição de Unidades Autônomas. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra e Gilberto Carlos Maistro Júnior, coordenadores. Direito Imobiliário. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. p. 272. _____________ *Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é registrador de Imóveis no Estado de São Paulo. Exerce atualmente a delegação do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Jurídicas e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Pedreira/SP. Pesquisador da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR) nos departamentos de Direito e Economia e de Registro de Imóveis. Professor de Direito Notarial e Registral em cursos de graduação e pós-graduação. Autor da obra "Alienação Fiduciária de Bens Imóveis", pela Editora Thomson Reuters - RT, atualmente em sua 2ª edição (2022).  
Introdução  O sistema de crédito brasileiro possui garantias jurídicas pessoais e reais. As garantias pessoais são a fiança e o aval. E as garantias previstas no código civil são, a hipoteca, a anticrese, o penhor e a fidúcia para bens móveis. A legislação extravagante trouxe a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis prévia ao atual código civil em 1997, a Lei 9.514 do citado ano. O patrimônio rural em afetação é a novidade legislativa entre as garantias reais trazida pela chamada, Lei do Agro, lei 13.986/2020. O sistema de garantias serve para assegurar o cumprimento de obrigações, mediante diminuição de imprevisibilidade. O adimplemento de qualquer obrigação é cercado por infinitas variáveis, tanto de cunho subjetivo, como de cunho natural e, para que credores tenham seus negócios adimplidos, foi pensado um sistema de garantias. Na atualidade, as garantias se mostram necessárias, sendo importantes objetos para o fomento de atividades específicas. No setor do agronegócio, a garantia para financiamentos, seja por pessoas jurídicas ou físicas, se mostra fundamental para a diminuição dos custos financeiros. Portanto, antes do advento da lei 13.986 de 2020, tínhamos, apenas como garantias reais, como dito, a hipoteca, a anticrese, o penhor e a alienação fiduciária. Em 2020 foi criado pela lei 13.986, concomitante à Cédula Imobiliária Rural (CIR), o Patrimônio Rural em Afetação (PRA), para ser utilizado como meio de garantia ao adimplemento de obrigações advindas da CIR e da Cédula de Produto Rural (CPR). O sistema de crédito O crédito pode ser definido como uma ampliação da troca ou escambo, ou seja, como uma ferramenta para multiplicar trocas sendo muito mais amplo sua aplicabilidade para criar recursos que a própria moeda circulante1. A palavra crédito deriva do latim creditum. A origem de creditum vem de credere, que em tradução livre seria confiança, fé.2 O credor, portanto, tem confiança que o devedor lhe restituirá o que recebeu em empréstimo. Desde a idade média, o título de crédito, seria uma operação com a qual o proprietário de um bem (credor) cede a propriedade (de determinado valor, crédito, bens) para outra pessoa (devedor) em troca de uma contraprestação diferida de natureza pecuniária3. O termo "crédito", portanto, deriva precisamente da crença (confiança, crença) do proprietário do ativo que o devedor cumprirá por conta própria obrigação.4 A prestação do credor pode ser constituída pelo ativo que o devedor deseja ou (mais frequentemente) de algo com o qual ele possa obtê-lo, ou seja, um bem disponível líquido ou facilmente conversível em dinheiro. Nesse sentido, o bem conversível líquido por excelência é a moeda corrente do país, cujo poder de compra é imediatamente utilizável. Menor grau de liquidez há em outros "créditos" ou "bens", cuja conversão em dinheiro requer mais ou menos tempo e não sem risco; entre eles, em ordem decrescente de facilidade de monetização, títulos de dívida pública, recebíveis de terceiros (títulos de crédito entre particulares), empréstimos e ativos a prazo.5 Nas palavras de Maria José Villaça, liquidez é: "...  uma questão de grau que se aplica a todos os ativos negociáveis ou àqueles sôbre os quais os indivíduos têm o direito de propriedade e dêles podem dispor, transformando-os em caixa. A liquidez seria, pois, a propriedade de um ativo, governada pela relação entre o tempo e o preço alcançado, considerando-o livre de todos os custos decorrentes da venda. O seu preço total seria o conseguido após um dado período de tempo, uma vez que certas medidas fossem tomadas no preparo de sua venda. Quanto menor o espaço de tempo decorrido, uma vez admitido um período ótimo para se alcançar o preço total, quando certas medidas são tomadas no preparo da venda, menor será a contrapartida conseguida na troca."6 As primeiras formas de crédito, consistiam principalmente em contratos de empréstimos pecuniários e de câmbio7; outros instrumentos de crédito são gradualmente adicionados. Sob o estímulo de diferentes necessidades, os operadores do mercado de capitais (desde a idade média) tendem a experimentar novas operações de crédito, cuja difusão está ligada à sua disciplina jurídica e a segurança que possa dar ao credor em ter algum lucro com o "bem" emprestado. Para que novas formas de crédito sejam adotadas em larga escala, elas devem ter uma fisionomia definida por lei; no entanto, esse processo é muito longo, porque a configuração de novos institutos de crédito não pode se limitar a eventuais evoluções legislativas. O mercado é ágil e resolve sempre a frente do direito seus "problemas"8. A legislação sempre corrige eventuais falhas ou abusos do mercado. Tem sido assim desde a idade média. Tulio Ascarelli leciona que "sem os títulos de crédito a vida econômica moderna seria incompreensível"9. Com esta breve análise sobre o nascimento do sistema de crédito e de seu instrumento mais usual na idade média, em grande salto histórico adentrar-se-á a breve estudo somente dos sistemas de garantias para o pagamento de dívidas e posteriormente às cédulas, à alienação fiduciária, o patrimônio rural em afetação para compreensão da aplicação das regras sobre a alienação fiduciária em garantia aos PRA's.  O patrimônio rural em afetação O patrimônio rural em afetação foi criado e instituído no nosso ordenamento jurídico pela lei 13.986/2020, regulamentado nos artigos 7° ao 16, como uma modalidade de direito real de garantia que incide sobre imóveis rurais a serem vinculados à Cédulas Imobiliárias Rurais (regulamentadas nos artigos 17 ao 29 da lei 13.986/2020) ou à Cédulas de Produtos Rurais (previstas na Lei 8.929/1994). Pode se dar sobre totalidade do imóvel ou ainda, sobre parcela ou fração específica. O proprietário do imóvel, pessoa natural ou jurídica, é quem pode dar o seu imóvel ou fração dele em regime de afetação. São alcançados por este regime o terreno, as benfeitorias e eventuais acessões existentes, com exceção das lavouras, bens móveis e semoventes. A sua constituição se dá de forma prévia à emissão de qualquer dessas Cédulas, através de registro junto à matrícula do imóvel vinculado (artigo 9°, caput da Lei 13.986/2020 combinado com artigo 167, I, alínea 47 da Lei 6.015/1973, ambos com redações dadas pela lei 14.421/2022). Não podem ser submetidos a este regime especial: a) a pequena propriedade rural, prevista na alínea 'a' do inciso II do caput do artigo 4° da lei 8.629/92; b) os imóveis já gravados com algum ônus real ou que tenha inscrito no seu fólio real quaisquer das hipóteses previstas no artigo 54 da lei 13.097/2015; c) área de tamanho inferior à fração mínima para o parcelamento; d) o bem de família, com exceção ao que está disposto no artigo 4°, §2° da lei 8.009/90. Percebe-se que, de todas as garantias reais existentes em nosso ordenamento jurídico, apenas o patrimônio rural em afetação tem proibição expressa acerca da pré-existência de qualquer outra espécie de garantia real inscrita no fólio real. O regime especial das Incorporações Imobiliárias, por exemplo, previstos nos artigos 31-A a 31-F, da lei 4.591/64, não possuem essa rigidez10. Uma questão interessante aqui, diz respeito aos previstos no artigo 12, I, 'd', e nos incisos IV e V da do mesmo artigo, da lei 13.986/2020. Em uma leitura atenta e sistemática, devemos entender que, para a constituição do regime de afetação a que alude a lei, será necessário que o imóvel rural esteja especializado objetivamente, através do sistema de Georreferenciamento, em sua totalidade, mesmo que a vinculação vá se dar apenas em parcela do imóvel. Além desse tipo de especialização em sua totalidade, também deverá se dar sobre a parcela a ser afetada, caso não recaia sobre a totalidade. Em ambos os casos será necessário, também, a certificação do INCRA, atestando que não ocorre sobreposição sobre demais imóveis rurais georreferenciados (artigo 9°, §1° do decreto Federal  4.449/2012 combinado com artigo 12, I, 'd', IV e V da lei 13.986/2020). No artigo 9°, § 2º da lei 13.986/2020, com redação acrescida pela lei 14.421/2022, temos a previsão de que, quando a afetação se der sobre parcela do imóvel, deverá se fazer a especialização da área afetada, tendo a mesma previsão do artigo 12, I, 'd', da mesma lei. A novidade, nessa redação, foi a previsão da necessidade de se fazer também a especialização da área remanescente e, aqui, também entendemos que será através do Georreferenciamento. Não faz sentido especializar a área afetada por um sistema e não se adotar o mesmo para a área remanescente. Então, na visão do legislador, o imóvel deve estar inicialmente georreferenciado para se submeter ao regime de afetação; e, se a afetação se der sobre parcela do imóvel, deve-se georreferenciar essa área e, também a remanescente. Nesse último caso, após o registro do patrimônio rural em afetação junto a matrícula do imóvel, faz-se averbação da descrição da área remanescente, com fundamento no artigo 246 da lei 6.015/73 combinado com o artigo 9°, § 2° da lei 13.986/2020, já citado.   Agora, como um direito real de garantia em que se submete o imóvel ou parte dele à um regime especial, o legislador tomou o cuidado de estabelecer algumas regras que deem mais segurança jurídica a operação financeira que dará ensejo as emissões da Cédula Imobiliária Rural ou Cédula de Produto Rural. Observa-se no disposto no artigo 10 da lei 13.986/2020: Art. 10. Os bens e os direitos integrantes do patrimônio rural em afetação não se comunicam com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios rurais em afetação por ele constituídos, nas seguintes condições: I - desde que vinculado o patrimônio rural em afetação a CIR ou a CPR; II - na medida das garantias expressas na CIR ou na CPR a ele vinculadas. § 1º Nenhuma garantia real, exceto por emissão de CIR ou de CPR, poderá ser constituída sobre o patrimônio rural em afetação. § 2º O imóvel rural, enquanto estiver sujeito ao regime de afetação de que trata esta Lei, ainda que de modo parcial, não poderá ser objeto de compra e venda, doação, parcelamento ou qualquer outro ato translativo de propriedade por iniciativa do proprietário. § 3º O patrimônio rural em afetação, ou parte dele, na medida da garantia vinculada a CIR ou a CPR: I - não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela a qual esteja vinculado; e II - é impenhorável e não poderá ser objeto de constrição judicial. § 4º O patrimônio rural em afetação ou a fração destes vinculados a CIR ou a CPR, incluídos o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no terreno, exceto as lavouras, os bens móveis e os semoventes: I - não são atingidos pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural; e II - não integram a massa concursal. § 5º O disposto neste artigo não se aplica às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural. Há, portanto, expressa blindagem patrimonial com a constituição desta nova garantia, sendo verdadeira medida de segurança para realizações de tráfego negocial relativo a créditos rurais, semelhante ao regime previsto na Lei de Incorporações Imobiliárias, regulamentada pela lei 4.591/1964 nos artigos 31-A e seguintes. Nos ensina aqui, Claudinei Antonio Poletti (pag. 36, 2021, 'A Nova Lei do Agro', Ed. Contemplar), "Por outro lado, uma vez constituído e vinculado a um dos dois títulos que lhe são permitidos, o patrimônio rural em afetação se torna incomunicável com o restante do patrimônio do constituinte, e, por consequência, não responde por outras dívidas ou obrigações de qualquer natureza, exceção às de origem 'trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural'. Torna-se, também, inalienável, não podendo ser vendido, parcelado ou realizado qualquer outro tipo de ato translativo, por iniciativa do proprietário. Da incidência das regras referentes a alienações fiduciárias em garantia Conforme dito anteriormente, quando tratamos do conceito do regime especial objeto do presente estudo, vimos que o patrimônio rural em afetação é constituído com a finalidade de servir como direito real de garantia vinculada a uma Cédula de Produto Rural ou da Cédula Imobiliária Rural. Falamos também que a constituição dessa garantia real, se dá através do registro prévio junto à matrícula do imóvel. Uma vez constituído, seus efeitos ficam condicionados à emissão de uma das Cédulas Rurais mencionadas. Vale dizer, servirá como direito real de garantia e, sofrerá a blindagem a que alude o artigo 10 da lei 13.986/2020, apenas quando, efetivamente, for emitido um dos referidos títulos de crédito vinculantes. Agora, questão interessante diz respeito as regras específicas de cada Cédula objeto desse artigo. Para as Cédulas de Produtos Rurais, veremos que o legislador admitiu a constituição de quaisquer garantias reais previstas em lei, a ser inserida no título (artigo 5° da lei 8.929/1994). Então, além do próprio patrimônio rural em afetação, permite-se que este tipo de título de crédito tenha, em seu bojo, outras garantias reais. Diferentes são as regras relativas as Cédulas Imobiliárias Rurais.  Estas, não tem nenhuma outra garantia real a não ser o próprio patrimônio em afetação. Percebe-se assim, um tratamento diferenciado, por opção do legislador, a depender do tipo de financiamento e Cédula emitida. No que tange as Cédulas Imobiliárias Rurais, temos uma previsão que foi alvo de severas críticas quando do seu surgimento. Trata-se do disposto no artigo 17, II da lei 13.986/2020, que traz a disposição de que, quando de sua emissão, deve-se inserir uma cláusula obrigatória de entrega, em favor do credor, do imóvel rural ou de parte dele que esteja afetado a garantia da operação de crédito contratada, nas hipóteses em que não houvesse o pagamento até a data do vencimento. Aqui, a crítica se consubstanciava no fato do legislador não ter estabelecido qual seria o instituto jurídico a ser aplicado e nem eventuais regras que possibilitassem a purgação de mora sem a ocorrência drástica de perda da propriedade. Seria uma modalidade de expropriação particular. O legislador veio a corrigir isso, agora, com a lei 14.421/2022. Fez uma importante modificação na norma, a trazer a aplicação das regras relativas à alienação fiduciária em garantia de bem imóvel prevista na Lei 9.514/1997, para os patrimônios rurais em afetação, inserindo o parágrafo terceiro ao artigo 7° da Lei do Agronegócio. Nesse diapasão, temos o entendimento de que o previsto no artigo 17, II, deve ser interpretado em conjunto com o citado artigo 7°, §3°, ambos da lei 13.986/2020. Uma vez verificado pelo credor o inadimplemento das obrigações pelo emitente devedor, deverá aplicar as regras executórias previstas nos artigos 26 e seguintes da lei 9.514/1997. O credor não será proprietário fiduciário do imóvel quando da emissão da cédula. Não foi essa a intenção do legislador. O objetivo aqui foi de oferecer as regras executórias da Lei. No que tange as Cédulas de Produtos Rurais, como falamos anteriormente, já havia a previsão da possibilidade de se constituir a Alienação Fiduciária em Garantia de Bem Imóvel no próprio título. O que se deve observar aqui, com cautela, é que o legislador trouxe regras que mitigam a aplicação da lei 9.514/1997, na própria lei 8.929/1994. Se olharmos o artigo 5° da Lei 8.929/1994, veremos que o legislador dispôs que se aplicam as regras referentes as garantias instituídas, naquilo que não conflitar com a referida lei. Temos, também, a previsão do artigo 16 desta mesma norma, prevendo que a busca e apreensão ou o leilão do bem alienado fiduciariamente, promovidos pelo credor, não elidem posterior execução, inclusive da hipoteca e do penhor constituído na mesma cédula, para satisfação do crédito remanescente. O parágrafo único dispõe ainda que o credor poderá cobrar eventual dívida remanescente através de uma ação própria. Vejamos, a título de exemplo, que, nesses casos, não incide a regra do artigo 27, §5° da lei 9.514/97, não ocorrendo a quitação da dívida, caso o maior lance oferecido e aceito em eventual segundo leilão, não alcance o valor total da dívida. Justamente, pelo disposto no artigo 16 da Lei 8.929/1994, acima citada. Conclusão Trouxemos este artigo com objetivo de construção de um debate, a respeito da aplicação das regras referentes as alienações fiduciárias de imóveis aos patrimônios rurais em afetação. Nosso entendimento esposado é no sentido de serem aplicadas apenas as regras executórias da lei 9.514/1997, no caso de patrimônios rurais em afetação, vinculadas as Cédulas Imobiliárias Rurais. No que tange aos casos de Cédulas de Produtos Rurais, aplicar-se-ão apenas as regras executórias quando a própria cédula tiver outro tipo de garantia. Nos casos em que a AFG for objeto de garantia cedular, aí, aplicam-se todas as regras da lei 9.514/97, com a ressalva do disposto no artigo 5º da lei 8.929/1992. A individualização de parte do imóvel, por exemplo e o ato registral de gravá-lo com o patrimônio rural em afetação, facilitando enormemente a execução, pode muito bem ser descrito como uma forte garantia, ou como chamamos, uma SUPER GARANTIA REAL. Pensar diferente, seria desvirtuar as naturezas jurídicas de tais títulos de crédito, e estes passariam a ter uma forte natureza contratual e não mais a garantia acessória, no caso a AFG. Para chegarmos a esse raciocínio, foi necessário tratarmos, mesmo que de en passant do sistema de crédito e das diversas garantias reais previstas no nosso ordenamento jurídico, do patrimônio rural em afetação, dispondo sobre a sua natureza jurídica, instituição e especialização, para depois tratarmos, aí sim, do objetivo central deste artigo. Ficam ainda muitas questões em aberto, e o debate com futuros estudos deverão aprofundar o tema.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 2 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. "Títulos de Crédito". 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 3. 3 FERRO JR, Izaias Gomes. Introdução aos Títulos de Crédito e o Protesto de Títulos. Salvador: Juspodivm, 2020, apud EL DEBS, Martha e FERRO JR, Izaias Gomes. O Novo Protesto de Títulos e Documentos de Dívidas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 235. 4 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 5 VILLAÇA, Maria José. O Conceito de Liquidez. Rev. adm. empres. vol.9 no.1 São Paulo Jan./Mar. 1969, acesso em 31 jul 2022. 6 VILLAÇA, Maria José, ibid. 7 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 8 Disponível aqui. Acesso em 30 jul 2022. 9 ASCARELLI, Tulio. Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Trad. Nicolau Nazo. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva, 1943, p.3 10 Conceitualmente, o vocábulo "afetação" nas duas leis, 4.591/64 e 13.986/2020, parece ser o mesmo. Em verdade, afetar nestes termos, significa, separar, empregar de forma única, proteger algo ou alguém. A submissão da incorporação imobiliária ao regime de "afetação imobiliária" fará a separação daquele bem, ao restante do patrimônio do construtor, ou incorporador e este terá destinação exclusiva visando única e exclusivamente a construção do empreendimento imobiliário e a entrega das futuras unidades aos adquirentes. Na legislação de afetação urbana há separação, e não é espécie de garantia real. Já a lei 13.986/2020 trouxe, claramente uma nova garantia, que chamamos de SUPER GARANTIA, que é a destinação do patrimônio total ou parcial, a prestar garantias em operações de crédito junto aos bancos, cooperativas, e instituições financeiras em geral. Resumindo, na incorporação, a finalidade é já apartar o patrimônio, com sua matrícula própria, em nome do incorporador, ou construtor, averbada a AFETAÇÃO, visando proteção dos futuros adquirentes das unidades autônoma. O patrimônio de afetação do imóvel rural serve como uma SUPER GARANTIA REAL, vez que previamente já georreferencia o imóvel todo ou parte dele facilitando a execução, calcada na lei 9.514/94.
Já tivemos oportunidade de tratar do novo procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória dos contratos preliminares integralmente quitados. Hoje a nossa atenção se volta para o mesmo contrato, mas agora sob a ótica de sua rescisão. De fato, se quem pagou todas as parcelas de um compromisso, pode exigir fora do âmbito do poder judiciário que lhe seja transmitido coativamente o domínio, não seria natural que esse contrato preliminar seja da mesma forma desfeito e seu registro cancelado quando a pessoa deixa de pagar as prestações? Parece ser intuitivo que a resposta seja sim. Como se sabe, no âmbito da alienação fiduciária já é um grande sucesso a sua execução extrajudicial. Também é muito utilizada a usucapião extrajudicial para a titulação de pessoas que exercem posse durante anos a fio. E também é possível a rescisão extrajudicial do compromisso de compra e venda, no âmbito dos loteamentos de imóveis urbanos (art. 32, §1º, lei 6.766/1979). Todavia, o art. 251-A da Lei 6.015/73 é uma novidade que deve ser festejada, pois admite a rescisão do contrato registrado, sem a necessidade se recorrer ao poder judiciário, não apenas nos casos de loteamentos, mas em todos os casos de promessa de venda de imóveis cujas prestações não sejam pagas. Hoje, quando alguém quer vender um imóvel com o pagamento em parcelas, normalmente estabelece uma cláusula de "condição resolutiva", que o poder judiciário tem predominantemente entendido que ainda assim requer uma ação para obter a rescisão. Outra opção é garantir essa dívida com a alienação fiduciária, que exige a realização de leilões antes que o credor possa ficar com o bem. Porém, agora é possível que o contrato de promessa de vendaregistrado na matrícula do imóvel seja rescindido e o seu registro cancelado, em caso de não pagamento das prestações, tudo isso rapidamente e sem necessidade de se mover uma ação judicial. A nova disposição legal permite que o prejudicado com a falta de pagamento requeira ao oficial do registro de imóveis que intime o devedor para que, em 30 dias, coloque os pagamentos em dia com todos os seus acessórios, diretamente no cartório. Se o pagamento for feito, o valor é logo repassado ao credor, o contrato fica mantido e tudo seguirá normalmente. Mas, se nesse prazo a dívida não for paga, o contrato será considerado rescindido e o seu registro será definitivamente cancelado em seguida. Observe-se que, em poucas semanas, é possível a solução extrajudicial dessa pendência, que geralmente onera quem aliena seu imóvel, talvez seu único bem, mas não consegue receber o que lhe é devido. Outro ponto que merece destaque á que a certidão de cancelamento do registro da compra e venda é prova suficiente para que se requeira, até mesmo liminarmente, a reintegração de posse do imóvel, esta sim, em processo judicial. Com essa mudança, que valoriza a boa-fé que deve ter nos contratos, pensamos que é mais vantajoso para quem vende um imóvel com pagamento parcelado utilizar-se de uma promessa de venda e seu registro na matrícula, do que a compra e venda com condição resolutiva. A primeira opção permite desfazimento rápido, em caso de falta de pagamento, sem intervenção judicial. Já em relação à segunda (art. 474 do Código Civil) predomina o entendimento de que é preciso recorrer à justiça para desfazer o negócio, arrostando o interessado a lentidão e a imprevisibilidade da decisão definitiva. É verdade que há um precedente do Superior Tribunal de Justiça, da 4ª Turma, no julgamento do Recurso Especial 620.787, Rel. ministro Marco Buzzi, considerando que nas vendas com condição resolutiva também não é necessária a desconstituição judicial do negócio. Mas, ante a dúvida de qual será o entendimento da justiça a respeito da condição resolutiva, melhor contar com a certeza da inovação legal, que permite a rescisão de toda e qualquer promessa de compra e venda em que não são feitos os pagamentos, desde que tenha sido o devedor constituído em mora e tido oportunidade para colocar em dia os pagamentos. É importante dizer que, apesar da inovação legal ser recente, ela pode ser utilizada desde já até mesmo para os contratos celebrados anteriormente e não apenas para os que forem feitos a partir de agora. Se algum adquirente que tiver o negócio desfeito dessa nova forma considerar que tem algum direito, como a devolução de parte do valor que pagou, poderá discutir em juízo, mas sem que isso impeça a rescisão do contrato e a imediata retomada do bem pelo proprietário. Assim, os direitos de ambos os contratantes são plenamente respeitados. Com essa inovação legal, fica reforçado o princípio de que os contratos devem ser cumpridos como foram previstos, sem que a pessoa possa protelar a solução da falta de pagamento. Isso favorece o ambiente dos negócios, reforça a responsabilidade de quem contrata e protege as pessoas que são cumpridoras de seus deveres. É mais uma injeção a revigorar a combalida economia tupiniquim. Por fim, embora o compromisso de compra e venda possa ser feito por instrumento particular, preferencialmente com a assistência de um advogado, recomenda-se o uso da forma mais segura e solene da escritura pública, com a assistência jurídica imparcial de um tabelião, que em algumas unidades da Federação têm custas com descontos para esses casos em que a forma pública é opcional. Resta agora que as pessoas com melhor orientação jurídica utilizem mais o compromisso de compra e venda do que a venda com condição resolutiva. Com aquele contrato, se as prestações forem pagas e o dono não quiser outorgar a escritura, há para o prejudicado a adjudicação compulsória extrajudicial. Se, ao contrário, as prestações não forem pagas, poderá o prejudicado obter a rápida rescisão extrajudicial com o cancelamento do registro, de forma segura, rápida, barata e eficaz.
Nesta seção oficinal do Migalhas Notarias e Registrais, trago à consideração dos nossos leitores um caso muito interessante de curioso monumento paleográfico de extração notarial. Grosso modo, a palavra paleografia se origina de paleo (antigo) + grafia (escrito) e significa simplesmente "qualquer forma antiga de escrita, tanto em documentos como em inscrições", como registra Houaiss. Os antigos protocolos notariais eram lavrados a mão. Os tabeliães e seus escreventes manuscreviam os atos com canetas-tinteiro numa cifra que hoje nos parece tão longínqua quanto os escritos notariais medievais. São escritos vazados numa caligrafia que se diversificou ao longo dos séculos, não raro com adendos, interpolações, coisas que ocorriam naturalmente numa época em que as retificações de meros erros representavam um problema técnico de difícil solução. Eis que nos foi apresentada a registro certidão extraída, em forma reprográfica, diretamente do protocolo notarial manuscrito. O título foi recepcionado e protocolado na Serventia e a pretensão foi obstada pelo seguinte: Escritura de compra e venda ilegível. Prejudicado o exame do título. Necessária a apresentação da escritura lavrada em 1949, pelo Tabelião de Notas desta Capital, [...] em forma legível e integral, sem emendas ou rasuras, em atendimento ao princípio da segurança jurídica e eficácia dos atos registrais (art. 1º da lei 8.935/94). O interessado pugnou pelo registro aduzindo as razões que se acham expressas nos autos. Observações preliminares O título achava-se protocolado e a prenotação em vigor. Embora o título estivesse prenotado, o seu conteúdo não fora apreciado, de modo que a sua registrabilidade se achava pendente de qualificação. Nos cingimos, então, a responder à provocação do interessado. E elas foram formuladas por ele alternativamente: a) Determinação para que o Notário que expeça certidão da escritura "de forma legível,  constando todos os dados da escritura manuscrita, no prazo máximo de 5 (cinco) dias". b) Não entendendo o Juízo cabível o requerimento da alínea "a", o interessado "requer desde já Ofício ao 5° Registro de Imóveis para que seja realizado a regularização com a documentação pertinente e já entregue em respeito ao princípio da continuidade registrária" [...] devido a não disponibilização da escritura pelo 08 Registro de Notas".  A questão foi posto sob a apreciação de duas corregedorias permanentes - a dos ofícios de notas (ilustre 2ª Vara de Registros Públicos) e a dos ofícios registrais (respeitável 1ª Vara de Registros Públicos. Traslado, certidão e a moderna reprografia Traslado é o instrumento mais comum e tradicional que os Registros Imobiliários recebem diuturnamente. É o "duplo do que o oficial pôs nas suas notas: passa-se para outro papel, traslada-se, aquilo a que se deu forma pública", segundo Pontes de Miranda1. Já certidão é uma declaração do notário, dotada de fé pública, de que enuncia o que consta de suas notas. O mesmo Pontes de Miranda fará a distinção: "Enquanto o traslado é cópia e tem a eficácia de cópia, de duplo, a certidão é declaração do oficial público de que o que ele enuncia, ou transcreve, consta das suas notas, ou dos autos. A responsabilidade do oficial público, no traslado, é a de quem afirma a fidelidade da cópia; na certidão, é a de quem empenha a afirmação de fidelidade do que reproduz, pela certeza que assegura. O conteúdo do traslado é o que foi copiado: o conteúdo da certidão é o fato que se certifica. Se o oficial público certifica de inteiro teor, traslada, mas acrescenta que certifica; se o oficial público somente traslada, apenas afirma a fidelidade da cópia. Se ao oficial público se pede o traslado da escritura, não mais pode fazer que copiá-la, duplicá-la; se ao oficial público se pede a certidão sem ser de inteiro teor, o oficial público apenas diz que aquilo de que se trata consta, ou não consta, ou que ocorreu, ou não ocorreu". Tradicionalmente, as certidões dos livros notariais resumiam-se a dois tipos: integrais, isto é transcrição verbo ad verbum do ato notarial lavrado nas notas, e parcial, positiva ou negativa, relativas a destaques rogados pelo interessado[2]. Com o advento de novas tecnologias reprográficas, as certidões em forma reprográfica ganharam destaque. O decreto-lei 2.148/40 previu: "Art. 2º As certidões de inteiro teor, bem como as públicas-formas de qualquer natureza podem ser extraídas por meio de reprodução fotostática, devendo as cópias conter, para possuírem valor probante em juízo ou fora dele, a autenticação da autoridade competente, que certificará, em declaração expressa, se acharem iguais ao original". Embora o referido decreto-lei dispusesse de forma ampla acerca da utilização da certidão reprográfica, emprestando-lhe o mesmo valor probante em juízo ou fora dele, a sua aceitação foi posta em questão. GILBERTO VALENTE DA SILVA, em decisão proferida ainda quando se achava à frente da 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo, decidiu que a certidão em forma reprográfica "não poderia ser aceita, porque a lei de registros públicos, que lhe é posterior, não contempla cópia reprográfica como título hábil a ser registrado"3. De fato, o inc. I do art. 221 da LRP prevê unicamente o registro de "escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros". Entretanto, Afrânio de Carvalho já propunha, nos alvores da nova lei, exegese ampliativa do dispositivo legal contido na LRP vigente. Diz que são admitidas as escrituras públicas, "lavradas em livros de tabeliães e transladadas ou certificadas em avulso para o fim do registro"4. A doutrina foi recolhida pela Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo que disciplinou a matéria no processo CG 17.848/96. Aprovando excelente parecer do magistrado Francisco Eduardo Loureiro, fixou o entendimento de que se admite "a expedição de certidões pelo meio reprográfico que abrange a fotocópia, a xerocópia, a microfilmagem e a computação, entre outros"5. Atualmente, as certidões podem ser expedidas em vários modos - inclusive "sob a forma de documento eletrônico, em PDF/A, ou como informação estruturada em XML (eXtensible Markup Language), assinados com Certificado Digital ICP-Brasil" (NSCGJSP item 198 do CAP. XVI). As mesmas NSCGJSP assim dispõe sobre o tema: 148. Os traslados e certidões serão impressos em papel de segurança, facultada a reprodução por mecanismos que não dificultem a visualização e a leitura do documento. 148.1. A certidão será lavrada em inteiro teor, em resumo, ou em relatório, conforme quesitos, e devidamente autenticada pelo Tabelião de Notas ou seu substituto legal. A faculdade de se expedir certidões utilizando-se de instrumentos tecnológicos "que não dificultem a visualização e a leitura do documento", será comentada logo abaixo. Atos notariais manuscritos O caso enfrentado apresentava um certo grau de dificuldade. Tratava-se de ato notarial lavrado no longínquo ano de 1949 de forma manuscrita. Há um elevado grau de dificuldade para a leitura e perfeita compreensão do inteiro teor da peça apresentada ao Registro. É preciso treino e perícia na interpretação segura de peças tabeliônicas paleográficas. Não é razoável que se expeça uma certidão que representa grau elevado de dificuldade de legibilidade e interpretação para qualquer interessado. Antes de servir ao Registro de Imóveis, a certidão deve servir aos próprios interessados. O registro de imóveis igualmente mantém livros manuscritos e muitos deles revelam atos que ainda produzem efeitos jurídicos, relativos a imóveis que ainda não realizaram o début no sistema da matrícula da Lei 6.015/1973. E nem por isso os registradores expedem cópias reprográficas de seus livros, mas produzem certidões das transcrições e inscrições, poupando aos interessados e destinatários da publicidade registral o árduo trabalho interpretativo. As certidões devem revelar clareza e segurança. Vicente de Abreu Amadei, em precedente da CGJSP, já deixava claro que "somente se pode admitir a forma reprográfica da certidão, quando for possível observar os pressupostos da clareza da redação escrita e da segurança jurídica, que informam o direito registral"6. É certo que tratava de certidões de registro de imóveis, mas a advertência é procedente. Conclusão O tabelião tem em mãos a fonte primária da informação. Acha-se à sua disposição o próprio livro de notas, fonte original de onde se deve extrair a certidão. Com o livro diante de si, pode cotejar, apreciar as entrelinhas (que as há naquele ato notarial), decifrar as passagens mais obscuras e difíceis. Pode até mesmo utilizar como guia o traslado que o próprio interessado disponibilizou e que se achava acostado nos autos. Aliás, a forma de expedição da certidão, como se sugeriu, era justamente a prática adotada por aquele mesmo tabelionato. Podia-se contemplar às fls. dos autos uma certidão extraída do mesmo livro - X, fls. Y - relativa ao mesmo ato notarial que os interessados agora pretendiam, passados 73 anos da sua celebração, apresentar a registro. A expedição de certidão clara e segura representa um múnus de todo aquele que lida com fontes de informação vazada em formas diversificadas de grafia e expressão. Colocamo-nos à disposição dos interessados para tentar interpretar a peça, cientes de que será uma espécie de "certidão de certidão", como referiu PONTES DE MIRANDA (loc. cit.), com eventual risco no processo de transliteração. Addendum Às fls. 49/97 a parte interessada, em breve síntese, informou ao Juízo que apresentou a escritura ao 5º RI, e que, em virtude da demora da entrega da certidão do traslado pelo 9º Tabelionato de Notas, as certidões de propriedade das circunscrições anteriores acabaram vencendo o prazo de validade, ocasionando-lhe prejuízos. Por essa razão, requereram que se determinasse ao Registro que aceitasse as certidões emitidas e já entregues anteriormente. Andamento do título É preciso remontar o andamento do título no cartório para compreender o processo: 1) Prenotação X de 21/2/22. Examinado, o título foi posto em exigência em virtude de sua ilegibilidade (fls. 69). Status: Prenotação cancelada em virtude de não cumprimento das exigências. 2) Prenotação Y de 6/4/22. O prazo de vencimento foi tornado indeterminado em razão do pedido de providências. Em data de 26/5/22, nos seria entregue, pessoalmente, a certidão do traslado da escritura - informação prestada nos autos. Status: Em vigor. Nas duas ocasiões em que o título foi apresentado a registro, as certidões e demais documentos juntados aos autos não foram apresentados. Portanto, até aquele presente momento o título não fora formalmente examinado. Calham, entretanto, algumas observações. Certidões acostadas nos autos - fls. 59/62 Compulsando o processo, vê-se às fls. 60 a certidão da Transcrição X, de 19/11/1909, expedida em 15/2/12 pelo 1º RI, de propriedade de JOF, domiciliado nesta capital, proprietário. Às fls. 59, 61 e 62 referem-se às certidões negativas das demais circunscrições. Rezam as NSCGJSP no item 54, Capítulo XX: 54. A matrícula será aberta com os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior. Se este tiver sido efetuado em outra circunscrição, deverá ser apresentada certidão expedida há no máximo 30 (trinta) dias pelo respectivo cartório, a qual ficará arquivada, de forma a permitir fácil localização. Esta é a razão pela qual a atualização das certidões é exigida. Qualificação em estado de suspensão O título foi apresentado sem as certidões e demais documentos acostados às fls. dos autos - especialmente documentos pessoais e da administração pública municipal. Os documentos (ou parte deles) foram apresentados perante o Juízo - possivelmente em atenção às exigências de fls. 67-68 dos autos. Tão logo apresentada a certidão extraída das Notas, o cartório entrou em contato telefônico com os interessados, solicitando fossem apresentadas as ditas certidões atualizadas e demais documentos atualizados e autenticados para que o título fosse afinal examinado. Todavia os interessados postularam diretamente perante o Juízo a dispensa (fls. 49-50), in verbis: "Dessa maneira, requer que o 5ª tabelião de notas dessa Capital [SIC] aceite as certidões emitidas e já entregues anteriormente para o regular andamento das averbações na matricula do imóvel". Entretanto, os títulos e documentos acessórios devem ser apresentados ao registrador, a quem incumbe, originariamente, qualificar e imperar o registro - ou a sua denegação. Somente a partir daí se pode impugnar legitimamente as razões de eventual denegação de registro, deduzindo sua pretensão perante o R. Juízo competente, nos termos do art. 198 da LRP. Não tendo sido apresentadas as certidões, acompanhadas dos documentos anexados aos autos, a qualificação ainda se acha na dependência de tais providências - fato já informado a Vossa Excelência na manifestação de fls. 45. Para não deixar passar a oportunidade, consigno que já se vislumbram alguns problemas. Na transcrição X do 1º RISP (fls. 60), por exemplo, a qualificação do proprietário se revela muito precária, o nome é muito comum. Será necessário investigar (e comprovar) tratar-se da mesma pessoa que comparece na escritura doando o imóvel (fls. 51/58). Afinal, o título dormitou nas gavetas do interessado por longos 70 anos. Seja como for, superada a questão central - apresentação do título de forma legível - aguardamos a apresentação dos documentos acessórios para a submissão do título ao processo de exame e cálculo, nos termos do art. 12 da LRP. Conclusão O pedido de providências foi julgado improcedente. As razões podem ser apreciadas na r. decisão da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo: RECLAMAÇÃO - QUALIFICAÇÃO REGISTRAL. NOTA DEVOLUTIVA - EXIGÊNCIAS. TÍTULO MANUSCRITO - ILEGIBILIDADE. CERTIDÃO - PRAZO DE VALIDADE. TRASLADO. CERTIDÃO. CÓPIA REPROGRÁFICA. PP 0018212-94.2022.8.26.0100, São Paulo, j. 18/7/2022, Dje 20/7/2022, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Acesso aqui. _____ 1 PONTES DE MIRANDA. Tratado. São Paulo: RT, 1983, T. III, p.429-430, § 350. 2 RIBEIRO. Zeferino. I Tabelionato. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 22. VASCONCELOS. Julenildo Nunes. XRUZ. Antônio Augusto Rodrigues. Direito Notarial - teoria e prática. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 70, n. 4. 3  Processo 54/1979, j. 28/11/1979, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui. 4 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis, 3ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1982, p. 278-9. 5 Processo CG 17.848/1996, São Bernardo do Campo, decisão de 6/2/1997, DJ 14/2/97, Des. Márcio Martins Bonilha. Disponível aqui. 6 Processo CGF 23/1992, Novo Horizonte parecer de 6/2/1992, Dr. Vicente de Abreu Amadei. Disponível aqui.
Este artigo tem objetivo tratar o tema publicidade registral imobiliária, como informação. Não se tratará da publicidade comercial, porém o leitor terá uma breve noção do assunto. Pode-se definir concisamente a publicidade como uma tentativa de influenciar o comportamento usando meios especiais de comunicação. Daí a importância de se estudar o conteúdo da informação como forma publicística, comunicativa. As clássicas três dimensões dos direitos fundamentais, liberdade, igualdade e fraternidade, conhecidas e amplamente estudadas são ampliadas para novas dimensões, uma quarta1 onde novos direitos como biotecnologia, bioética seriam incluídos como direitos fundamentais, uma quinta2 englobaria como novos direitos os de acesso à tecnologia de informação, ciberespaço, e neste ponto incluir-se-ia a publicidade, entre outros direitos conexos, conforme Antônio Carlos Wolkmer3, e até mesmo uma sexta dimensão, dos direitos fundamentais, que corresponderia à democracia, à liberdade de informação, ao direito de informação e ao pluralismo político.4  Estes direitos são pontuados apenas para fins didáticos, como novos direitos. O objeto deste estudo será a comunicação no que concerne os direitos reais imobiliários no Brasil e o que exsurge desta, a publicidade registral imobiliária (e até mesmo de outras especialidades registrais e notarial) por seus diferentes meios. Uma brevíssima análise sobre o tema, se iniciaria pelo trabalho de Shannon e Weaver, mas não poderíamos neste espaço descrevê-lo a contento, porém num salto temporal, a comunicação será vista pela teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann5. 1.  Publicidade. Aspectos Gerais A palavra "publicidade" normalmente é entendida como publicidade comercial. Entretanto, a publicidade jurídica é que interessa neste texto. Ambas têm sentidos próximos, ou seja, a publicidade comercial e a jurídica, porém não são coincidentes6 e muito afastados em sua teleologia, pois enquanto na publicidade comercial existe liberdade artística e criativa, a publicidade legal ou jurídica é formal. A professora Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias em sua obra Publicidade e Direito, leciona que: "A palavra 'publicidade' está ligada ao termo latino publicus, mas, distante da conhecida dicotomia entre publicus/privatus, tão própria do direito público para diferenciar as coisas do Estado daquelas do particular, ela deve ser entendida muito mais no sentido de propagação geral de algo; como 'levar a todos', 'tornar de conhecimento geral'".7 Este conceito, de efeitos essencialmente publicitários é, sem dúvida, de enorme alcance económico e social. É, no entanto, de pouca relevância para a nossa investigação, que se centrará nos aspectos jurídicos da publicidade registral imobiliária. A publicidade jurídica, restritamente, é o mecanismo a partir do qual permite exteriorizar uma situação jurídica de modo a dar-lhe conhecimento geral, erga omnes, diante da oponibilidade afirmada em lei8. A publicidade jurídica ou legal, portanto, tem escopo de afirmar situações que envolvam segurança jurídica. 2.    Publicidade Jurídica. Pela narrativa anteriormente apresentada, percebe-se que existe tanto interesse individual quanto interesse público sobre a publicidade comercial e não seria diferente com a jurídica. O vocábulo publicidade, como termo jurídico, compreende realidades diversas, tanto no direito público quanto no direito privado, podendo ser obrigatória ou facultativa. Walter Ceneviva, há tempos, esclarece a publicidade jurídica, e com nossas homenagens trazemos breves linhas de seu pensamento: A lei reconhece a existência de atos e fatos jurídicos que devem ser conhecidos por todos ou, pelo menos, conhecíveis, sob forma de divulgação inconfundível com a propaganda comercial. A divulgação provida de autenticidade, segurança e eficácia distingue-se da destinada a divulgar fatos, serviços ou produtos de interesse privado. Publicar, enquanto serviço público, é ação de lançar, para fins de divulgação geral, ato ou fato juridicamente relevante em livro ou papel oficial, indicando o agente que neles interfira (ou os agentes que interfiram), com referência ao direito ou ao bem da vida mencionado.9 A ciência jurídica do processo, por exemplo, objetiva através de suas políticas sociais igualitárias, desobstruir os canais de acesso à justiça, quer sob a ótica social, implementando igualdade social, quer sob a ótica formalista própria do direito, com seus cânones herméticos, porém seguros. O direito à informação jurídica é um direito essencial à ordem pública. Estão vinculados a conceitos jurídicos essenciais para o exercício da democracia em uma sociedade igualitária. A Informação é o alicerce à comunicação, pois sobre seu pilar são transferidos dados de um comunicador a um receptor, que deve compreendê-los para que se configure a comunicação. A teoria da informação e da comunicação, que aprecia o mundo simbólico e o caráter reflexivo da comunicação humana é um dos principais pilares do programa teórico de Luhmann. Desde a criação do modelo de transmissão de dados (emissor-mensagem-receptor), por Shannon e Weaver10, até às questões que envolvem a "cibercomunicação", a teoria da informação tem estabelecido um marco na compreensão de sistemas sociais.11 A comunicação jurídica é um sistema neste ambiente (jurídico), conforme Luhmann explica ao longo de sua obra. Contudo, como bem arguido por Celso Fernandes Campilongo: "em que medida o direito de informação (de informar e ser informado) é conciliável com os objetivos da Justiça?" E complementa: "o direito de ser informado é compatível com a proteção da privacidade das partes processuais?12 Não respondendo diretamente, mas colaborando com o tema comunicação, elucida Tércio Sampaio Ferraz Junior13: "Comunicação é entendida (Watzlawick) como troca de mensagens no sentido de que ela ocorre quando a seletividade de uma mensagem é compreendida, isto é, pode ser usada para a seleção de outra situação sistémica. Isso implica (Luhmann):a) noção de complexidade (possibilidades comunicativas maiores que as efetiváveis);b) noção de seletividade (redução das possibilidades por mensagens efetivas);c) noção de contingência de ambos os lados, isto é, dupla contingência ou possibilidade de rejeição de ofertas de seleção comunicadas. Essas possibilidades não podem ser eliminadas como tais (ver Watzlawick). Oras, a comunicação da rejeição e a tematização da rejeição, nos sistemas sociais, é conflito. Donde todo sistema social é potencialmente conflitivo. O que muda, de sistema para sistema, é sua medida de atualização, o que varia conforme o grau de diferenciação e evolução." O tema informação, portanto, é o alicerce a comunicação e a publicidade como fim e uma noção sobre o sistema publicístico teórico é apresentado neste artigo introdutório ao tema. 2.1 Publicidade processual A publicidade dos atos e das atividades estatais é valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o, com expressa ressalva para algumas situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais (cf. art. 5º, LX, c/c art. 37, caput, c/c art. 93, IX e X todos da CF/8814 e exemplificando, na legislação infraconstitucional, art. 16 e ss da lei de registros públicos, art. 8º do CPC, art. 792 do CPP, entre outros). Portanto, todos os atos processuais provenientes dos órgãos do Poder Judiciário deverão ser públicos, tanto os administrativos, quanto os judiciais (com a ressalva das situações excepcionadas pelo próprio texto constitucional que, em certos casos, admite que a lei imponha limites à garantia de publicidade).15 Ensina Fredie Didier Júnior que o direito fundamental a um processo público "visa permitir o controle da opinião pública sobre os serviços da justiça, máxime sobre o poder de que foi investido o órgão jurisdicional"16. Para Humberto Theodoro Júnior, mais do que o interesse privado defendido pelos litigantes, está presente um interesse público na "garantia da paz e harmonia social, procurada através da manutenção da ordem jurídica", portanto, necessária se fazer público, cada traço do procedimento judicial e mesmo os extrajudiciais, razão pela qual todos, e não apenas os participantes da demanda ou do procedimento, têm direito de conhecer e acompanhar os trâmites processuais e extrajudiciais17. Desta feita, os três poderes estatais devem publicizar sua atuação, e mais ainda o poder judiciário, pois a transparência é própria dos princípios democráticos (salvo exceções legais). Diz-se, então, que publicidade e transparência, têm relação biunívoca nos conjuntos específicos de bens jurídicos. O poder judiciário, dentro desta esfera maior, igualmente deve ser transparente. Os magistrados e membros do ministério público, são pessoas concursadas e aptas a exercer parcela do poder estatal, devem igualmente prestar contas de suas atribuições jurisdicionais e administrativas. Registradores e notários, igualmente, dentro de suas funções com as pouquíssimas exceções que guardam sigilo. Magistrados, invariavelmente, publicizarão suas decisões e estas terão acesso a todos (salvo exceções previstas legalmente como segredo de justiça). Darão conhecimento de seu modo de proceder, e o porquê das decisões, referente as questões submetidas a sua análise. A garantia da publicidade processual está associada à exigência de controle democrático dos atos judiciais. Portanto, a prestação de contas à sociedade é condição sine qua non para efetivar a publicidade exercida pelos membros do poder judiciário e do ministério público. Este artigo não se estenderá mais ao tema, publicidade processual, pois o trouxe apenas como breve noção da questão publicística. A questão publicista procedimental extrajudicial, notarial e registral imobiliária será vista nos próximos tópicos. 2.2 Publicidade Notarial O princípio da publicidade tem por objetivo dar transparência a atividade notarial e de registro. A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.18 A sociedade e o indivíduo devem estar sempre informados, ou dados colocados à disposição, para exercerem livremente as liberdades e garantias públicas. A função notarial é pública. outorgada pelo Estado, conforme artigo 236 da atual Constituição Federal, porém exercida em caráter privado. No escopo de dar transparência e cognição aos seus atos, há nítido interesse de toda a coletividade. Note que a publicidade notarial está ligada à transparência total dos atos emanados pelo tabelião, ou seja, qualquer um poderá ter acesso aos mesmos através da expedição de certidões.19 A lei de registros públicos (lei 6.015/73) enfatiza a ampla publicidade no Brasil e informa a desnecessidade do solicitante informar o motivo ou o interesse no pedido de qualquer certidão. Leticia Franco Maculan Assumpção arremata o tema de forma precisa: Conforme previsão legal, a publicidade é vetor axiológico aplicável aos Serviços Extrajudiciais. Nesses termos, deve o Oficial ou o Tabelião fornecer certidões, mediante solicitação, que não precisa ser motivada. A publicidade da função notarial é substrato do princípio da publicidade administrativa, previsto no art. 5º, inc. XXXIII, da CF/88, postulado que estabelece o direito de todos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Assim, em regra, deve o Oficial ou o Tabelião portar-se como um facilitador dessa informação ao usuário do serviço. Todavia, a publicidade, como princípio, não se aplica de forma absoluta, devendo ceder espaço à aplicação de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88), o direito à privacidade (art. 5º, X e LX, da CR/88) ou o interesse social exigir (art. 5º, LX, da CR/88). É a chamada técnica de ponderação.20 Carolina Noura de Moraes Rego bem define os motivos da obrigação de a respeitar: "A dignidade da pessoa humana é uma qualidade inseparável e constitutiva de cada ser humano, que, por isso, deve ser respeitada e levada em consideração por parte do Estado e da sociedade".21 Vê-se que a ampla publicidade encontra limites razoáveis, sempre no condão de preservar a dignidade da pessoa humana.22 2.3 Publicidade registral A lei de registros públicos, lei 6.015/73, representou um marco histórico no sistema publicista pátrio. Baseou-se no sistema de fólio real, ou seja, baseado na "folha da coisa", no imóvel. En passant, com a inauguração do atual sistema jurídico de registro de direitos, os direitos reais estão alicerçados na matrícula imobiliária.23 Salienta-se ab initio que o Sistema Registral Imobiliário Brasileiro tem como base sólida a publicidade imobiliária, pois sobre o valor fundante da mesma ergue-se o pilar sobre o qual se assenta a veracidade das informações registradas no fólio real. É a publicidade, portanto, suporte para a "Fé Pública Registral". Por meio da publicidade, como uma base sólida, alicerça-se o ambiente que contém o subconjunto do sistema publicista registral e neste sistema (conforme aplicação direta da teoria luhmanniana), assentam-se princípios que norteiam a segurança jurídica registral imobiliária, como os princípios da unitariedade da matrícula, da inscrição, da prioridade, da legalidade, da especialidade (objetiva e subjetiva), da continuidade, da constitutividade, da disponibilidade, da fé pública, dentre outros. Outro aspecto a ser analisado brevemente neste item, refere-se a "Fé Pública Registral". Esta somente tomou contornos eficazes em nossa legislação registral, a partir da lei 13.097/15 em seus arts. 54 e seguintes, sendo introduzida recentemente de forma inequívoca no ordenamento pátrio, ao contrário de países como a Alemanha e Espanha, historicamente já a utilizam. A segurança da titularidade da propriedade imobiliária passa pela confiança da população no que está inscrito em cada certidão de matrícula, quer física ou eletrônica, impressa ou simplesmente visualizada. Está aí o fascínio por este estudo. Repetir apenas textos legais ou doutrina repisadas sobre o tema, não traria uma contribuição efetiva. Corroborando com o tema e estudo, Marcelo Saraloli de Oliveira, em seu livro Publicidade Registral Imobiliária, contribui ao longo do mesmo de forma clara e apenas para extrair um trecho, o autor cita Salvatore Pugliatti que se opta para trazer a este texto: "publicidade é o conjunto de mecanismos predispostos pelo ordenamento jurídico, a fim de tornar possível a todos aqueles que desejarem, com muita facilidade e suficiente certeza, o conhecimento de atos jurídicos". Para gerar efeitos jurídicos, a publicidade tem como escopo dar conhecimento jurídico a uma determinada situação que, com seu registro gere mudança no mundo jurídico, pois só são eficazes situações jurídicas conhecidas, quer por sentenças judiciais, registros públicos, ou mesmo meros cadastros públicos24. Estes "conjuntos de mecanismos" citado por Pugliatti, são bem compreendidos dentro da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, como se verá pequeno excerto a seguir. 2.4  Aspectos da teoria de Niklas Luhmann aplicados a comunicação Luhmann teoriza em sua obra "Teoria dos Sistemas Sociais" que a comunicação tem o papel de regular as relações entre o sistema e o ambiente.  (Trecho que o autor traz em inúmeros textos). Traz a ideia de transferência de informação e afirma que há, ou haverá, interferência na mensagem emitida pelo emissor até chegar ao receptor. O receptor, via de regra, não recebe uma informação da mesma maneira que é emitida. Shannon e Weaver estudaram o aperfeiçoamento matemático desta ideia, porém Luhmann desmistifica a noção matemática daqueles, centrando seu trabalho na comunicação, opondo-se radicalmente ao modelo linear sequencial de "emissor-mensagem-receptor". No processo de comunicação, essa informação é multiplicada. Ele aplica esse erro ao excesso de ontologia, ao supor que a informação propagada é a mesma adquirida. Em 1994, Luhmann apresentou uma exposição sobre a realidade dos meios de comunicação. Num primeiro momento de sua elaboração teórica, o projeto epistemológico de Luhmann consistia em uma proposta antirreducionista e levava em conta o indeterminismo dos fenômenos sociais complexos.25 Sua teoria levava em consideração a contraposição à tendência nomológica-dedutiva que tendia à adoção de leis universais para se explicar os fenômenos sociais e às filosofias sociais que possuíam uma orientação normativa e uma inspiração humanística26. A Título de Futuras Discussões A distinção sistema/ambiente que Luhmann descreve ao longo de sua obra é tema central e fundamental, porque utilizada para explicar tudo entre o que pertence ao sistema (inerente ao sistema publicista) e ao ambiente (tudo que externo ao sistema publicista, porém o contendo), e por dedução lógica deste autor, pode-se aplicar dentro do próprio sistema registral imobiliário ou mesmo em outros sistemas de registros públicos. Para Luhmann, sociedade é a sociedade global, isto é, todos seres humanos que a compõem. Porém, sem comunicação não haveria sociedade. A comunicação, para Luhmann, circula de várias formas, ou seja, dentro do ambiente comunicação. Porém há vários sistemas, como o econômico, o jurídico, o religioso etc.,27 que influenciarão o sistema registral publicista. O estudo que Niklas Luhmann faz sobre sua teoria dos sistemas sociais, abordando a comunicação foi trazido a este artigo. Objetivou-se contribuir com o tema "publicidade registral imobiliária" que para a maioria dos juristas é tido como hermético, obscuro, afeto apenas a uma categoria de juristas, ou seja, registradores e notários. O que se espera da publicidade imobiliária é a que se abram novos caminhos, e o sistema registral encontre soluções que a sociedade aceite e use de forma simples e sem sentir que, até mesmo, a está usando. Que o processo seja natural. A tecnologia atual e, futuramente mais ainda, será orientativa para cortar caminhos, otimizar gastos, tempo28 sem descuidar da publicidade registral imobiliária, alma mater da segurança jurídica imobiliária. Este autor pretende dar continuidade aos estudos sobre o tema "informação-comunicação-publicidade". Incluir-se-á neste estudo, Habermas, Bauman e outros autores para formar a base científica da "informação interna, externa e forma de sua publicização". _____ 1 São os "novos" direitos referentes à biotecnologia, a bioética e a regulação da engenharia genética. Trata dos direitos específicos que tem vinculação direta com a vida humana, como a reprodução humana assistida (inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intra-uterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética ("clonagem"), contracepção e outros. 2 Antônio Carlos Wolkmer citando Luís Carlos Olivo: São os "novos" direitos advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral. A passagem do século XX para o novo milênio reflete uma transição paradigmática da sociedade industrial para a sociedade da era virtual. É extraordinário o impacto do desenvolvimento da cibernética, das redes de computadores, do comércio eletrônico, das possibilidades da inteligência artificial e da vertiginosa difusão da internet sobre o campo do Direito, sobre a sociedade mundial e sobre os bens culturais do potencial massificador do espaço digital. Observa Luís Carlos C. de Olivo que as mudanças substantivas confirmam que estamos na Era Digital, um novo período histórico não mais, baseado em bits, mas em Momos ou em coisas corpóreas. Esta e, então, a época do computador, do celular, do conhecimento, da informação, da realidade virtual, do ciberespaço, do silício, dos chips e microchips, da inteligência artificial, das conexões via cabo, satélite ou radio, da Internet e da intranet, enfim, da arquitetura em rede". OLIVO, Luís Carlos Cancellier de. Aspectos jurídicos do comercio eletrônico. In: ROVER, Aires Jose (Org.). Direito, sociedade e informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. p. 60. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos "novos" direitos. in: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/viewFile/593/454. Acesso em 29 de mai de 2022, p. 134. 3 Ibid, p. 133. 4 BULOS. Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pgs. 529-530. 5 Niklas Luhmann é considerado o sociólogo mais importante e influente da Alemanha na segunda metade do século XX. Ao lado de Talcott Parsons, ele é chamado de fundador da teoria dos sistemas. Desde o início de sua carreira acadêmica no início dos anos 1960, Luhmann publicou uma quantidade espantosa de artigos e livros ano após ano. No momento de sua morte, sua lista de publicações compreendia mais de 550 artigos e 50 livros, todos surgidos do laboratório de teoria de Luhmann. Ele foi um dos mais destacados sociólogos do século XX e um dos últimos defensores de uma 'grande teoria' que defendeu ao longo de seus quarenta anos de trabalho acadêmico. 6 Apesar de não ser termo polissêmico, que representa um conjunto de sentidos diferentes, mas guardam relação entre si tendo conjunto semântico análogo, o termo publicidade também não é ambíguo, pois refere-se a uma mesma situação genérica, ou seja, tornar público algo. 7 DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e Direito. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 25 8 RODRIGUES, Marcelo. Tratado de registros públicos e direito notarial. Atlas, 2013, VitalBook file. Disponível aqui, p. 265. Acesso restrito à universidade. Em 20 de mai de 2022. 9 CENEVIVA, Walter, Ata notarial e os cuidados que exige. In: Ata notarial. MORAES E SILVA NETO, Amaro et al. Coord. Leonardo Brandelli. Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil: S.A. Fabris, 2004, p. 26. 10 "O problema fundamental da comunicação é o de reproduzir em um ponto dado, exatamente ou aproximadamente, uma mensagem selecionada em um outro ponto", afirmou o engenheiro matemático Claude Shannon, em um artigo publicado em 1948. Shannon e Weaver buscaram uma resposta para esse problema e desenvolveram um novo ramo da matemática: A Teoria da Informação. 11 STOCKINGER Gottfried. Para uma teoria sociológica da comunicação. Publicação eletrônica: Facom/UFBa 2001. in: https://www.facom.ufba.br/Pos/gottfried.pdf Acesso em 20 de mai de 2022. 12 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p 159. 13 FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões Sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas. 2002. p. 37 14 "A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" e "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação". 15 Disponível aqui.  16 DIDIER JR Fredie. Curso de Direito Processual Civil v. 1: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 56. 17 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. v. I. 50 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 52 18 PEREIRA, Fábio Zonta. Dos princípios de regência dos serviços notariais e de registro. Disponível aqui.  19 Ressalta-se que testamentos públicos lavrados por notários podem conter expressa disposição de não se fornecer certidão enquanto o testador permanecer vivo, sendo exceção única na atividade notarial a ampla publicidade. 20 ASSUMPÇÃO, Letícia Franco Maculan. Da possibilidade de restrição à publicidade de atas notariais. Disponível aqui.  21 REGO, Carolina Noura de Moraes. O direito fundamental à vida privada e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na era digital. Cadernos Jurídicos da Faculdade de Direito de Sorocaba, SP, Ano 1, n. 1 p. 49-61, 2017, p. 54. in: https://www.fadi.br/revista/index.php/cadernosjuridicos/article/view/17/9 acesso em 02 de jun de 2022. 22 Ingo Wolfgang Sarlet, neste mesmo sentido entende que "(...) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade." SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 62.  23 Apenas em breve comentário, o Registro Civil das Pessoas Naturais no Brasil tem ampla cognição, desde que não afete dados sensíveis do cidadão, como informação sobre a situação de ser filho ser adotivo, pessoa transgênero, troca de nome pela exposição ao ridículo, proteção à testemunha em situação de troca de nome. 24 OLIVEIRA, Marcelo Salaroli. Publicidade Registral Imobiliária.  São Paulo: Saraiva, 2010, p 9, in: PUGLIATTI, Salvatore. La Transcrizione. In: CICU, Antônio; MESSINEO, Francesco, (Org) Trattato de diritto civile e commerciale. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1957. v. 14, p. 180.  25 PIOVESAN, Lucas Zimmermann. A Teoria dos Sistemas de Luhmann, a Comunicação e a Incumbência Do Direito. 2018. Disponível aqui.  26 QUEIROZ, Marisse Costa de. O Direito Como Sistema Autopoiético: Contribuições Para A Sociologia Jurídica. Trabalho apresentado no Congresso Internacional DIREITO, JUSTIÇA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO - Florianópolis/agosto de 2002.Revista Seqüência, 46, jul. de 2003, p. 77-91. 27 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Thomaz de. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: RT, 2013, p. 115. 28 A otimização do tempo com relação a atos registrais é tema que pode ser iniciado pelo acesso à justiça.
Os mecanismos de identificação proporcionam uma "segurança jurídica" na formação das relações negociais e existenciais. Com o passar dos anos, tais mecanismos foram alterados, com a inserção de novas tecnologias que nos permitem, com margem de engano muito menor, identificar pessoas. São exemplos disso a identificação biométrica em diversas formas (leitura facial, íris, impressão digital, curvatura das mãos, voz), além das certificações digitais - avançada, qualificada e simples - lei 14.063/2020. O desenvolvimento e a implantação dessas tecnologias tornaram obsoletas ou pelo menos defasadas, as formas analógicas e pouco seguras de identificação. Por esse motivo, as alterações normativas que visam a facilitar ajustes registrais, sem que isso gere insegurança jurídica - pelo contrário -, acabam gerando um encadeamento eletrônico registral. O art. 109, da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), prevê a possibilidade de que o assento seja retificado, devendo o juiz ordenar a expedição de mandado específico para isso. O art. 56 da lei 6015/73 autorizava sua modificação em um prazo decadencial de 1 ano, após a pessoa atingir a maioridade. No entanto, é importante salientar que a ideia de imutabilidade do nome alterou-se sensivelmente nos últimos anos. Nessa senda, é importante analisar o tema dos direitos da personalidade com vetor axiológico constitucional do supra princípio da dignidade da pessoa humana. Para o STJ, inclusive, as exceções ao princípio da imutabilidade do nome expressas na Lei de Registros Públicos (6.015/1973) são meramente exemplificativas. É possível que o juiz determine a modificação, se entender que existe o constrangimento ou exposição ao ridículo. A análise indubitavelmente subjetiva deve ser realizada sob a perspectiva do próprio titular do nome. Em estudo do saudoso notário Zeno Veloso, no site portal do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), tivemos a oportunidade de tratar desse tema, defendendo a necessidade releitura da alteração do nome. Logo de início, é importante estabelecermos que o nome civil da pessoa natural é um direito da personalidade que deve ser analisado pelo vetor axiológico da dignidade da pessoa humana, conforme a Constituição Federal, o que causa uma releitura do princípio da sua imutabilidade. O fato é que esse princípio vem sendo corretamente mitigado. O princípio hoje deve ser considerado como da mutabilidade motivada, pois diversos julgados do STJ têm feito a relativização da imutabilidade, já é um movimento quase que unânime de mitigação desse princípio, baseado numa análise principiológica do ordenamento jurídico. Conforme destacado inicialmente, a Lei de Registros Públicos, do já distante ano de 1973, previa a possibilidade de alteração do prenome no período de um ano a partir da maioridade, sem tanta necessidade de fundamentação para essa mudança. Também existe a possibilidade de mudança em casos de filiação socioafetiva de enteado, adoção, casamento e união estável, prenome imoral ou de exposição ao ridículo, nome notório ou pseudônimo, entre outras situações. Mais recentemente, é preciso destacar o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que possibilitou a alteração de prenome e gênero sem necessidade de cirurgia, tratamento hormonal ou mesmo de judicialização. Essa releitura vem sendo desenvolvida há tempos pelo professor Anderson Schreiber no tocante aos pedidos de modificação do nome, sustentando ele que se trata de medida isonômica a possibilidade de alteração de nome em outros casos. Segundo o especialista, não é o acolhimento, mas a rejeição ao pedido de alteração que depende de motivo suficiente, sempre observando o respeito à personalidade e à autodeterminação pessoal. Estudos e artigos recentes também apontam a necessidade de legislação específica e atualizada sobre o tema. E foi exatamente o que aconteceu com a lei 14.382 de 27 de junho de 2022. Em que pese alguns afirmarem equivocadamente que há risco para a segurança jurídica na alteração do nome, não nos parece ser assim, pois é sabido que nossa Lei de Registros Públicos é de 1973. Era um momento totalmente diferente para a identificação civil e também para a tecnologia disponível. Além disso, há recurso disponível para afastar insegurança jurídica, como o Cadastro de Pessoa Física - CPF, meio eficaz de identificação da pessoa natural, o que afasta as narrativas de potenciais fraudes contra credores ou prejuízos a terceiros, ainda mais hoje em que o CPF é atribuído nos primeiros dias ou primeiras horas de vida da pessoa natural! Não é demais lembrar que a alteração legislativa só permite, em regra, uma única mudança do nome, só que agora sem limitar essa possibilidade ao primeiro ano da maioridade, quando a pessoa não raro não tem a maturidade e conhecimento necessários para isso. Agora, pode essa única mudança extrajudicial ocorrer a qualquer tempo, uma vez só, salvo decisão judicial em contrário. Portanto, com toda essa salvaguarda, é forçoso convir que a alteração não traz insegurança jurídica. Ao contrário, ela concretiza direitos fundamentais, pois todos precisamos nos reconhecer com a nossa identidade, da qual o nome faz parte, entalhando-se uma nova fase, a mutabilidade extrajudicial. Mas, caso ainda paire dúvida sobre os riscos da alteração e suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. Com efeito, aconselha-se apresentação de certidões do requerente, lembrando que o CPF continuará o mesmo, afastando hipótese de prejuízo para terceiros, deslocando mais uma importante função para os registros públicos, a verificação da identidade. Por fim, cabe prognóstico registral na medida em que a alteração pode reverberar em outros assentos registrais, após a finalização do procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico, além de observar assim as retificações, anotações e comunicações específicas em todos outros atos, para assim, evitar riscos e conflitos registrais.
O bom nome vale mais do que muita riqueza; ser estimado é melhor do que ter prata e ouro. Provérbios 22:1-9 NTLH O padrão universal e incontestável de um preceito jurídico tão arraigado na sociedade desde tempos imemoriais, faz pensar nas razões sociais que se apegam certos valores sociais. O nome da pessoa natural é um destes valores e sua imutabilidade outro. Incomodar-se com tais situações faz surgir novas perspectivas neste nosso horizonte limitado. De fato, o nome1 é o principal elemento de identificação de uma pessoa, sendo um direito inerente à personalidade2. Apesar dessa classificação, o nome é escolhido, por razões óbvias, pelos pais do registrado ou por aquele que declare seu nascimento3, e não pelo seu próprio portador. No dizer do Professor Limongi França: "O nome, de modo geral, é elemento indispensável ao próprio conhecimento, porquanto é em torno dele que a mente agrupa uma série de atributos pertinentes aos diversos indivíduos, o que permite a sua rápida caracterização e o seu relacionamento com os demais."4 É de interesse do Estado que a pessoa mantenha o nome. Disso resulta que a pessoa deva permanecer com o seu nome por toda vida, e até mesmo depois da morte, como identificador no meio social. Além disso, a regra da imutabilidade, ainda que relativa, impediria a mudança indiscriminada de nomes que prejudicaria a identificação das pessoas, mas com a significativa alteração da lei 6.015/73 (lei de registros públicos), pela lei 14.382/225, ocorreram alterações profundas nesta sistemática jurídica. Historicamente, o princípio da imutabilidade sempre andou de mãos dadas com o direito ao nome pois, já que o nome serviria para identificar a pessoa, ele deveria ser sempre o mesmo, a fim de que não se fizesse confusão e nem houvesse dúvida a respeito de seu portador. Portanto, em princípio, o nome era imutável, imutabilidade relativa que fosse, pois a mutabilidade era restrita a poucos casos. Ainda neste contexto histórico, a regra da imutabilidade do nome não estava presente no decreto 9.886, de 7 de março de 1888, que tratava dos registros públicos, e nem no Código Civil de 1916. Foi o art. 72 do decreto 18.542/28, que trouxe expressamente a regra da imutabilidade do nome (prenome) e suas primeiras exceções. Antes das alterações sofridas na lei de registros públicos pela lei 14.382/22, a alteração do nome somente seria permitida em determinados casos devidamente justificados, e as exceções à imutabilidade do nome, via de regra, deveriam ser processadas em juízo a seguir elencadas: a) Prenome ridículo do portador do nome - antigo art. 55 da lei dos registros Públicos, b) Acréscimo de apelido público e notório ao prenome -- antigo art. 58 da lei dos registros públicos; c) tradução de nome estrangeiro - arts. 43 e 44 da lei 6.815/80; d) homonímia; e) reconhecimento ou negatório da paternidade; f) proteção de vítimas e testemunhas de crimes - antigo art. 57 da lei dos registros públicos; g) adoção - art. 47, §5º da lei 12.010/09. Por conseguinte, serão a seguir estudadas as alterações e retificações que dependam da qualificação registraria, decorrentes de um juízo prudencial, dentro do procedimento extrajudicial, que para nós tem natureza jurídica de jurisdição voluntária que foram alteradas pela novel legislação alteradora da lei 6.015/73. Acompanhando os novos anseios da sociedade, a imutabilidade do nome deu espaço à mutabilidade controlada, pois tanto a lei quanto os tribunais superiores passaram a admitir várias exceções em que seria possível alterá-lo - o que faz bastante sentido, visto a qualidade de direito inerente à personalidade dada ao nome e sua íntima ligação com a dignidade da pessoa humana. O jurista argentino Adolfo Pliner já atentava para a relativização da imutabilidade do nome: "... a regla da inmutabilidad del nombre es um principio jurídico de caráter dogmático. Constituye uma regla que responde simultaneamente a la satisfaccion de interesses públicos y privados, em cuanto apunta al orden y a la seguridade jurídica, que son los fines de la norma y las razones que la hacen valiosa. Pero la regla no puede considerarse absoluta, carácter que acomoda muy raramente a las creaciones del hombre, y mucho menos em matéria de ordenamentos normativos de la conducta humana."4 Porém, esse contexto deu lugar a uma nova realidade com entrada em vigor da lei 14.382/22, o princípio da imutabilidade do nome (ou mutabilidade controlada) simplesmente deixou de existir, dando lugar a plena possibilidade de alteração do nome da pessoa sem qualquer motivo ou prova. E mais: o requerimento pode ser feito diretamente no registro civil - ou seja, não há necessidade de provimento judicial para tanto, conforme art. 56 e parágrafos da LRP7. A novidade pôs fim a uma realidade experimentada há anos pela sociedade e causou estranheza inclusive entre os registradores civis e outros profissionais da área. Porém, tendo em vista a classificação do nome como um direito da personalidade, a nova previsão é bastante acertada e se coaduna com a constitucionalização do direito, que busca, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana. Vale ressaltar que apesar da liberdade experimentada, há limite de gozo de tal direito: a pessoa pode alterar o prenome de forma imotivada e administrativa somente uma vez. Para tanto, necessário que ela tenha atingido a maioridade (art. 56, §1º, da lei 6.015/73, alterado pela lei 14.382/22). Importante atentar para a significativa alteração legislativa, pois foi suprimido o prazo decadencial de um ano após o atingimento da maioridade civil para o exercício do direito potestativo, ou seja, a partir da publicação da lei, qualquer um poderá alterar seu nome após a maioridade. A lei trouxe também novidades na composição do sobrenome da pessoa, que poderá ser alterado com mais facilidade, conforme o novo texto do art. 57 da lei 6.015/738. O sobrenome, ou patronímico, ainda tem a função de identificar a que núcleo familiar aquela pessoa pertence, porém, há agora várias formas de inserção e exclusão de sobrenomes. Se antes a pessoa casada tinha oportunidade de adquirir o sobrenome do cônjuge no momento do casamento, agora ela poderá fazê-lo a qualquer momento - e também retirá-lo, caso tenha se arrependido da alteração, mesmo durante a constância do casamento. Anteriormente, a exclusão e a inserção dos sobrenomes eram possíveis, porém dependiam de decisão judicial e, em muitos casos, de prova. Como exemplo, o STJ recentemente julgou ação em que possibilitou que uma mulher retirasse o sobrenome do marido, adquirido com o casamento, e voltasse a usar o nome de solteira, mesmo durante a constância do casamento. Para isso, ela teve de fazer provas contundentes e demonstrar prejuízo decorrente da aquisição do novo nome. Com a nova lei, tal pedido poderia ser feito diretamente no registro civil, sem maiores formalidades nem intervenção judicial ou necessidade de se constituir advogado. A mesma dificuldade se dava com a alteração de prenome. O ordenamento até passou a prever possibilidades em que a alteração seria possível de forma administrativa, como no caso do transgênero[9]. Desde a publicação do provimento 73 do CNJ, o transgênero pode alterar seu prenome para algum que se enquadre na sua designação. Porém, a possibilidade de alteração ainda não era aberta a todos. Em que pese a facilitação para a mudança de nome por transgênero, a mesma facilidade não era dada às demais pessoas. Em decisão do STJ, foi negado a uma mulher que tinha como prenome Tatiane a alteração para Tatiana (REsp 1.728.039/SC). Tal decisão não se coaduna com a natureza do direito ao nome, como dito, de direito da personalidade, pois negou seu pleno exercício pela requerente. Hoje, a Tatiane pode alterar seu nome para Tatiana sem maiores problemas, dirigindo-se diretamente ao registro civil. Em recente caso notório, o STJ permitiu a alteração de nome de uma criança que havia recebido o mesmo nome dado a uma marca de anticoncepcional (REsp 1.905.614/SP). Na ocasião, a corte entendeu que ocorreu rompimento unilateral do acordo estabelecido entre os pais da criança acerca de seu nome (os genitores combinaram outro nome; o pai foi sozinho no cartório de registro civil e escolheu nome diverso do combinado - conforme sustentou a mãe, ele escolheu como nome da criança o mesmo da marca de anticoncepcional utilizado pela mulher, como vingança pela gravidez indesejada). Hoje, tal imbróglio também poderia ser resolvido no âmbito administrativo: o novo texto do art. 55, §5º, da lei 6.015/73 prevê que pode ser apresentada, em até 15 dias, ao registro civil, "oposição fundamentada ao prenome e sobrenomes indicados pelo declarante, observado que, se houver manifestação consensual dos genitores, será realizado o procedimento de retificação administrativa do registro, mas, se não houver consenso, a oposição será encaminhada ao juiz competente para decisão." Porém, nem toda possibilidade de alteração de nome será permitida, pois, apesar de larga liberdade, a lei também trouxe algumas regras. Por exemplo: recentemente o STJ apreciou pedido de um artista para que se alterasse seu sobrenome de Brito para Britto, para haver identificação entre a forma como é conhecido e seu sobrenome real. Porém, o STJ entendeu a alteração inviável, pois tal discrepância não foi considerada motivo justificado para a almejada alteração (REsp 1.729.402/SP). Com a nova lei, também não será possível esta modificação, pois o sobrenome permanece exercendo a função de identificar um núcleo familiar. Importante frisar que é possível que se faça alteração de sobrenome administrativamente, porém, para acrescer nome de família (somente acrescer, e não retirar); incluir ou retirar nome de cônjuge durante o casamento; retirar sobrenome de ex-cônjuge; e incluir ou excluir sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação (art. 57 da lei 6.015/73). Outras situações permanecem obscuras ou sujeitas à apreciação do Judiciário. Vejamos: se houver inclusão de sobrenome em situação que houver agnome (junior, filho, neto, etc), não está claro se este será ou não suprimido. Em um caso concreto apreciado pelo STJ, a mãe havia pedido a inclusão de seu sobrenome ao do filho, e a exclusão do agnome. A corte entendeu pela não possibilidade, visto que a ausência de sobrenome materno não causa constrangimento à pessoa, além de não ser função do nome de família estreitar ligação afetiva, de modo que não havia motivo para tal alteração (REsp 1.731.091/SC). Hoje, não há mais que se apreciar justo motivo, de forma que este pedido é prontamente atendido. Porém, não está claro se o agnome será suprimido quando da inclusão de mais um sobrenome. Certo é que não haverá mais idêntica correspondência entre o nome do ascendente e do descendente, de modo que o agnome não será mais necessário. Porém, em casos concretos, é possível que este agnome já seja inerente à identificação daquela pessoa, sendo parte integrante de sua personalidade. Apesar das novidades, o legislador não revogou o art. 58 da lei 6.015/73, que dispõe que "o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios". Porém, apesar da menção expressa ao princípio da imutabilidade do nome continuar no texto, fica difícil defender sua permanência no ordenamento quando há tantas possibilidades de alteração, acessíveis a qualquer pessoa e de forma imotivada. Assim, percebe-se que a lei 14.384/22, vendida pela mídia como lei de "modernização dos cartórios", trouxe muito mais do que prever a digitalização do acervo e o atendimento online (o que, diga-se de passagem, já existiam há anos nas serventias extrajudiciais), provocando uma verdadeira revolução em um dos mais importantes direitos existenciais da pessoa. Atualmente, apesar da importância do nome, o indivíduo é identificado também por outras formas, como pelo número do CPF - este sim até hoje imutável (ou quase, pois há alteração de CPF em raríssimas situações, como é o caso da adoção de menor, em que o cancelamento do registro original é acompanhado do cancelamento do CPF, sendo cadastrado um novo, quando do novo registro de nascimento). Percebe-se, portanto, que as pessoas estão sendo cada vez mais identificadas por números e cadastros, principalmente no âmbito da vida negocial, deixando o nome relegado à identificação social do indivíduo. Assim, mesmo com a alteração, ficam devidamente identificadas e individualizadas, sem possibilidade de confusão quanto a suas identidades, ficando garantida, portanto, a segurança jurídica. As novidades vão ao encontro da busca pela desburocratização e da desjudicialização, pois se antes seria necessário a pessoa buscar o Judiciário - e às vezes até as cortes superiores - para exercer seu direito à personalidade referente ao nome, hoje ela o fará facilmente no cartório de registro civil. Por óbvio que a nova lei, no tocante à alteração de nome, necessita de regulamentação. Por isso, espera-se que o CNJ ou mesmo as corregedorias dos tribunais locais o façam por meio de provimentos, o que será bem-vindo, pois é interessante que haja padronização na exigência de documentos e certidões exigidas para o exercício do novo direito. A citação trazida inicialmente em provérbios deverá ser relida, pois apesar do nome ser o núcleo profano do versículo bíblico, o sagrado será a honradez do cidadão e isto, nem alterando o prenome, deixará de ser valorado. Assim, por mais estranhamento que possa causar, já que o operador do direito há anos está acostumado com a imutabilidade do nome, as novidades devem ser vistas com bons olhos, ao passo que aproximam cada vez mais o direito ao nome aos direitos da personalidade. Com isso, fica garantida, de forma ampla, a dignidade, e, ao mesmo tempo, resguardada a segurança jurídica, já que, apesar da alteração, o nome fica lastreado ao CPF e a outros cadastros, evitando-se, portanto, fraudes e prejuízos a terceiros. ______ 1 Conforme Limongi França, o nome, no sentido mais geral, é a expressão pela qual se identifica e distingue uma pessoa, animal ou coisa. É o gênero, do qual o nome de pessoa, conceituado por Cícero, é uma espécie" FRANÇA, Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: RT, 1958, p. 21. 2 O nome é obrigatório a todas as pessoas naturais e em qualquer ordenamento dos países do mundo, portanto, conforme Leonardo Brandelli, "... ao lado do interesse privado de identificação, tem o nome uma carga de interesse público muito grande, dado que a sociedade tem a necessidade de individuar os seus membros por questões de segurança jurídica e social. BRANDELLI, Leonardo. Nome civil da pessoa natural. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 117. 3 Artigo 54, 4º, da Lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos. Disponível aqui. 4 FRANÇA, Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: RT, 1958, p. 22 5 Lei 14.382/2022. Disponível aqui. 6 PLINER, Adolfo. El nombre de las personas. 2ª Ed. actualizada. Ed Astrea de Alfredo Y Ricardo De Palma: Buenos Aires, 1989, p 281. 7 Art. 56. A pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.§ 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 2º A averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 3º Finalizado o procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao TSE, preferencialmente por meio eletrônico. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. (Incluído pela lei 14.382/22) 8 Art. 57. A alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial, a fim de: (Redação dada pela lei 14.382/22)I - inclusão de sobrenomes familiares;(Incluído pela lei 14.382/22)II - inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;(Incluído pela lei 14.382/22)III - exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas;(Incluído pela lei 14.382/22)IV - inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 1º Poderá, também, ser averbado, nos mesmos termos, o nome abreviado, usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional. (Incluído pela lei 6.216/75).§ 2º Os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas. (Redação dada pela lei 14.382/22)§ 3º-A O retorno ao nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira será realizado por meio da averbação da extinção de união estável em seu registro. (Incluído pela lei 14.382/22)§ 7º Quando a alteração de nome for concedida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, o juiz competente determinará que haja a averbação no registro de origem de menção da existência de sentença concessiva da alteração, sem a averbação do nome alterado, que somente poderá ser procedida mediante determinação posterior, que levará em consideração a cessação da coação ou ameaça que deu causa à alteração. (Incluído pela lei 9.807/99)§ 8º O enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, poderá requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família. (Redação dada pela lei 14.382/22) 9 Note que diversos países já permitiam a alteração no nome do transgênero, o consagrando como direito há décadas, como as legislações, sueca, alemã, holandesa, italiana, de certos estados dos Estados Unidos e do Canadá. Outros países o reconhecem diretamente, como a Dinamarca, Finlândia, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Suíça, Turquia, Portugal, França, Peru Colômbia, e finalmente o Brasil, in: VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Editora RT, 2008, p. 233.
1.    A Proteção aos Idosos O envelhecimento é um fato da natureza e porque não dizer, um direito natural, personalíssimo e deve ser protegido pela família, sociedade e por fim pelo Estado, pois é condição normal, natural que toda pessoa almeja alcançar, com saúde, segurança, dignidade e afeto. A dignidade da pessoa humana, protegida constitucionalmente logo no artigo 1º inciso III da Constituição Federal Brasileira, prevê seu proeminente papel entre os fundamentos do Estado brasileiro, como um dos vetores principais da formação do Estado Brasileiro, núcleo axiológico, considerado como valor constitucional supremo. O Estado deve criar as condições para promover a proteção da dignidade da pessoa humana, principalmente com relação a crianças e idosos. Fato é que a dignidade da pessoa humana em relação aos idosos, no Brasil, é desrespeitada. Este paper discutirá apenas uma situação dos idosos, o instituto da senexão. Portando, a Constituição Federal conferindo tratamento diferenciado e prioritário aos idosos1, consagrou direitos específicos, como o benefício previdenciário2 e proteção assistencial3, além de impor à família, à sociedade, e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na sociedade, defendendo sua dignidade, e bem-estar, e garantindo-lhes o direito à vida, conforme artigo 230 da Constituição Federal. A proteção aos idosos é encarada como direito pré-existente e nem deveria ser discutido, se a solidariedade4 imperasse nas sociedades. Entretanto, analisando o fato social, isto não ocorreu no passado e não ocorre no presente, sendo papel dos estados protegê-los. O aprimoramento legislativo neste ponto, no mínimo, é um alerta social. A discussão midiática traz uma nova situação a ser debatida e conhecida. O Estado brasileiro, tardiamente, trouxe proteção aos idosos com a lei 10.741/03 - Estatuto do Idoso, que inaugurou tratamento diferenciado ao direito previamente previsto constitucionalmente. O Estatuto estabeleceu sistema de proteção integral e de absoluta prioridade ao idoso. Os artigos 3º e 4º desse diploma estabelecem tais princípios protetivos. A pessoa idosa, portanto, é detentora de direitos que devem ser protegidos e assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo poder público. Esses direitos requerem observância proporcional ao aumento da taxa de envelhecimento do Brasil, O fenômeno "abandono" das pessoas idosas pelo próprio núcleo familiar5, tem evidente aspecto negativo, tornando indispensável que as situações que os envolvam tenham direcionamento legal e não fiquem à mercê da discricionariedade dos operadores do direito, como bem explicado por Elizabeth Futami.6 O problema social revela profundo desrespeito a quem já produziu, laborou em prol da sociedade e quando ocorre alguma situação que o impeça de trabalhar com o mesmo vigor da juventude, a família, a sociedade o abandona. O Estado entrega parcela financeira mínima para seu sustento7, que por certo, serão consumidos com remédios, revelando-se injusto de toda forma. 2.    A Senexão Etimologicamente, o termo "Senexão", tem seu significado extraído da palavra de raiz latina "senex" que corresponde ao idoso. Decorre deste, os termos, "seni; senilis; senio; senior; seniores; senatus"8. Adicionando-se o prefixo "ão" que corresponde ao conceito de pertencimento, obtém-se a palavra "senexão". O termo, portanto, corresponderia, gramaticalmente, ao que pertence aos idosos, mas atualizando-o, seria mais correto, ainda que de forma introdutória, dizer sobre os direitos dos idosos. Entretanto, no contexto do Projeto de Lei, deve ser analisado como tais direitos são ali pretendidos. O tema é inédito. Muito diferente da adoção de filho, não há previsão da adoção do idoso, apesar de Projetos de Lei neste sentido, como os PL 956/19, 5475/19 e 5532/19, alterando as lei 10.741/03 - Estatuto do Idoso e lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, que teriam como previsão, a discussão a adoção de idosos. Não é objetivo discutir a adoção do idoso neste paper. Patrícia Novais Calmon traz razões para o acolhimento do novel instituto: A própria abertura semântica proporcionada pela parte final do art. 1.593 do Código Civil, ao estabelecer que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem", já viabiliza a formação de parentesco através de outras modalidades. É justamente isso que dispõe o enunciado nº 103, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (I JDC/CJF), ao consignar que a filiação pode decorrer de outras formas, como, por exemplo, a proveniente de técnicas de reprodução assistida heteróloga.9 Portanto, fundamento jurídico há. Necessidade igualmente, pois o envelhecimento populacional no mundo chegou a tal ponto que não se consegue mais negligenciar. A Organização das Nações Unidas - ONU, reconhece e recomenda que os países tratem o tema com máxima atenção10. Portanto, a conscientização da população sobre essa etapa da vida, que todos passarão, não deveria ser encarada como problema social e os governos deveriam dar mais importância a esse grupo etário. Imprescindível, por consequência, a conservação e implementação de políticas públicas de proteção ao idoso de forma conjunta à família, implementando efetivamente o art. 230 da CF/88. Fato é que a cada ano, há aumento substancial na taxa de envelhecimento da população de praticamente todos os países. Preocupante é a habitação das pessoas idosas, vítimas da própria sociedade em termos de acolhimento, conforme relatório da própria ONU, anteriormente citado. Conforme citado projeto de lei 105/20, a Senexão seria a colocação de pessoa idosa em lar substituto, sem mudança em seu estado de filiação, sendo ato irrevogável e com registro no cartório de registro de pessoas (naturais, sugerido por nós alterando o PL), em livro próprio (Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, porém o PL não mencionou a alteração da lei 6.015/73). As partes envolvidas, seriam o senectado (termo semelhante ao curatelado ou adotado), enquanto a pessoa receptora seria senector (termo semelhante ao curador). Por certo o instituto diferirá muito da adoção ou da curatela, mas se colocam estes termos apenas para comparação terminológica. Tal instituto difere da curatela11, pois estes são sempre deferidos em benefício da pessoa vulnerável, sendo registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais competente e tem aspectos majoritariamente patrimoniais. Difere igualmente da guarda, e da tutela. A guarda é uma forma de colocação do menor em família substituta consistente na prestação de assistência material, moral e educacional, à criança ou adolescente e o instituto da guarda convive com o poder familiar, destinando-se a situações peculiares, como a falta eventual dos pais ou responsáveis. Já a tutela assemelha-se a guarda no aspecto de colocação da criança ou adolescente em família substituta, porém a família natural perderá o poder familiar.12 Outro instituto análogo é o apadrinhamento afetivo de menores. O CNJ o determinou como um programa voltado para crianças e adolescentes que vivem em situação de acolhimento ou em famílias acolhedoras, com o objetivo de promover vínculos afetivos seguros e duradouros entre eles e pessoas da comunidade que se dispõem a ser padrinhos e madrinhas. Nem um destes institutos assemelham-se a senexão, porém, em todos há um núcleo comum, "o bem-estar do ser humano, preservando sua dignidade". A senexão, portanto, terá aspectos principalmente relacionados ao afeto e confiança existente entre as partes. Nossos tribunais, a exemplo do TJ/SP, ainda não estão concedendo este tipo de conexão afetiva, diferente da curatela13 e tal tema tem repercussão, pois as pessoas não entendem como não podem cuidar do idoso e ter relação afetiva, com amplo cuidado e inclusão em seus planos de saúde, apenas para citar um exemplo.14   3.    Críticas e questões ainda controversas ao PL 105/20. O projeto de lei, ao pretender regulamentar questões atinentes ao tratamento de saúde, trouxe uma ampliação semântica perigosa ao prever que "competirá ao senector a decisão a respeito de "quaisquer atividades do senectado, em caso de impossibilidade de decidir".15 Questiona-se se este poder decisório será livre ou terá alguma fiscalização pelo Estado. Analogamente a "Adoção à Brasileira", conhecida como adoção ilegal, onde a família biológica entrega o menor a outra família e esta o registra como se seu filho fosse sem qualquer procedimento judicial16, poderia ocorrer o "reconhecimento de paternidade ilegal de maior", como se pai fosse (raramente poderia ser a mãe17). Eventualmente alguém sem paternidade registral, poderá pedir que seja reconhecida por algum idoso, com diferença de idade superior a 16 anos, como forma de burla a lei, apenas para ter cuidados com este idoso. Ilegal tal situação, evidentemente, mas a busca por proporcionar dignidade a alguém com vínculos afetivos e evitar que fosse levada a instituições de acolhimento, entre outras motivações, deveria o legislador atentar-se ao instituto da senexão e rapidamente acolhê-lo. Quanto ao procedimento adotado, cumpre destacar que a judicialização pode torná-lo moroso. Ante a idade, normalmente avançada do senectado, ideal seria que, a exemplo da filiação socioafetiva - procedimento que corre junto ao Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, para os maiores de 12 anos -  revelar-se-ia célere, e com custo muito baixo, pelas tabelas de custas desta especialidade registral em todo o Brasil. O procedimento seria iniciado junto ao Oficial de Registro Civil, ato seguinte a coleta dos dados, encaminhado ao Ministério Público para análise e parecer, com exame psicológico e imprescindível realização de estudo psicossocial, aliado ao fato de aferição das condições psicoafetivas, capacidade e preparo para a senexão, pelo senector. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, deveria receber emenda para alteração deste artigo específico, Art. 55 H, prevendo que correrá inicialmente junto as serventias registrais civis das pessoas naturais com a seguinte redação: Art. 55 H. A senexão será iniciada e concedida extrajudicialmente, ouvido o Ministério Público, com parecer conclusivo, com acompanhamento multidisciplinar da vara que cuide de idosos, devendo ter total preferência de processamento e a maior brevidade possível. Parágrafo primeiro. Caso o parecer ministerial seja contrário à senexão, as partes serão encaminhadas ao Juízo competente em suas funções administrativas para sentença. Parágrafo segundo. Em caso de negativa, as partes ainda poderão socorrer-se de decisão jurisdicional em processo autônomo, mas servindo o procedimento administrativo, como base a nova análise. A lei de Registros Públicos, lei 6.015/73 igualmente deveria ser alterada com a seguinte redação: Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: inciso IX - O procedimento da Senexão, em conformidade com a Lei ... (PL105/2020) CAPÍTULO X Da Emancipação, Interdição e Ausência e da Senexão. Art. 89. No cartório do 1° Ofício ou da 1ª subdivisão judiciária de cada comarca serão registrados, em livro especial, as sentenças de emancipação, bem como os atos dos pais que a concederem, em relação aos menores nela domiciliados. Parágrafo único: O procedimento da Senexão será igualmente registrado no Livro "E". Entretanto, o Projeto exige a judicialização do procedimento, atribuindo exclusivamente ao juízo dotado de competência para tramitação e julgamento das demandas envolvendo idosos, o poder de conceder Senexão, mediante acompanhamento por equipe multidisciplinar, o que, como dissemos anteriormente, um erro no projeto de lei. Considerações finais. O projeto de lei 105/20 ainda tem questões controversas e ainda enfrentará alterações, mas é um avanço na proteção dos direitos dos idosos. Demonstrou-se que a senexão seria uma nova medida protetiva específica a ser inserida no Estatuto do Idoso. Este não teria o condão de criar vínculo parental, apenas a inclusão em família substituta, sem a formação de laços de filiação, privilegiando os vínculos socioafetivos. Este projeto tem papel inovador, protetivo aos idosos e amplia a noção de socioafetividade. A adoção de idosos propostas em outros projetos de lei, difere claramente do instituto trazido a este paper, pois a adoção forma laços parentais entre idoso e adotante (que pode ser mais novo). A adoção de menores de idade, mesmo em situação de risco, além do afeto envolvido, não seria um investimento emocional para a velhice dos adotantes? Não seria um investimento no amparo dos pais quando idosos? Já a senexão, revela-se apenas afeto. Transferirá herança? Raríssimamente e diríamos que não, pois apenas em caso específico de não haver parente vivo que o senector receberá, antes do Estado. O Afeto será multiplicado. A sociedade precisa deste instituto. ________________ 1 Constituição Federal de 1988. Art. 230 - A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. § 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. (BRASIL, 1988). 2 Art. 201. A pessoa idosa é detentora de direitos que devem ser protegidos e assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo poder público. Inciso I - cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; (grifo nosso) 3 Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: Inciso I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (grifo nosso) 4 Voltando ao termo "gerações" (hoje tratado como dimensões), amplamente utilizado até o fim do século XX, percebe-se que o tríplice chamamento da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade (solidariedade) leva a tendência de sucessividade sim, mas atualmente há interpretação de completude entre as mesmas. 5 O termo abandono, aqui utilizado, será entendido como a situação onde o núcleo familiar, tendo condições não acolhe o idoso. Há situações onde a extrema pobreza não permite que se sustente mais uma pessoa, e o benefício social recebido pelo governo não seria suficiente para uma vida digna. 6 FUTAMI, Elizabeth. Considerações sobre o novel instituto da SENEXÃO PL 105/20. Seminário apresentado junto a Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP na disciplina Justiça constitucional, direitos fundamentais e acesso a "NOVOS DIREITOS". Sob o magistério da Profa. Dra. Carolina Noura de Moraes Rego, em 25 de junho de 2022. 7 O Benefício de Prestação Continuada - BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, é a garantia de um salário-mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. - https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social/beneficios-assistenciais/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc#:~:text=O%20Benefício%20de%20Prestação%20Continuada,com%20deficiência%20de%20qualquer%20idade. 8 Disponível aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 9 CALMON, Patrícia Novais. SENEXÃO: um novo instituto de direito das famílias? Temas atuais em famílias e sucessões [livro eletrônico]: volume 1 / organização Priscila Salles; coordenação Renato Horta, Thaís Câmara. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG: OAB - Minas Gerais: Comissão de Direito de Família: Comissão de Direito Sucessório, 2021, p. 98. 10 OMS lança portal com dados mundiais sobre saúde e bem-estar de pessoas idosas | As Nações Unidas no Brasil - in; aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 11 "A curatela é o encargo imposto a alguém para reger e proteger a pessoa que, por causa transitória ou permanente, não possa exprimir a sua vontade, administrando os seus bens. O curador deverá ter sempre em conta a natureza assistencial e o viés de inclusão da pessoa curatelada, permitindo que ela tenha certa autonomia e liberdade, mantendo seu direito à convivência familiar e comunitária, sem jamais deixá-la às margens da sociedade". (STJ, 4ª Turma, REsp 1515701/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 02/10/2018, publicado em 31/10/2018). Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/643818363/recurso-especial-resp-1515701-rs-2014-0273739-3. Acesso em 27 de jun de 2022 12 LIMA, Vivian Pereira. Averbações e anotações no registro civil das pessoas naturais. em obra coletiva O Registro civil das pessoas naturais - Novos Estudos. Coord. Izaías ­­Gomes Ferro Jr. Coord Geral Martha El Debs, Salvador: Juspodivm, 2017 p. 417. 13 TJ-SP - AC: 10072586920198260037 SP 1007258- 69.2019.8.26.0037, Relator: Francisco Loureiro, Data de Julgamento: 20/10/2020, 1a Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/10/2020. 14 A mulher de 30 anos que luta para adotar idosa de 67: 'Ela ganhou um lar e eu, mais uma filha' aqui. Acesso em 27 de jun de 2022. 15 CALMON, Patrícia Novais. Senexão: um novo instituto de direito das famílias? In : aqui. Acesso em 26 de jun de 2022. 16 SANTOS, Mariana Uncidatti Barbier, e SODRE, Manuela Carolina Almeida. Adoção e Repercussões Registrais. In: O Registro Civil na atualidade: a importância dos ofícios da cidadania na construção da sociedade atual. Coord. Martha El Debs. Org. Márcia Rosália Schwarzer e Izaías Gomes Ferro Junior. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 230. 17 Mater semper certa est ("A mãe está sempre certa") é um brocado de direito romano que tem o poder de praesumptio iuris et de iure, o que significa que nenhuma contra-prova pode ser feita contra este princípio (literalmente: presunção de lei e por lei). Prevê que a mãe da criança é estabelecida de forma conclusiva, desde o momento do nascimento, pelo papel da mãe no nascimento, o que atualmente pode não ser certa como o empréstimo de útero, vulgo barriga de aluguel, regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, na Resolução CFM nº 2.294, de 27 de MAIO de 2021.
As recentes reformas legais, promovidas pela lei 14.382/2022, nos convocam a novas reflexões sobre o impacto que suas disposições terão no dia a dia dos cartórios de registros de imóveis brasileiros. Aparentemente, há uma lenta, sutil, porém inexorável, mudança de paradigmas - não só do ponto de vista do direito formal (registral), mas do próprio direito material, ou seja, na constituição, modificação e extinção de direitos reais. Não é recente este movimento disruptivo. Basta que se pense na constituição do direito real de propriedade fiduciária que ocorre à margem do Registro de Imóveis pela via das cessões de direitos registradas em entidades para-registrais (§§ 1º e 2º do art. 22 da lei 10.931/2004). Além disso, espocam "entidades registradoras", cuja natureza privada pouco a pouco assimila aspectos jurídicos de "publicidade e eficácia perante terceiros" (art. 26 da lei 12.810/2013), atributos reconhecidamente próprios dos sistemas de registros públicos, criados, fiscalizados e regulados pelo Poder Público. A lei 14.382/2022 reformou a Lei de Registros Públicos - um respeitável monumento legislativo - subvertendo alguns princípios do tradicional sistema de registro de direitos, inclinando-o a uma nova ambiência digital: o registro de mera notícia (Notice)1. A teoria do título e modo, que nos vem desde as Ordenações, acolhida pela codificação civil sucessiva, de certo modo pode se ver progressivamente abalada com a possível adoção de uma nova configuração haurida de experiências alienígenas - como o sistema de Notice que parece ter inspirado parte dos protagonistas das últimas reformas legislativas, senão vejamos, in verbis: "O extrato (notice) eletrônico, enviado pelo credor, dispensa a apresentação do contrato para requerimento de registro de garantias sobre bens móveis", dirá o governo, flertando com o admirável mundo novo do registro líquido norte-americano2. É certo que o Sr. Ministro e sua equipe, na mensagem de encaminhamento da MP 1.085/2021 ao Congresso Nacional, se referiram a garantias móveis. Entretanto, o extrato, tal e como consagrado no art. 6º da Lei 14.382/2022, veicula tantos garantias sobre bens móveis quanto imóveis (RTD e RI). A intenção candidamente confessada é a assimilação do sistema propalado pela UNCITRAL - United Nations Commission on International Trade Law, trasladando seus princípios para o ambiente brasileiro. Um simples vislumbre nos revela o sentido das mudanças que despontam no horizonte de possibilidades. O registro recomendado pela UNCITRAL baseia-se no conceito de registro de mera notícia (notice registration) em que se suprime a qualificação registral e a atuação notarial na confecção dos títulos. O registro se realiza mediante a apresentação de um simples aviso que fornece detalhes básicos sobre o direito de garantia a que se refere: "(a) a identidade das partes; (b) descrição dos ativos garantidos; e (c) dependendo da política de cada Estado, do valor da dívida garantida e prazos"3. A ideia básica é a radical simplificação do processo de registro, transmutando sua natureza jurídica (registro de direitos), convertendo o ofício predial em mero hub administrativo "algoritimizável" (registro de mera notícia ou de meros extratos): "[...] em um registro baseado em mera notícia, não há necessidade de verificação oficial ou escrutínio da documentação de segurança subjacente. Esse sistema registral também não exige a qualificação registral acerca do conteúdo do aviso registrado ['extrato', na dicção da reforma]. Valorizar a qualificação como pré-requisito para o registro seria prejudicial ao tipo de processo de registro rápido e barato necessário para promover o crédito garantido. A ideia básica é permitir o registro sem outras formalidades (como declarações autenticadas e notarização de títulos e documentos), desde que as taxas de registro exigidas sejam pagas e os campos de informações obrigatórios sejam preenchidos"4. A lenta transformação do registro brasileiro tende a suprimir a atividade jurídica do Oficial Registrador. Já não será necessário conhecimento técnico especializado, eis que a atividade jurídica (due diligence) será realizada por outros profissionais quando da originação dos contratos. A prestação de segurança jurídico-preventiva, de caráter oficial e estatal, cede passo ao aconselhamento jurídico privado, com recurso ao Judiciário em caso de conflitos e litígios. Esta espécie de qualificação light acha-se consagrada na lei com a inacreditável delimitação de atuação do registrador imobiliário nos termos dos incisos do § 2º do art. 6º da lei sancionada. A base legal busca consumar a supressão das atividades jurídicas do registrador, substituindo-as pela simplificação que tende à "algoritimização" (automação) das inscrições feitas com base em diretivas computacionais (XML - extratos). O registro pouco a pouco se desnatura. O fundamento mediato desta reforma não se acha no direito brasileiro, mas na documentação da UNCITRAL e na experiência alienígena. A "qualificação" registral, cuja expressão não figurava até hoje no corpo legal, agora faz seu début na LRP, porém esvaziada de conteúdo jurídico (letra "a", inc. I, § 1º, art. 6º)5. A lei 14.382/2022 não é clara. A busca de eficiência se fez com o sacrifício de fundamentos jurídicos tradicionais, o que torna todo o conjunto ambíguo, inseguro, e suas disposições plurívocas, pois se acham enxertadas de modo artificial no âmbito da ordem legal que se filia a outro sistema (Civil Law). O art. 6º, por exemplo, dispõe que os registradores, "quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos". Mais adiante dirá, no inciso I do § 1º, que o Oficial "qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico". Em seguida, no § 2º do art. 6º, o exegeta lê que nos casos de extratos, proceder-se-á à "subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado", a confirmar que o título deverá sempre ser apresentado. Temos, então, o seguinte: a própria lei distingue título e extrato (inc. I do § 1º do art. 6º); o extrato será a guia do título somente quando cabível. (Na hipótese de não ser cabível, o que se registra? O título, ora bolas!). Além disso, o mesmo dispositivo reza que o registro e a averbação terão como pressupostos "fatos, atos e negócios jurídicos", vale dizer: títulos (art. 167 da LRP) devidamente instrumentalizados (art. 221 da LRP). Por fim, o Oficial qualificará o título em seus aspectos formais e materiais (não o extrato, que contém apenas certos dados estruturados veiculados por meios eletrônicos e processados num hub pseudo-registral). Afinal, será o título, em sentido material, devidamente instrumentalizado (sentido formal), que será o objeto de inscrição?   Entenda-se o que se consagrou no inc. II do § 1º do art. 6º da norma - "o requerente poderá, a seu critério, solicitar o arquivamento da íntegra do instrumento contratual que deu origem ao extrato eletrônico relativo a bens móveis". Como é praxe nos cartórios há muitas décadas, o registro efetivamente se faz pelo título, devolvendo-se-o ao interessado após a prática do ato. Entretanto, pode o interessado solicitar o registro integral (hoje arquivamento em meio eletrônico - art. 194 da LRP), "sem prejuízo do ato praticado no Livro nº 2" (inc. VII do art. 178 da mesma LRP). Ou seja, apesar da prática do ato ser feito a partir de dados decalcados do extrato, este se apoia no contrato que poderá remanescer arquivado nos repositórios eletrônicos, tal e como previsto no inc. VII do art. 178 c.c. art. 194 da LRP6. Em síntese, estamos diante de duas figuras distintas - título e extrato, com os pés fincados em duas canoas. Vamos nos deter numa pequena abordagem "ontológica"7 e analisar cada expressão técnica que ocorre no texto. Separadas, veremos que são como as flores de plástico num exuberante jardim tropical. Afinal, o que são "extratos"? Desde logo, é preciso destacar: os extratos não são meras "notícias", uma ideia fora do lugar e que desponta como corpus alienus, inoculado pelo nascente sistema de Notice Registration. Além disso, tenho plena consciência de que o extrato tratado na lei 14.382/2022 não guarda mais do mera similaridade com os conhecidos extratos registrais do século XIX. As analogias aqui desenvolvidas têm como pano de fundo a ideia, que me assalta ao ler a peça legislativa, de que os fatos da história se apresentam pela "primeira vez como tragédia, a segunda como farsa"8. Em relação aos extratos - velhos conhecidos de alguns registradores -, alguém terá reparado que o artigo 193 da LRP sobrevive incólume às reformas até os dias de hoje? Por que não foi revogado? Já tive ocasião de criticar esse arcaísmo legislativo no pequeno artigo, ao qual encaminho o leitor interessado9. Os extratos nos acompanham desde o nascedouro do regime hipotecário brasileiro. Vamos a eles num passeio de arqueologia registral. Diz a atual LRP: "Art. 193 O registro será feito pela simples exibição do título, sem dependência de extratos". Os extratos inspiraram-se no regime hipotecário francês, estreando em nosso sistema pela via do § 2º do art. 53 do Decreto 3.453/1865, disposição que seria reproduzida posteriormente no art. 52 do decreto 370/189010. Diz AFFONSO GAMA que na França, "a inscripção se faz sem o titulo, mas á vista dos extractos (borderaux), que são as fontes exclusivas da inscripção: e desde que o extracto é tomado por base legal da inscripção, é mistér exigir dois de egual teor, um para o official e o outro destinado á parte para que cada um possa resalvar a sua responsabilidade. No systema patrio, ao contrario, os extractos não sendo a fonte legal e unica das inscripções e tendo o official de conferil-os com os titulos, segue-se que, augmentam a sua tarefa, sem trazer a minima vantagem ao acto do registro"11. O nosso LAFAYETTE foi mais incisivo e não hesitaria em qualificar os extratos no sistema registral brasileiro uma "perfeita inutilidade": "No sistema da legislação francesa, os extratos (bordereau) são uma necessidade; no sistema de nossa lei uma perfeita inutilidade. Em França o extrato foi estabelecido para poupar trabalho ao conservador (oficial do registro) e subtraí-lo a uma responsabilidade além dos seus meios. O conservador não examina o título da hipoteca, não confere com ele o extrato, mas toma o extrato como a fonte da inscrição, e tão-somente por ele faz a inscrição. E desde que o extrato é tomado como a base legal da inscrição, era mister exigir dois do mesmo teor - um para o conservador, outro para a parte, para que cada um pudesse ressalvar a sua responsabilidade. Assim se o erro ou omissão acontecida na inscrição é do extrato, cessa a responsabilidade do conservador e ele defende-se com a cópia que retém em seu poder; se porém o erro ou omissão não estão no extrato, mas somente na inscrição, a responsabilidade é do conservador e a parte tem a prova no extrato que se lhe restituiu"12. A crítica era majoritária na doutrina. LACERDA DE ALMEIDA dirá que os extratos são "uma adaptação servil e inútil do sistema de registro francês". E continua: o "extracto é, como o nome o diz, um resumo em separado das forças do título, contendo as declarações que devem constar da inscripção"13. Retenha-se a ideia de que o extrato é um "resumo separado das forças do título". De fato, assim como se dá no modelo mal ajambrado de hoje, no regime hipotecário do século XIX "a escritura ministra as declarações exigidas para a inscrição, e esta se fará à vista dos extratos, donde decorrem as condições da hipoteca registrável: valor da dívida, individuação do imóvel ou imóveis"14. Os extratos - tanto ontem, como hoje - são o transunto do título, ou "como se diz em linguagem forense, contém as forças, do título, são oferecidos em duplicata e devem ser assinados pela parte requerente ou por seu procurador", como diz o mesmo LACERDA DE ALMEIDA15. O resumo não se dissociava do próprio título. Foi somente com o advento do Código Civil de 1916 que a exigência de apresentação dos extratos foi definitivamente abandonada (art. 838), fato que motivou o legislador a consagrar no art. 202 do Decreto 18.542/1928 o seguinte: "o registro será feito pela simples exibição do título, sem dependência de extratos. (Cod. Civ., art. 838.)". Esta mesma disposição alcançaria o art. 210 do Decreto 4.857/1939 até se revelar como um cristal na cápsula do tempo incrustrada no vigente artigo 193 da Lei de Registros Públicos. Abandonada no início do século XX, a ideia básica de registração por meio de extratos retornaria ao sistema registral no âmbito do SFH - Sistema Financeiro da Habitação, especificamente com a redação dada aos artigos 60 e 61 da lei 4.380/1964, chamados, então, de resumo do contrato. Buscava-se àquela altura simplificar as escrituras públicas para efeito do posterior registro (inc. III do art. 60). Assim, as escrituras deveriam "consignar exclusivamente as cláusulas, termos ou condições variáveis ou específicas" (art. 61) vinculando as partes contratantes ao contrato que seria transcrito, "verbum ad verbum, no respectivo Cartório ou Ofício, mencionando inclusive o número do Livro e das folhas do competente registro" (§2º do art. 61). Encaminhava-se a registro unicamente um resumo do contrato, cujo padrão ficava arquivado e vinculava inteiramente as partes. Ao final, os mutuários, "ao receberem os respectivos traslados de escritura", ser-lhes-ia "obrigatoriamente entregue cópia, impressa ou mimeografada, autenticada, do contrato padrão constante das cláusulas, termos e condições" (§ 3º do art. 61 da dita lei 4.380/1964). Note-se que estávamos em face de contratos-padrão, com cláusulas pré-estabelecidas, espécie de dirigismo estatal na contratação privada, a exemplo do que ocorria com os parcelamentos do solo urbano desde os idos do advento do Decreto-Lei 58/1937 (inc. III do art. 1º c.c. §2º do art. 18), disposição que seria posteriormente reproduzida na lei 6.766/1979 (inc. VI do art. 18 c.c. art. 27 da lei 6.766/1979) e nas incorporações imobiliárias (art. 67 da lei 4.591). No âmbito do crédito rural, o contrato estereotipado era igualmente previsto - § 1º do art. 83 da lei 4.504/1964; art. 43 c.c. letra "b", parágrafo único do decreto 59.428/1966, que previa o "modelo de contrato-padrão de colonização e de compromisso de compra e venda de lotes na forma indicada nas instruções vigentes". Ao dispor a lei que o Oficial fará a qualificação do título pelos elementos, cláusulas e condições constantes do extrato eletrônico (letra "a", inc. I do art. 6º da lei), leva o exegeta a concluir que a regra reata vínculos com as disposições do art. 61 da vetusta lei 4.380/1964, diploma que se acha inteiramente em vigor e que deve iluminar o microssistema de extratos agora recriado. Habemus legem Embora a admissão e utilização dos extratos tenham sido sancionadas pelas corregedorias estaduais16 (o próprio CNJ cogitou fazê-lo17), é preciso relevar um fato decisivo: habemus legem! Os atos normativos baixados anteriormente ficam revogados em face da nova lei. É na lei - não em provimentos - que deveremos nos basear agora para recepcionar os títulos em meios eletrônicos. Retomando a exegese do art. 6º da lei 14.382/2022, a oração - "quando cabível" - permite que se discriminem as hipóteses em que o extratos serão admitidos. Parece livre de dúvidas que serão admitidos apenas os contratos produzidos no âmbito do SFH pelas entidades que o integram, nos termos dos incisos do art. 8º da lei 4.380, de 21 de agosto 1964: I - pelos bancos múltiplos; II - pelos bancos comerciais; III - pelas caixas econômicas; IV - pelas sociedades de crédito imobiliário; V - pelas associações de poupança e empréstimo; VI - pelas companhias hipotecárias; VII - pelos órgãos federais, estaduais e municipais, inclusive sociedades de economia mista em que haja participação majoritária do poder público, que operem, de acordo com o disposto nesta Lei, no financiamento de habitações e obras conexas; VIII - pelas fundações, cooperativas e outras formas associativas para construção ou aquisição da casa própria sem finalidade de lucro, que se constituirão de acordo com as diretrizes desta Lei; IX - pelas caixas militares; X - pelas entidades abertas de previdência complementar; XI - pelas companhias securitizadoras de crédito imobiliário; e XII - por outras instituições que venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional como integrantes do Sistema Financeiro da Habitação. Afora esta hipótese, os demais instrumentos particulares, inclusive os firmados sob a égide do SFI - Sistema Financeiro Imobiliário, são exceptuados da regra, a teor do inciso I do art. 39 da lei 9.514/1997, que reza: "não se aplicam [ao SFI] as disposições da lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, e as demais disposições legais referentes ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH". Corrobora esta interpretação a conjugação do inc. II do art. 221 da LRP (note-se o âmbito da incidência: SFH) com o disposto no art. 38 da mesma lei 9.514/1997, que dispõe que os atos e contratos referidos na dita lei "poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública". Ou seja: o fato de os contratos do SFI poderem ser celebrados por instrumentos particulares não significa que as regras da Lei 4.380/1964 possam ser aplicadas neste microssistema quando é a própria lei especial que expressamente veda tal extensão. Tudo isto se aplica, naturalmente, e como consectário lógico, aos extratos ou resumos (notícia) que destes instrumentos sejam decalcados. Conclui-se que tanto a escritura pública, quanto todos os demais instrumentos particulares (SFI, promessas de compra e venda e cessões etc.), títulos administrativos e judiciais não ingressam no registro de imóveis por extrato, sendo necessária a apresentação dos títulos próprios, com todas as formalidades legais. A reforçar esta ideia, a lei confiou à Corregedoria Nacional de Justiça a definição da estrutura do extrato eletrônico e os "tipos de documentos que poderão ser recepcionados dessa forma" (inc. VIII do art. 7º). Neste âmbito judicial, os aspectos jurídicos serão certamente relevados e guiarão a regulamentação que se espera seja saneadora de tantas imperfeições. O que são títulos? O que são instrumentos? O nosso sistema de direito civil se filia ao sistema romano do título e modo. Por tal sistema, não basta a existência do título - "ato jurídico pelo qual uma pessoa manifesta validamente a vontade de adquirir um bem. É preciso que esse ato jurídico se complete pela observância de uma forma, a que a lei atribui a virtude de transferir o domínio da coisa: traditionibus et usucapionibus dominia rerum, non nudis pactis transferuntur", diz ORLANDO GOMES. E segue: "[...] assim, como exigiam um modo para que a propriedade fosse adquirida, os romanos estabeleceram que não bastava a tradição para transferir o domínio, sendo necessário que fosse precedida de uma justa causa. [...] Assim, título e modo eram necessários à aquisição da propriedade"18. MÓNICA JARDIM pontifica que em sistemas como o nosso (título e modo) a "aquisição, modificação ou extinção de direitos reais depende de um título - fundamento jurídico ou causa que justifica a mutação jurídico-real, e de um modo - acto pelo qual se realiza efectivamente a aquisição, modificação ou extinção do direito real, acto através do qual se executa o prévio acordo de vontades"19. Além disso, como lembra de modo oportuno, a transmissão de um direito real, fundada no título, depende da validade do negócio jurídico que lhe dá suporte (causa effectus remota). A indispensabilidade de um título (formal e material, como se verá à frente) para a consumação do direito pelo sua conjugação com o modus (causa efficiens proxima) parece mesmo incontornável. Retomando, o título em sentido material (titulus adquirendi) é a justa causa de aquisição, indispensável por representar a relação jurídica basal, o negócio causal, fonte obrigacional da aquisição, reclamando, entretanto, o modo (modus acquisicionis) para consagração do direito real e sua plena eficácia. Já aludimos acima aos fatos, atos e negócios jurídicos inscritíveis (art. 6º). Esta lei se aplica justamente ao registro "de atos e negócios jurídicos, de que trata a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973" (art. 1º), isto é, de títulos materiais previstos no seu artigo 167 e legislação esparsa, que devem ser devidamente instrumentalizados (título formal - art. 221 da LRP). No Direito Civil, adquire-se a propriedade por um título hábil (art. 1.245, caput), o que ocorre igualmente em relação aos direitos reais: "Art. 1.227 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247)" No caso da alienação fiduciária é o art. 23 que reza que a propriedade fiduciária de coisa imóvel se constitui "mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título". Já título em sentido formal é o "documento que exterioriza um ato ou contrato em cuja virtude se adquire, modifica ou extingue um direito"20. SERPA LOPES dirá que título "é assim um instrumento portador de efeito jurídico próprio"21. Nosso sistema reclama uma forma especial - seja a substancial (forma dat esse rei), seja a privada parelhada com pré-requisitos (prova pré-constituída). O título aquisitivo deve sempre ser formalizado e instrumentalizado. O instrumento é o meio utilizado para representação e formalização da manifestação de vontade22. Os instrumentos formais ostentam "força orgânica, quer sejam considerados da substância do ato [escrituras públicas], quer sejam considerados prova pré-constituída, visto que, por si mesmos, são motores de ação", como observou de modo claro e preciso JOÃO MENDES DE ALMEIDA JR., que acrescenta: "O primeiro traslado de uma Escritura pública, por exemplo, é um instrumento, ao passo que a certidão dessa escritura é um simples documento; a letra de cambio, a nota promissória, as obrigações escritas e assignadas pela parte e subscritas por duas testemunhas, são instrumentos, - ao passo que uma carta apenas assinada pela parte é um simples documento"23. Instrumento, pois, "é a forma especial, dotada de força orgânica para realizar ou tornar exequível um ato jurídico; documento é a forma escrita apenas dotada de relativa força probante, contribuindo para a verificação dos fatos"24. Em síntese, documento é gênero, título é espécie; o primeiro representa prova meramente casual; o segundo dá existência ao ato (forma dat esse rei) ou conforma a prova pré-constituída25. Já extrato é mero documento. O leitor paciente que chegou até aqui poderá perguntar-se: afinal, o extrato pode ser considerado um instrumento hábil e ingressar no sistema e produzir todos os seus efeitos jurídicos? Será ele mero documento, não um verdadeiro instrumento (título formal)? É preciso observar que o extrato não está previsto no elenco (taxativo = "somente") dos títulos admitidos a registro, consoante art. 221 da LRP que reza que "somente são admitidos a registro": a) escrituras públicas; b) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas, dispensado o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao SFH; c) atos autênticos de países estrangeiros; d) cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo; e) contratos ou termos administrativos relativos a programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social Precisamos ser realistas. Retomo aqui as conclusões já insinuadas anteriormente: o extrato pode ser considerado um transunto do título formal, resumo aparelhado com as forças do título, mas não é independente do título, não existe sem o suporte que lhe dá origem e o projeta nas plataformas eletrônicas. Tanto o instrumento público (requisito formal ad substantiam - art. 108 do CC e art. 406 do CPC) como o particular (com determinados requisitos formais legalmente obrigatórios - art. 221 do CC e art. inc. II do art. 221 da LRP) são os títulos propriamente ditos. "Quando cabível", o extrato será apenas um epifenômeno, produto acidental e acessório do título em sentido formal próprio. Como se vê a reforma é regressiva e reacionária. Com esta iniciativa, a eficiência, eficácia e economicidade, buscadas de modo tão improvisado, foram empanadas pela propaganda e por certa afoiteza ao propalar grandes virtudes reformistas que o jurista não divisa26. A iniciativa resvalou em princípios jurídicos consolidados há décadas, verdadeiras balizas da ordem jurídica-privada do Direito Brasileiro. O sistema inaugurado pela lei 14.382/2022 parece repristinar o velho sistema dos borderaux franceses, abandonados já na origem, com o agravante de que o simulacro registral reconforma o emblemático registro de direitos transformando-o em mero birô de arquivo (registro de documentos), mantido e atualizado a partir de indicações veiculadas por meios eletrônicos (notice). Os registradores têm consciência desta viragem paradigmática? Analisando o conjunto da obra, vê-se que é imperfeita. O fato é que se não se promove um descolamento tão radical de um sistema multissecular sem grandes traumas, confusões, equívocos. O novo Registro de Imóveis brasileiro, com o norte esboçado nas iniciativas pioneiras do CNJ desde o início da década de 2010, pode vir a sofrer um desvio sistemático avassalador pelo impacto da onda privatística que é impulsionada e bancada pelo capital financeiro, sempre escudado por seus fiéis representes da área econômica, financeira e jurídica. Eis que desponta, ainda de modo difuso e disfuncional, uma nova figura institucional. Ao abandonar os modelos que nos vinculam aos sistemas tradicionais da Civil Law, desvela-se a torção tendente a orientar o velho e bom Registro de Imóveis brasileiro rumo ao admirável mundo novo do Notice Registration, vinculado a matrizes alheias à nossa tradição jurídica. É o Eldorado Registral, como jocosamente me referi a esse enguiço legislativo27. Não tardará e logo vamos verificar que o registro feito por mero extrato (notice) revelar-se-á dispendioso, pois já não estará na dependência de um prévio exame de legalidade e juridicidade dos títulos apresentados a registro, o que envolve grandes responsabilidades (justificando, portanto, os emolumentos hoje cobrados); não representará uma atividade de um jurista (registrador), já percebida como "detrimentosa" (inimical28) para a celeridade das transações imobiliárias em infovias digitais inscritas em registros líquidos e instantâneos. A prevalecer este entendimento minimalista, tudo poderá ser feito de modo automatizado, com escassa intervenção humana, trasladando-se a chamada "qualificação jurídica" a outros profissionais do direito, que hão de proceder à due diligence, precificando a taxa de judicialização de conflitos e litígios, agregando instrumentos atuariais para prevenirem-se de intercorrências danosas. Ao final e ao cabo, substituiremos a segurança jurídica, por segurança econômica e tecnológica, com um novo balanceamento dos custos envolvidos no processo registral. Conclusão Já não é possível concluir nada de muito proveitoso desta mixórdia legal. A reforma é de tal modo imperita que não é possível assentar sobre suas bases algo muito sólido. Por outro lado, não se concebe retroceder. Não é possível fraudar a imensa expectativa criada na sociedade pela propaganda massivamente veiculada29.   Caro leitor, sei que me pergunta: o que se pode fazer? AFRÂNIO DE CARVALHO registrou que o advento da lei 6.015/1973 reincidiu num erro censurável: "como Lei é demasiada e como Regulamento é insuficiente"30. Pois bem. A reforma da LRP representou uma vaza diluvial em que todas as peças se movimentaram no tabuleiro e será necessário que as águas baixem para que a Corregedoria Nacional de Justiça possa nos doar um verdadeiro Código de Registro Predial, colmatando uma sentida deficiência do sistema registral brasileiro, agravada com o advento da Lei 14.382/2022. O que é bem certo nisto tudo é que mudam os atores, mas as necessidades remanescem. Gostaria de terminar este pequeno artigo com as palavras finais com as quais encerrei minha palestra de abertura em Cuiabá, Mato Grosso, no encontro do IRIB: Se este é o caminho escolhido pelos meus pares para aperfeiçoar o Registro de Imóveis brasileiro, o que se pode fazer? "Não queira este velho oficial paralisar as ondas do mar, nem o sentido dos ventos" - disse31. Ainda assim, malgrado o mal presságio e as nuvens plúmbeas que se formam no horizonte, é preciso navegar e vencer as ondas procelosas deste mundo incerto e incógnito. Hic sunt leones! __________ 1 Indico uma fonte precisa onde esta modalidade de registro acha-se bem descrita e especificada e suas finalidades estabelecidas. UNCITRAL Legislative Guide on Secured Transactions Terminology and recommendations. Vienna: UN, 2009, p. 25: IV. The registry system. 2 EMI nº 169/2021 ME SG MJSP, de 19 de novembro de 2021. Acesso aqui. 3 UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York: UN, 2010, p. 151, n. 12: "In contrast to these systems, the general security rights registry recommended in the Guide is based upon the concept of notice registration. In a notice registration system, there is no requirement to register the underlying security documentation or even to tender it for scrutiny by the registrar. Instead, registration is effectuated by submitting a simple notice that provides only basic details about the security right to which it refers: (a) the identities of the parties; (b) a description of the encumbered assets; and (c) depending on the policy of each State, the maximum sum for which the security is granted and the requested duration of the registration". 4 "[...] in a notice-based general security rights registry, there is no need for official verification or scrutiny of the underlying security documentation. Nor does such a registry system require advance scrutiny or approval of the content of the registered notice. Making official approval a prerequisite to registration would be inimical to the kind of speedy and inexpensive registration process needed to promote secured credit. The basic idea is to permit registration without further formalities (such as affidavits and notarization of documents) as long as the required registration fees are paid and the required information fields in the notice are completed". Idem nota 2, p. 151-2. 5 Vide JACOMINO. Sérgio. Qualificação registral - Nótula sobre a expressão e sua assimilação pelo direito registral brasileiro. São Paulo: Academia.edu, 2013, acesso aqui. 6 A atual redação do art. 194 da LRP é defectiva e regressiva. Somente os "títulos físicos" serão mantidos no repositório. E os natodigitais? Além disso, os títulos de extração pública (notariais, administrativos e judiciais), que antes não eram mantidos na serventia, agora o serão, com acréscimo de custos inerentes à gestão do repositório digital confiável que nem sequer foi especificado e regulamentado. 7 O sentido de "ontologia" aqui empregado é específico. Vide LAGO. Ivan Jacopetti. Ontologia registral - sujeitos de direito e suas representações nos Registros Públicos. BIR, São Paulo: IRIB, jun. 2020, p. 93. 8 Perco os amigos, mas não a analogia: MARX. Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Ed. 2011, p. 25. 9 JACOMINO. Sérgio. Os extratos e o antigo bordereau do registro francês. São Paulo: Círculo Registral, 2010, acesso aqui. 10 O extrato não era tão somente o veículo de acesso ao registro, mas igualmente o próprio ato de registro se faria por extrato, malgrado o fato de se chamar "transcrição do título". O extrato era também o veículo do Registro Torrens (extrato da matriz - art. 63 e seguintes do Decreto 451 B, de 31 de maio de 1890). 11 GAMA. Affonso. Direitos Reaes de Garantia - Penhor, Antichrese e Hypotheca. São Paulo: Saraiva, 1933, p. 814-5, nota 2.558. 12 PEREIRA. Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1905, p. 589, nota 9. 13 LACERDA DE ALMEIDA. Francisco de Paula. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, Vol. II, 1903, p. 334, § 184. 14 Op. cit. p. 332. Notem-se os pontos de coincidências com os requisitos exigíveis no Sistema do Notice Registry. 15 Op. cit. p. 334. 16 Cito o exemplo emblemático de São Paulo, onde os extratos eletrônicos foram previstos no Provimento CGJSP 11/2013, de 16/4/2013, Dje de 17/4/2013, Corregedor Geral Des. José Renato Nalini. Acesso aqui. As Normas de Serviço (NSCGJSP) previram-nos nos itens 111 e seguintes do Cap. XX. 17 O Provimento 89/2017 não previu os extratos. O modelo do SREI se projetava noutra direção. Digno de nota, todavia, é o fato de que o Conselheiro MÁRIO GUERREIRO apresentaria voto convergente no PP 0000665-50.2017.2.00.0000 sustentando e defendendo o registro feito por extratos. As suas razões e a minuta de provimento por ele oferecidas podem ser consultadas aqui: PP 0000665-50.2017.2.00.0000, j. em plenário a 18/12/2019, relator Ministro HUMBERTO MARTINS. Acesso aqui. 18 GOMES. Orlando. Direitos Reais. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 133, n. 90 passim. 19 JARDIM. Mónica. Os Sistemas Registrais e a sua Diversidade. In Revista Argumentum - Argumentum Journal of Law, vol. 21, n. 1, 2020, Jan.-Abril, p. 437 e ss. 20 CASSO Y ROMERO. Ignacio de. JIMÉNEZ-ALFARO, Francisco Cervera Y. Diccionario de derecho privado. Tomo II, Barcelona, 1950, p. 3.815, verbete título. 21 SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado, Vol. I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 26-7. 22 AMARAL SANTOS. Moacyr. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV, 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 68. 23 ALMEIDA JR. João Mendes de. Direito Judiciário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 203, n. IV. 24 ALMEIDA JR. João Mendes de. Op. cit. p. 194. 25 AMARAL SANTOS. Moacyr. Op. cit. nota 15. 26 Tive ocasião de criticar a reforma da LRP por meio de medida provisória. O tema merecia um debate mais amplo, envolvendo setores que foram alijados dos processos de discussão. Vide JACOMINO. Sérgio. MP 1.085 e o Monstro de Horácio. 27 JACOMINO. Sérgio. Vinho novo e a Água Chilra. Migalhas. Acesso aqui. 28 Vide UNCITRAL - Legislative Guide on Secured Transactions. New York, nota 3. 29 No fundo a medida não inovou justamente no aspecto mais destacado da reforma: a prestação de serviços por plataformas digitais. Vide: CAMPOS. Ricardo. Degeneração do regime jurídico das serventias e da proteção de dados pelo Serp. Consultor Jurídico, 15.5.2022. Vide ainda o depoimento autêntico de SANTOS. Flauzilino Araújo dos. Reconectando o registro de imóveis do Banco de Dados Light ao Next Cloud SAS. Consultor Jurídico, 15.5.2022. 30 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 13. 31 JACOMINO. Sérgio. O Doloroso Cansaço do Mundo. São Paulo: Observatório do Registro, 2022, acesso aqui.
Na seção "Oficina Notarial e Registral", do Migalhas Notariais e Registrais, hoje vamos expor um tema recorrente na praxe dos cartórios brasileiros: a determinação de devolução de valores emolumentares no caso de anulação de atos regulares praticados pelos oficiais registradores no exercício de seu mister.   Neste caso concreto, o interessado postulara o cancelamento de registro de arrematação objeto de registro regular feito na matrícula correspondente, buscando, ainda, a devolução integral dos valores pagos a título de emolumentos, devidamente corrigidos. O R. Juízo da execução, cumprindo decisão do Superior Tribunal de Justiça, determinara o cancelamento do ato de registro, já que, consoante decidido pela corte superior, a "remição da execução precedeu a assinatura do auto de arrematação. Ou seja, verificou-se quando a arrematação ainda não se encontrava perfeita e acabada" (RESP 1.862.676 - SP, voto da Min. NANCY ANDRIGHI). Ao reconhecer que a arrematação não representava um ato jurídico perfeito e acabado (art. 903 do CPC), tal fato, por efeito revérbero e consecutivo, teria inquinado o ato de expropriação judicial, o que haveria de acarretar o cancelamento da transmissão, como aliás determinado pelo R. Juízo. Como se sabe, a higidez da eficácia registral repousa no título escoimado de todo vício de invalidade ou nulidade. De passagem, note-se que o reconhecimento de invalidade da arrematação deveria ser postulado em ação própria, ex vi da literalidade do § 4º do art. 903 do CPC, que reza que, após a expedição da carta de arrematação, ou da ordem de entrega, "a invalidação da arrematação poderá ser pleiteada por ação autônoma, em cujo processo o arrematante figurará como litisconsorte necessário". Nesta ação o arrematante poderia buscar satisfazer-se dos danos experimentados requerendo "indenização, por exemplo, pelas despesas com o registro do imóvel", consoante notam NELSON NERY JR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY1. No caso de anulação de arrematação, com o consequente cancelamento de registro, o "ressarcimento dos valores pagos pelo arrematante a título de impostos e emolumentos devem ser buscados por meio de ação própria", consoante decidido no REsp 1.568.636-RS, j. 11/6/2021, Dje 15/6/2021, Ministro SÉRGIO KUKINA. Além disso, e mais importante, o Oficial de Registro, neste caso,  figuraria como parte, legitimando-se para se defender, estabelecendo o contraditório e o devido processo legal. No processo executivo em tela, o Oficial não é parte e, portanto, não pode agravar a respeitável decisão do Juízo executivo. Enfim, não havia qualquer comando no v. acórdão do STJ no sentido de fulminar, desde logo, a eficácia da arrematação; havia, apenas, o reconhecimento de que a remição precedeu a assinatura do auto de arrematação, declarando-se tempestivo e integral o depósito remissivo. As consequências daí derivadas deveriam se produzir no bojo do processo executivo - inclusive para que o arrematante pudesse depois satisfazer-se dos prejuízos por ele experimentados. Erro - busca de eventual reponsabilidade Nos termos do mesmo art. 903 do CPC "qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável". Neste contexto, como consectário lógico, uma vez expedida a carta de arrematação, há de se pressupor que os atos antecedentes se tenham revestido de todas as formalidades legais, cumpridos os requisitos previstos na lei. Somente se expedirá a carta de arrematação quando se tenha esgotado exitosamente o iter executivo (com o auto de arrematação firmado pelo arrematante, pelo leiloeiro e pelo juiz do feito). Ora, o título que fora apresentado a registro apresentava-se formalmente em ordem e por esta razão o registrador o consumou ordinariamente. Afinal, o auto de arrematação havia sido lavrado e firmado pelos arrematantes, pelo leiloeiro e pelo MM. Juiz do feito, tudo conforme o dito art. 903 do CPC. Se houve erro nos atos expropriatórios - o que se presume ter havido a teor do v. acórdão do STJ, já que a remição teria precedido a assinatura do auto - o lapso ou eventual erro ocorrido no âmbito do processo judicial não poderia ser atribuído ao Registro de Imóveis. Falta, de fato, um nexo causal que poderia acarretar a consequência de responsabilização do Oficial do Registro pela prática de atos próprios. Preenchidas as formalidades legais, o registrador não poderia deter-se na consumação do ato rogado pelos interessados (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973). E uma vez praticado o ato de registro, em estrita obediência aos requisitos formais e a instância dos próprios interessados, não pode ser compelido a devolver os valores correspondentes aos emolumentos devidos pela prática regular de atos de ofício - inclusive os posteriores, de averbação de cancelamento da arrematação. O próprio arrematante destacou no processo que o registro se fez "porque assim o Juiz de Primeira Instância e o Tribunal de Justiça determinaram". Além disso, o MM. Juiz do feito averbou que eventuais prejuízos ocorridos poderiam, "eventualmente, a seu estrito critério [dos interessados], ser tratados nas vias processuais próprias". Enfim, o Registro de Imóveis figurou como verdadeiro "Pilatos no credo", não tendo dado causa aos prejuízos experimentados pelas partes por eventual erro em decorrência de inobservância de formalidades e requisitos legais, não podendo, à esta altura, interferir na lide por não ser parte legítima, não lhe restando alternativas que a via do mandado de segurança. Recentemente o TRF da 3ª Região, em sede de mandado de segurança, reconheceu que os emolumentos relativos à efetiva prática de ato de registro têm por fato gerador a prestação dos serviços. Comprovada a prestação, o Oficial faz naturalmente jus à remuneração prevista em lei. Eventual cancelamento de registro de arrematação, em decorrência de anulação de hasta pública, não ocorrendo a hipótese de erronia da Serventia, o Oficial está desobrigado à devolução das custas e emolumentos pagos: "Dispõe o art. 1º da Lei Estadual 11.331/2002 que os emolumentos relativos aos serviços notariais e de registro tem por fato gerador a prestação de serviços públicos notariais e de registro previstos no art. 236 da Constituição Federal. O impetrante comprova a prestação dos serviços de registro e averbação na matrícula do imóvel arrematado (fl. 45), fazendo jus à remuneração prevista em lei. Por outro lado, o cancelamento do registro da arrematação decorreu de anulação da hasta pública, e não por erronia da Serventia (fl. 25). Também o periculum in mora restou demonstrado no despacho proferido pela autoridade impetrada (cópia juntada à fl. 33), no qual determina o cumprimento integral da decisão de fl. 362 dos autos originários (de cancelamento do registro de arrematação e restituição integral da quantia recebida do arrematante) no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 100,00 (cem reais) e "vista" ao Ministério Público Federal para apurar possível crime de desobediência. Diante do exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar a imediata suspensão da ordem judicial de devolução das custas e emolumentos pagos pelo registro de arrematação junto à matrícula de nº 6314, até julgamento final deste mandamus"2. Esta decisão aponta para a melhor compressão do problema posto no caso concreto. De fato, o cartório, para a consecução do registro, pautou-se pelos seguintes princípios - aliás reconhecidos pelo STJ: (a) princípio da rogação (arts. 13 e 14 da lei 6.015/1973), segundo o qual todo ato de registro depende de expresso requerimento da parte interessada e (b) todo ato registral é, em regra, oneroso, salvo as expressas exceções legais (REsp 1.725.608, dec. mon. de 26/3/2021, Dje 6/4/2021, Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO). Não se pode obrigar a devolução dos valores pagos por atos praticados regularmente, a requerimento dos próprios interessados, que, ao atuarem na seara dos leilões judiciais, devem sempre sopesar os riscos inerentes à atividade e suportar os seus eventuais azares. A pizza emolumentar e os sujeitos passivos por substituição tributária Não bastasse a respeitável determinação de devolução dos valores emolumentares pagos em 2019, devidamente corrigidos, é preciso destacar que a determinação ia ainda muito além e extrapolava a parte do Oficial, abrangendo o total depositado. Entretanto, como se sabe, há repartição e destinação diversa dos valores recolhidos sob a epígrafe de custas e emolumentos, consoante o disposto no art. 19 da lei 11.331/2002, lei de emolumentos do Estado de São Paulo. A parte do oficial corresponde a 62.5% do total pago; o restante é repartido entre o Estado de São Paulo, a Fazenda Estadual (antigo IPESP), o Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça e o Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo - sem cogitar do imposto de renda devido pelo Oficial do Registro. Os registradores são considerados sujeitos passivos por substituição tributária (art. 3º da dita Lei 11.331/2002). Nesta condição, não podem ser compelidos a restituir eventual tributo devido pelos interessados e recolhidos regularmente pela Serventia. Constituída a hipótese de incidência do tributo (fato gerador), definida a base de cálculo, o recolhimento das parcelas e o repasse são compulsórios. Eventual repetição reclama o chamamento dos vários atores à lide. Conclusões O ato de cancelamento deverá ser procedido mediante o recolhimento do depósito prévio (art. 14 da Lei 6.015/1973). O MM. Juiz (corretamente) assim o determinou: "O arrematante, em tal diapasão, deverá também, de pronto, proceder à averbação registrária para documentar o desfazimento da arrematação às margens da respectiva matrícula imobiliária, arcando com tais despesas pertinentes". As razões acima foram apreciadas e aprofundadas em mandado de segurança impetrado contra o juízo, buscando fulminar a ordem eivada de ilegalidade. A peça foi preparada pelo advogado, Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA e colegas do CM ADVOGADOS, cujo teor pode ser consultado aqui. A ação foi distribuída (MS 2125241-81.2022.8.26.0000). O mandamus foi concedido baseando-se em breve, porém precisa, fundamentação: "Diante do ato praticado pelo registrador houve pagamento de emolumentos. O posterior cancelamento da arrematação pelo C. STJ, a priori, não teria o condão de impor a devolução das custas do registro. Por tal argumento, defere-se a liminar para suspensão da ordem até ulterior deliberação. KIOITSI CHICUTA, Relator". Na prestação de informações, o R. Juízo foi igualmente conciso: "Observo de imediato a R. Decisão da Superior Instância colacionada a fls. e, neste sentido, inclusive, diante da indicação expendida na própria decisão impugnada de fls., acerca da devolução de tal importe, a título de emolumentos, reconsidero a respeito tal decisão de fls., no sentido de REVOGAR A ORDEM IMPETRADA e, assim, cancelar o decisum impugnado para a Serventia Extrajudicial devolver tal valor aos arrematantes, sob pena de desobediência, arrematantes estes que, frisa-se, a seu livre critério, deverão ou poderão postular a eventual devolução dos montantes arcados com tal arrematação, a qual restou cancelada nestes autos, por ordem da Superior Instância, nas vias processuais próprias, que não neste processo, o qual possui, conforme é consabido, outro objeto processual. Presto as informações a mim solicitadas pela Superior Instância a fls." As informações prestadas pelo R. Juízo no MS vão na mesma direção: Trata-se de mandado de segurança tirado de decisão proferida nos autos de Origem a fls., a qual, diante da anulação de arrematação anterior, por ordem da Superior Instância, determinou a devolução dos valores pagos pelo arrematante, atendendo a um pedido por este último deduzido no processo, perante a Serventia Extrajudicial, representada pelo impetrante. Entretanto, prima facie, este juízo de piso impetrado assinala que revogou a ordem impetrada, inclusive, nos termos indicados no próprio decisório vergastado, à vista que, de fato, tal devolução, poderá ou deverá ser tratada em sede de pedido deduzido nas vias processuais próprias a critério do seu interessado, não podendo, deste modo, salvo melhor juízo, ser a mesma examinada nestes autos de origem, que se reportam a execução de título executivo extrajudicial entre as partes respectivas". As coisas voltaram, assim, ao bom rumo sistemático. Soa verdadeiramente desarrazoado que o Oficial Registrador pudesse ser responsabilizado e arcasse por danos e prejuízos a que não deu causa. Para todos os interessados, aqui vão as principais peça do Processo 1028069-60.2016.8.26.0100 e Mandado de Segurança 2125241-81.2022.8.26.0000, além da excelente peça inaugural. Peça elaborada pelo Dr. TIAGO DE LIMA ALMEIDA, do CM ADVOGADOS. Decisão do MS 2125241-81.2022.8.26.0000 Informações prestadas pelo juízo impetrado. Decisão proferida no Processo de Execução (1028069-60.2016.8.26.0100). __________ 1 NERY Jr. Nelson. NERY. Rosa Maria de Andrade. CPC comentado, 19ª ed., São Paulo: RT, 2020, p. 1897, nota 7. 2 TRF 3ª Região MS 0018235-05.2014.4.03.0000/SP, j. 25/7/2015, rel. Marcelo Guerra. Acesso aqui.
Resumo  O artigo defende a viabilidade de lavratura de escrituras públicas eletrônicas por tabelionatos brasileiros a pessoas localizadas em solo estrangeiro. Aponta as vantagens disso para os consulados brasileiros, que poderão se desonerar de uma atividade que, à luz da vocação consular, é absolutamente secundária. 1. Introdução O presente artigo busca, especificamente, analisar a possibilidade de atendimento à distância, por tabeliães brasileiros, das demandas de pessoas que, residindo no exterior, necessitam de serviços notariais. A questão se insere no contexto do avanço tecnológico propiciado pela quarta revolução industrial1, em um no mundo profundamente interconectado. As restrições de circulação de pessoas impostas pelos governos como forma de combate à feroz pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021 intensificaram as demandas por serviços remotos, inclusive os serviços notariais. Iniciaremos, com a indicação de quem pode receber serviços notariais nos consulados brasileiros e quais são as condições para garantir a integridade do documento e a autoria da manifestação de vontade expressa de forma remota. Em seguida, discutiremos a viabilidade jurídica de tabelionatos de notas atenderem pessoas residentes no exterior para a lavratura de escrituras públicas por meio de prestação remota de serviços. Analisaremos se há usurpação de função consular por parte de tabeliães brasileiros e se o atendimento direto por tabelião situado em território nacional a cliente situado no exterior representa algum desvirtuamento a regras de competência das normas vigentes para a prestação de serviço. 2. Consulados como "tabelionatos de notas" para brasileiros residentes no exterior  2.1. Atribuições gerais das embaixadas e dos consulados brasileiros  Nos Países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas2, há a embaixada e o consulado brasileiros. A embaixada brasileira lida com questões entre os Estados Soberanos: o Brasil e o outro País. Já o consulado brasileiro se presta a oferecer serviços entre o povo e o Brasil. Os estrangeiros podem servir-se dele para, por exemplo, obter vistos para viajarem ao território brasileiro. Os brasileiros podem obter assistências para, por exemplo, conseguirem Autorização de Retorno ao Brasil na hipótese de terem perdido o passaporte e não terem documentos suficientes à emissão de um novo passaporte3. Para os brasileiros, o consulado brasileiro vai além de oferecer serviços de assistência documental relativos à sua viagem, ou de assistência de caráter humanitário (como nos casos de falecimento, hospitalização etc.), ou de legalização de documentos públicos emitidos por países estrangeiros não signatários da Convenção da Apostila de Haia4. Ele também oferece serviços de "cartórios" extrajudiciais, especialmente serviços de notários e de registro civil de pessoas naturais. O foco deste artigo está especificamente nos serviços de notários prestados pelos consulados, mais especificamente no de lavratura de escrituras públicas.  2.2. Fundamentos normativos das atividades notariais e registrais dos consulados Por força da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 19635, compete ao cônsul, dentre outras funções, agir na qualidade de notário e oficial de registro civil, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor. Veja art. 5º, alínea "f", da referida convenção: ARTIGO 5º Funções Consulares As funções consulares consistem em: a) proteger, no Estado receptor, os interêsses do Estado que envia e de seus nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional; b) fomentar o desenvolvimento das relações comerciais, econômicas, culturais e científicas entre o Estado que envia o Estado receptor e promover ainda relações amistosas entre êles, de conformidade com as disposições da presente Convenção; c) informar-se, por todos os meios lícitos, das condições e da evolução da vida comercial, econômica, cultural e científica do Estado receptor, informar a respeito o govêrno do Estado que envia e fornecer dados às pessoas interessadas; d) expedir passaporte e documentos de viagem aos nacionais do Estado que envia, bem como visto e documentos apropriados às pessoas que desejarem viajar para o referido Estado; e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, do Estado que envia; f) agir na qualidade de notário e oficial de registro civil, exercer funções similares, assim como outras de caráter administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor; g) resguardar, de acôrdo com as leis e regulamentos do Estado receptor, os intêresses dos nacionais do Estado que envia, pessoas físicas ou jurídicas, nos casos de sucessão por morte verificada no território do Estado receptor; h) resguardar, nos limites fixados pelas leis e regulamentos do Estado receptor, os interêsses dos menores e dos incapazes, nacionais do país que envia, particularmente quando para êles fôr requerida a instituição de tutela ou curatela; i) representar os nacionais do país que envia e tomar as medidas convenientes para sua representação perante os tribunais e outras autoridades do Estado receptor, de conformidade com a prática e os procedimentos em vigor neste último, visando conseguir, de acôrdo com as leis e regulamentos do mesmo, a adoção de medidas provisórias para a salvaguarda dos direitos e interêsses dêstes nacionais, quando, por estarem ausentes ou por qualquer outra causa, não possam os mesmos defendê-los em tempo útil; j) comunicar decisões judiciais e extrajudiciais e executar comissões rogatórias de conformidade com os acôrdos internacionais em vigor, ou, em sua falta, de qualquer outra maneira compatível com as leis e regulamentos do Estado receptor; k) exercer, de conformidade com as leis e regulamentos do Estado que envia, os direitos de contrôle e de inspeção sôbre as embarcações que tenham a nacionalidade do Estado que envia, e sôbre as aeronaves nêle matriculadas, bem como sôbre suas tripulações; l) prestar assistência às embarcações e aeronaves a que se refere a alínea k do presente artigo e também às tripulações; receber as declarações sôbre as viagens dessas embarcações examinar e visar os documentos de bordo e, sem prejuízo dos podêres das autoridades do Estado receptor, abrir inquéritos sôbre os incidentes ocorridos durante a travessia e resolver todo tipo de litígio que possa surgir entre o capitão, os oficiais e os marinheiros, sempre que autorizado pelas leis e regulamentos do Estado que envia; m) exercer tôdas as demais funções confiadas à repartição consular pelo Estado que envia, as quais não sejam proibidas pelas leis e regulamentos do Estado receptor, ou às quais este não se oponha, ou ainda as que lhe sejam atribuídas pelos acôrdos internacionais em vigor entre o Estado que envia e o Estado receptor. No mesmo sentido, o art. 18 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB6 carreia às autoridades consulares atribuição de notário e de registrador civil para brasileiros que estejam no exterior. Aliás, por força dos §§ 1º e 2º do art. 18 da LINDB (os quais foram acrescidos pela lei 12.874/2013), até mesmo escrituras públicas de divórcio consensual podem ser feitas pelas autoridades consulares, caso em que, por razões práticas, o advogado que assistirá as partes não precisará assinar a própria escritura. Convém a transcrição do supracitado preceito: Art. 18. Tratando-se de brasileiros, são competentes as autoridades consulares brasileiras para lhes celebrar o casamento e os mais atos de Registro Civil e de tabelionato, inclusive o registro de nascimento e de óbito dos filhos de brasileiro ou brasileira nascido no país da sede do Consulado. § 1º As autoridades consulares brasileiras também poderão celebrar a separação consensual e o divórcio consensual de brasileiros, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, devendo constar da respectiva escritura pública as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. § 2o É indispensável a assistência de advogado, devidamente constituído, que se dará mediante a subscrição de petição, juntamente com ambas as partes, ou com apenas uma delas, caso a outra constitua advogado próprio, não se fazendo necessário que a assinatura do advogado conste da escritura pública. O detalhamento da atividade consular é encontrado no Manual do Serviço Consular e Jurídico (MSCJ), que foi aprovado pela Portaria MRE nº 457, de 2 de agosto de 2010 e que será objeto de revisão por força de comando da Portaria MRE nº 336, de 29 de setembro de 2020. No Capítulo 4º do referido manual, estão os detalhamentos para a prática de atos notariais, entre os quais se inclui a lavratura de escrituras públicas, foco deste artigo.  2.3. Lavratura de escrituras públicas pelos consulados 2.3.2. Utilidade e operacionalização Os consulados brasileiros podem lavrar escrituras públicas para a formalização de atos jurídicos. Como exemplo, podemos citar escrituras públicas de procuração, de compra e venda, de divórcio, de união estável, de divórcio consensual etc. Assim, suponha um brasileiro que esteja residindo em Londres por motivos de estudo e que precise dar poderes para seu pai - que está em Brasília - representá-lo perante o Fisco do Distrito Federal em uma questão tributária qualquer. Esse brasileiro poderia pegar o belíssimo metrô londrino (o famoso The Tube), descer na estação Bond Street e andar até a Vere Street, local onde se situa o consulado brasileiro. Lá ele poderia lavrar uma escritura pública de procuração conferindo poderes a seu pai para resolver as questões tributárias pendentes perante o Fisco do Distrito Federal. Em seguida, esse mesmo brasileiro caminhará pelas ruas de Londres em busca de uma agência da Royal Mail Group, que é a companhia responsável pelo serviço postal no Reino Unido. E, com as bênçãos da Rainha, o brasileiro postará uma carta com a escritura pública ao seu pai no Brasil. O seu pai, ao receber a escritura pública, poderá, finalmente, ir ao Fisco distrital resolver as pendências de seu filho que segue sob o encanto da Terra onde há um dos endereços mais famosos do mundo: 221B Baker Street (a morada de Sherlock Holmes). Como se vê, o brasileiro não precisaria interromper sua estada em Londres para viajar ao Brasil, ir a um cartório de notas brasileiro e lavrar uma escritura de procuração. Não! O consulado brasileiro em Londres, com seus serviços notariais, presta-se exatamente a poupar desses transtornos aqueles que possuem vínculos com o território brasileiro e que estão em território estrangeiro por algum motivo pessoal. 2.3.2. Limitação a brasileiros ou a estrangeiros com RNE: a finalidade da outorga de atribuição notarial aos consulados Não é qualquer pessoa que pode se valer requerer a lavratura de escrituras públicas nos consulados brasileiros. Esse serviço do consulado é exclusivo a: (1) brasileiros ou (2) estrangeiros que tenham carteira do Registro Nacional de Estrangeiros - RNE7. O motivo dessa restrição é que o consulado se destina a suprir serviços que um brasileiro ou um estrangeiro com RNE só obteriam se estivessem no território brasileiro. O consulado, nesse ponto, é uma longa manus dos cartórios no exterior para atendimento daqueles que possuam algum vínculo com o território brasileiro (como os brasileiros e os estrangeiros com RNE) e que estão fora do território brasileiro por algum motivo pessoal. Desse modo, estrangeiros sem RNE não podem se servir do consulado brasileiro para lavratura de escrituras públicas, pois eles não possuem vínculo algum com o território brasileiro. Caso eles necessitem de uma escritura pública, o caminho será eles demandarem algum notário situado no país em que residente o interessado ou algum tabelionato de notas situado no Brasil.  2.3.3. Conclusões: conveniência de vias alternativas Com uma mão de obra extremamente qualificada, os consulados destinam-se primordialmente a dar suporte humanitário a brasileiros, fomentar o desenvolvimento das relações comerciais com o Estado Receptor e a intermediar relações de particulares estrangeiros com o Estado Brasileiro. O exercício da atividade notarial e registral pelos consulados é absolutamente secundária nesse contexto e só se justificou por um único motivo: a inviabilidade, no passado, de os cartórios nacionais prestarem seus serviços a brasileiros que estão em solo estrangeiro. A rigor, o consulado assumiu a tarefa para poupar os brasileiros que estejam no exterior dos transtornos de terem de viajar ao Brasil apenas para a prática de atos notariais e registrais. Aliás, é esse o motivo de os consulados não prestarem serviços notariais a estrangeiros (sem RNE): consulado não tem vocação para ser cartório. O consulado assumiu função notarial apenas por conta da inviabilidade, no passado, de os cartórios brasileiros prestarem serviços fora do território. Estrangeiros sem RNE têm de buscar serviços notariais de algum notário do país em que residente o interessado ou diretamente em algum cartório brasileiro. Ao cidadão brasileiro ou ao estrangeiro com RNE caberá ir presencialmente ao consulado brasileiro no País em que estiverem, o que, por vezes, pode ser dispendioso, e - em tempos de restrição de circulação -, até mesmo, dificultoso. Afinal de contas, os consulados costumam ficar apenas na capital dos países, de sorte que o brasileiro ou o estrangeiro com RNE que estiverem no interior do país estrangeiro terá de viajar à capital. Realmente, seria inviável economicamente instalar postos avançados do consulado em todas as cidades de cada país receptor. E a assunção dessa atribuição notarial pelo consulado é inegavelmente custosa. É custosa, porque desmobiliza um pessoal extremamente qualificado que poderia estar dedicado às funções primordiais do consulado a fim de cuidar de uma atribuição tecnicamente complexa: a notarial. É custosa, porque a manutenção da estrutura material e de pessoal de um consulado é elevadíssima - e é um investimento necessário e fundamental! -, de modo que convém desonerá-los de atribuições absolutamente secundárias sempre que for possível. Nesse diapasão, a questão central aqui é a seguinte: os tabelionatos de notas brasileiros têm condições atualmente de prestar remotamente serviços notariais para pessoas localizados em solo estrangeiro? A resposta é positiva em relação à lavratura de escrituras públicas (a principal função notarial), conforme veremos mais abaixo. Esse fato acena para um alvissareiro caminho rumo à progressiva desoneração dos consulados em relação a uma atividade que lhes é absolutamente secundária, com a consequente viabilidade de a sua estrutura material e de pessoal ser concentrada nas suas atividades primárias. 3. Prestação remota de serviços de escrituras públicas a pessoas localizadas no exterior  3.1. Escritura pública eletrônica e o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ  Acelerando uma tendência inexorável de digitalização dos serviços, a pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, que impôs restrições de circulação de pessoas nas todas as cidades brasileiras, interpelou todas as instituições brasileiras a viabilizarem meios de prestação remota de serviços aos indivíduos. Todas as instituições tiveram de, em maior ou em menor grau, valer-se dos canais de comunicação digitais propiciados pela Quarta Revolução Industrial, a fim de repensarem o ultrapassado modelo de atendimentos presenciais. Os serviços notariais e registrais não foram diferentes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), louvando-se no suficiente suporte legislativo atual, deu conforto normativo para a prestação remota desses serviços. No tocante aos tabelionatos de notas - foco do presente artigo -, o destaque é para o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (Provimento nº 100/2020-CN/CNJ). Esse ato normativo autorizou os tabeliães de notas a lavrarem escrituras públicas de modo eletrônico, coletando documentos por canais eletrônicos (como e-mail) e estabelecendo, por meio de videoconferência, contato com as partes para conferência da autenticidade dos documentos e para certificação da manifestação de vontade. A assinatura da escritura pública pelas partes se dá por meio de assinatura eletrônica proveniente do uso de certificado digital idôneo (o expedido no âmbito da ICP-Brasil ou no âmbito da plataforma do e-Notariado). A propósito das espécies de assinatura eletrônica, reportamo-nos o leitor a outro artigo8 que escrevemos esmiuçando o tema, artigo do qual extraímos o seguinte resumo: 1. O texto explica o que é assinatura eletrônica e demonstra, com exemplos práticos, como o cidadão pode utilizá-la para assinar contratos e outros atos jurídicos, além de propor interpretações e sugestões à doutrina, à jurisprudência e à legislação diante da necessidade de o Direito se adaptar à Era das comunicações remotas (capítulo 1). 2. De um modo simplificado, pode-se dizer que, ao longo da História, para a certificação de autoria de documentos, evolui-se do uso dos sinetes sobre cera derretida até a assinatura eletrônica, passando pela assinatura de próprio punho. Deixa-se de abordar outras formas de certificação ao longo da história pelos limites deste artigo (capítulo 2). 3. O "certificado digital" é a identidade virtual de uma pessoa e fica armazenada em algum dispositivo (token, celular, smart card, nuvem etc.); é, metaforicamente, o anel-sinete. Após ter o "certificado digital", a pessoa pode assinar eletronicamente qualquer documento conectando o dispositivo que contém o seu certificado digital ao computador e digitando a sua senha pessoal (o seu PIN). Metaforicamente, assinar eletronicamente é pressionar o "anel-sinete" sobre a cera derretida para deixar a sua marca. (capítulo 3). 4. As assinaturas eletrônicas podem ser classificadas: a) quanto à tipicidade, em: a.1) típicas: as disciplinadas em lei ou ato infralegal, no que se incluem as assinaturas eletrônicas no âmbito do e-Notariado e da ICP-Brasil; e a.2) atípicas: as decorrentes de pacto entre as partes. b) quanto ao nível de segurança, em: b.1) simples: aquela que "permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário" (art. 4º, inc. I, da lei 14.063/2020); b.2) avançada: aquela que "está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável" (art. 4º, inc. II, da Lei nº 14.063/2020), no que se inclui a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado9; e b.3) qualificada: aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). 5. ASSINATURA ELETRÔNICA NO ÂMBITO DO E-NOTARIADO (capítulos 3.1. e 4) 5.1. No âmbito dos Cartórios de Notas, qualquer cidadão pode gratuitamente obter um "certificado digital notarizado" emitido no seio da plataforma "e-Notariado", comparecendo, pessoalmente ou remotamente por videoconferência, a uma serventia para sua identificação. 5.2. O fundamento é o Provimento nº 100/2020-CN/CNJ. 5.3. Com esse "certificado digital notarizado", o cidadão poderá assinar eletronicamente qualquer ato notarial, como escrituras públicas de compra e venda, de procuração etc. 5.4. O certificado digital notarizado não pode, por ora, ser utilizado para assinar eletronicamente atos fora dos Cartórios, mas entendemos que convém seja espraiado o seu uso para além dos cartórios, caso em que a assinatura eletrônica aí valeria como um reconhecimento de firma. 6. ASSINATURA ELETRÔNICA NO ÂMBITO DA ICP-BRASIL (capítulo 3.2.) 6.1. A assinatura eletrônica decorrente de certificados emitidos no âmbito da ICP-Brasil é eficaz para qualquer ato jurídico por força do art. 10 da MP 2.200-2/2001. Os referidos certificados podem, pois, ser utilizados tanto em Cartórios de Notas (em concomitância com a assinatura eletrônica no âmbito do e-Notariado) quanto fora. 6.2. Para obter um certificado digital no seio da ICP-Brasil, a pessoa deve comparecer pessoalmente perante uma pessoa jurídica incumbida da função de "Autoridade Registradora" (AR), a qual fará os cadastros necessários e, se for o caso, entregará o dispositivo (como um token, um cartão etc.) no qual ficará o certificado digital. A IN ITI nº 02/2020 e a lei 14.063/2020 autorizam que esse registro seja feito de forma não presencial, o que poderá ameaçar a viabilidade financeira das empresas que lidam como AR. 6.3. O ITI, que é uma autarquia, é a Autoridade Certificadora Raiz (AC Raiz). Ele é incumbido de executar as diretrizes dadas pelo "Comitê-Gestor da ICP-Brasil", órgão público colegiado vinculado à Casa Civil da Presidência da República. Ele também coordena e fiscaliza as Autoridades Certificadoras (ACs). O ITI não pode emitir certificado digital diretamente ao usuário final. 6.4. A emissão do certificado digital ao usuário final é feita por uma Autoridade Certificadora (AC) após o cadastro feito pela respectiva Autoridade de Registro (AR). Podemos citar, a título de exemplo, várias pessoas jurídicas incumbidas da condição de AC no âmbito do ICP-Brasil, como a Serpro, a Certisign, a Caixa etc. 7. ASSINATURA ELETRÔNICA FORA DOS CARTÓRIOS E DA ICP-BRASIL (capítulo 3.3.) 7.1. Vige, no ordenamento jurídico brasileiro, a atipicidade das assinaturas eletrônicas: as partes podem, por acordo, estipular outras formas de assinatura eletrônica (art. 10, § 2º, da MP nº 2.200-2/2001). 7.2. A título de exemplo de assinaturas eletrônicas atípicas - aquelas decorrentes de acordo entre as partes -, citam-se as praticadas por bancos e corretoras de valores mobiliários com seus clientes, as fornecidas por empresas de assinatura eletrônica (como a "Clicksign") e, inclusive, as baseadas em mensagens por e-mail ou por WhatsApp na forma do previsto em contrato. 8. PROPOSIÇÕES PARA DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO (capítulo 4) 8.1. O conceito de "documentos assinados" previsto o art. 219 do CC alcança documentos físicos e eletrônicos bem como assinaturas físicas ou eletrônicas. 8.2. Instrumento público eletrônico são escrituras públicas eletrônicas. 8.3. Documentos públicos eletrônicos são aqueles produzidos e despapelizados por agentes públicos com sua assinatura eletrônica, a exemplo de certidões eletrônicas emitidas por órgãos públicos e dos próprios atos notariais eletrônicos. 8.4. Quando a legislação exige manifestação de vontade presencial, deve-se entender que aí está abrangida também a manifestação de vontade por canal de comunicação remota e instantânea, tudo conforme o que Mário Luiz Delgado batiza de princípio da presença virtual. 8.5. O certificado digital notarizado (aquele emitido no âmbito do e-Notariado) deve ser espraiado para valer como assinatura eletrônica para atos praticados fora dos Cartórios de Notas, como em instrumentos particulares (cfr. Provimento nº 103/2020 - CN/CNJ) ou, até mesmo, em petições dirigidas a processos judiciais. 8.6. O legislador deve adaptar a legislação para afastar dúvidas interpretativas acerca do valor jurídico dos documentos eletrônicos. Como se vê, não há mais necessidade de comparecimento presencial a um tabelionato de notas para lavrar uma escritura pública. Tudo pode ser feito à distância. Basta a parte ter um certificado digital típico, seja no âmbito da ICP-Brasil, seja no orbe do e-Notariado (= certificado digital notarizado). Em relação ao certificado digital notarizado, é preciso fazer apenas uma ressalva ao nosso anterior artigo. Naquela ocasião, apontamos que a obtenção de um certificado digital notarizado ocorreria mediante o comparecimento presencial do interessado a uma serventia extrajudicial. Essa, porém, foi uma leitura inicial que havíamos feito logo no início da edição do Provimento nº 100/2020-CN/CNJ (o nosso artigo foi de julho de 2020; o referido provimento foi de maio). Temos, porém, que aquela interpretação não era a mais adequada, pois, na verdade, o que importa para a emissão do certificado digital notarizado é que o cidadão comprove sua identidade perante um notário, o que pode ser feito pela sua presença física à serventia ou por sua presença virtual mediante videoconferência ou envio eletrônico de documentos. Como ensina Mário Luiz Delgado com o princípio da presença virtual10, a comunicação por canal de comunicação on-line é também uma forma de expressão presencial. Em igual diapasão, reportamo-nos a excelente artigo do professor Gustavo Bandeira intitulado "a competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros"11. A propósito, certificados ICP-Brasil, com o advento da já mencionada lei 14.063, de 23 de setembro de 2020, sancionada a partir do Projeto de Lei de Conversão PLV nº 32/2020 (oriundo da Medida Provisória nº 983/2020), passaram a ter amparo legal para que sua emissão possa ser realizada com a identificação e o cadastro do requerente realizados de forma não presencial. A partir de então, por meio da resolução nº 177, de 20 de outubro de 2020, o Comitê Gestor da ICP-Brasil delegou à AC Raiz (ITI) a regulamentação dos procedimentos técnicos a serem observados nas emissões não presenciais, com nível de segurança equivalente ao das emissões presenciais. Em 22 de fevereiro de 2021, foi editada a Instrução Normativa ITI nº 5, a qual aprova procedimentos e requisitos técnicos para coleta biométrica e cadastro inicial de requerentes de certificados digitais, prevendo a emissão de certificados digitais por videoconferência. Seja com o uso de certificados digitais notarizado, seja com certificados ICP-Brasil, a Plataforma e-Notariado estrutura a rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas brasileiros e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e dos órgãos públicos, de modo a garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente.  3.2. Viabilidade de lavratura de escrituras públicas por tabelionatos nacionais em favor de partes localizadas no exterior  Conforme exposto no subcapítulo anterior, qualquer pessoa capaz, situada em qualquer local do Planeta, pode solicitar a lavratura de uma escritura pública eletrônica em um tabelionato de notas brasileiro. Se ela não tiver um certificado digital no âmbito da ICP-Brasil, ela poderá, mediante comunicação remota com a serventia brasileira (por videoconferência e por envio eletrônico de documentos), obter o seu certificado digital notarizado e, com ele, assinar eletronicamente qualquer assinatura. Assim, estrangeiros sem RNE, os quais não podem se valer dos serviços notariais dos consulados brasileiros, não precisam viajar ao Brasil para a lavratura de escrituras públicas eletrônicas por autoridade brasileira. Eles podem obter uma escritura pública sem ir fisicamente a uma serventia brasileira, apresentando eletronicamente seus documentos de identidade (e aqui o recomendável é exigir o passaporte) e - se for o caso - indicando o seu número de CPF/MF12. Igualmente, brasileiros ou estrangeiros com RNE - aos quais o serviço notarial consultar está disponível - não precisam buscar o consulado brasileiro no País em que estiverem para a lavratura de uma escritura pública brasileira. Não precisam, pois, viajar à capital do país estrangeiro em busca do consulado brasileiro, que geralmente só fica na capital por questões de inviabilidade prática de sua ramificação ao longo de todo o território estrangeiro. Eles, pois, podem remotamente buscar uma serventia brasileira, fazerem o seu certificado digital notarizado (caso não tenham um certificado digital no âmbito da ICP-Brasil), manifestarem sua vontade e assinarem a escritura. Para tanto, basta-lhe apenas ter acesso à internet e um aparelho celular para a emissão de certificado digital, o comparecimento às videoconferências e os envios eletrônicos de documentos. A Quarta Revolução Industrial, catalisada pelo clamor por serviços remotos em razão da pandemia da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021, desfaz os obstáculos impostos pela distância geográfica e flexibiliza a ideia de fronteiras transnacionais. O exemplo das escrituras públicas eletrônicas em favor de pessoas localizadas no exterior é simbólico disso. Conclusão Com a viabilidade de lavratura de escrituras públicas eletrônicas pelos tabelionatos de notas brasileiros em favor de pessoas localizadas em qualquer lugar do Planeta, os consulados brasileiros encontram uma luz para se aliviarem da execução de uma atividade absolutamente secundária no contexto de suas funções. Em avançando o atendimento remoto dos tabelionatos brasileiros para pessoas em solo estrangeiro, o corpo consular, composto por profissionais de elevada capacitação, com sua dispendiosa estrutura material e de pessoal, não precisará ser mobilizado para funções secundárias. Brasileiros ou estrangeiros com RNE que estejam em cidades do interior de países estrangeiros não terão de viajar à capital em busca de uma escritura pública consular. Bastará navegar pelas ondas virtuais da internet para - presentes virtualmente - lavrarem escrituras públicas. Estrangeiros sem RNE - para os quais é negado o serviço notarial consular - não terão mais o obstáculo de ter viajar ao Brasil para lavrar escrituras públicas perante notários brasileiros. Podem comparecer a uma serventia brasileira nas asas dos ventos virtuais da Internet e lançar sua assinatura eletrônica nas tábuas notariais despapelizadas. O tempo é de estimular essa prática, que já é plenamente admitida com base nas normas atuais. Quiçá seja o caso de, por alguma forma de cooperação interinstitucional, o próprio Itamaraty difundir, nos consulados, a orientação para os brasileiros e os estrangeiros com RNE valerem-se das escrituras públicas eletrônicas lavradas pelos cartórios brasileiros. As entidades representativas dos notários poderiam criar um portal eletrônico para recepcionar demandas por escrituras públicas por parte de pessoas situadas no exterior, sem, porém, eliminar o direito de livre escolha do tabelião por parte do usuário na forma do art. 8º da lei 8.935/1994. Se o usuário se valer desse portal, a demanda seria distribuída entre os cartórios brasileiros levando em conta critérios objetivos como: último domicílio do usuário no Brasil, preferência pessoal do usuário em relação a alguma cidade brasileira etc. Esse portal, porém, será apenas uma faculdade ao usuário, que, por sua própria conta, poderá livremente escolher o tabelião brasileiro de sua confiança com base no direito de livre escolha assegurada pelo art. 8º da lei 8.935/1994. As reflexões aqui ventiladas deitaram-se apenas nas lavraturas de escrituras públicas. Todavia, temos que elas, mutatis mutandi, podem ser estendidas para a prestação remota aos serviços registrais. Afinal de contas, registros de nascimento, de casamento e de óbito são oferecidos remotamente pelos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais atualmente. Não vemos obstáculos a estender esses serviços registrais, mas deixaremos para outra oportunidade esmiuçar o tema e apontar adaptações eventualmente necessárias. Por ora, basta-nos anunciar que o ordenamento jurídico brasileiro atentou para a rosa dos ventos da Quarta Revolução Industrial a fim de guiar os tabelionatos de notas rumo à prestação remota de serviços de escrituras públicas a pessoas localizadas em solo estrangeiro. Os consulados brasileiros, finalmente, veem-se próximos de desonerarem-se de atribuições periféricas e poderem concentrar seu primoroso corpo técnico e sua estrutura material nas suas funções cardeais. Os tempos mudaram, e o Direito não pode se omitir diante disso para não cair na letargia da "Carolina" de Chico Buarque, o qual cantava: "o tempo passou na janela, e só Carolina não viu". Referências bibliográficas  BANDEIRA, Gustavo. A competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros. Disponível aqui. Publicado em 24 de fevereiro de 2021.  DELGADO, Mário Luiz Delgado. A pandemia e o princípio da presença virtual. Disponível aqui. Publicado em 16 de julho de 2020.  OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em: 20 de julho 2020.  SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. - São Paulo: Edipro, 2016, p. 16. __________ 1 Expressão cunhada pelo fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial Klaus Schwab, para expressar fase do desenvolvimento humano que "teve início na virada do século e baseia-se na revolução digital. É caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina)". A esse respeito, cfr. SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. - São Paulo: Edipro, 2016, p. 16. 2 Excepcionalmente, mesmo quando há ruptura de relações diplomáticas, as relações consulares poderão manter-se em vigor, conforme item 3 do art. 2º da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 (internalizada ao Brasil pelo Decreto nº 61.078/1967): ARTIGO 2º Estabelecimento das Relações Consulares O estabelecimento de relações consulares entre Estados far-se-á por consentimento mútuo. 2. O consentimento dado para o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois Estados implicará, salvo indicação em contrário, no consentimento para o estabelecimento de relações consulares. 3. A ruptura das relações diplomáticas não acarretará ipsó facto a ruptura das relações consulares.  3 A propósito da Autorização de Retorno ao Brasil (ARB), reportamo-nos ao site do Itamaraty. 4 No caso de documentos públicos emitidos por País estrangeiro, para eles serem utilizados no Brasil, é fundamental que a sua integridade e a sua autenticidade sejam atestadas. Isso é feito por meio da apostila (se o País estrangeiro for signatário da Convenção da Apostila de Haia) ou da legalização consular (se o País estrangeiro não é signatário da convenção). Essa legalização consular é feita pelo consulado brasileiro situado no País estrangeiro emissor do documento. Já em relação a documentos públicos brasileiros (cuja integridade e autenticidade também precisam ser atestadas para serem utilizados no exterior), cabe aos cartórios extrajudiciais promoverem o seu apostilamento. Caso o país estrangeiro no qual será utilizado o documento público brasileiro não seja signatário da Convenção da Apostila de Haia, a sua legalização deverá ser feita pela Divisão de Assistência Consular (DAC) - situada em Brasília, no prédio do Ministério das Relações Exteriores - ou pelos escritórios de representação do Ministério das Relações Exteriores situados em diversos Estados brasileiros. Mais detalhes podem ser consultados no site do Itamaraty. 5 No Brasil, a Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963 foi promulgada pelo Decreto nº 61.078/1967 (após aprovação pelo decreto legislativo 6, de 1967). Em conformidade com seu artigo 77, § 2º, em 10 de junho de 1967, a Convenção entrou em vigor no Brasil trinta dias após 11 de maio de 1967, data do depósito do instrumento brasileiro de ratificação junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 6 Decreto-lei4.657/1942. 7 O item (rectius, a Norma Jurídica Consular e Jurídica) nº 4.1.3 do Manual do Serviço Consular e Jurídico assim dispõe: 4.1.5 Somente os brasileiros podem valer-se dos servic¸os de registro civil prestados pelas Repartic¸o~es Consulares brasileiras. Dos servic¸os de natureza notarial podem valer-se os brasileiros e os portadores de carteira do Registro Nacional de Estrangeiros - RNE va'lida, com excec¸a~o do reconhecimento de firmas de tabelia~es estrangeiros, e da autenticac¸a~o de documentos expedidos por o'rga~os oficiais na jurisdic¸a~o do Posto (ver Capi'tulo 4, Sec¸a~o 7a). 1) Os portadores de RNE vencido, que ate' a data do vencimento do documento tenham completado 60 anos de idade, na~o te^m necessidade de substitui'-lo, conforme os termos do Decreto-Lei no 2.236, de 23 de janeiro de 1985, com redac¸a~o dada pela Lei no 9.505 de 1997. Assim, podera~o utilizar o referido documento, mesmo que vencido, para valer-se dos servic¸os de natureza notarial. 8 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de e BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em: 20 de julho 2020. 9 Com relação às assinaturas eletrônicas avançadas, a Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021, estabelece, no inc. VIII do § 1º do art. 7º, que regulamento poderá dispor sobre o uso de assinatura avançada para fins de apresentação de documentos aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos. De todo modo, subsiste regra contida no parágrafo único do art. 17 da Lei nº 6.015/1973 (incluído pela lei 11.977/2009), no sentido de que, in verbis: "O acesso ou envio de informações aos registros públicos, quando forem realizados por meio da rede mundial de computadores (internet) deverão ser assinados com uso de certificado digital, que atenderá os requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP." 10 DELGADO, Mário Luiz Delgado. A pandemia e o princípio da presença virtual. Disponível aqui. Publicado em 16 de julho de 2020. 11 BANDEIRA, Gustavo. A competência para lavratura do ato notarial eletrônico envolvendo brasileiros expatriados e estrangeiros. Disponível aqui. Publicado em 24 de fevereiro de 2021. 12 Alguns atos exigem o CPF, o que exigirá diligência do estrangeiro perante a Receita Federal do Brasil para sua inscrição, nos termos do art. 3º da Instrução Normativa RFB 1.548/2015.
A MP 1.085/21 foi aprovada pelo Congresso Nacional com algumas emendas. Uma das novidades do novo texto legal (enviado para a sanção presidencial) é a possibilidade de a adjudicação compulsória ser requerida, processada e deferida perante os cartórios de registro de imóveis, similarmente ao que hoje já acontece com a usucapião extrajudicial. A inovação pode ser vista no art. 216-B da lei 6.015/73 (lei de registros públicos), que exige a participação de advogado e procuração com poderes especiais. Estão legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o próprio promitente vendedor. É preciso ficar comprovado o inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos. Assim se garante o direito de defesa, que tem status constitucional. Como na usucapião, é preciso antes do requerimento ser feita uma ata notarial, lavrada por tabelião de notas, da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa. É essencial que haja prova do pagamento do preço contratado na promessa de venda, além de certidões dos distribuidores forenses que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação. Diferentemente da usucapião, há necessidade da comprovação do pagamento do imposto sobre a transmissão de bens imóveis, pois essa forma de aquisição não é originária, mas derivada. Esse imposto é realmente devido, pois o registro será já de transmissão da propriedade e não apenas da promessa. A propósito, uma salutar medida de simplificação e de redução de custos está no fato de que não se exige o prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e nem mesmo a comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor. Dívidas fiscais do imóvel não inibem o pedido de adjudicação, uma tendência que já vem sendo mostrada pela jurisprudência. Estando o pedido em ordem e tendo sido assegurado o direito de defesa, o oficial do registro de imóveis, fará o registro da propriedade em nome do promitente comprador, sem necessidade de uma escritura definitiva, servindo para isso a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão. Como é sabido, o êxito desse procedimento depende da ausência de impugnação consistente. Se houver desavença não superada por uma audiência de tentativa de conciliação, o caso deverá ser encaminhado ao Poder Judiciário, que é o especialista na solução de conflitos. Dessa forma, o registro de imóveis se firma cada vez como o local adequado para a regularização da propriedade e da solução de vários casos em que os imóveis ainda não estão em nomes das pessoas a quem eles de fato pertencem. O tema deve ser objeto de regulamentação pelo CNJ e pelas Corregedorias dos Estados, que podem dispor sobre detalhes, como o cabimento de intimação por edital, o valor da causa, etc. Mas, a norma tem aplicação imediata e os pedidos podem ser feitos desde já. Com a proteção legal que advém do registro da propriedade, o dono de fato passa a ser dono de direito e pode oferecer o bem para garantia de um crédito mais barato, pode alienar o bem por um preço melhor avaliado e também fica bem mais facilitado o exercício de direitos entre os cônjuges, companheiros e demais herdeiros. Por outro lado, com o imóvel já em nome do real proprietário, o município terá a pessoa certa para fazer a cobrança de IPTU, evitando-se demandas contra pessoas que já não se consideram donas do imóvel. Isso evita demandas na justiça. O ganho é geral para todos. O compromisso de compra e venda ou simplesmente a "promessa de venda" é a forma mais comum de contratação preliminar para aquisição de um imóvel, especialmente nas faixas sociais mais numerosas do Brasil. A adjudicação compulsória nos cartórios tende a facilitar muito a que as pessoas que têm apenas os compromissos se tornem donas de verdade. Isso é de grande valor. Os cartórios extrajudiciais têm prestado excelentes trabalhos, com grande agilidade e rapidez, em proveito da população. E isso tem cada vez mais se ampliado com um fenômeno crescente chamado de desjudicialização. Este é mais um exemplo que certamente fará grande sucesso.
Introdução Os processos de execução devem mesmo continuar concentrados no Poder Judiciário? A pergunta é ousada. Este artigo pretende levantar reflexões sobre o tema, sem, porém, esgotá-lo. Realidade: impotência do Poder Judiciário É preciso ser realista: a quantidade de processos judiciais é colossalmente maior do que a capacidade de vazão do Poder Judiciário. Ao lado disso, parece haver um grande desperdício operacional ao colocar a estrutura dispendiosa e extremamente qualificada do Poder Judiciário para lidar com questões que, por um cálculo de custo-benefício, poderiam ser resolvidas de modo menos oneroso e sem prejuízo à qualidade da solução. Os números assustam. Em 2018, havia apenas cerca de 18 mil magistrados no Brasil, incluídos desembargadores e ministros de todas as esferas do Judiciário1. No final de 2018, havia cerca de 78 milhões de processos judiciais em trâmite nos 90 tribunais brasileiros2. Logo, em uma simplificada média, temos uma média de 4 mil processos por juiz, o que já representa um valor desumano e absurdo. Se levarmos em conta que essa média foi feita de modo simplificado, pois levou em conta magistrados de várias instâncias e de diferentes esferas do Poder Judiciário, podemos ter certeza de que o número efetivo pode ser bem pior. Como um juiz consegue julgar 4 mil processos com celeridade? É óbvio que isso não é viável, o que justifica a morosidade do Poder Judiciário. Todos sabem que, na maior parte das vezes, ao ajuizar uma ação, a parte terá de aguardar alguns anos para obter um desfecho final. O modelo judicial brasileiro não funciona adequadamente. Isso é fato! Acresça-se a esse desolador fato a existência de verdadeiro desperdício operacional. Explica-se. O Poder Judiciário é uma estrutura que demanda elevadíssimos gastos públicos. Cada juiz custa, em média, R$ 47 mil reais3. Há elevados gastos com manutenção dos demais servidores públicos do Judiciário, com pessoal, com infraestrutura etc. Realmente, o Poder Judiciário depende de pessoal com alta capacidade técnica, o que obviamente exige gastos maiores. O problema não é a alta dimensão desses gastos: o Poder Judiciário precisa mesmo de um alto investimento. O problema é o uso dessa estrutura para lidar com problemas que poderiam ser tratados de forma mais racional em outra estrutura, como no âmbito dos serviços notariais e de registro. Não acreditamos que a solução seja aumentar o número de juízes (ao menos, por ora), catapultando os gastos públicos com o consequente o aumento de impostos. Temos que, antes de tudo, pensar em formas de "lipoaspiração" para retirar demandas que, sob a ótica do custo-benefício, poderiam ser resolvidas fora do Poder Judiciário com ganho de velocidade e, até mesmo, de qualidade. É possível obter soluções mais eficientes, sem sacrificar os valores inegociáveis do Estado de Direito. É viável concretizar a Justiça com eficiência. Necessidade de desjudicialização Há uma imperiosa necessidade de cogitarmos em formas de desjudicialização. O legislador já havia enxergado isso, do que dão exemplos estes casos: a) Divórcio e inventário extrajudiciais (lei11.441, de 4 de janeiro de 2007); b) Execução extrajudicial de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis (arts. 26 e seguintes da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997); c) Execução extrajudicial de hipotecária (art. 31 do decreto-lei70, de 21 de novembro de 1966); d) Retificação extrajudicial no Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 110 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973); e) Retificação extrajudicial no Registro de Imóveis (art. 213 da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973) f) Reconhecimento de filiação socioafetiva (Provimento 63, de 14 de novembro de 2017, com a alteração pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - CN/CNJ). g) Mudança de nome e de sexo para transgênero (provimento 73, de 28 de junho de 2018). h) Extrajudicialização da homologação de penhor legal (art. 703 do Código de Processo Civil - CPC). i) Extrajudicialização da consignação em pagamento (art. 539 do Código de Processo Civil - CPC). j) Dispensa judicial para a habilitação de casamento, salvo se houver impugnação (art. 1.526 do Código Civil). Aliás, o próprio setor privado, diante da ineficiência dos mecanismos estatais de cobrança de dívida, criou formas próprias e alternativas de cobrança de dívida, como a criação de cadastros de inadimplentes (como o Serasa). Precisamos avançar mais. Desjudicialização dos processos de execução Para efeito deste estudo, processo de execução diz respeito aos procedimentos disponíveis para obter a satisfação forçada de um crédito, com base em um título executivo. Abrange, assim, o cumprimento de sentença e as diferentes formas de execução previstas no Código de Processo Civil. Embora desconheçamos estudos estatísticos oficiais, a experiência forense demonstra que a grande parte dos processos de execução resulta infrutífero: a parte exequente não consegue penhorar nada por falta de bens do devedor. E, em vários desses feitos, a parte executada sequer apresenta qualquer tipo de impugnação. Em poucas palavras, o Poder Judiciário "trabalha à toa" nesses processos, o que, no contexto de carência de juízes e de alto volume de processos, representa um detestável desperdício de tempo e trabalho.  Outras formas, mais céleres e, quiçá, de maior qualidade, poderiam ser utilizadas, como a implantação de um modelo de desjudicialização dos processos executivos. O tema já vem sendo cuidado academicamente. Chamamos a atenção para a dissertação de mestrado de Luiz Fernando Cilurzo defendida na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo)4 sob o título "A desjudicialização na execução por quantia certa". Na tese, o acadêmico demonstra que vários outros países já possuem um modelo desjudicialização da execução de dívidas, como Suécia, Dinamarca, Rússia, Estados Unidos, França e Portugal. Para aprofundamento, reportamos o leitor para as páginas 121 a 158 da dissertação. O mestre pela Largo São Francisco enfoca o modelo português, que envolve dois ritos: um rito ordinário (que é um misto que envolve participação do juiz em conjunto com um agente de execução) e um rito sumário (em que a participação do juiz é mais restrita). Outros aprofundados trabalhos poderiam ser citados, as obras destes respeitados juristas: Taynara Tiemi Ono5, Rachel Nunes de Carvalho Farias6, Alexandre Chini7, Joel Dias Figueira Júnior8 e Flávia Pereira Ribeiro9. Entendemos que é plenamente viável criar um procedimento extrajudicial de execução, valendo-se dos serviços notariais e registrais. Os titulares dos serviços notariais e registrais são profissionais do Direito, selecionados em dificílimo concurso público, fiscalizados pelo Poder Judiciário. Nos seus quadros, há uma constelação de talentosos juristas, com renomados professores acadêmicos, com ex-juízes, com ex-promotores, com ex-membros da Advocacia Pública etc. Os tabeliães e os registradores integram a elite técnica dos juristas. Sua aptidão técnica para assumir a tarefa é inegável. Sua sujeição a um regime privado de funcionamento abre espaço para a absorção de novas funções, como a ora cogitada. Entre as especialidades extrajudiciais, o tabelionato de protesto é aquela com maior pertinência temática para protagonizar um procedimento de execução extrajudicial. Sua atuação em protesto afeiçoa-se com cobrança de dívida. A regulamentação do procedimento executivo deve atentar para o fato de que qualquer parte prejudicada poderá socorrer-se do Poder Judiciário para atacar irregularidades no curso desse procedimento, à semelhança do que acontece com os outros ritos executivos extrajudiciais que já conhecemos10. Consideramos que as impugnações do devedor, como alegações de impenhorabilidade de bens, devem, em primeiro lugar, ser endereçadas ao próprio tabelião de protesto. Este deve decidir a favor ou contra, à semelhança do que se faz em procedimentos administrativos no âmbito da Administração Pública. A parte vencida, porém, terá o direito de veicular sua irresignação perante o Poder Judiciário: trata-se de um controle judicial de ato administrativo. A realização de atos de constrição patrimonial, como bloqueio de ativos financeiros do devedor, poderá ser conduzida pelo próprio tabelião em sede do procedimento executivo extrajudicial, desde que este obviamente observe o contraditório e a ampla defesa. Há, porém, de assegurar ao devedor as vias adequadas de insurreição, inclusive pela via judicial, em nome do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Entendemos que essa assertiva vale até mesmo para os casos em que o ato de constrição judicial exija o uso da força policial, como na hipótese de desapossamento de veículos e de outros bens. A exceção corre à conta de constrições judiciais de bens situados dentro do domicílio do devedor, em respeito à cláusula de reserva de jurisdição que recai sobre o domicílio (art. 5º, XI, da Constituição Federal). O devedor poderá socorrer-se do Poder Judiciário no caso de ilegalidade. É possível adotar soluções criativas alinhadas ao Estado de Direito. É possível fazer justiça sem justiçamento. O fato é que o quadro atual, de manifesta incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão à assustadora carga de demandas, não pode permanecer. Conclusão O objetivo desse artigo não é descer às minúcias do procedimento executivo extrajudicial. É, sim, erguer reflexões sobre iniciativas de desjudicialização que urgem, com destaque para o papel protagonistas que os tabeliães e os registradores poderão exercer. Além da desjudicialização da execução civil, há outras reflexões a serem feitas, como a conveniência de autorizar a arbitragem nos serviços notariais e registrais. É preciso enfrentar, de vez, a realidade de incapacidade operacional do Poder Judiciário em dar vazão ao volume brutal de demandas. E esse enfrentamento deve ser feito em sintonia com o Estado Democrático de Direito, aliando eficiência com criatividade e justiça. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 "Execução por quantia certa - Acesso à justiça pela desjudicialização da execução civil". 6 Desjudicialização do processo de execução - O modelo português como uma alternativa estratégica para a execução civil brasileira". 7 "Desjudicialização do Processo de Execução de Título Extrajudicial". 8 "Execução Simplificada e a Desjudicialização do Processo Civil: Mito ou Realidade". 9 "Desjudicialização da Execução Civil" 10 Ex.: a execução extrajudicial de dívida garantida por propriedade fiduciária imobiliária (lei 9.514/97).