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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Diante da morte de sócio de uma sociedade contratual (o exemplo mais comum é a sociedade limitada), o caput do art. 1.028 do Código Civil prevê que, em regra, haverá a liquidação da quota do falecido, com a consequente dissolução parcial da sociedade. Contudo, o mesmo dispositivo legal prevê exceções à liquidação da quota: i) o contrato social pode dispor de forma diferente; ii) os sócios remanescentes podem optar pela dissolução total da sociedade; e iii) o sócio falecido pode ser substituído, por acordo dos sócios remanescentes com os herdeiros. Sendo decidido pela liquidação da quota do falecido (dissolução parcial) ou pela dissolução total da sociedade, não existem controvérsias: a deliberação será realizada pelos sócios remanescentes, hipótese em que, para fins de registro na Junta Comercial, não haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial ou formal de partilha; ademais, tampouco será necessária a ciência ou anuência dos herdeiros do falecido ou a participação do inventariante. Entretanto, as outras duas hipóteses previstas no Código Civil dependem da existência de um acordo, que tanto pode ser prévio quanto posterior ao falecimento do sócio. A primeira situação está prevista no inciso I do art. 1.028 do CC, e ocorre quando os sócios, em vida, estipulam no contrato social como aquela sociedade irá prosseguir diante da morte de algum deles. Já a segunda encontra previsão no inciso III do mesmo artigo do CC, possibilitando que, sendo silente o contrato social, os sócios remanescentes e os herdeiros regulem a forma de substituição do sócio falecido. Ambas as situações estão pautadas na autonomia privada e na liberdade contratual, que ganharam mais força após a publicação da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Mas será que após a edição dessa lei há mesmo liberdade absoluta para que os sócios regulem a eventual morte de um sócio no contrato social? O dispositivo que julgamos ser um dos mais importantes da Lei da Liberdade Econômica (LLE) é o art. 3º, que estabelece os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, que são essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômico do País. No inciso V do art. 3º há expressa previsão de que é um "direito de liberdade econômica" a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, sendo que em casos de dúvidas de interpretação no direito civil e empresarial deve prevalecer a autonomia privada das partes, exceto se houver expressa disposição legal em contrário. Além dessa regra, destacamos o inciso VIII do mesmo artigo, que traz a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública. Ou seja, nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes. Portanto, poderíamos concluir que o contrato social poderia trazer qualquer disposição para regular as consequências societárias diante da morte de um sócio. Mas essa conclusão é equivocada, porque é importante se ter em mente que não se pode analisar a legislação de forma isolada, e a própria LLE, apesar de garantir a liberdade contratual, como regra, faz ressalvas quanto a situações em que há normas de ordem pública ou expressa vedação legal. Além disso, a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que regula o Registro Público de Empresas Mercantis, prevê que não podem ser arquivados pelas Juntas Comerciais os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública. Assim, tem-se que o limite da liberdade contratual é a própria lei. Se não houver vedação legal em contrário ao que se objetiva pactuar, é lícito aos sócios dispor em contrato social sobre os efeitos que o falecimento de um deles gerará sobre suas quotas. Os sócios podem tratar de forma diversa para cada um dos sócios; prever que os herdeiros serão admitidos na sociedade, independentemente do consentimento dos sócios remanescentes; regular a substituição do falecido pelos sócios supérstites ou por um terceiro, de forma a manter incólume o capital social etc. Sobre a liberdade contratual, há um precedente julgado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) - Recurso ao DREI nº 14022.116144/2022-5 - que defendeu a autonomia privada e a validade de cláusula que previa, no caso de falecimento de sócio, que a sociedade continuaria com o sócio remanescente, o qual iria adquirir as quotas do sócio falecido de forma automática. Em suma, o contrato social permitiu a cessão e transferência automática das quotas do falecido. Nesse ponto, é importante destacar que não há vedação legal expressa proibindo tal disposição de vontade, visto que os herdeiros não são sócios e não fazem jus aos direitos pessoais de sócio, cabendo-lhes apenas o direito patrimonial em relação às quotas do sócio falecido. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, em comentários ao art. 1.028 do CC1, explica que "os direitos pessoais do sócio não se transmitem aos sucessores do autor da herança e, por isso, no interregno entre o falecimento e o recebimento dos respectivos haveres, àqueles não é dado participar da sociedade, deliberando, impugnando ou fiscalizando os negócios sociais. (...) Sucessores ou herdeiros não são sócios, mas credores de haveres". No entanto, há quem defenda que, no âmbito do Registro Público de Empresas Mercantis, uma barreira para a liberdade contratual nas cláusulas sobre falecimento de sócio estaria no 426 do CC, que dispõe que "não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva", ou seja, o contrato social não poderia estipular a forma de sucessão do sócio falecido, prevendo quem dos herdeiros ou sucessores receberia o seu percentual de participação na sociedade, porque nesse caso se estaria realizado um testamento por via transversa. Essa corrente defende que cláusulas de contrato social ou de acordo de sócios que, de antemão, disciplinam regras sucessórias desrespeitam à proteção da herança, tida como um direito fundamental pelo art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal. Bevilaqua2 sustenta que os pactos sucessórios, "ainda que contassem com a concordância da pessoa de quem a sucessão se trata, contrariariam o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis, até o momento da morte do disponente. Assim, a justificativa do dispositivo superaria a tradicional noção de votum alicujus mortis e passaria a cuidar do interesse do herdeiro e até mesmo do disponente de quem a sucessão se tratará". Ocorre que, tendo por base a Lei da Liberdade Econômica, há quem defenda que o contrato social pode prever regras acerca da sucessão empresarial, desde que se respeite, por óbvio, quanto ao aspecto patrimonial, a disciplina do Direito de Família. Assim, com base no inciso I do art. 1.208 do CC, o contrato social poderia prever a transmissão de quotas a um determinado sucessor ou terceiro, quando da eventual morte de sócio, de modo que o art. 426 do CC não seria aplicável, em decorrência da existência de previsão específica. Em que pese no Direito de Família existir a necessidade de observância das regras de sucessão, não podemos confundir os institutos. Conforme vimos, a morte não transmite de forma automática os direitos pessoais dos sócios, mas os direitos patrimoniais, de modo que não haveria vedação para que um herdeiro fosse sucessor do sócio falecido, enquanto aos outros fossem garantidos os direitos patrimoniais relativos aos seus respectivos quinhões, conforme o caso. Nessa situação, o contrato social teria, inclusive, a função de estabilizar a situação societária, visto que nem todos os herdeiros possuem condições ou interesse de se tornarem sócios. No que tange ao registro, importante consignar que, ao órgão executor do Registro Empresarial compete arquivar os instrumentos produzidos pelas sociedades empresárias que se apresentarem formalmente em ordem, não sendo cabível interferir na relação jurídica interna da sociedade. Devem-se examinar somente os aspectos formais dos atos e documentos levados a arquivamento, velando-se pelo fiel cumprimento da lei (inciso I do art. 35 da lei 8.934, de 1994). Por fim, cabe ressaltar que, sendo o caso de acordo para substituição do sócio falecido - quer seja em decorrência de previsão contratual prévia ou de ajuste posterior entre os sócios remanescentes e os herdeiros -, para fins de registro na Junta Comercial haverá a necessidade de apresentação de alvará judicial e/ou formal de partilha, na medida em que o art. 619, inciso I, do Código de Processo Civil prevê que, no inventário, depende de autorização do juiz a alienação de bens de qualquer espécie. __________ 1 Disponível aqui. 2 SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 - Série Leituras Jurídicas, p. 56.
O regime da separação de bens, em sua face obrigatória por razões etárias, não é novidade no sistema brasileiro. Esteve presente no Código Civil de 1916, a princípio tornando compulsório o regime de separação para o homem maior de sessenta e a mulher maior de cinquenta anos (CC/2016, art. 258). O legislador de 2002 manteve o critério, apenas igualando a idade de ambos para sessenta anos, até que a lei 12.344 de 09/12/2010, elevou a idade base para setenta anos, alterando o inciso II do art. 1.641. A separação obrigatória de bens já suscitava desconforto no Supremo Tribunal Federal (STF), razão pela qual o Pretório Excelso, ainda quando cumulava as funções de instância recursal, guardião da legislação federal e da Constituição, sintetizou sua jurisprudência sobre o tema na súmula 377, aprovada na sessão plenária de 03 de abril de 1964, oriunda de decisões que tiveram como referências legislativas os artigos 258 e 259 da Lei 3.071/1916 (código civil revogado), o art. 7º, § 5º do decreto-lei 4.657/1942, art. 3º da lei 883/1949, e, art. 18, do decreto-lei 3.200/1941, que sustentaram os precedentes RE 10951 (DJ de 26/09/1963), RE 7243 EI (DJ de 16/08/1957), RE 8984 EI ( DJ de 11/01/1951) e  RE 9128 (DJ de 17/12/1948). O texto da súmula - "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento" - mitigava, por força pretoriana, o principal efeito do regime se separação - o de estabelecer incomunicabilidades - ao permitir a comunhão de aquestos. A súmula 377 do STF ganhou recentemente uma versão dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicável à união estável de pessoas com idade igual ou maior de setenta anos. Trata-se da súmula 655 do STJ, cujo conteúdo, além de revigorar a súmula do STF, assegura seus efeitos também na união estável e consolida a exigência de prova do esforço comum para a comunhão de aquestos: "Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum". (SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2022, DJe 16/11/2022) O STF, que desde a década de 1960 não tinha mais voltado ao tema, no dia 1º de fevereiro de 2024, no julgamento da matéria objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, que teve a repercussão geral reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236), faz inserir no sistema uma novidade de grande impacto social e jurídico, principalmente no Direito de Família e no Direito das Sucessões. Segundo o guardião da constituição, o regime estabelecido em razão do art. 1.641, II, do Código Civil é constitucional, mas pode ser afastado por convenção entre as partes, mediante a lavratura de pacto antenupcial. A tese de repercussão geral fixada pelo STF é a seguinte: "Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública". Assim, o regime de bens conhecido por "separação obrigatória de bens" nega seu próprio nome e não será mais tão obrigatório, pelo menos para os maiores de 70 anos de idade. Com essa interpretação o STF reconhece que a questão do art. 1.641 não é de ordem pública, porque passível de modificação pela vontade das partes, característica das normas dispositivas, seja para quem protagoniza casamento ou união estável. O Plenário do STF entendeu que manter a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas. A interpretação é saudável porque se ergue contra a discriminação em função da idade das pessoas, cuja vedação tem sede constitucional. Aliás, não há no sistema jurídico relativização da capacidade jurídica de fato, como um deletério efeito colateral da graça de se alcançar uma idade provecta. A interpretação conforme à Constituição Federal dada pelo STF ao art. 1.641, II, do Código Civil não inibe a existência ou os efeitos do regime da separação obrigatória, nem nega a súmula 377, posto que, no silêncio das partes, o regime continuará a ser aplicado para todas as hipóteses em que tem previsão expressa na legislação infraconstitucional, inclusive para o casamento ou união estável de pessoas com idade igual ou maior que setenta anos. O estado de coisas somente muda se houver manifestação expressa das partes. Com a decisão, a pessoa maior de setenta anos de idade pode afastar o regime da separação legal por pacto antenupcial, no casamento, e por escritura ou termo de união estável, com a escolha de qualquer outro regime de bens pelo maior de 70 anos de idade, inclusive o "trágico" regime da comunhão universal de bens. Se o casal não optar por lavrar pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável, vale o regime da "separação legal". A decisão traz uma ampliação das possibilidades, no exercício da autonomia privada no que se refere ao regime da separação obrigatória de bens, que pode ser assim sintetizada, considerando o julgado do STF e o estado da arte sobre o assunto: a) Se as partes desejam o regime da separação e que seus efeitos sejam aqueles definidos na súmula 377 do STF ou na súmula 655 do STJ, no casamento ou na união estável, basta o silêncio dos interessados para assegurar as consequências esperadas, sendo que eventual esforço comum deverá ser demonstrado no futuro, para garantir a aplicação da súmula. b) Se as partes admitem o regime de separação de bens, mas não desejam os efeitos das súmulas, também podem realizar o casamento ou a união estável, manifestando sua vontade em pacto antenupcial ou termo declaratório, no sentido de afastar aqueles efeitos (REsp n. 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 1/2/2022.) c)  Se as partes não desejam o regime da separação de bens, nem os efeitos das súmulas, então podem pactuar o regime de sua preferência, sem as amarras da restrição imposta pelo art. 1.641, II, do Código Civil. A opção volitiva de alteração do regime de bens, oportuno lembrar, implica em efeitos que se espraiam durante o casamento ou a união estável, mas também, e principalmente, nos efeitos sucessórios. Embora não haja ainda acesso aos votos escritos, pensamos que a eventual adoção de regime típico ou customizado pelas partes leva consigo os efeitos sucessórios inerentes ao novo regime, ficando completamente descartado qualquer efeito residual do regime da separação obrigatória. Uma interessante questão está relacionada com a terminologia adequada à nova perspectiva do regime, que perde sua virtude (ou vício) de obrigatório. Nesse primeiro momento, entendemos que o mais adequado é denominá-lo "regime da separação legal de bens", para diferenciá-lo do regime da separação convencional de bens, que é aquele decorrente de pacto antenupcial ou de escritura pública ou termo declaratório de união estável. Reiteramos que continua existindo o regime da separação de bens que decorre da lei - regime que até dia 1º de fevereiro de 2024 denominávamos "separação obrigatória", permanecendo íntegras as hipóteses descritas no art. 1.641 (É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial). Esse regime é diferente do regime da separação convencional, pois, pelo art. 1.829, I, do Código Civil, em concorrência com descendentes, na "separação legal" o cônjuge não é herdeiro nem meeiro. Como já dito, cabe ressaltar, também, que a Súmula 377/STF ainda é aplicável e pode ser reconhecido judicialmente o direito à meação dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento ou da união estável no regime da "separação legal" se provado esforço comum pelo interessado. Outro tópico que merece atenção é que esse direito de escolha, pelo menos por enquanto, vale apenas para o maior de setenta anos de idade. Para os outros casos do art. 1.641 do Código Civil o regime da separação legal de bens continua sendo obrigatório. Exceto para o maior de 70 anos de idade, nos casos previstos no art. 1.641 do Código Civil, cabe a lavratura de pacto antenupcial, escritura ou termo de união estável apenas com o objetivo de afastar a Súmula 377/STF, mas não pode ser escolhido outro regime de bens. Seja como for, é sempre oportuno celebrar as normas e decisões que fortalecem a autonomia existencial e negocial das pessoas, o que equivale a respeitar suas opções de vida e o caminho que escolheram trilhar.
Introdução No presente trabalho tratar-se-á sobre a forma de transmissão da propriedade imobiliária por ato entre vivos, não se adentrando nas outras hipóteses de aquisição e perda da propriedade imóvel, tais como as decorrentes do Direito de Família, usucapião, desapropriação ou qualquer outra modalidade de aquisição originária. De início, far-se-á uma breve síntese da história da propriedade e da sua importância para a vida do homem e do tratamento que lhe dispensou o legislador do Brasil e da Argentina, olhando-se, também, por ser de grande importância para o mundo moderno, o Registro Imobiliário desses dois países, não se esquecendo, contudo, de se fazer aos sistemas registrais aos quais se vinculam. Noção de propriedade imobiliária Difícil seria falar de transmissão da propriedade sem que antes se faça, por mais breve que seja, uma resenha de sua evolução no transcorrer da História. Demais disso, é de se esclarecer que no presente texto utilizar-se-á, indistintamente, o termo propriedade ou domínio como sinônimos, em que pese se admitir que técnica e juridicamente há de se fazer distinção, haja vista que o vocábulo propriedade, é mais amplo, englobando o domínio. Aquele seria o gênero, enquanto este a espécie. Feitos os esclarecimentos devidos, passa-se desde logo à questão central do estudo. Com efeito, o homem desde os primórdios de sua história demonstrou ter uma perfeita noção da apreensão material das coisas e o desejo de tomá-las para si. Contudo, a propriedade imóvel somente em um período mais recente da História passou a ser vista como se enxerga na atualidade. Enquanto nômade, o homem estava preocupado apenas com os bens que pudesse remover durante suas intermináveis viagens, tais como o vestuário e os objetos de caça e pesca, pouco ou nenhum valor dando ao solo, pois após esgotar os recursos naturais de determinada região ele partia com os seus utensílios, deixando para trás uma terra que ainda não aprendera a explorar. No período neolítico, fixando-se à terra, o homem deixa de ser apenas um predador e passa a colaborar com a natureza, cultivando o solo e produzindo seus alimentos, enquanto domestica animais e assim produz sua própria fonte de sustento e de sua família. Todavia, nessa época ainda não se tinha a noção de propriedade privada e a terra era compartilhada pelos membros da família ou do clã. Com o tempo essas famílias passaram a ocupar o mesmo território, estabelecendo limites individuais respeitados por toda a comunidade, surgindo-se, assim, a ideia de propriedade privada. Não se sabe com precisão o momento em que a propriedade passou a ser usada de forma individual. De acordo com VENOSA1 somente a partir da Lei das XII Tábuas concebeu-se a ideia de propriedade individual e nessa época o Direito Romano permitia que fosse outorgado ao pater famílias o direito a uma porção de terra, a fim de que ele a cultivasse. Porém, realizada a colheita a propriedade voltava a ser coletiva, ou seja, a propriedade privada, surgida com as ideias trazidas da Lei das XII Tábuas, era exercida de forma absoluta, sendo essencial às práticas da religião doméstica onde se cultuava os antepassados e, como demonstra o filme o Gladiador, o domínio somente veio a encontrar limites na época clássica do Direito Romano, quando ao se reconhecer o direito de vizinhança, começou-se a impor sanções ao uso abusivo da propriedade, muito embora, o direito individual ainda fosse preponderante. Nessa esteira, leciona VENOSA que2 "[...] a concepção romana de propriedade é transmitida pelos glosadores para a cultura jurídica da Europa continental", migrando-se, para outros continentes a partir daí, em especial, para o continente americano. Depreende-se ainda das lições desse conhecido doutrinador brasileiro que na Idade Média a propriedade perde o seu caráter unitário e exclusivista e que em face das culturas bárbaras modificou-se os conceitos jurídicos, passando o território a ser sinônimo de poder, por sua ligação com a soberania nacional. Por sua vez, FARIAS e ROSENVALD3 lecionam que: O viés funcionalizado da propriedade romana permaneceu na Idade Média, pois as relações de vassalagem exigiam que o poder, político e absoluto do senhor feudal não sofresse qualquer espécie de restrição. A propriedade medieval, de acordo com JOHN GILISSEN, assenta-se no feudo e na concessão do senhor em favor de seu vassalo de uma porção de terra e proteção militar em troca de respeito e fidelidade. Já o Direito Canônico divulgou a ideia de que o homem estaria legitimado a adquirir bens e que a propriedade privada seria um meio de expressão dessa liberdade. Nos séculos XVIII e XIX irrompeu-se o formato clássico do direito de propriedade, triunfando a racionalidade humana onde o contrato e a propriedade brotam como sustentáculos do domínio privado. Nesse sentido, o Código de Napoleão recepcionou a ideia romana de propriedade, estabelecendo que seu uso e disposição poderia ser de forma absoluta, desde que se respeitasse as leis e os regulamentos. Essas ideias migraram para todos os ordenamentos jurídicos que se espelharam no Código Civil francês perdendo força a partir do século XIX com a revolução industrial e doutrinas socializantes. No momento atual do século XXI a grande questão que se coloca é quanto a capacidade do homem para resolver o seu problema habitacional. Daí o destaque merecido pela propriedade imóvel, essencial à estrutura socioeconômica dos Estados. Nesse contexto, a forma de transmissão da propriedade imobiliária, por ato inter vivos, de particular interesse para este trabalho, é um bem jurídico tão importante quanto a própria propriedade em si, pois por meio dela, dá-se publicidade, segurança e garante-se a paz social. Transferência da propriedade imóvel Não existe uma teoria geral sobre a transferência de imóveis que seja aplicada universalmente, pois cada país, em que pese adotar princípios que se verificam nos diversos ordenamentos jurídicos, mescla esses princípios criando regras compatíveis com as suas peculiaridades e com o seu nível de desenvolvimento. Por isso, tratar-se-á em tópicos distintos a forma de transmissão da propriedade imóvel no Brasil e na Argentina, adentrando-se, onde couber, nos princípios e teorias desenvolvidos em outros países quando eles tenham direta relação com o tema abordado. Transmissão da propriedade no Brasil por ato entre vivos A propriedade imóvel encontra-se ligada umbilicalmente à economia e à política de um país, de forma que, os legisladores, e disso não foge o legislador brasileiro, têm procurado fórmulas que garantam o seu uso pacífico, estabelecendo critérios para a sua transmissão. Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 5, XXII que é garantido o direito de propriedade, prescrevendo o art. 1.228 do Código Civil que " O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha". Além desses diplomas encontram-se no Direito Processual os mecanismos de sua defesa em Juízo e no Direito Penal os tipos punitivos, também, como forma de tutela. Como meio de proteção e de segurança jurídica o ordenamento jurídico brasileiro disciplina diversas formas de aquisição e, por consequência, de transmissão da propriedade imóvel, como a usucapião, a acessão e a decorrente do Direito de Família. Contudo, e como já consignado anteriormente, discorrer-se-á unicamente sobre transmissão de imóveis por ato inter vivos, como a compra e venda e a doação. Com efeito, discorrer sobre a forma de transmissão da propriedade imobiliária requer, por si só, um aprofundamento desse tema que tem gerado enormes conflitos, não sendo de fácil apreensão, pois remonta aos primórdios da humanidade. Todavia, esta proposta tem como marco o Brasil atual, de maneira que, acredita-se, torna a tarefa menos árdua. O Código Civil brasileiro, em seu art. 1.245, reza que "Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis". Antes disso, no art. 108 esse diploma legal prescreve que "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição. transferência, modificação ou renúncia de direitos sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Reforçando esse entendimento, que é seguido pela maioria dos doutrinadores que estuda a forma de transmissão da propriedade imóvel no Brasil, transcreve-se abaixo trecho da obra de PEREIRA4, o qual esclarece que: No sistema jurídico brasileiro, com efeito, a propriedade não se adquire solo consensu isto é, pelo contrato exclusivamente (Clóvis Beviláqua, Espínola, Serpa Lopes, Orlando Gomes, Philadelpho Azevedo). É certo que alguns autores, ou por desconhecerem as raízes históricas do fenômeno aquisitivo, ou pelo gosto de mera inovação, pretendem que o domínio das coisas possa adquirir-se pelo contrato, a símile do que se passa com o direito francês e com os sistemas filiados àquela corrente. Para o nosso direito o fenômeno aquisitivo, não obstante tais opiniões isoladas e inconsistentes, requer a ocorrência de um fato cuja materialidade determina a transmissão da propriedade. Neste passo, como em tantos outros, a tônica de nosso direito reside na inspiração romana, que informa o jogo de princípios. Ali se dizia que pela tradição e pela usucapião é que o domínio das coisas se transfere, não pelo contrato: traditionibus et usucapionibus, non nudis pactis, dominia rerur transferuntur. Também para nós não se efetua pelo pactus nus. isso tanto para as coisas móveis quanto para os imóveis.". Retomaremos o tema quando tratarmos do sistema de registro da    propriedade imobiliária atualmente-vigente no Brasil, passando-se agora a cuidar da transmissão de imóveis na Argentina por ato entre vivos, a fim de darmos uma maior coesão ao texto. Transmissão da propriedade imóvel na Argentina O sistema jurídico argentino, quanto à transmissão da propriedade imóvel por ato inter vivos vincula-se à teoria do título e modo, exigindo, em regra, uma escritura pública lavrada perante um Notário, bem como a tradição da propriedade, isto é, a entrega e  recepção voluntárias da coisa por meio de atos materiais com a participação do transmitente e do adquirente ou de apenas um deles com o consentimento do outro, como, citando Gatti, Leciona Clerc5 que: Para que la tradición translativa de la posesión haga adquirir el dominio de la cosa que se entrega, debe ser hecha por el proprietario que tenga capacidad para enajenar, y el que la reciba ser capaz de adquirir", esclarecendo o artigo seguinte, ou seja, o de número 2602 que "La tradición deve ser por título suficiente para transferir el dominio. Portanto, esses dois requisitos (título e tradição) são indispensáveis para a transmissão da propriedade imóvel na argentina, a ausência de um ou de outro invalida o negócio jurídico, como se observa do artigo 2.505 do Código Civil, in verbis: La aquisición o transmisión de derechos reales sobre inmuebles, solamente se juzgará perfeccionada mediante la inscripción de los respectivos títulos en los registros inmobiliarios de la jurisdicción que corresponda. Esas aquisiciones o transmisiones no serán oponibles a terceros mientras no estén registradas. O dispositivo legal acima transcrito cria uma aparente contradição, levando- se a acreditar que o Código Civil da Argentina, na sua redação atual, estaria exigindo o registro como forma de transmissão da propriedade imobiliária. Contudo, assim não deve ser interpretado, tendo em vista que é próprio do direito real sua oponibilidade contra todos e não seria de nenhuma praticidade que a transferência do domínio surtisse efeitos somente entre as partes contratantes, pois, como é notório, é característico da propriedade valer erga omnes, possibilitando o direito de sequela. Se a transferência da propriedade operasse apenas entre os contratantes, o título e a tradição, efetivamente, não teriam o condão de transmitir o domínio e o registro seria constitutivo, o que não é caso, pelo menos, no que se refere ao sistema jurídico argentino. Também, seguindo a máxima de que o legislador não utiliza palavras inúteis, deve-se considerar que na parte final do art. 2.505 se objetivou proteger terceiros de boa-fé, de forma que, o registro uma vez realizado gozará de presunção de veracidade, não podendo ser alegado o seu desconhecimento. Do exposto, conclui-se que a transmissão da propriedade imobiliária no direito argentino, por ato entre vivos, encontra fundamento jurídico no título suficiente, em regra, no instrumento público, e no modo (tradição ou entrega efetiva da coisa), não sendo necessário o registro para a tradição da propriedade imóvel. Registro da propriedade imobiliária O registro da propriedade imobiliária, como concebido nos dias atuais, finca suas raízes no direito germano, pois o mundo antigo e a sociedade romana tinham no registro de imóveis apenas um mecanismo de controle para cobrança de impostos, não vendo no registro uma forma de publicidade. Aliás, por ser um povo essencialmente prático, em um primeiro momento o romano transmitia a propriedade com a simples tradição, dispensando qualquer outro ato, sendo-lhe estranho a ideia de título suficiente e de registro como meios de transmissão da propriedade imobiliária. Quando se tratou da transmissão da propriedade imóvel deixou-se a entender que cada país tem a sua forma de transmissão, dada suas peculiaridades locais, em que pese a mesclagem de diversas regras e princípios de outros ordenamentos jurídicos. Dessa forma, no particular aspecto, também serão tratados separadamente os sistemas do registro da propriedade imobiliária do Brasil e da Argentina, antes discorrendo, em apertada síntese, sobre os principais sistemas de registro de imóveis conhecidos na atualidade. Registros pessoais ou reais Na primeira hipótese o centro de referência é a pessoa, enquanto no segundo caso tem-se como parâmetro o próprio imóvel. O sistema de registros pessoais torna mais difícil as buscas, que se realizam em nome do titular do domínio, enquanto no sistema de fólio real a busca é facilitada, tendo em vista que nesse sistema cada imóvel dispõe de uma matrícula que é única, na qual se registra os ônus e as mutações. A Argentina adotou o sistema de fólio real em 1968, com a publicação da lei 17.801 e o Brasil somente aderiu a esse sistema após entrar em vigor a lei 6.015/73. Registros de transcrição ou de inscrição Esse sistema mostra o grau de desenvolvimento do país em termos de registro da propriedade imobiliária. Na primeira hipótese, o registrador sequer pode ser considerado um profissional do direito, pois sua função fica limitada a transcrever em livros, verbum ad verbum os títulos que lhes são apresentados. No segundo caso, o registro é feito após a qualificação do título pelo oficial público, que inclusive, poderá rejeitá-lo se entender não terem sido atendidas as formalidades legais. É próprio dos países que dominam a técnica registral. Registros declarativos ou constitutivos Considera-se sistema declarativo aquele onde o direito real já existia antes do registro e esse serve somente como forma de disponibilidade ou de oponibilidade contra terceiros. É o sistema adotado na Argentina. Por outro lado, diz sistema constitutivo quando a existência do direito real nasce com o próprio registro, como acontece no Brasil, em regra. Registros que convalidam ou não o título De acordo com o Professor CLERC6"Tal clasificación depende de si la inscripción es o no agente de depuración de los vicios que puedan llegar a tener los títulos que ingresan al registro. Así los registros de Alemania, Suiza, etcétera, pertencem al primer, grupo; al segundo pertencen los registros de Argentina, España, Francia, etcétera". Outras classificações bem conhecidas são o sistema francês, alemão e, alternativamente, o registro torrens que foi adotado no Brasil em relação aos imóveis rurais, mas que na prática não tem demonstrado resultados. Registro Imobiliário no Brasil O sistema de registro imobiliário brasileiro é misto ou eclético, pois a maioria dos atos perante ele praticados tem efeitos constitutivo, cuja origem remonta ao sistema alemão, onde o registro é modo suficiente para transmissão da propriedade imóvel, e, uma vez realizado, desvincula-se do título causal. Contudo, o legislador no que se refere à transferência da propriedade imóvel, exigiu não apenas o registro como modo suficiente, mas também a existência de um título causal, como por exemplo, a escritura pública de compra e venda, o formal de partilha extraído dos autos de um processo de inventário entre outros, mas não é só, no caso de transferências decorrentes de direito sucessório o registro tem natureza declaratória, dele não se prescindindo para a disponibilidade do bem e para oponibilidade contra terceiros, haja vista a transferência da propriedade ter ocorrido no momento da morte do autor da herança, o mesmo ocorrendo com a usucapião, quando a própria sentença ou ato do Registrador de Imóveis que a reconhece, por si só, já transmite o domínio, servindo o registro apenas para que se possa obter os efeitos acima citados. Sistema de Registro de Imóveis na Argentina Na Argentina o registro da propriedade imóvel tem natureza declaratória, tendo em vista que se pratica o ato registral a fim de que o domínio anteriormente já constituído possa ser oponível em relação a terceiros, em consonância com disposto no art. 2.505 do Código Civil. O título e a tradição bastam para a aquisição da propriedade imobiliária. Aparentemente o legislador argentino teria adotado o sistema de registro alemão. Todavia, quando realizada uma interpretação contextual nota-se que essa forma de pensar não procede, pois um dos efeitos do domínio é poder valer contra todos e isso se consegue com a sua transmissão que é anterior ao registro. Conclusão A propriedade imóvel é um bem pelo qual o homem tem lutado ao longo de sua história desde que se fixou à terra e passou a cultivar o solo, estando arraigada no subconsciente social. Em decorrência disso, criou-se instrumentos e formas de sua transmissão, evitando-se disputas desnecessárias para a sua obtenção, pois o desejo de novos domínios tem sido fonte de opressão para a humanidade, mas também é causa de pacificação social. No Brasil, o direito de propriedade é constitucional, algo quase que sagrado e que se encontra positivado em outros regramentos, inclusive com mecanismos de defesa bem construídos e aprimorados constantemente, com sua transmissão, inter vivos, se dando, via de regra, por meio de agentes detentores de fé pública plena (tabeliães e oficiais registradores), com segregações de funções e formalidades para se alcançar a necessária e indispensável segurança jurídica. Na Argentina, o direito de propriedade também encontra amparo em normas centrais, com sua transmissão inter vivos se vinculando à teoria do título e modo, com necessidade, via de regra, da lavratura de uma escritura pública, além da ideia, como fator essencial, de oponibilidade contra todos, mas sem deixar de preservar direitos de terceiros de boa-fé. Os registros, pessoais ou reais, de transcrição ou de inscrição, declarativos ou constitutivos, que convalidam ou não o título, têm suas especificidades e, além de servir como elementos históricos, que demonstram a evolução da consolidação da propriedade, expressam a forma de aquisição em si, esta que vai sofrendo alterações no agir do legislador e no compasso da evolução social, além de outros fatores igualmente importantes.   Portanto, sendo a propriedade direito consolidado, e alçado entre os mais importantes, seja no Brasil ou na Argentina, o estudo de sua história e formalidades para transmissão, neste trabalho limitada aos atos inter vivos, se mostra de extrema relevância, em especial quando se vislumbra, mesmo diante de ritos bem definidos e positivados, espaço para alguns questionamentos, como se viu nas raízes teóricas em cada ponto enfrentado. __________ Notas e referências bibliográficas VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. IB Idem ao ITEM 1. ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves. Direitos Reais. 6. Ed. 3. Tiragem Lume Juris Rio de Janeiro: 2010. PEREIRA, Caio Mario Pereira da Silva. Direitos Reais. Volume IV. Ed. Forense. 20. Edição. 2009. CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 1. Ed. Volume1. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 2. Ed. Volume2. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. __________ 1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. p. 166. 2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais. 10 Edição São Paulo: Ed. Atlas 2010. p. 167. 3 ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves. Direitos Reais. 6. Ed. 3. Tiragem Lume Juris Rio de Janeiro: 2010. p. 167. 4 PEREIRA, Caio Mario Pereira da Silva. Direitos Reais. Volume IV. Ed. Forense. 20. Edição. 2009. p.99 5 CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 1. Ed. Volume1. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. p. 350 6 CLERC, Carlos M. Derechos Reales e Intelectuales. 2. Ed. Volume2. Buenos Aires, Hammurabi, 2007. p. 901.
Na sessão de 1º de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu: nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública. A propósito, veja o art. 1.641 do CC: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;  III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Apesar de o inteiro dos votos ainda estar pendente de publicação, foi possível acompanhar os debates dos Ministros na sessão por meio da TV Justiça1. Diante disso, passamos a expor nossas considerações sobre o tema. No caso de septuagenário, o STF deu ao inciso II do art. 1.641 do CC interpretação conforme à Constituição Federal (STF, ARE 1.309.642/SP, Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 1º/02/2024). Estabeleceu que o regime da separação legal pode ser afastado por escritura pública: o art. 1.641, II, do CC não é norma cogente, e sim norma dispositiva (ou supletiva). Decidiu ser inconstitucional privar a pessoa idosa da liberdade de gestão patrimonial, inclusive na escolha de regime de bens do casamento ou da união estável. O afastamento do regime da separação legal pode ocorrer destas formas: a) por escritura pública de pacto antenupcial ou - no curso do casamento - por meio do procedimento legal de alteração de regime de bens (art. 1.639, § 2º, CC; art. 734 do CPC); ou b) mediante escritura pública lavrada antes ou no curso da união estável. Sobre esse último ponto (o da união estável), não se aplica a regra geral do art. 1.725 do CC, que admite instrumento particular para a escolha de regime de bens no caso de união estável. O STF exige escritura pública, que é lavrada por um tabelião de notas. Isso, porque o tabelião tem o dever de apurar a capacidade dos declarantes (art. 215, § 1º, II, CC), fato que reduzirá os riscos de golpes contra a pessoa idosa. Trata-se de cautela importante diante da maior vulnerabilidade a que podem estar expostas as pessoas idosas. No caso de casamentos ou união estável anterior ao supracitado julgado do STF sob o regime da separação legal, é direito dos consortes mudar o regime de bens na forma acima. Há alguns pontos sensíveis a serem enfrentados à vista do supracitado julgamento do STF. Passamos a expor nossa posição. Em primeiro lugar, o STF não extinguiu o regime da separação legal. Este segue em vigor, com todas as suas particularidades. Não se confunde, portanto, com o regime da separação convencional. Citamos três exemplos de diferenças práticas: a) o viúvo não concorre com descendentes no regime da separação legal de bens, ao contrário do caso do regime da separação convencional (art. 1.829, CC); b) a outorga conjugal do art. 1.647 do CC é devida no regime da separação legal, e não no do regime da separação convencional; c) os aquestos se comunicam no regime da separação legal se houver prova do esforço comum e não existir pacto antenupcial em sentido contrário, conforme Súmula nº 655/STJ ("Aplica-se a união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum"). Em segundo lugar, o afastamento do regime da separação legal pelo septuagenário ocorre mediante a escolha de qualquer outro regime de bens, típico ou atípico. Até mesmo o regime da separação convencional pode ser pactuado, por ele ser diferente do regime da separação legal. É livre a estipulação do regime de bens (art. 1.639, CC). A única diferença entre o septuagenário e os demais é que o regime legal de bens é o da separação legal (art. 1.641, II, CC). Para as demais pessoas, o regime legal é o da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC). Em terceiro lugar, caso o septuagenário escolha outro regime de bens (inclusive o da separação convencional), essa escolha tem de ser respeitada para todos os fins, inclusive para a interpretação do art. 1.829, I, CC. Esse dispositivo não permite o viúvo concorrer com os descendentes na herança se era casado no regime da separação legal ou em alguns outros regimes de bens. Assim, se o septuagenário adotou outro regime de bens - diverso do da separação legal -, a interpretação do art. 1.829, I, do CC tem de levar em conta esse regime escolhido pelas partes. Interpretação diversa seria restringir a liberdade de escolha de regime de bens da pessoa idosa, em afronta ao supracitado julgado do STF. Em quarto lugar, o afastamento do regime da separação legal por ato de vontade é apenas para o caso de pessoa maior de 70 anos (art. 1.641, II, CC). O STF não estendeu essa liberdade de escolha para as demais hipóteses de regime da separação legal: violação a causa suspensiva ou exigência de suprimento judicial (art. 1.641, I e III, CC). Em quinto lugar, indaga-se: seria ainda tecnicamente valer-se da expressão regime da separação obrigatória como sinônima de regime da separação legal? Entendemos que sim, por dois motivos. De um lado, o adjetivo "obrigatória" qualifica o substantivo "separação", e não o verbete "regime". Isso significa que a obrigatoriedade está na incomunicabilidade dos bens (separação dos bens), e não propriamente na imposição do regime. De outro lado, nomenclatura tem de manter aderência à escolha legislativa: os arts. 496, parágrafo único, e 1.829, I, do CC valem-se da expressão regime da separação obrigatória. Seja como for, apesar da sinonímia, reputamos ser preferível valer-se da expressão regime da separação legal, para evitar incompreensões acerca do direito do septuagenário em afastá-lo por ato de vontade. Enfim, podemos resumir o ambiente patrimonial do regime de bens da seguinte maneira. Há dois regimes legais supletivos, assim batizados porque vigoram se não tiver havido escolha de outro regime pelos consortes pela forma legalmente cabível. São eles: a) o regime da separação legal de bens envolvendo septuagenário (art. 1.641, II, CC); b) o regime da comunhão parcial de bens, que se aplica aos demais casos em que se admite a liberdade de escolha do regime de bens. Além disso, há um regime legal cogente: o regime da separação legal envolvendo suprimento judicial ou violação de causa suspensiva (art. 1.641, I e III, CC). Nesses casos, os consortes não podem afastar esse regime por ato de vontade. Como se vê, o regime da separação legal pode ser cogente ou supletivo, a depender da sua origem. __________ 1 Disponível aqui. Também houve publicações nos noticiários jurídicos. Veja aqui.
A transação é um acordo entre as partes com o objetivo de prevenir ou encerrar uma disputa, conflito ou litígio. Trata-se de uma autocomposição em que as próprias partes envolvidas resolvem os seus desentendimentos, evitando a necessidade de uma demanda judicial. A transação pode ser relacionada a inúmeras questões e direitos, desde que sejam de caráter privado. Entre tais direitos, os mais comuns são os patrimoniais, familiares, contratuais, trabalhistas e sucessórios. A transação também pode ocorrer por questões relacionadas a prestação de serviço ou direito do consumidor. Desde que respeitadas as normas de ordem pública e as regras específicas previstas na legislação, inúmeras são as possibilidades de se utilizar a transação para solucionar ou evitar conflitos ou litígios. Nas palavras de Christiano Cassettari, em sua obra "Elementos de Direito Civil - Obra completa em Volume Único - 7º edição, p.363": O acordo de vontade entre os interessados (pois inexiste transação legal), o direito litigioso ou duvidoso (pois senão haverá renúncia ou reconhecimento de um direito) e a intenção de extinguir coisa litigiosa ou duvidosa (pois o objetivo é evitar riscos de uma futura demanda ou extinguir um litígio já instaurado, para transformar algo inseguro e incerto em seguro e certo) são elementos constitutivos de uma transação. As regras específicas que regulamentam a transação no ordenamento jurídico brasileiro estão previstas nos artigos 840 a 850 do Código Civil. O artigo 840 do CC, diz que "é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas", trazendo a legalidade para esse tipo de acordo amigável. A transação pode ser realizada por instrumento particular ou escritura pública, a depender do caso específico. O artigo 842 do CC traz essa afirmação e o comando de que, se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz. A legislação traz o regramento de que a transação só é permitida sobre direitos patrimoniais de caráter privado justamente por não poder gerar prejuízos para aqueles que dela não participaram, assim como só poderá ser aproveitada por seus participantes. Tal regramento está previsto no artigo 844 do CC, que estatui: Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível. § 1 o Se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador. § 2 o Se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste para com s outros credores. § 3 o Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores. Carlos Eduardo Elias de Oliveira e João Costa-Neto, em "Direito Civil - Volume Único, p.710", ensinam que "a transação tem natureza declaratória: ela não gera transmissão de direitos, mas, apenas a declaração ou o reconhecimento deles por ficção do art.843 do CC". Seguindo, ainda, os ensinamentos dos autores acima citados, em referida obra (p.709), a transação pode ser: a) extrajudicial: dá-se quando o direito em litígio não está sendo discutido em processo judicial. Deve ser feita por escrito e, se a lei exigir escritura pública para a negociação de qualquer dos direitos envolvidos, também a transação abrangendo esse direito deverá ser por escritura pública (art. 842, CC). Assim, se a transação envolve um imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, ela deverá ser por escritura pública por força dos arts. 108 e 842 do CC; b) judicial: dá-se quando o direito controvertido já é objeto de processo judicial. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, na obra "Manual de Direito Civil - Volume Único (6º edição) p.838", explicam que "Com o advento do Código Civil de 2002, a transação passou a ser regulada como uma modalidade contratual típica e nominada, incluída expressamente no título dedicado às "várias espécies de contratos". Stolze e Pamplona, ainda na obra acima citada (p.838), explicam as demais características da transação: Trata-se, evidentemente, de um contrato bilateral, em função das concessões recíprocas; comutativo, na equivalência das obrigações assumidas; e oneroso, em que o benefício recebido por um deve corresponder a um sacrifício patrimonial do outro. A lógica de uma transação é de que ela seja um contrato paritário, tendo as partes iguais condições de negociação, para estabelecer livremente as cláusulas contratuais, sobretudo no que diz respeito às concessões de cada um. Outras regras importantes sobre a transação estão previstas, como já dito, nos arts. 840 a 850 do CC, as quais devem ser cuidadosamente analisadas diante de cada caso concreto. O crescimento da utilização da escritura pública para transações pelos advogados está cada vez mais intenso, e a justificativa é muito simples: entre realizar uma transação extrajudicial da qual não irão levar à homologação judicial, por instrumento particular ou por escritura pública, é evidente que a opção mais segura será o instrumento público. Primeiramente, é importante ressaltar que a transação sempre poderá ser feita por escritura pública, mesmo quando não seja obrigatória. Isso ocorre pela segurança que a escritura pública passa às partes por se tratar de um documento público, lavrada por um tabelião de notas, que atua com imparcialidade, dando a fé pública para a transação realizada, garantindo a validade do ato e a segurança jurídica necessária. Desse modo, a transação realizada por escritura pública tem todas as vantagens em relação ao instrumento particular, e o custo, diferentemente do que se imagina, é muito baixo, tendo em vista que nos casos em que a escritura pública é opcional, em muitas tabelas estaduais há um desconto, a exemplo de São Paulo, onde o desconto é de 40% (quarenta por cento). O custo-benefício da escritura pública de transação é gritante, quando se analisa com cautela toda a segurança que ela promove ao acordo, além do fato de que, se a transação não for judicial, ela não precisa ser levada para homologação em juízo. A escritura pública, por si só, já é um título executivo extrajudicial, conforme o inciso II do art. 784 do Código de Processo Civil (CPC). Na prática, o instrumento particular de transação em âmbito extrajudicial, mesmo que não seja obrigatória a homologação judicial, acaba sendo levado para a citada homologação, para que as partes possam ter mais segurança, mesmo que esta demanda judicial seja tecnicamente inapropriada, e, para que o instrumento particular possa se tornar um título executivo extrajudicial, precisa cumprir os demais requisitos exigidos pelos incisos III e IV do art. 784 do CPC, a depender do caso concreto. Por esse motivo é que a escritura pública de transação acaba contribuindo com o Poder Judiciário. E essa contribuição se dá de duas formas: a principal, que é própria da transação, ou seja, evita uma demanda judicial; e a acessória, que se dá pelas características inerentes ao ato notarial, onde a segurança jurídica se torna mais robusta, e as partes não necessitam, nem cogitam, levar para a homologação em juízo, uma vez não terem a mesma insegurança jurídica passada pelos instrumentos particulares. Assim como a transação tem o objetivo de prevenir litígios, uma das funções do tabelião também é a de prevenção de litígios, o que comprova ainda mais que a escritura pública é muito apropriada para realizar esse ato legitimado em nossa legislação, que é a transação. Atualmente a procura para se realizar transação por escritura pública está crescendo consideravelmente, e o número de advogados que estão procurando os tabelionatos de notas para realizarem transações de todo tipo, desde que em caráter privado, respeitando as normas cogentes e a legislação que rege a transação, está cada vez maior. Para o advogado, essa é uma ótima ferramenta de trabalho, pois, além de proporcionar segurança aos seus clientes, ele pode contar com o trabalho do tabelionato de notas, que normalmente redige a escritura pública de transação nos moldes do acordo realizado, o que acaba gerando economia de tempo para o advogado, que só precisa revisar e aprovar a minuta da escritura, verificando se está como por ele foi solicitado, e deixando para comparecer ao cartório somente quando a escritura pública de transação estiver pronta e seu conteúdo aprovado por todos. Além disso, atualmente os tabelionatos de notas possibilitam a assinatura eletrônica, por meio de videoconferência realizada na plataforma do e-notariado, podendo as partes e os advogados realizarem o ato em seu escritório ou em qualquer outro lugar, bastando, apenas, ter internet acessível no local onde se encontra. As partes também não precisam estar juntas no mesmo lugar, podendo cada uma delas estar no escritório de seu respectivo advogado, ou em qualquer outro lugar. Com toda essa facilidade e segurança jurídica, além do valor reduzido, fica evidente a vantagem de se utilizar a escritura pública para realizar todo e qualquer tipo de transação que esteja dentro das regras legais, o que justifica o aumento da procura dos advogados para a realização da transação por meio de escritura pública. Uma outra importante vantagem para o advogado em utilizar a forma pública é que, caso queira, ele pode contar com a ajuda do tabelião de notas, que também é um profissional do Direito, para trocar ideias e opiniões sobre o ato de transação que está a elaborar e os termos ideais para serem inseridos no ato, sem qualquer tipo de custo adicional. Acresça-se que, em alguns casos, a transação pode envolver a necessidade de registro no Cartório de Imóveis para que um imóvel passe a estar em nome de outrem. Antes da Lei do Marco Legal das Garantias, por uma interpretação (a nosso sentir, equivocada), não era viável o registro da transação por falta de previsão no rol de atos jurídicos registráveis estampado no art. 167, I, da Lei de Registros Públicos. Entretanto, essa interpretação indevida perdeu total amparo com o acréscimo feito ao referido inciso pela Lei do Marco Legal das Garantias: foi acrescido o item 48, que esclarece que qualquer ato jurídico de mutação jurídico-real imobiliário é registrável, ressalvadas as hipóteses legais de averbação1. Logo, a transação pode ser registrada. Basta que ela seja formalizada na forma legalmente exigida, conforme exposto neste artigo. Enfim, nunca é demais lembrar que ao notário compete lavrar escrituras, e a ele é concedida por lei a fé pública para os atos que pratica, além de ter o dever de promover a segurança jurídica, com imparcialidade, imprimindo segurança e prevenindo litígios. Além disso, o tabelião de notas responde com seu patrimônio por danos causados por dolo a terceiros. Por isso, o instrumento público lavrado por tabelião de notas é extremamente confiável e seguro. __________ 1 Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. (Renumerado do art. 168 com nova redação pela lei 6.216, de 1975). I - o registro:  (Redação dada pela lei 6.216, de 1975). (...) 48. de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).     (Incluído pela lei 14.711, de 2023)
Os burros são animais de boa memória e grande capacidade de aprendizado. A sua má fama sempre me intrigou. Dizem que veem anjos e demônios e se afeiçoam a seus donos, protegendo-os. Relendo a impressionante passagem em que um burro fala a Balaão, lembrei-me da história do burrinho que devorou o livro-protocolo de notificações do RTD de uma pequena serventia do interior. Este episódio tiraria o sono de Antônio Generoso, escrevente autorizado, um homem que era a expressão perfeita do seu nome próprio - generoso e gentil. Nomen est omen, diziam os antigos. Deixe-me contar esta história direito. O caso revela o lado humano dos pequenos cartórios espalhados nos mais distantes rincões deste país.  O cartório se achava sob intervenção. O Oficial titular havia sido afastado e o interventor buscava colocar as coisas no eixo. Superado o trauma inicial, verificou-se que os filhos do oficial afastado eram funcionários da serventia e que, além do mais, eram excelentes profissionais. Sempre colaboravam quando requisitados para as mais diversas tarefas e funções. E calhou que Toni Generoso, o mais velho deles, era um exímio motociclista, além de figura simpática, muito conhecida na comarca. Foi-lhe, então, atribuída a função de notificador do RTD e uma Honda CG-125, novinha em folha, lhe foi confiada. Com ela podia ir e vir ao trabalho e dedicar-se às tarefas ordinárias da especialidade agora sob seu mister. Àquela época, os interventores tinham grande autonomia. Podiam reorganizar o quadro de funcionários, atribuir novas funções, atuavam como longa manus da administração, revestiam-se, por empréstimo, da dignidade e da autoridade do poder censório. Na pequena comuna, era chamado de "Sr. Dr. Interventor", infundindo certo temor nos demais cartorários da comarca. Encarar o interventor era como estar diante do próprio Corregedor-Geral de Justiça em pessoa. Uma certa tarde, já no final do expediente, o Oficial-Maior adentrou os átrios do gabinete do interventor com o cenho franzido e o passo hesitante. Olhando fixamente para ele, disse secamente: "Doutor, o burro do Toni comeu o livro-protocolo". Fez-se um breve silêncio até que o interventor pudesse compreender exatamente o que tinha dito o seu oficial maior. "O burro do Antônio Generoso?", redarguiu finalmente, desatando uma sonora gargalhada, acompanhado pelo oficial maior ainda aflito. Parece ter sido assim: depois de entregar todas as notificações do dia, Toni foi até sua casa "para um café da tarde", como relatou na sindicância. Gazeteava, não avisara ninguém, a tarde deitava seus fachos alaranjados sobre a colina, o fim do dia modorrento convidava a uma breve soneca. Ele estacionou a moto à porta do sítio com o livro posto na "aranha" do bagageiro e descansou na varanda, deixando o tempo passar preguiçosamente. Entretanto, havia nas redondezas um burrinho que costumeiramente pastava nos baldios da vizinhança. Para azar do funcionário, o animal vira no livro-protocolo um saboroso acepipe. Diz Toni, ao relatar o episódio, que, ao sair de casa, viu o burrinho com o protocolo entre os dentes. Estremeceu. Bateu-lhe o desespero. Diz que se atracou com o animal, arrancando-lhe, a muito custo, o que sobrara do repasto. O escrevente autorizado, o oficial maior e o livro esgarçado se apresentaram diante do severo interventor. Foi determinada a abertura de um processo administrativo disciplinar para apurar o "caso do burrinho do cartório". Depois da oitiva do sindicado, da restauração dos comprovantes sobreviventes, o pobre Toni Generoso, além de sofrer uma dura carraspana, receberia a pena de advertência, visto que felizmente nenhum prejuízo sobreviera. A remansosa rotina do cartório retomaria seu curso ordinário. Dizem que o "burrinho do cartório" - como a ele nos referíamos desde então - era um presente que o escrevente recebera de um amigo. Sem saber o que fazer com o animal, deixou-o pelas redondezas. O burrinho era curioso, já tinha entrado no sítio e devorara as listas telefônicas que encontrara, além do lauto repasto representado por diários oficiais encadernados que o escrevente classificava e indexava para uso do cartório. Toni Generoso se foi. A última vez que o vi vestia um terno rosado, gravata bege e colete que realçava a barriga proeminente. Tinha o olhar triste, a barba por fazer, andava cabisbaixo e resignado. Com o tempo, ficara muito parecido com o finado pai, homem digno e honrado que experimentara um grave tropeço na vida e um duro golpe do destino. O cartório foi afinal provido pelo concurso e os filhos do velho oficial se perderam mundo afora. Antônio Generoso, escrevente autorizado, notificador de RTD partiu. Foi-se pelos caminhos das três colinas ao cair de uma tarde fresca e radiosa. Arrastava atrás de si as inúmeras histórias de cartorários ouvidas desde pequenino. Seguia-lhe de perto o burrinho curioso e faminto, o burrinho do cartório. O referido é verdade e dou fé.
Impossibilidade por ausência de previsão legislativa Como afirma o art. 189 do Código Civil, violado o direito, nasce a pretensão, o qual se extingue pelo decurso dos prazos prescricionais previstos em lei1. Contudo, como a lei existe para garantir os direitos subjetivos de quem não está inerte, no caso de tomada de providências pelo credor, o art. 202 do Código Civil permite - uma única vez - a interrupção do prazo prescricional nas taxativas hipóteses elencadas nos incisos do art. 202 do Código Civil2.   São estas: (i) por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual; (ii) por protesto, nas condições do inciso antecedente; (iii) por protesto cambial; (iv) pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; (v) por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor e (vi) por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor3.   Portanto - em marcável omissão - o rol do art. 202 do Código Civil não prevê a possibilidade de interrupção de prazo prescricional por meio de notificação enviada por Cartório de Títulos e Documentos, que é o fundamento utilizado pela jurisprudência do STJ4 e a doutrina majoritária5 para refutarem essa modalidade como causa interruptiva do prazo prescricional. Esse posicionamento formalista, a despeito de frustrante para o credor que pretendeu conferir efeitos interruptivos à notificação extrajudicial, é acertado, pois, se a segurança jurídica é um dos pilares do ordenamento jurídico, os esforços para que sejam observadas as regras legais devem ser prestigiados6. Na verdade, a (única) crítica cabível é reservada à mora legislativa do Congresso Nacional em aprovar um projeto de lei que inclua essa possiblidade. Afinal, conquanto existam projetos de lei com iniciativas de desjudicialização que guardam relevante carga de controvérsia7, a inclusão legislativa defendida é lege ferenda com motivos de sobra para se tornar texto legal8. Motivos de sobra para a inclusão legislativa  Segundo a doutrina do Professor Caio Mário "como corolário de fundar-se a prescrição na inércia do credor por tempo predeterminado, considera-se toda manifestação dele, defensiva de seu direito, como razão determinante de se inutilizar a prescrição, ou seja, de interromper a sua contagem"9-10. Nessa linha ideias, o primeiro argumento em prol da inclusão legislativa para permitir a interrupção do prazo prescricional por meio de notificação extrajudicial é de natureza teleológica: uma comunicação formal que busque interromper a contagem do prazo prescricional é incontroversamente ato jurídico comprobatório de que o titular do direito violado não está inerte, encaixando-se na mens legis do art. 202, caput, do Código Civil11. Com efeito, o fato de o credor não ter ingressado com uma ação judicial de imediato é irrelevante para essa conclusão. A uma, o ingresso em juízo, muita das vezes, depende do pagamento de custas e da contratação de advogado, providências que podem atrasar o ajuizamento do feito, mas que não comprovam a inércia do credor.  A duas, a notificação extrajudicial configura ato de boa-fé na medida em que, ao cientificar o devedor de que medidas judiciais serão tomadas, permite com que as partes busquem uma solução extrajudicial (pré-processual) para o conflito. O segundo argumento é de natureza prática: a interrupção da prescrição por meio de notificação extrajudicial será procedimento seguro em razão da qualificação dos titulares das serventias extrajudiciais, que são submetidos a rigoroso concurso público para ingresso na carreira. Ademais, há fiscalização por parte do Poder Judiciário com relação aos atos praticados pelos tabeliães e seus prepostos, que serão pessoalmente responsabilizados em caso de defeito na prestação do serviço12. Ciente da eficácia desses mecanismos, a legislação confere aos titulares de serventias extrajudiciais o múnus de velarem pela autenticidade e veracidade dos atos jurídicos (arts. 1º e 3º da Lei Federal 8.935/94) e vem aumentando o leque de poderes destes13. Não é de se estranhar, portanto, que os titulares dos Cartórios de Protesto já possuem poderes para praticar atos que interrompem a prescrição, conforme as disposições dos incisos II e III do art. 202 do Código Civil.   Se essa faculdade legal é conferida aos Cartórios de Protesto, que possuem enxuta estrutura em razão de suas restritas atribuições, por qual motivo não a estender aos Cartórios de Títulos e Documentos, que já praticam atos jurídicos de relevância similar (ou superior) à interrupção da contagem de prazo prescricional?   Com efeito, dentre alguns exemplos, as notificações extrajudiciais enviadas por estes servem para (i) implementar condição resolutiva expressa (art. 474 do Código Civil); (ii) formalizar renúncia da prescrição (art. 191 do Código Civil) e (iii) constituir em mora o devedor fiduciante para pagamento da dívida e demais encargos, sob pena de consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor fiduciário (art. 26 da lei 9.514/97)14. Quanto a este último ponto, haja vista que 97% dos financiamentos imobiliários no país são realizados pelo procedimento extrajudicial da Lei Federal nº 9.514/97, o que representa o envio anual de milhares de notificações extrajudiciais a devedores fiduciantes, conclui-se que os Cartórios de Títulos e Documentos desempenharão, com eficiência e segurança, o serviço consistente na interrupção de prescrição por meio de notificação extrajudicial15. Por fim, um argumento utilitarista: a inclusão legislativa, ajudará a desafogar o Poder Judiciário, eis que a parte interessada terá mais um meio (extrajudicial) para interromper o prazo prescricional, evitando o ajuizamento do protesto interruptivo judicial, previsto ao art. 202, V, do Código Civil. O momento oportuno para mudança é agora Pelos motivos apresentados, foi com surpresa que este colunista recebeu a notícia de que a Comissão de Atualização do Código Civil não acresceu essa possibilidade no Relatório Setorial enviado ao Congresso Nacional no início de dezembro de 202316. Com efeito, conquanto a Comissão de Atualização - composta por juristas que há muito defendem essa inclusão legislativa - tenha sugerido importantes alterações ao texto do art. 202 do Código Civil17, a ausência desse tema na minuta final dos trabalhos configura surpreendente desdobramento para os que acompanhavam os debates.   De todo modo, não se trata de desfecho preclusivo: o texto ainda será debatido e votado no Congresso Nacional, que terá a oportunidade de incluir ao art. 202 do Código Civil a possibilidade de interrupção do prazo prescricional por notificação extrajudicial enviada por Cartório de Títulos e Documentos. __________ 1 Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, "a prescrição tem por finalidade conferir certeza às relações jurídicas, na busca de estabilidade, porquanto não seria possível suportar uma perpétua situação de insegurança" (REsp 1.677.895/SP, Ministra Rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 6.2.2018). 2 A ratio da interrupção da prescrição é explicada pela doutrina do Prof. Carlos Eduardo Elias: "A prescrição destina-se a punir quem é negligente no exercício do seu direito, pois, conforme os romanos, o direito não socorre os que dormem (dormientibus non sucrrit jus). Por isso, caso o titular de um direito pratique um ato que demonstra não estar inerte no exercício no seu direito, é aplicável a interrupção do prazo prescricional" (OLIVEIRA, Carlos Elias e COSTA-NETO, João. Direito Civil, Volume Único. Editora Método. Brasília, 2022. p. 317). 3 O artigo 19 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") aponta uma hipótese de interrupção da prescrição não prevista no rol do art. 202 do CC: "A instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição".                          4 "O entendimento deste Tribunal Superior é de que a notificação extrajudicial não é hábil a interromper o prazo prescricional". (AgInt no AResp nº 1.656.629/MT, Min. Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 22.11.2021). 5 Nas palavras do Prof. Flávio Tartuce "Deve ficar claro que a notificação extrajudicial, via cartório de títulos e documentos, não gera a interrupção da prescrição, pela ausência de previsão legal específica". (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª edição, São Paulo, 2017, p. 342). 6 Deve-se esclarecer que não se está a falar aqui de direito potestativo (não qual não haveria prescrição, mas decadência) ou de processos de jurisdição voluntária. Portanto, não se pode invocar a teoria das instrumentalidades das formas ou o art. 723, parágrafo único, do CPC, eis que se tratando da contagem de prazo prescricional, que é uma garantia do Estado Democrático de Direito conferida ao cidadão, é presumível que haveria prejuízo a este caso as regras legais não sejam fielmente observadas. 7 Em síntese, a projeto de alteração legislativa propõe a desjudicialização da execução civil, e concede aos tabeliães as funções de agente de execução, a quem caberia realizar os atos de citação, penhora e expropriação, entre outras atribuições descritas ao artigo 4º do PL nº 6.204/19 8 Nesse sentido, é a posição do Prof. Carlos Elias que afirma que "Recomendamos a edição de lei que passe a admitir a notificação extrajudicial como causa interruptiva, tudo em sintonia com o movimento de desjudicialização. Sem nova lei, porém, temos por usurpação do Legislativo forçar essa hipótese interruptiva" (OLIVEIRA, Carlos Elias e COSTA-NETO, João. Direito Civil, Volume Único. Editora Método. Brasília, 2022. p. 319). 9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 598. 10 No mesmo sentido, "a interrupção da prescrição visa a amparar aquele que revela inequívoca intenção de perseguir o seu direito" (REsp 1.636.677/RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15.2.2018). 11 Os efeitos interruptivos da notificação devem retroagir à data do envio da notificação, não podendo se aceitar que o credor seja prejudicado pela demora dos serviços extrajudiciais em efetivarem a entrega ao devedor da notificação interruptiva de prazo prescricional.  Desse modo, deve-se invocar a mesma regra presente para a interrupção da prescrição por citação judicial (art. 202, I do CC, combinado com o art. 214, parágrafo único, do CPC). 12 Não por outro motivo, os serviços cartorários extrajudiciais são apontados como as instituições mais confiáveis do  Brasi Disponível em: Cartórios são a instituição mais confiável do Brasil, aponta pesquisa | Notícias - ANOREG/RN (anoregrn.org.br). Acesso em 19.12.2023. 13 Como se constata das alterações legislativas promovidas pelas Leis n.º 11.401/07, 14.382/22 e 14.711/23. 14 Para maiores considerações, recomenda a leitura do acórdão no REsp 1.906.475/AM, Min. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 18.05.2021. 15 Dados extraídos da Exposição de Motivos do Anteprojeto do PL 4.188/2021. 16 Disponível na página 135 do Relatório Setorial da Seção de Parte Geral da Comissão apresentado ao Congresso Nacional.  17 Um exemplo é a inclusão, no rol do art. 202 do CC, da causa interruptiva da prescrição já prevista pelo art. 19 da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"). A sistematização do texto legal é medida importante para o aumento da segurança jurídica.
Objetiva-se com o presente trabalho discutir a extensão da gratuidade de justiça no âmbito notarial e registral, diferenciando-se da isenção tributária. Discute-se o limite de sujeito de relação jurídica processual, em caso de impugnação de gratuidade. Objetiva-se analisar o pagamento antecipado de emolumento devido à gratuidade de justiça. Ao final, apresenta-se uma proposta de modelo de custeio de emolumento nos autos que tenham sido concedido gratuidade. O título deste trabalho até parece estranho, mas não é! Pois uma leitura fatiada das normas sobre justiça gratuita, induz a uma interpretação equivocada sobre a dispensa de emolumento dos atos notariais e registrais. Inicialmente, é importante esclarecer que o inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao determinar que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", implica as seguintes situações distintas1: i) assistência judiciária gratuita, que é um serviço prestado aos necessitados extrajudicialmente (mediações, conciliações etc.) pelo Estado; ii) assistência judiciária, que é um serviço prestado judicialmente, a defesa em juízo das partes (autor e réu); e, por fim, iii) a justiça gratuita ou gratuidade de justiça, que é a dispensa legal de adiantamento de pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, ainda que o beneficiário tenha causídico contratado. No caso, o objeto deste trabalho será apenas com as normas de justiça gratuita extensiva ao serviço notarial e registral, prevista no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), interligado com outras normas jurídicas brasileiras. Ademais, a título de introito, para fins de delimitação do objeto deste trabalho, é importante deixar claro que a extensão de justiça gratuita aos atos notariais/registrais implica apenas uma dispensa legal de adiantamento de emolumento, sem força para tornar o tabelião/oficial sujeito de relação jurídica processual, atuando com parcialidade, passível de impedimento/suspeição (arts. 144, 145 e 148, todos do CPC/2015), inclusive o perito judicial (art. 156, § 4º, do CPC/2015). A gratuidade de justiça é uma dispensa legal de adiantamento de custas, despesas processuais e dos honorários advocatícios (art. 98, caput, do CPC/2015), inclusive de emolumento cartorário (art. 98, § 1º, inciso IX, do CPC/2015), que tem natureza de taxa tributária. Por outro lado, isso não significa uma isenção tributária (art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional - CTN) - que é uma dispensa legal de tributo -, porque o despacho da autoridade não gera direito adquirido (§ 2º do art. 179 do CTN), ao contrário da parte final do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que gera direito adquirido ao beneficiário de justiça gratuita após o prazo quinquenal de exigibilidade. Com efeito, a gratuidade de justiça não é uma isenção tributária, salvante contrário em lei. Logo, será possível pagamento a priori ou a posterior após o trânsito em julgado, tirante o transcurso de prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, sem ter a demonstração de que o beneficiário deixou a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade. Neste caso, após o quinquênio, sem qualquer impugnação, configura-se, de fato, uma verdadeira exclusão do crédito tributário (art. 175, inciso I, do CTN). No tocante ao aspecto processual, é importante frisar que o tabelião/oficial não são partes no processo, pois, embora tenha permissão legal para impugnar a concessão de gratuidade (art. 98, § 8º, do CPC/2015), essa conduta reflete, na realidade, um interesse econômico no feito, além de não incidir os efeitos da sentença e sequer, de sucumbência ou de causalidade processual. Logo, o referido ato de impugnação pelo tabelião/oficial não tem força para torná-los sujeito de relação jurídica processual. Em termos financeiros, a justiça gratuita não pode ser concedida em dimensão muito ampla, ainda que licitamente, sob pena de prejudicar o erário, bem como é vedada a renúncia de receita pública, exceto nos termos do art. 1º, § 1º, c/c o art. 14, incisos I e II, ambos da Lei Complementar Federal n.º 101/2000. Na prática notarial e registral, entretanto, a gratuidade de justiça é uma forma de isenção tributária de emolumento, embora exercida privativamente. Por exemplo, a cada concessão de justiça gratuita, ocorre dispensa de pagamento de taxa cartorária, mas não há, em regra, ressarcimento dos atos praticados. Ademais, é oneroso ao titular de serventia extrajudicial manter um custo com advogado para acompanhar a(s) situação(ões) de beneficiário de justiça gratuita, no prazo quinquenal de suspensão de exigibilidade, com o intuito de saber se ainda continua a situação de insuficiência de recursos, que justificou a concessão de gratuidade. Se não bastasse isso, é importante lembrar que, conquanto as isenções tributárias deveriam ser fixadas por leis específicas, conforme determina o art. 150, § 6º, da Constituição Federal de 1988 e o art. 97, inciso VI, c/c o art. 175, inciso I, do Código Tributário Nacional, não é esse o entendimento dos tribunais superiores, a exemplo do deferimento por maioria da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 194, referente ao Decreto-Lei 1.537/1977, que isenta a União do pagamento de custas e emolumentos aos ofícios e cartórios de registro de imóveis e de registros de títulos e documentos, a despeito do voto-vencido do então relator Min. Marco Aurélio, ao dizer que, "se a Constituição delegou à iniciativa privada o exercício do serviço notarial e de registro, não cabe à União criar isenções não previstas no texto constitucional" (portal de notícias do STF). Pois bem, voltando ao tema, é importante lembrar que a gratuidade de justiça não se encontra apenas no art. 98 do Código de Processo Civil de 2015, cujo § 1º desse artigo diz expressamente que os emolumentos devidos a notários ou registradores são dispensados provisoriamente, mas também no § 3º do art. 95 do CPC/2015, quando o pagamento de perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça. Note-se que o Poder Público (Fazenda Pública, Ministério Público e Defensoria Pública) deve tomar as devidas precauções na concessão da justiça gratuita, seja por limitação do erário - que pode ser utilizado como fundamento da reserva do possível no âmbito do direito administrativo sem prejuízo do mínimo existencial -, seja pela responsabilidade do ordenador de despesa (§ 1º do art. 80 do decreto-lei 200/67 c/c a Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Por isso, a concessão de gratuidade de justiça não é absoluta, ainda que presumida em favor da pessoa natural, passível de impugnação na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples. Ademais, as despesas dos atos processuais praticados a requerimento do Poder Público serão pagas ao final pelo vencido (art. 91 do CPC/2015). No tocante às perícias requeridas pelo Poder Público, poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova (§ 1º do art. 91 do CPC/2015). Não havendo previsão orçamentária no exercício financeiro para adiantamento dos honorários periciais, eles serão pagos no exercício seguinte ou ao final, pelo vencido, caso o processo se encerre antes do adiantamento a ser feito pelo ente público (§ 2º do art. 91 do CPC/2015). No Estado do Maranhão - onde se tem conhecimento de cumprimento de decisão judicial em favor de beneficiário de justiça gratuita -, só há ressarcimento de atos praticados pelo registro civil de pessoas naturais (nascimento, casamento e óbito), em razão do Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar 130/2009), que os restitui parcialmente o valor dos emolumentos previstos em Tabela XIII anexa à Lei Estadual n.º 9.109/2009. Acontece que, conquanto dispensada antecipação de emolumento por causa da gratuidade de justiça, o próprio Código de Processo Civil determina expressamente o pagamento antecipado com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal [de custas e emolumentos de cada Estado] ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do inciso II do § 3º do art. 95 do CPC/2015, em razão do § 7º do art. 98 do CPC/2015. Ressalte-se que o texto do § 7º do art. 98 do CPC/2015 - cujo caput do artigo trata de gratuidade de justiça - diz expressamente que "aplica-se" o disposto no art. 95, §§ 3º a 5º, ambos do CPC/2015 - que trata de pagamento com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal -, "ao custeio dos emolumentos" previstos no § 1º, inciso IX, do artigo 98 do CPC/2015, o qual determina a prática de atos notarias e de registro necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedida a dispensa de pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios. Nesse contexto, tudo indica que não se aplica subsidiariamente os parágrafos do art. 95 do CPC/2015 ao custeio de emolumento em favor do beneficiário de justiça gratuita, uma vez que o texto legal não tem a expressão "no que couber" ou similar. Refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz da prática notarial/registral, enquanto um serviço público delegado exercido de maneira privada, será difícil uma serventia extrajudicial esperar até o final de processo para receber o seu valor, considerando que mensamente precisa reservar aproximadamente 50% da receita bruta mensal para pagamento de tributos federais, estadual e municipal, além de outras despesas necessárias ao funcionamento da serventia. Ademais, refletindo o § 7º do art. 98 do CPC/2015, à luz de direito processual civil, não é possível imaginar que, não havendo rubrica orçamentária ou reservas contingenciais para ressarcimento de atos cartorários, os emolumentos sejam reconhecidos pelo juiz na sentença, sob pena de violação do art. 492 do CPC/2015 (princípio da congruência, correlação ou da adstrição) e do art. 18 do CPC/2015 ("Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico").  Dessa maneira, e nos termos das normas adjetivas acima, não será possível aplicar o inciso V do art. 515 do CPC/2015, ou seja, o emolumento não poderá ser aprovado por decisão judicial, por ausência de pedido da parte, a fim de constituir um título executivo judicial em favor do tabelião/registrador, com o fito de ressarcimento de atos cartorários necessários à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido gratuidade. Por outro lado, se o pagamento do emolumento for antecipado pelo erário, este não será prejudicado, pois, nos termos do § 4º do art. 95 do CPC/2015, o juiz oficiará a Fazenda Pública - após o trânsito em julgado da decisão final - para que promova contra quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, a execução dos valores gastos com o ato notarial e registral. Desse modo, é possível afirmar - por dedução lógica - que o § 4º do art. 95 do CPC/2015 afasta a aplicação do § 3º do art. 98 do CPC/2015, que trata da suspensão quinquenal de exigibilidade sucumbencial do beneficiário da justiça gratuita, a fim de não causar prejuízo ao erário e, por conseguinte, a responsabilização do ordenador de despesas (Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Dessa maneira, tudo indica que o procedimento judicial deveria ser feito da seguinte forma: uma vez concedida a justiça gratuita, e sendo necessária a prática de atos de notas e de registros, o erário deveria pagar - a priori e por meio de reservas contingenciais, caso não tenha rubrica orçamentária específica2 - o valor do emolumento cartorário, sendo posteriormente ressarcido por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais (art. 98, §§ 2º e 3º, do CPC/2015), por meio de execução fiscal da Fazenda Pública. Nesse contexto, deveriam ser ressarcidos integralmente todos os atos notariais e registrais que dão efetividade às decisões judiciais em favor de beneficiário de justiça gratuita (art. 98, inciso IX, c/c o seu § 7º, do CPC/2015), por meio de rubrica orçamentária específica ou, do contrário, por reservas contingenciais, a despeito da existência de fundos específicos, a exemplo de Fundo Especial das Serventias de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado do Maranhão (Lei Complementar n.º 130/2009). No tocante ao Estado do Maranhão, a Tabela de Custas e Emolumentos, anexa à lei Estadual 9.109/2009, não dispõe expressamente sobre assistência jurídica gratuita ou justiça gratuita, mas apenas no item 17.8 da Tabela XVII relativa ao tabelionato de protesto, no qual consta expressamente uma previsão de isenção tributária em favor de parte beneficiária de assistência judiciária (e não de justiça gratuita), cuja interpretação será literal não somente por se tratar de exclusão de crédito tributário (art. 111, inciso II, c/c o art. 175, inciso I, ambos do Código Tributário Nacional), mas também por ser uma renúncia de receita (art. 14 da Lei Complementar Federal n.º 101/2000). Em relação aos atos de registros civis de pessoas naturais do Estado do Maranhão, serão objeto de ressarcimento, entre outros, os atos requisitados judicialmente, nos termos do art. 11, § 2º, da Lei Complementar Estadual n.º 130/2009 - que tem a finalidade de assegurar a gratuidade dos atos do Registro Civil das Pessoas Naturais no Estado do Maranhão (RCPN) -, independente de concessão de justiça gratuita. Note-se que a referida lei complementar não se trata de dispensa legal de adiantamento emolumento ­­- referente à justiça gratuita -, e sim, de restituição à exclusão de crédito tributário (dispensa legal de pagamento de tributo), ou seja, é uma forma de compensação aos oficiais de RCPN por seus atos gratuitos, em observância ao art. 8º da lei Federal 10.169/2000, que dispõe sobre o estabelecimento de normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. Portanto, é possível asseverar que a concessão de gratuidade de justiça não difere o pagamento de emolumento de serventia extrajudicial, mas, ao revés, - e nos moldes da perícia judicial - determina a antecipação de pagamento de emolumento por meio do erário, sendo este ressarcido posteriormente por quem tiver sido condenado ao pagamento das despesas processuais, para evitar seu prejuízo e responsabilização fiscal do ordenador de despesa. __________ 1 LOPES JR., Jaylton. Manual de Processo Civil. São Paulo: Ed. JusPodvium, 2023, p. 228. 2 Cf. o art. 5º, inciso III, da Lei Complementar Federal n.º 101/2000, e mais o art. 98, § 7º c/c o art. 95, §§ 3º ao 5º, ambos do CPC/2015.
Dando continuidade à exploração abrangente desse tema na primeira parte deste artigo, concentramo-nos agora em uma análise mais concentrada do artigo 440G §6º do Provimento 150 do CNJ, um tema de relevância no cenário jurídico contemporâneo. A adjudicação compulsória, ao envolver a transferência forçada de propriedade, implica desdobramentos intrincados que permitem as relações contratuais e patrimoniais. Nesta segunda e última parte, direcionamos nossa atenção para as especificidades desse mecanismo legal, explorando suas implicações práticas e as nuances que o envolve. Além disso, examinaremos o entendimento jurisprudencial atualizado sobre a adjudicação compulsória, proporcionando uma visão sistemática sobre esse tema.  Da adjudicação compulsória extrajudicial  A adjudicação compulsória é um instituto jurídico que se refere ao direito de uma parte em um contrato de compra e venda de imóvel de exigência que a outra parte cumpra com sua obrigação de transferir a propriedade do imóvel. Em outras palavras, quando uma das partes do contrato não cumpre com suas obrigações, a parte prejudicada pode recorrer ao judiciário para forçar a transferência do imóvel, desde que preenchidos os requisitos legais. Para que uma adjudicação compulsória seja concedida, geralmente é necessário que o comprador tenha cumprido todas as suas obrigações contratuais, como o pagamento do preço e o cumprimento de prazos. Além disso, é importante que o vendedor esteja em mora, ou seja, que tenha se recusado injustificadamente a transferir a propriedade do imóvel. A adjudicação compulsória é uma medida que visa proteger os direitos do comprador e garantir o cumprimento dos contratos de compra e venda de imóveis, garantindo que a parte prejudicada não fique desamparada diante do descumprimento da outra parte. Nessa seara, acompanhando a tendência da desjudicialização, a fim de proporcionar ao cidadão mais agilidade na busca de seu direito sem ter que recorrer ao Poder Judiciário, o CNJ editou o provimento nº150 de 19/09/23, para tratar desse assunto. Nesse provimento, chamo a atenção para o artigo 440-G que regulamenta algumas questões da adjudicação compulsória extrajudicial a ser processada perante um Tabelião de Notas combinado com Registrador Imobiliário. Ao analisar esse provimento, percebe-se que ele foi elaborado com o intuito de simplificar a vida das pessoas. No entanto, é claro que ele não abrange todas as possíveis situações factuais que possam surgir. É justamente nesse contexto que este artigo se propõe a fornecer elementos intelectuais para evitar que esse dispositivo significativo caia em desuso. Por isso, ressaltamos a relevância de flexibilizar o processo de comprovação da quitação de obrigações no âmbito da adjudicação compulsória extrajudicial. Dentre inúmeros dispositivos, ressalta-se o art.440-G, §6º : Para fins de prova de quitação, na ata notarial, poderão ser objeto de constatação, além de outros fatos ou documentos:  I - ação de consignação em pagamento com valores depositados; II mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado; III - comprovantes de operações bancárias; IV - informações prestadas em declaração de imposto de renda; V - recibos cuja autoria seja passível de confirmação; VI - averbação ou apresentação do termo de quitação de que trata a alínea 32 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973; ou VII - notificação extrajudicial destinada à constituição em mora (DJe/CNJ n. 218/2023, de 15 de setembro de 2023, p. 5-13.  Ao interpretar cuidadosamente o texto legal, torna-se evidente que a lista apresentada não é exaustiva, mas sim exemplificativa, uma vez que inclui "outros fatos ou documentos" como meios de prova. Isso levanta a questão de se é viável utilizar a Prescrição e/ou a Decadência como meios para comprovar a quitação do preço. Embora não tenhamos uma resposta definitiva neste momento, ao analisar de maneira sistemática o conjunto de leis vigentes, identificamos diversas ocasiões que sugerem a possibilidade dessa abordagem. Nesse sentido, mesmo antes desse provimento, alguns Tribunais Superiores se manifestaram sobre o assunto, vejamos: Em consonância com essa perspectiva, é relevante destacar que determinados Tribunais Superiores, incluindo os de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, aceitam a prescrição e a decadência como fundamentos para presumir a quitação do preço na adjudicação compulsória, quando decorrem da inércia do credor: APEL.Nº: 1001968-10.2022.8.26.0606 COMARCA: SUZANO APTE. : ------ APDO. : ------ AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. DÍVIDA PRESCRITA. A prescrição atinge a pretensão, não implicando na inexistência do débito, pois não atinge o direito subjetivo a ele inerente, contudo, implica na impossibilidade de exigência por meio judicial ou administrativo, uma vez que tal pretensão deixou de ser oportunamente exercida pelo credor ou respectivo cessionário. Imposição de obrigação de não fazer consistente na abstenção de cobrança judicial ou extrajudicial das dívidas prescritas. Imposição de multa por ato de descumprimento. Precedentes deste E. TJSP. Recurso provido.  ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - Improcedência pela ausência de prova de quitação do preço - Requisito necessário, mas superado no caso concreto, pela verificação da prescrição da pretensão de cobranças das parcelas contratadas e da ação de rescisão contratual em relação ao compromisso de compra e venda que remonta à década de 80 - Inteligência dos artigos 190 e 476 do Código Civil - Sentença reformada - Recurso provido.  (TJSP;  Apelação Cível 1002242-93.2021.8.26.0125; Relator (a): Moreira Viegas; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Capivari - 1ª Vara; Data do Julgamento: 11/09/2023; Data de Registro: 11/09/2023)  APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. Apelo da parte ré, por meio da Curadoria Especial. Art. 1418 do CC. Ação pessoal em que o promitente comprador, diante da recusa do promitente vendedor em lhe outorgar a escritura definitiva do imóvel, pretende substituir judicialmente a vontade do alienante para concretizar a transferência da propriedade. Requisitos da ação de adjudicação compulsória: (1) existência de compromisso de compra e venda de bem imóvel, (2) quitação integral do preço e (3) omissão do alienante quanto à outorga de escritura definitiva. Requisitos cumpridos. Quitação do preço presumida. Ausência de notícias de qualquer ação de cobrança em face do promitente comprador e indiscutível prescrição de eventual direito de cobrança (art. 203, §5º, I, do Código Civil). Posse do imóvel há mais de 30 anos, tempo suficiente, inclusive, para ser declarada a aquisição da propriedade pela usucapião. Presunção de quitação do preço não afastada pela apelante. Precedentes desta Corte. Cadeia registral do imóvel devidamente comprovada. Legitimidade ativa. Por fim, no que tange à alegada ilegitimidade passiva, assiste razão à apelante, motivo pelo qual extingue-se o feito, sem resolução do mérito, em face do referido réu. Art. 485, VI do CPC. Sentença que se reforma parcialmente. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.(0163789-85.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). ANDREA MACIEL PACHA - Julgamento: 12/06/2023 - SEGUNDA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 3ª CÂMARA /TJRJ).  Tipo de processo: Apelação CívelTribunal: Tribunal de Justiça do RS Classe CNJ: Apelação Relator: Liege Puricelli PiresRedator:Órgão Julgador: Décima Sétima Câmara CívelComarca de Origem: CAMPO BOMSeção: CIVELAssunto CNJ: Promessa de Compra e Venda Decisão: Acordao. Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. OUTORGA DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. A adjudicação compulsória é o remédio jurídico colocado à disposição de quem, munido de promessa de compra e venda ou título equivalente, não logra êxito em obter a escritura definitiva do imóvel. É necessário, também, que o instrumento esteja devidamente quitado e que haja recusa do promitente-vendedor em outorgar a escritura pública definitiva de compra e venda. No caso, em que pese não haja prova da quitação, eventual pretensão de cobrança dos promitentes-vendedores contra o promitente-comprador já se encontraria prescrita. E isso porque a última parcela relacionada ao preço teve vencimento em março/1978, ou seja, há mais de quarenta anos, o que faz presumir o pagamento. Acolhimento do pleito de outorga da escritura pública definitiva de compra e venda. RECURSO PROVIDO À UNANIMIDADE.(Apelação Cível, Nº 70083960757, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em: 30-04-2020). Data de Julgamento: 30-04-2020. Publicação: 22-09-2020 APELAÇÃO CÍVEL. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CESSÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DO PAGAMENTO. PRESUNÇÃO PELO LONGO TRANSCURSO DE TEMPO, NÃO É CRÍVEL QUE A QUITAÇÃO DO PRECO NÃO TENHA SE CONCRETIZADO, MESMO PORQUE, JÁ HAVERIA INCIDIDO A PRESCRIÇÃO EXTINTIVA DO DIREITO A COBRANÇA. IMÓVEL QUE NÃO CONSTA NO ROL DE BENS DO INVENTÁRIO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 2010.081014-1, de Içara, rel. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 23-10-2012).Gabinete Desa. Substa. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer Diante disso, interessante transcrever trecho do voto da relatora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer na Apelação Cível n. 2010.081014-1, proferido pelo Tribunal de Santa Catarina: "Ademais, sendo as parcelas do contrato inexigíveis, em razão da prescrição operada, é desarrazoada a exigência de apresentação de documentos que demonstrem o adimplemento das parcelas quando tais valores não poderão ser objeto de cobrança e discussão". Outrossim, também merece destaque Apelação Nº 0302608-42.2017.8.24.0038/SC RELATORA: Desembargadora Cláudia Lambert de Faria, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, quando a ilustríssima invoca as facetas da boa-fé objetiva: Trazendo referidos conceitos para o caso ora em análise, é fácil perceber que a conduta praticada pelos réus/apelantes caracteriza o instituto da supressio. O acordo previu o pagamento de 25 parcelas - com início em setembro/2011 e término, consequentemente, em setembro/2013 - e ficou estipulado que "não havendo denúncia no prazo de 15(quinze) dias será considerado cumprida a obrigação"(cláusula 03, primeira parte). Decorrido o prazo de 15 dias após o término previsto para o cumprimento total da obrigação, não houve qualquer manifestação dos apelantes a respeito de eventual descumprimento. Aliás, durante todo o período entre a homologação do acordo e o ajuizamento da presente demanda os recorrentes quedaram-se inertes. (.) transcorrido considerável lapso temporal após o fim do prazo estabelecido no acordo, os apelantes criaram a justa expectativa de que a obrigação estava totalmente adimplia, razão pela qual o silêncio, nesse caso, importante presunção de quitação total da dívida.  Por outro lado, em uma decisão monocrática, o Superior Tribunal de Justiça apresenta sua perspectiva, vejamos: A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a prescrição apenas impede a pretensão à reparação, não tornando inexistente a dívida.Nesse sentido: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO. IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA CONSTATADA. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DÉBITO PRESCRITO. RECONHECIMENTO DE QUITAÇÃO. INVIABILIDADE. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.1. "A quitação do preço do bem imóvel pelo comprador constitui pressuposto para postular sua adjudicação compulsória, consoante o disposto no art. 1.418 do Código Civil de 2002" (REsp 1.601.575/PR, relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, DJe de 23.8.2016). 2. "A prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo" (REsp 1.694.322/SP, relatora MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe de 13.11.2017).  Seguindo essa mesma linha de argumentação, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em sua decisão judicial, também rejeitou a aplicação do instituto da prescrição como uma alternativa para inferir a quitação do preço na adjudicação compulsória. Na ocasião, percebe-se que a respeitável corte limitou-se à interpretação literal do dispositivo legal, conforme o artigo: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS - INSURGÊNCIA DO AUTOR - ALEGADO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS - AFASTAMENTO - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA QUITAÇÃO TOTAL DO VALOR - RECIBOS APRESENTADOS QUE NÃO SE MOSTRAM SUFICIENTES -- PARTE QUE NÃO SE DESINCUMBIU DO ÔNUS DISPOSTO NO ART. 373, I DO CPC - ADEMAIS, DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL QUE NÃO IMPLICA EM QUITAÇÃO - PRESCRIÇÃO QUE ATINGE APENAS A PRETENSÃO DE COBRANÇA DO PROMITENTE VENDEDOR E NÃO O DIREITO SUBJETIVO EM SI - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - REVELIA DO RÉU - IMPERTINÊNCIA - PRESUNÇÃO DE VERACIDADE MERAMENTE RELATIVA - DOCUMENTOS QUE NÃO SÃO APTOS A SUSTENTAR A PROCEDÊNCIA DO PEDIDO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJPR - 19ª Câmara Cível - 0001854-91.2021.8.16.0189 - Pontal do Paraná -  Rel.: DESEMBARGADOR RUY ALVES HENRIQUES FILHO -  J. 05.12.2022).  Nos dois casos mencionados anteriormente, é evidente que houve o reconhecimento da prescrição e decadência, contudo, essas decisões deixaram de considerar os seus impactos, possibilitando, assim, que as obrigações naturais sirvam como justificativa para a manutenção de propriedades irregulares. Ocorre que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em mais uma oportunidade de tratar do mesmo assunto, dessa vez, ao nosso sentir, caminhou de forma acertada, quando reconheceu a impossibilidade de cobranças de dívidas prescritas, vejam-se: DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO PRESCRITO. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO. INSTITUTO DE DIREITO MATERIAL. DEFINIÇÃO. PLANO DA EFICÁCIA. PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA DAS VIAS. PRESCRIÇÃO QUE NÃO ATINGE O DIREITO SUBJETIVO. COBRANÇA EXTRAJUDICIAL DE DÍVIDA PRESCRITA. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO ESTADUAL. 1. Ação de conhecimento, por meio da qual se pretende o reconhecimento da prescrição, bem como a declaração judicial de inexigibilidade do débito, ajuizada em 4/8/2021, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 26/9/2022 e concluso ao gabinete em 3/8/2023. 2. O propósito recursal consiste em decidir se o reconhecimento da prescrição impede a cobrança extrajudicial do débito. 3. Inovando em relação à ordem jurídica anterior, o art. 189 do Código Civil de 2002 estabelece, expressamente, que o alvo da prescrição é a pretensão, instituto de direito material, compreendido como o poder de exigir um comportamento positivo ou negativo da outra parte da relação jurídica. 4. A pretensão não se confunde com o direito subjetivo, categoria estática, que ganha contornos de dinamicidade com o surgimento da pretensão. Como consequência, é possível a existência de direito subjetivo sem pretensão ou com pretensão paralisada. 5. A pretensão se submete ao princípio da indiferença das vias, podendo ser exercida tanto judicial, quanto extrajudicialmente. Ao cobrar extrajudicialmente o devedor, o credor está, efetivamente, exercendo sua pretensão, ainda que fora do processo. 6. Se a pretensão é o poder de exigir o cumprimento da prestação, uma vez paralisada em razão da prescrição, não será mais possível exigir o referido comportamento do devedor, ou seja, não será mais possível cobrar a dívida. Logo, o reconhecimento da prescrição da pretensão impede tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial do débito. 7. Hipótese em que as instâncias ordinárias consignaram ser incontroversa a prescrição da pretensão do credor, devendo-se concluir pela impossibilidade de cobrança do débito, judicial ou extrajudicialmente, impondo-se a manutenção do acórdão recorrido. 8. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n. 2.088.100/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 23/10/2023.)  Nesse julgamento, no voto da relatora, destaco o seguinte trecho: O instituto tem como finalidade conferir certeza e estabilidade às relações jurídicas e sociais, buscando evitar a manutenção indefinida de situações jurídicas pendentes por lapsos temporais prolongados". Além disso, fez citação precisa de Pontes de Miranda que apresentou notável analogia ao comparar o direito sem pretensão ao arqueiro sem arco, in verbis: "1. DÍVIDA E INADIMPLEMENTO. - Quem deve está em posição de ter o dever de adimplir. Pode não estar obrigado a isso. Então, há o dever, e não há a obrigação. [...] O crédito é como o arqueiro, o homem que peleja com o arco. Pode estar armado e pode não estar. A arma é a pretensão. Crédito sem pretensão é crédito mutilado, arqueiro sem arco. Existe o crédito, porém não se pode exigir.  Quem deve e não é obrigado não pode ser constrangido a adimplir, nem sofre conseqüências do inadimplemento. Quem faz o que o arqueiro quer, embora esteja êle desarmado, é como o devedor, que não é obrigado, mas paga, presta.  (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, inadimplemento. Atualizado por Ruy Rosado de Aguiar Júnior e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 57-58) [g.n.]  Nota-se que, a ilustre ministra, ao buscar verificação de certeza e estabilidade às relações jurídicas e sociais, demonstrou a crucial importância de evitar a manutenção indefinida de situações jurídicas pendentes por longos períodos. Como notavelmente apontado por Pontes de Miranda, em sua analogia, o direito desprovido de pretensão lembra-se a um arqueiro desarmado, onde existe o crédito, mas não se pode exigir o cumprimento. Nessa perspectiva, compreendemos que, embora quem não deva ser obrigado a agir, a existência da pretensão é o que confere a força necessária para garantir a concretização das obrigações e a harmonia nas relações sociais. Portanto, o instituto em análise representa um alicerce essencial na manutenção do equilíbrio e no desenvolvimento nacional. Por fim destacamos importante despacho sob nr. 46904484/ 2019, do então Corregedor Geral da Justiça do Paraná, Desembargador Luiz Cezar Nicolau em consulta formulada por oficial de Registro de Imóveis daquele Estado sobre a possibilidade de cancelamento de averbação de hipoteca após o prazo de 30 (trinta) anos, por requerimento da parte interessada sem anuência do credor. Mas além do caso que não se refere exatamente ao tema aqui tratado, refere-se hierarquicamente a garantia real expressa e por conseguinte superior a cláusula de parcela, extrai-se o princípio da chamada usucapião da liberdade da garantia real. Ressalte-se ainda que, sendo o adjudicante um possuidor de justo título, está no mínimo protegido pelo prazo de 10 anos (art. 1242 CC) sem prejuízo do art. 206,  VIII - I -  § 5° do Código Civil prevista  prescrição em 5 anos.  Análise Econômica do Direito Frente aos Imóveis Irregulares  Pesquisa do Banco Internacional de Desenvolvimento - BID, juntamente com a Universidade de Campinas -UNICAMP, promovida em 2018 constatou que 67% do imóveis dos imóvis da região metropolitana daquela cidade não possuem escritura e por conseguinte seu valor de mercado é reduzido em no mínimo 30%. O economista peruano Hernando de Soto, foi pioneiro dos estudos da economia informal na América Latina, em seu livro "O Mistério do Capital" demostra o quanto significa a legalização imobiliária no PIB dos países, na medida que seus proprietários usam esses imóveis como fomento para alavancar seus pequenos negócios, seja para fins comerciais ou em garantia real. Sem querer esgotar esse tema, mas apenas pincelar algumas questões, a interseção entre a economia e o Direito tem sido mostrada cada vez mais relevante na contemporaneidade, especialmente quando se trata de propriedade imobiliária. De acordo com Posner (2007), a Análise Econômica do Direito (AED) fornece uma lente analítica valiosa para compreender as implicações financeiras e sociais das decisões legais, sendo especialmente aplicável quando se trata de questões relacionadas à propriedade e ao mercado imobiliário. Neste contexto, torna-se crucial investigar como a AED pode ser empregada na análise dos imóveis irregulares, considerando os incentivos, os custos e as externalidades associadas a esse tipo de propriedade. A presença de imóveis irregulares gera uma série de entraves sociais que afetam não apenas os proprietários, mas também a comunidade como um todo. Coase (1960) argumenta que, em um cenário de transações custosas, uma alocação eficiente de recursos pode ser alcançada por meio de negociações entre as partes envolvidas. No entanto, quando se trata de imóveis irregulares, a existência de direitos de propriedade mal definidos e a dificuldade de se obter seu título definitivo, mensurar os danos causados ??por isso tornam esse processo complexo.(Fischel, 1995). Em suma, considerar a forma exemplificativa dos meios para demonstrar e/ou presumir a quitação da obrigação no cenário da adjudicação compulsória extrajudicial, permitindo, portanto, a regularização do imóvel,  apresenta-se como forte ferramenta essencial para o  desenvolvimento nacional, um dos objetivos fundamentais da República art.3, II da CF/88.  Considerações finais  A presunção de quitação de dívida quando o tempo para cobrança judicial já ultrapassou o limite legal é uma questão que envolve princípios fundamentais do Direito. O brocárdio "Dormientibus Non Sucurrit Ius" e a legislação, tanto o Código Civil de 1916 quanto o Código Civil de 2002, fornecem diretrizes importantes para abordar esse assunto. A redução do prazo de prescrição introduzida pelo Novo Código Civil reflete uma mudança na perspectiva legal em relação à proteção dos direitos dos devedores, tornando o período para cobrança mais restrito. Diante do cenário atual, a presunção de quitação de dívida após a transcurso do prazo legal é uma possibilidade que deve ser considerada como outros fatos ou documentos frente ao instituto da adjudicação compulsória extrajudicial de acordo com a legislação vigente. Referências  DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2007. V 3.  GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2016. V 3.  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria das Obrigações e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. V 3.  BRASIL. Senádo Federal. Código civil brasileiro de 1916. Disponível aqui.  BRASIL. Senádo Federal. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Novo Código Civil). Disponível aqui .  COASE, Ronald H. T. O problema do custo social. Revista de Direito e Economia, v. 3, p. 1-44, 1960. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2019.  Fischel, William A. Tomadas regulatórias: direito, economia e política. Imprensa da Universidade de Harvard, 1995.  POSNER, Richard A. Análise Econômica do Direito Aspen Casebook series, 8th edition. Aspen Publishers, 2007.
Introdução A prescrição de dívidas é um tema crucial no âmbito do Direito, uma vez que diz respeito à proteção dos direitos tanto do devedor quanto do credor. "Dormientibus Non Sucurrit Ius" é um princípio que ressalta a necessidade de agir de maneira correta para garantir e exercer direitos. Diante disso, surge a questão de se, quando o prazo para cobrança judicial de uma dívida já expirou, pode-se presumir a quitação? O Princípio "Dormientibus Non Sucurrit Ius": O brocárdio "Dormientibus Non Sucurrit Ius" tem raízes antigas no Direito Romano e ressalta que o direito não auxilia aqueles que negligenciam o exercício de seus direitos. No contexto das dívidas, isso significa que a inércia do credor em buscar uma cobrança dentro do prazo prescrito pela lei pode levar à perda de seu direito. Da boa-fé objetiva: Ela é um princípio fundamental no direito contratual que exige honestidade e liderança nas relações contratuais. Duas facetas importantes relacionados a ele: a "supressão" e a "surreção", que abordam situações em que uma parte pode ou não alegar o descumprimento de uma obrigação devido à inação da outra parte. A "supressão" envolve a perda de um direito devido à inação prolongada de uma das partes, indicando que ela não pretende mais o cumprimento da obrigação. A "surreção", por outro lado, permite o surgimento de um direito após um período de ação reiterada, desde que as condições contratuais e a boa-fé sejam respeitadas. Como disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.338.432, em 2017, na Quarta Turma, "a supressio inibe o exercício de um direito, até então reconhecido, pelo seu não exercício. Por outro lado, e em direção oposta à supressio, mas com ela intimamente ligada, tem-se a teoria da surrectio, cujo desdobramento é a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, pela expectativa legitimamente despertada por ação ou comportamento reiterado" (STJ - REsp 1.338.432, 2017.). Em um contrato de compromisso de compra e venda de imóvel, se um comprador deixa de pagar por um longo período e o vendedor não toma medidas para cobrar, uma "supressão" pode ser aplicada. No entanto, se o vendedor cobrar antecipadamente as parcelas nesse novo prazo reduzido, sem o devedor reclamar, a "surreção" permite a retomada dos direitos de cobrança. Esses conceitos dependem das especificações de cada caso, e é crucial considerá-los ao analisar situações de inadimplência em contratos. Código Civil de 1916 e a Prescrição: O Código Civil de 1916, no seu artigo 177, estabelecia que a prescrição ocorreria em vinte anos, a menos que a lei determinasse um prazo menor. Isso fez com que, na ausência de um prazo especificado estipulado por outra lei, o credor pudesse buscar a cobrança no período de vinte anos. Após esse prazo, havia a possibilidade de se presumir a quitação da dívida. Novo Código Civil e Redução do Prazo: Com a entrada em vigor do Novo Código Civil em 2002, o prazo de prescrição foi reduzido para (cinco) 5 anos. Essa mudança reflete preocupação em equilibrar os interesses dos credores, evitando que o tempo excessivo prejudique a eficácia do direito de cobrança. Veja  esse acórdão que faz menção ao art. 206 § 5°  e o VIII  § 5°   TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv: AI XXXXX20803647001 MG: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - CONTRATO DE FINANCIAMENTO - PRESCRIÇÃO PARCIAL DAS PARCELAS - OBRIGAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. Tratando-se de cobrança de dívida líquida constante de instrumento particular, deve ser aplicado o prazo prescricional de 05 anos, nos termos do art. 206 , § 5º , inciso I , do Código Civil . A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, se tratando de obrigações de trato sucessivo, o prazo prescricional apenas tem início após a data de vencimento da última parcela do contrato, ainda que tenha sido convencionado o vencimento antecipado das prestações, na hipótese de inadimplemento. Estando diante de um contrato de prestação continuada, no qual há autonomia entre as parcelas cobradas e, por conseguinte, prestações autônomas a cada período, o credor somente poderá cobrar as parcelas que venceram dentro do quinquídio que antecede ao ajuizamento da demanda (TJMG, 2023, p. 1).  Obrigações Civis Transformadas em Obrigações Naturais  As obrigações civis são fundamentais no campo do direito, estabelecendo vínculos jurídicos entre as partes de um contrato ou imposições legais que obrigam-as o cumprimento de uma prestação. No entanto, em determinadas circunstâncias, essas obrigações podem sofrer uma transformação, assumindo a forma de obrigações naturais. O aspecto subjetivo das obrigações naturais é fundamental para compreender essa transformação. Quando uma obrigação civil se converte em obrigação natural, a exigibilidade judicial é perdida. Ou seja, o credor não pode obrigar legalmente o devedor a cumprir a prestação. Neste ponto, o sistema jurídico brasileiro não estar-se-ia à disposição eternamente do inerte. Muito embora, nesse caso, haverá essa mitigação da proteção jurídica ao jurisdicionado, não se pode negar que a obrigação será eterna no campo da ética e do inconsciente das partes envolvidas. Nada mais. Essa transformação ocorre muitas vezes devido à prescrição, decadência ou impossibilidade de cumprimento, fatores que tornam as obrigações não mais exigíveis perante o arcabouço jurídico. No entanto, o devedor, de forma voluntária e baseado no seu senso de justiça ou moral, ainda pode optar por cumprir a prestação. A situação descrita destaca a relevância da ética e da responsabilidade pessoal no contexto das obrigações naturais. Embora tais obrigações não possuam força legal vinculativa, os indivíduos têm a opção de cumprir essas obrigações em prol da sua própria integridade moral e respeito aos acordos previamente estabelecidos. Isso pode ser exemplificado em um cenário de compromisso de compra e venda, onde o credor opta por não fazer valer seus direitos legais dentro do prazo estipulado. Nesse contexto, a inércia do credor jamais pode ser alimento para o sistema jurídico permitir com que o proprietário do imóvel permaneça com ele irregular. Nos primeiros segmentos deste artigo, foram explorados aspectos fundamentais do universo jurídico, incluindo a aplicação do brocardo jurídico "dormientibus non Sucurrit Ius", a importância da boa-fé objetiva nas relações civis, a evolução da prescrição no código civil de 1916 para o código civil de 2002, e as nuances entre obrigações civis e naturais. Agora, ao avançarmos para a segunda parte, voltaremos nossa atenção à análise da adjudicação compulsória extrajudicial. Este tópico se torna crucial na compreensão das dinâmicas legais contemporâneas, trazendo questões específicas relacionadas à presunção de quitação na obrigação. Além disso, será ressaltado o posicionamento jurisprudencial atualizado sobre esse tema, proporcionando uma visão abrangente e informativa aos operadores do direito.
"Biguá" era o seu apelido, escrevente autorizado, depois oficial-maior de uma grande serventia de Registro de Imóveis de São Paulo, mas, acima de tudo, um querido e saudoso amigo. Durante muitos anos fomos parceiros na serventia onde fui escrevente. Ele me introduziu nos meandros de outro anexo - o de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas. Com ele aprendi a examinar estatutos, contratos sociais, a promover matrícula de jornais e periódicos, uma novidade para mim. Sentávamo-nos próximos um do outro na grande sala dos escreventes. Uns registravam, outros qualificavam, e eu, naquela altura, cuidava do registro civil de pessoas jurídicas, além de redigir os extratos que seriam publicados no caderno de ineditoriais do Diário Oficial de São Paulo. O cartório situava-se numa esquina movimentada da Marechal Deodoro. O ruído da rua penetrava pelas janelas que viviam escancaradas. Rumorejava a cidade que se industrializava nos inícios da década de 70. Era a trilha sonora daqueles tempos - além da Rádio Eldorado, que transmitia todos os dias os concertos do meio-dia. A azáfama das ruas se misturava ao ruído do balcão e das máquinas de escrever, tocadas pelos exímios datilógrafos da serventia. Dizem que Biguá ganhou um concurso da antiga TV Tupi em que se disputava o posto de melhor datilógrafo do Brasil. Ele venceu folgadamente; ninguém lhe excedia na precisão e agilidade pilotando as velhas Remington ou Olivetti. Certa feita, no que poderia ser considerado o antecedente das intragáveis "pegadinhas" que infestam as redes sociais, a mesma TV Tupi posicionou uma câmera indiscreta buscando flagrar os incautos numa situação constrangedora, quiçá vexatória. Uma loira escultural, vestida sumariamente de biquini, desfilava garbosamente pelo Viaduto do Chá. Era, de fato, um acontecimento incomum e Biguá naturalmente cairia na trampa. Deteve-se, olhos arregalados e boca aberta, fixava a imagem da atriz. Sua expressão seria apanhada pelas lentes das câmaras e distribuída pela TV a centenas de milhares de telespectadores. Cumpria-se o vaticínio de Andy Warhol: o nosso escrevente ficara famoso por 15 minutos. Biguá se lembraria do fato muitos anos depois, sempre rindo de si mesmo, o que era um traço admirável de sua personalidade. Certa feita, ao retornar do almoço, ele comprou alguns quilos de linguiça de um vendedor de rua. Chegando à sala dos escreventes, logo tratou de enfurnar a embrulho na gaveta de sua escrivaninha. O troço vinha embalado em papel pardo e ele não teve tempo de acondicionar melhor a coisa, atarantado pelas urgências do expediente. É preciso dizer que o cartório naqueles tempos andava sobrecarregado com os contratos do BNH, uma novidade que atulhava os escaninhos da serventia - para desespero dos escreventes e regozijo do oficial. Todavia, ele se esqueceria completamente da compra. Os dias sucediam-se, fazia calor, um odor desagradável começou lentamente a empestear o ambiente. Os escreventes abriam as janelas, colocavam-se sob os ventiladores, mas a catinga tornou-se nauseabunda. Bodão aventou que poderia ser um rato morto, e então buscávamos por uma ratazana infeliz que sucumbira espremida por um grande livro de registro. Outros aventavam problemas de esgoto, mas não havia instalações hidráulicas na sala de transcrições. A fetidez era de outra natureza e os escreventes passaram a se entreolhar com desconfiança. Não tardou e a situação ficaria insustentável. Os funcionários cogitavam parar de trabalhar. De repente, como se acordasse de um pesadelo, Biguá lembrou-se dos embutidos postos no fundo da gaveta. Estremeceu. Era imenso o asco que sentia, teria que manusear o papel untado que recobria o embutido já pútrido e fétido; isto lhe dava engulhos... Entretanto, não havia saída, Biguá teria que tomar uma atitude. Chegara o horário do almoço, todas saíram, com a sala já vazia, num lance rápido, porém estouvado, ele deixou cair o pacote, esparramando as linguiças pelo chão. Tudo terminaria entre muitas gargalhadas e algumas imprecações violentas. Biguá suportaria a ira dos escreventes enfurecidos e a zombaria que se prolongaria por longos anos. Ele seria escarnecido, mas sempre se lembrava do episódio com bom-humor, rindo de si mesmo. A figura do meu querido amigo me vem nitidamente à memória neste começo de ano. Devo-lhe tanto pelo que recebi desinteressadamente laborando sob o mesmo teto do antigo cartório. Ele me chamava carinhosamente de "German", outras vezes de "MacGyver", e quando ria, balançava a pança, fechava os seus olhinhos, cofiava o bigode ralo, divertia-se com as coisas simples, embora apreciasse o luxo, sempre bem-humorado, o velho Biguá. O referido é verdade e dou fé.
1. O procedimento de execução da dívida garantida por alienação fiduciária de bens móveis pode ser dividido em três atos: (a) consolidação da propriedade; (b) busca e apreensão, se bem não tiver sido entregue voluntariamente); c) ato de alienação extrajudicial do bem (capítulo 2). 2. Se houver pacto expresso no contrato, a consolidação da propriedade fiduciária poderá ocorrer extrajudicialmente, mediante procedimento perante o Cartório de Títulos e Documentos ou o Detran em que o veículo está licenciado (arts. 8º-B e 8º-C do decreto-lei 911/1969) (capítulos 3 e 6). 3. Cabe ao registrador exigir a apresentação do aviso de recebimento como condição de procedibilidade do rito extrajudicial de consolidação da propriedade (art. 8º-B, caput, decreto-lei 911/1969) (capítulo 3). 4. Apesar do texto do inciso II do § 2º do art. 8º-B do decreto-lei 911/1969, o devedor pode apresentar impugnação sem documento comprobatório, se este for desnecessário, a exemplo da alegação de prescrição (capítulo 3). 5. O registrador deverá, enquanto profissional do Direito (art. 3º, lei 8.935/1994), avaliar a verossimilhança jurídica da impugnação e negar a continuidade do procedimento de consolidação da propriedade no caso de plausibilidade jurídica (art. 8º-B, § 3º, do decreto-lei 911/1969). 6. A nota de rejeição da impugnação deve ser notificada ao devedor, a quem assistirá o direito a suscitar dúvida (arts. 188, 198 e 296, lei 6.015/1973; e art. 30, XIII, lei 8.935/1994). O registrador, porém, não sobrestará o procedimento, salvo decisão contrário do juiz competente para julgamento da dúvida. Entendimento pessoal à vista do silêncio legal (capítulo 3). 7. No caso de a impugnação do devedor ser parcial, o devedor deverá pagar o valor incontroverso, sob pena de prosseguimento do rito de consolidação (art. 8º-B, § 4º, decreto-lei 911/1969) (capítulo3). 8. O devedor tem o dever de entregar voluntariamente o bem no prazo de 20 dias que lhe foi assegurado para purgar a mora. Se não o fizer, estará sujeito a pagar multa de 5% (cinco por cento) do valor da dívida (art. 8º-B, § 11, do decreto-lei 911/1969) (capítulo 4). 9. Caso o devedor apresente impugnação, entendemos que não se aplicará a multa supracitada, pois é direito do devedor discutir juridicamente o cabimento da dívida. A multa só será devida após o prazo de 10 dias da notificação da nota de rejeição da impugnação pelo registrador, independentemente de eventual suscitação de dúvida (arts. 188, 198 e 296, lei6.015/1973; e art. 30, XIII, lei 8.935/1994) (capítulo 4). 10. No caso de entrega voluntária ou forçada do bem pelo devedor no curso dos ritos executivos da consolidação extrajudicial ou da busca e apreensão, o credor assume o risco: terá de pagar multa de 50% do valor da dívida e indenizar perdas e danos caso eventual impugnação extrajudicial ou judicial do devedor vier a prosperar (art. 8º-D do decreto-lei 911/1969) (capítulo 4). 11. Apesar do silêncio legal, a busca e apreensão extrajudicial só pode ocorrer se houver pacto expresso, por aplicação analógica do previsto para o procedimento extrajudicial de consolidação (art. 8º-B, caput, do Decreto-Lei nº 911/1969) (capítulo 5). 12. No curso do procedimento extrajudicial da busca e apreensão, não há falar em notificação do devedor para entregar voluntariamente o bem. Todavia, entendemos que, se tiver havido demora desarrazoada em relação ao desfecho do anterior procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade em nome da boa-fé objetiva. Por equidade, consideramos que o prazo de 30 dias após a conclusão definitiva do procedimento de consolidação da propriedade (inclusive com julgamento definitivo de eventual dúvida registral) seria um prazo razoável. Convém regulamentação do CNJ (capítulo 5). 13. O registrador, após realizar um juízo de adequação jurídica do pedido de busca e apreensão (qualificação registral), expede a certidão de busca e apreensão extrajudicial do bem e insere, nos sistemas eletrônicos disponíveis, comando de restrição de circulação e de transferência do bem (art. 8º-C, § 2º, decreto-lei 911/1969) (capítulo 5). 14. O ato de apreensão só poderá ser realizado pela autoridade policial competente, embora o credor possa, por si ou por meio de empresa especializada, realizar pesquisas para identificação do bem (capítulo 5). 15. Feita a apreensão pela autoridade policial, entendemos que - apesar do silêncio legal - o oficial deverá ser comunicado para atualização da informação nos autos do procedimento extrajudicial de busca e apreensão. Convém regulamentação do CNJ (capítulo 5). 16. O credor, apresentando a certidão de busca e apreensão extrajudicial do bem (que foi expedido pelo registrador no início do procedimento), assumir a posse plena do bem. A autoridade policial tem o dever de lhe entregar a coisa. Mas, em nome do devido processo legal, entendemos que esse fato precisa ser imediatamente comunicado ao RTD para atualização dos autos (capítulo 5). 17. De posse do bem, o credor poderá promover a venda extrajudicial da coisa, à semelhança do que já no rito executivo judicial. Ocorrida a venda, o credor deverá comunicar o RTD para os lançamentos pertinentes (art. 8º-C, § 7º, do decreto-lei 911/1969) (capítulo 5). 18. Se o bem alienado fiduciariamente for veículo, os ritos extrajudiciais da consolidação da propriedade e da busca e apreensão poderão acontecer tanto perante o RTD quanto perante o Detran em que o veículo está licenciado (art. 8º-C, § 9º, decreto-lei 911/1969). A escolha é do credor (capítulo 6). 19. O RTD e, se for o caso, o Detran precisam disponibilizar, na internet, um meio de busca dos autos dos procedimentos extrajudiciais para consulta ao devedor. E têm de disponibilizar também meios eletrônicos de peticionamento. O espelho é a publicidade dada pelos sistemas de processos judiciais eletrônicos mantidos pelos Tribunais. Convém regulamentação do CNJ e do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) nesse sentido (capítulo 7). 20. O rito extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária mobiliária e de busca e apreensão não depende de representação de advogado, à semelhança do rito executivo extrajudicial de imóveis. Todavia, entendemos que o devedor tem direito à indenização por honorários contratuais se triunfar em suas insurgências feitas mediante defesa técnica (capítulo 8). 21. O procedimento extrajudicial da consolidação da propriedade e da busca e apreensão no caso de alienação fiduciária em garantia de bens móveis é constitucional (capítulo 9). Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Flauzilino, um homem além de seu tempo

Quando nos referimos a homens extraordinários, singulares, quando pensamos em profissionais que se destacam entre pares, é respeitado pela comunidade de juristas a que pertence, dizemos que são "homens além de seu tempo". No que respeita ao Registro de Imóveis brasileiro, quantos podem ser considerados "homens além de seu tempo"? José Tomás Nabuco de Araújo, Lisipo Garcia, Waldemar Loureiro, Serpa Lopes, Afrânio de Carvalho, Filadelfo Azevedo, Dídimo Agapito da Veiga, Elvino Silva Filho, Jether Sottano. São nomes que despontam nesta galáxia de luminares, homens a quem muito devemos por manter viva a instituição do Registro de Imóveis brasileiro, transformando-o ao longo do tempo, renovando-o, permitindo que assimilasse novas demandas e proporcionasse respostas adequadas às exigências do tempo. Todos estes grandes homens e profissionais citados já se foram. Deixaram sua marca. Transformaram e foram transformados, numa bela obra que hoje todos nós apreciamos. Entretanto, se é possível reverenciar cada um deles, é necessário, igualmente, render nossas homenagens a quem se acha tão próximo de nós. Falo especificamente de Flauzilino Araújo dos Santos, a quem podemos qualificar, com segurança, de um "homem além do seu tempo". Sou uma espécie de testemunha qualificada de seu percurso. Viemos para a Capital de São Paulo juntos, impulsionados pelo mesmo concurso, tocados pelos mesmos ideais, embalados pelos mesmos sonhos. Flauzilino, tanto quanto eu, somos oriundos de famílias modestas, mas tínhamos um grande sonho: fomos auxiliares, depois escreventes, mas queríamos chegar ao oficialato registral. Este sonho realizaríamos. Mal começava a década de 2000 e logo constatávamos a que vieram os novos registradores concursados. No caso de Flauzilino, tocou-lhe dar início, ainda em 2006, a um grande processo de transformação do Registro de Imóveis brasileiro, impulso original que ainda se desenvolve e robustece na sucessão de leis, decretos, atos normativos etc. Nascia na Capital de São Paulo o que seria tempos depois chamado de Registro de Imóveis Eletrônico brasileiro pelas sucessivas leis federais. Olhando em retrospectiva, facilmente se pode constatar que os homens que deram vida e dinamizaram os processos regenerativos da vetusta instituição registral chegaram até aqui e realizam, agora, a entrega desse maravilhoso legado a quem haverá de dar seguimento ao virtuoso processo de transformação. Flauzilino à cabeça, Marcelo Berthe na Vara de Registros Públicos da Capital (depois no CNJ), acolhendo e pavimentando a via regulamentar para que as mudanças viessem a lume, eu secretariando e dando apoio doutrinário às ideias geniais do grande Flauzilino, posso dizer, sem medo de errar, que pudemos dar início ao grande processo de renovação do sistema registral pátrio. É verdade que, ao longo do tempo, outros nomes se aliaram. Cito de memória: Antônio Carlos Alves Braga Jr., Manuel Matos, Volnys Bernal, Adriana Jacoto Unger, Nataly Cruz. uma plêiade de profissionais devotados que puderam provar a viabilidade técnica de um projeto essencialmente institucional, um sistema que respeitava as matrizes do Registro de Imóveis brasileiro. Não foi uma trajetória tranquila, nem um percurso livre de acidentes e de percalços. Pelo contrário. Para que o Ofício Eletrônico, depois a Penhora Online, o SREI, o ONR, o FIC, e tantos outros projetos inovadores pudessem vir à luz foi necessário grandes esforços, vencer obstáculos, enfrentar interesses poderosos, lidar com a incompreensão e a inércia de uma classe acomodada e infensa a mudanças. Posso dizer, com segurança, que nada se fez nos últimos 20 anos que não tenha a marca do espírito e a inteligência brilhantes de Flauzilino Araújo dos Santos. Flauzilino é um "homem além do seu tempo". É um visionário. Captou os sinais de mudança e pôs-se à obra. Assentado sobre os ombros de gigantes, anunciou, para todos os que dormitavam, que despontava a aurora de um novo tempo para o Registro de Imóveis brasileiro. Caro Flauzilino. Penso que não falo estas palavras solitariamente. Certamente centenas de colegas, registradores e registradoras, assinariam esta carta de reconhecimento e agradecimento pela sua grande obra. Muito agradecido. Todos nós reconhecemos e agradecemos o seu grande feito.
Os velhos cartórios eram feitos à imagem e semelhança dos escritórios de mosteiros medievais. Dobrados sobre estações de carvalho, dispostas numa grande sala, deitávamos os pesados livros de registro sobre as escrivaninhas e neles inscrevíamos lentamente os títulos protocolados. O tempo corria vagarosamente, como o pôr do sol sob as persianas do velho casarão do cartório. Diante de nossos olhos atentos passavam inventários, partilhas, hipotecas, penhoras, arrestos, arrematações... Quantos dramas humanos nos revelavam, quantas alegrias e tristezas, tantas chegadas, tantas partidas... lances da vida representados em rios de símbolos e de sentidos. Sentíamo-nos partícipes da grande família humana, retratávamos os lances do destino inscrevendo-os nos pesados livros de registro. Cabia-nos recolher e coligir escrupulosamente os elementos de transcendência real para plasmar os atos de registro. Não se enganem, senhoras e senhores, o registro era um ato de criação. Não se pense que os antigos livros eram de mera transcrição, cópia literal, verbo ad verbum, das escrituras públicas. Nunca fomos meros amanuenses; realizávamos transcrições das transmissões, não reproduções literais de títulos e documentos. Éramos de certa forma livres, mas sempre advertidos pela tradição e pelo decano do ofício: "a liberdade é consentimento numa ordem". Lavrávamos os atos de modo pessoal, mas em estrita observância aos ditames da praxe multissecular. Sou capaz, ainda hoje, de reconhecer o estilo pessoal de cada um: a elegante caligrafia do Sr. Andrônico, a escrita robusta e precisa do Bepo, elas desfilavam garbosamente em contraste com os garranchos do Bodão. Às vezes nos distraíamos junto à pia do scriptorium, desmontando e lavando a caneta tinteiro. A tinta se esvaía na água corrente e carregava consigo nossas angústias e tristezas. Outras vezes, substituíamos a pena cansada e viciada, deixando que o profundo azul-royal da tinta Quink tingisse os dedos. Depois de tudo, era preciso desbastá-la, buscando o exato eixo para que deslizasse suavemente sobre o papel. As penas, assim como os escreventes, se tornam melhores com a lavratura diuturna. A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, dócil e gentilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores. Outras vezes nos dedicávamos à árdua tarefa de decifrar a escrita irregular de um velho escrevente alcoólatra. Era preciso adivinhar o sentido do texto a partir dos garranchos e garatujas que se tornavam tanto mais esotéricos quanto mais avançada era a hora do dia. Pelas manhãs, sua letrinha serifada era nítida e elegante; já no começo da tarde, porém, com o raciocínio enturvado pelo álcool, o velho escriba derrapava, transbordava as margens tracejadas de linhas e colunas rubras e avançava sobre os vastos domínios que se acham à margem - o território livre das averbações. Hic sunt leones! O velho escrevente, no meio da tarde, já não se sustentava e esboroava feito um meteoro torpe sobre o livro. Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei. lavrei a verba elegante da praxe cartorária em livros de registros manuscritos. Tenho dito aos meus colegas de ofício: "vivemos uma espécie de crepúsculo do ofício registral". Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. "Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro", todos sabemos - especialmente nós outros, os escribas, que lavramos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens. Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra perita que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso. Todo o referido é verdade e dou fé.
As condições são elementos acidentais dos negócios jurídicos consistentes em estipulações que sujeitam os efeitos deste negócio - ou a sua resolução - a um evento futuro e incerto. Sendo elementos acidentais, não têm autonomia, com o que devem sempre integrar um negócio jurídico. Tratando-se de negócio que tenha por objeto bens imóveis, as condições que o subordinem ingressarão no Registro de Imóveis juntamente com o título que transmitir ou onerar o bem. Com isso, qualquer que seja sua modalidade - suspensiva ou resolutiva1 - não será objeto de assento autônomo, mas, ao contrário, deverá ser mencionada no corpo do próprio ato que registra ou averba o título que a contem. O implemento da condição - ou seja, a ocorrência do evento futuro e incerto - importará efeitos de suma relevância para o negócio, que se projetam no próprio direito real: sendo suspensiva a condição, a ocorrência do evento implicará a aquisição da propriedade ou constituição do direito real, acerca do qual seu agora titular anteriormente somente tinha uma expectativa; por outro lado, sendo resolutiva, implicará a sua extinção. Em qualquer dos dois casos o resultado no Registro de Imóveis será a prática de um ato de averbação, destacando-se que em se tratando de condição resolutiva, a averbação terá por conteúdo o cancelamento do registro prejudicado. Já Serpa Lopes2 reconhecia que estes fatos poderiam ingressar no Registro de Imóveis com base no requerimento unânime das partes; ou, ainda, mediante requerimento unilateral, desde que acompanhado de prova documental do consentimento de todos - por exemplo, em uma cláusula resolutiva vinculada ao pagamento do preço (o antigo "pacto comissório", do Código Civil de 1916), caberia ao termo de quitação este mister. Tratando-se de requerimento unilateral solicitando a averbação do implemento de condição resolutiva, esta prova documental faria mesmo as vezes do "documento hábil" de que trata o artigo 250, III, da lei 6.015/1973. Por outro lado, ainda segundo Serpa Lopes, não sendo possível obter este consenso, quer fosse ele exarado no próprio requerimento, quer fosse em um documento complementar, não haveria outro meio de se confirmar o negócio, na condição suspensiva, ou de se cancelar o registro, na condição resolutiva, fora da via judicial. Há, todavia, certos fatos jurídicos cuja prova se faz com documentos autênticos e que gozam de presunções legais. Tenha-se, por exemplo, o óbito. Consistindo a condição no falecimento de certa pessoa antes do adquirente de um bem, demonstrada pela respectiva certidão de óbito; ou, ainda, pela realização de uma construção no terreno, demonstrada pelo respectivo habite-se, não haveria nenhuma razoabilidade em se exigir um processo judicial para verificação do implemento da condição. Nessa toada, a lei 14.711/2023, ao inserir na lei 8.935/1994 o Artigo 7º-A, I, tornou ainda mais abrangente o escopo de eventos futuros e incertos que podem ser carreados ao Registro de Imóveis sem necessidade de recurso ao Poder Judiciário. Referido dispositivo atribui ao tabelião de notas a certificação do implemento ou frustração de condições apostas a negócios jurídicos, com o que será possível a produção de um documento autêntico - uma ata notarial - que ateste os fatos que, nos termos do negócio, estariam destinados a subordinar sua eficácia. Assim, havendo, por exemplo, condição suspensiva, tornou-se possível a prática do ato da averbação que confirma a eficácia do ato com base na apresentação a registro e qualificação positiva da respectiva ata notarial; por outro lado, havendo condição resolutiva, a ata foi agora erigida em "documento hábil" a autorizar o cancelamento a requerimento do interessado, nos termos do Artigo 250, III, da lei 6.015/1973. Não há nisso grande novidade: em já citado trabalho publicado em 2016 já havíamos defendido a conveniência da adoção da ata notarial em casos semelhantes3. Observe-se que na Espanha desde ao menos os anos 1940 - com base na Resolução de 10 de Janeiro de 1944, da Direção Geral dos Registros e Notariado - já se vinha admitindo o ingresso no registro do implemento das condições até mesmo pela notoriedade do fato em questão4. Mais recentemente, a Resolução de 25 de Janeiro de 2010 da mesma Direção reiterou o seu entendimento, acrescentando ainda o ingresso por documento público que dê fé da ocorrência do fato.  A delimitação dos fatos jurídicos que podem ser, por essa via, levados ao Registro de Imóveis é determinado pelas próprias limitações da ata notarial. Podem ser constatados fatos objetivamente verificáveis, constatáveis ictu oculi pelo notário. Recorde-se que não cabe ao notário realizar juízo de valor sobre os fatos por ele apreendidos5. Assim, havendo necessidade de oitiva de testemunhas, elaboração de laudos periciais, ou de qualquer outro elemento que complemente aquilo que o notário capta com seus sentidos, inafastável será o recurso à via judicial, onde a ata poderá ser utilizada como meio de prova, nos termos do Artigo 384 do Código de Processo Civil. Em observância do princípio da legalidade, tendo a ata notarial conteúdo que ultrapasse estes limites, deverá o registrador qualifica-la negativamente, exigindo o consentimento da outra parte, ou decisão judicial. A tramitação no registro de imóveis segue o procedimento geral: protocolo, qualificação e averbação (em caso de qualificação positiva) ou devolução (em caso de qualificação negativa). É importante se ter claro que nas condições resolutivas a ocorrência do evento futuro e incerto implica a resolução de pleno direito do negócio, independente de interpelação, ou até mesmo do conhecimento das partes6. Dessa maneira, tendo sido o fato objetivamente constatado, o ingresso da resolução no Registro de Imóveis independerá de anuência, ou mesmo da interpelação, da parte prejudicada. Destaque-se que diferentemente do que fez com a Execução Extrajudicial da Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Móveis, com a Execução Extrajudicial dos Créditos Garantidos por Hipoteca, ou com a Execução Extrajudicial de Garantia Imobiliária com Concurso de Credores, a lei 14.711/2023 não previu qualquer tipo de procedimento notificatório, ou mesmo contraditório abreviado, para a constatação do implemento da condição pelo notário, ou para seu acolhimento pelo Registro de Imóveis. Em conclusão, tem-se com a novidade mais um capítulo no caminho da desjudicialização que vem sendo empreendida no Direito Brasileiro. Oxalá sirva como meio de facilitação da vida das pessoas e correção de injustiças. __________ 1 A respeito do ingresso no Registro de Imóveis das condições em si, em especial das condições suspensivas, cf. Ivan Jacopetti do Lago, As Condições Suspensivas e o Registro de Imóveis, in, Boletim IRIB em Revista (354) (2016). 2 Cf. Miguel Maria de Serpa Lopes, Tratado dos Registros Públicos, Vol. III, 4a Ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, p, 375. 3 cf. Ivan Jacopetti do Lago, As Condições Suspensivas e o Registro de Imóveis, in, Boletim IRIB em Revista (354) (2016). 4 Cf. Jose Maria Chico y Ortiz, Estudios Sobre Derecho Hipotecario, Vol. I, 2ª Ed., Zaragoza, Marcial Pons, 1989, p. 483. 5 Cf. Leonardo Brandelli, Teoria Geral do Direito Notarial, 6 Cf. Micaela Barros Barcelos Fernandes, Distinção Entre a Condição Resolutiva e a Cláusula Resolutiva Expressa: Repercussões na Falência e na Recuperação Judicial, in, Revista Brasileira de Direito Civil (20) (2019).
O só evocar o seu nome, logo me vem à memória a figura de um homem vigoroso, boina displicentemente jogada sobre a calva, sorriso cativante e dentes perfeitos e alinhados. Francisco Rodrigues da Silva foi o responsável pela faxina da serventia à época em que eu era um mero auxiliar de Cartório. Sempre chegava quando todos já se tinham retirado. Abria a porta pantográfica, acendia as luzes, e logo se punha a faxinar o velho Cartório de Registro de Imóveis. Ouvia um radinho de pilha que depositava cuidadosamente sobre os arquivos enquanto varria as salas, retirava as bitucas do cinzeiro, esvaziava os papeis do "cesto ofício", espanava e lustrava os móveis. À noite tudo se acalmava. Eu ficava até mais tarde, o silêncio era convidativo, sentia conforto na solidão. Os livros se fechavam, as máquinas que matraqueavam as certidões negativas de ônus e alienações silenciavam, cessava a conversa fiada dos escreventes em disputa com o burburinho no balcão. Chicão vinha restituir a ordem após um dia inteiro de inscrições, averbações, transcrições e palrações frouxas e irrelevantes que reverberavam nas paredes cinzas do cartório. Quando me encontrava com o Francisco, sempre falávamos de amenidades, ríamos de qualquer bobagem, éramos felizes, alegres, despreocupados. Ele jamais se detinha nas suas tarefas e quando me via, logo abria um sorriso cativante, tomava a vassoura e parecia que dançava ao som que brotava do pequeno Spica posto sobre o velho fichário União. Não sei dizer quando começou a trabalhar no Cartório. Pergunto-me: quantos anos ele teria quando iniciei a minha jornada na lida cartorária? Hoje faço as contas, 40, 42? Não sei dizer... Parecia-me que sempre estivera ali, natural como a ranzinzice dos velhos escreventes, a empáfia do Oficial Maior empertigado com sua gravata esmeralda. Era tão antigo quanto as pesadas Remington, os livros de transcrição e o Protocolo - livro primaz, chave de todas as chaves do cartório. Com o passar do tempo, o infatigável Chicão começava a arquear. Pesava-lhe a idade e a faina diuturna de muitos anos, mas algo mais o debilitava. Começamos a perceber que bebia todas as noites. Chegava ao Cartório, abria as portas e janelas, e logo buscava entre os apetrechos de limpeza a garrafa de aguardente. No início era só um trago; com o tempo, vieram outros, e outros... Quando terminava a faxina, já perto da meia-noite, estava embriagado. Saia errando, arrastando o chinelo de dedo, a boina posta de lado para equilibrar-se, o radinho Spica chiava denunciando onde se achava o cativante Chicão na penumbra do cartório. Ao sair, deixava as salas limpas e vazias e o silêncio reinava no velho casarão do cartório. Chegou um tempo em que eu me preocupava com o velho Chicão. Certa feita, ele necessitou licenciar-se para tratamento de saúde. Cuidei de elaborar o pedido, protocolei-o na Corregedoria Geral de Justiça. Sua condição física deteriorava-se a olhos vistos e uma certa demência se pronunciava. Chicão já não sorria, não dançava, nem mesmo bebia, vivia atormentado por fantasmas. Primeiro foi levado a um sanatório próximo da Serra, onde ficou internado vários dias. O Oficial titular, um homem bom, justo e generoso, lhe foi visitar. À saída sussurrou de modo sombrio: - "sofre o pobre homem; está enfermo e obnubilado". Nunca tinha ouvido a expressão - obnubilação. A palavra me causou intuições indefiníveis e sombrias. Os dias foram passando, Chicão renovava as licenças à medida que a saúde se agravava. A senilidade tomava conta. Um dia teve que ser internado num hospital psiquiátrico. Era um homem só, não tinha parentes, não tinha filhos, eu nada sabia de seus pais ou irmãos, ninguém podia cuidar do velho funcionário. O que fazer? Os escreventes então se cotizaram e resolveram interná-lo num nosocômio psiquiátrico. Avisei o Oficial e partimos em silêncio, eu e o velho Chicão, rumo a uma conhecida instituição do interior. Deixei-o  sob os cuidados de enfermeiros. Quando saia, virei-me e ainda vi que me lançava um olhar melancólico, tingido de triste resignação. Dirigi de volta a São Paulo imerso em pensamentos sombrios. De repente, um grande e belo pássaro chocou-se com o para-brisa do automóvel. Brum. O baque surdo me assustou. Pude ver pelo retrovisor que o pássaro jazia na pista, inerte. O coração disparou, a saliva secou, uma intuição sombria tomou o meu coração. A verdade é que jamais pude reencontrar o velho Chicão. Não nos despedimos, não pudemos trocar um aperto de mãos, não pude dar um abraço naquele homem bom, alegre e sincero. Parece que sua nobre missão terá sido limpar o mundo de tanta impureza e sujidades. Hoje penso que o destino nos conduziu como náufragos às portas de um velho cartório. Ali nos encontramos entre livros e fichas, carimbos e penas, vassouras e sovelas. Nossa biografia, encardida de poeira, cerziu-se lentamente no tempo, bordeou-se da beleza e simplicidade de todas as histórias humanas verdadeiras. Hoje Chicão é uma linda estrela solitária que se pode ver nas claras e límpidas madrugadas de inverno. Quem tem olhos para ver, que veja. O referido é verdade e dou fé.
O objetivo deste trabalho é discutir se é possível registrar a escritura de venda/compra com decesso do vendedor, antes de registrá-la em nome do comprador. Discute-se também os critérios de pagamento e dos seus efeitos no cartório de imóveis, à luz das normas materiais e adjetivas, para saber o limite eficacial daquela escritura, que dispensa o inventário/partilha. A prática notarial e registral é um verdadeiro estudo dinâmico do direito, quebrando as paredes estáticas do estudo acadêmico, inspirado na música Another Brick in the Wall, da banda Pink Floyd, vez que as normas, em si, não ajudam a resolver um nó górdio factual apresentado no balcão do cartório, a exemplo da temática deste trabalho. Após uma pesquisa, descobriu-se que, conquanto não seja um assunto recente, não há pacificação a seu respeito. Contudo, a compreensão dos lindes dessa pergunta, ajuda a resolver a sua própria problemática. Pois bem, é possível registrar escritura pública de venda/compra com vendedor falecido sem inventário/partilha? Em tese, sim, mas tudo depende da forma de pagamento, se pro soluto ou pro solvendo, além de outros requisitos desvelados na prática notarial/registral. Por isso, esse artigo será apenas uma diretriz hermenêutica aos colegas tabeliães, oficiais de registro, advogados, servidores e, inclusive, às pessoas que não trabalham com o direito notarial e registral. Inicialmente, é importante esclarecer a diferença entre os pagamentos pro soluto e pro solvendo. Se constar o pro soluto no ato notarial (escritura pública), implica uma quitação automática débito, ainda que o credor não receba um centavo. Por outro lado, se constar o pagamento pro solvendo, haverá quitação na data combinada entre as partes (alienante e adquirente). O enunciado 655 do IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), que diz o seguinte: "nos casos do art. 684 do Código Civil, ocorrendo a morte do mandante, o mandatário poderá assinar escrituras de transmissão ou aquisição de bens para a conclusão de negócios jurídicos que tiveram a quitação enquanto vivo o mandante" (grifos nosso). Embora extinto o mandato pela morte do mandante (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz as procurações públicas para finalizar "os negócios pendentes" (arts. 690 e 691, ambos do Código Civil de 2002), desde que o pagamento seja pro soluto, ou seja, negócios jurídicos quitados pelo mandante ainda vivo. Ressalte-se, portanto, que as referidas normas atribuem ultratividade à representação de mandato extinto1. A finalização de negócios pendentes dar-se-á porque a dívida foi paga integralmente, ensejando o direito à quitação regular por escrito2, ou por meio equivalente, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida3, com assinatura manual ou eletrônica qualificada4. A quitação é um ato jurídico unilateral e receptício porque é escrito apenas pelo credor, mas precisa ser recebido pelo devedor. A finalidade é comprovar um fato, representativo da extinção de relação obrigacional de crédito/débito, e não um meio de declaração de vontade5, a qual deverá, de fato, constar em uma escritura pública, ou uma procuração pública, ou uma promessa de compra e venda etc. Então, quando o vendedor não cumpre em vida sua obrigação de assinar escritura de venda/compra, no qual consta a extinção da relação jurídica obrigacional, deverá ser cumprido pelos herdeiros, sob pena de configurar violação ao direito subjetivo à quitação regular (art. 319 do Código Civil) e aos deveres colaterais do contrato (art. 422 do Código Civil). Aliás, a obrigação pré-constituída de transmissão imobiliária, consubstanciada em um ato notarial, será vista como um encargo da herança, e não como obrigação transmitida aos herdeiros na abertura da sucessão, nos moldes do entendimento pacificado sobre "a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor", nos termos do art. 1.700, do Código Civil de 2002 (cf. também no art. 1.796 do Código Civil de 1916 e o art. 23 da lei 6.515/77)6. Em termos processuais, esse encargo da herança corresponde ao pagamento de meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), embora seja mais lembrado o testamento. O "encargo da herança" fará parte dos deveres do inventariante, o qual o representa ativa e passivamente o espólio7, e não os herdeiros. Por isso, não será preciso uma cláusula específica na escritura pública ou termo judicial de nomeação de inventariante, autorizando-o transferir o imóvel vendido pelo de cujus ainda vivo (e não registrado no cartório de imóveis), uma vez que o dito imóvel faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), e não do quinhão hereditário (art. 651, inciso IV, do CPC/2015), objeto de partilha judicial/extrajudicial. Pois bem, essa mesma lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF também cabe às escrituras públicas de venda/compra, com pagamento pro solvendo, quando falece o vendedor, antes de o comprador registrá-la no cartório de imóvel. Neste caso, também há transferência do encargo da herança (responsabilidade) aos herdeiros, permitindo o adquirente registrar aquele ato notarial (escritura pública), pois faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015). Em termos práticos, se na escritura constar a quitação expressa do vendedor, será possível o registro no cartório de imóveis. D'outro lado, se constar pagamento parcelado, com ou sem cláusula resolutiva (art. 477 do CC/02), também parece possível o registro, mas com averbação dessa pendência de pagamento parcelado. Embora com outras argumentações, há precedentes antigos do STF que permitem o registro de escritura pública de venda/compra com o alienante falecido (RE 18394, 2ª turma, relator para o acórdão Min. Afrânio Costa - convocado, publicado em 20/09/1951; e RE 31217, 1ª turma, rel. Min. Barros Barreto, publicado em 26/07/1956). Contudo, o problema ocorre exatamente na ausência da quitação, afastando a lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, razão pela qual será necessário analisar cum grano salis. No tocante ao pagamento pro solvendo, sem quitação do vendedor e nem cláusula resolutiva (art. 477 do Código Civil) na escritura pública, caberá uma das seguintes situações: i) apresentar ao cartório de imóvel uma quitação emitida pelo inventariante nomeado (art. 617 do CPC/2015), desde que pagas todas as parcelas ao credor ainda vivo, transmite-se o encargo aos herdeiros, no momento da abertura da sucessão, em razão de o direito subjetivo à quitação regular da dívida; ou ii) se não houve pagamento de todas as parcelas ao credor ainda vivo, não cabe ao inventariante emitir quitação, salvante autorização judicial (art. 642 do CPC/2015), porque o bem vendido (e não registrado) transfere-se ao espólio; e por fim, iii) embora recebidos os pagamentos ainda vivo o credor, e caso o administrador nomeado não forneça quitação ao devedor, aplicar-se-á o rito da adjudicação compulsória8. Assim, caberá uma notificação extrajudicial ao inventariante nomeado9 para constituição de mora10. Transcorrendo o prazo de 15 dias úteis, sem qualquer tipo de ilicitude, fraude à lei ou simulação11, o comprador poderia utilizar o procedimento de adjudicação compulsória, sem necessidade de inventário/partilha. No tocante ao procedimento de adjudicação compulsória, tudo indica possível a sua utilização na escritura pública de venda/compra, com o decesso do vendedor antes de registro em nome do comprador, e desde que não tenha direito de arrependimento, em razão do art. 440-B do Provimento 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra, o qual permite "dar fundamento à adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta". Em suma, essa norma do CNJ permite a qualquer ato ou negócio jurídico, a exemplo da escritura pública de venda, que também implica transferência imobiliária, nos moldes da promessa de compra e venda, seja feito o cumprimento do encargo da herança, por meio de adjudicação compulsória. Portanto, na esteira do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, é viável o ingresso de escritura pública de venda/compra com pagamento pro soluto, após o falecimento do vendedor, no fólio real do cartório de imóveis, porque se trata de um encargo da herança, referente à meação disponível, excluída do espólio para formação do quinhão hereditário, sendo este objeto de partilha entre os herdeiros. Do contrário, se o pagamento da referida escritura for pro solvendo, sem cláusula resolutiva expressa e nem quitação do credor ainda vivo, não será aplicado literalmente a lógica daquele enunciado, devendo, ao revés, verificar as três situações mencionadas neste trabalho: a primeira será um encargo da herança a ser cumprido pelo inventariante, quando tiver todos os pagamentos sem quitação; a segunda não caberá quitação pelo inventariante, exceto com autorização judicial, quando não tiver todos pagamento; e por fim, a terceira será cabível a adjudicação compulsória extrajudicial, quando recalcitrante o inventariante a emitir quitação, embora todos os pagamentos recebidos pelo credor ainda vivo. __________ 1 Por outro lado, não olvide que, em caso de morte de uma das partes (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz a representação e o próprio mandato na procuração em causa própria (art. 685 do Código Civil). Para estudo dessa matéria, ver RAMOS JÚNIOR, Lourival da Silva. Procuração em causa própria e seus efeitos imobiliário e fiscal. Revista de direito imobiliário, julho-dezembro/2012, p. 151-176. Para uma leitura resumida, ver o artigo publicado no site Migalhas, de autoria do Prof. Carlos Eduardo Elias de Oliveira, intitulado A procuração "em causa própria" como forma indireta de alienação de bens: ITBI e registro de imóveis, datado de 7 de julho de 2021, disponível aqui. Por fim, também há jurisprudência do STJ, a exemplo do Resp n.º 1.962.366-DF, 3ª turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 02/03/2023. 2 Cf. o arts. 319 e 320, ambos do Código Civil. 3 Cf. o parágrafo único do art. 320 do Código Civil. 4 Cf. o art. 5º, § 2º, inciso IV, da Lei Federal n.º 14.063/2020, c/c o art. 219 do Código Civil. 5 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p. 193. 6 Oliveira, Euclides de. Alimentos: transmissão da obrigação aos herdeiros. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023; e GALLOTI, Isabel. O novo código civil e a transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023. 7 ASSIS, Araken de. Inventário e partilha. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 67 ("O inventariante não representa individualmente os herdeiros e os legatários.") e p. 77 ("O inventariante representará o espólio em juízo, ativa e passivamente" (art. 75, VII, c/c art. 618, I), (...). Quer dizer, a lei confere capacidade processual para o inventariante representar a universalidade da herança, assumindo uma posição neutra, ou seja, atua em favor do patrimônio do qual se encontra encarregado, e não em nome do próprio ou alheio. A figura da representação não calha propriamente ao inventariante: atua como parte de ofício.". 8 Cf. o art. 216-B da Lei n.º 6.015/73 c/c o Provimento n.º 149/2023, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). 9 Cf. o art. 617 do CPC/2015 c/c o art. 216, § 1º, inciso II, da Lei n.º 6.015/73, alterada pela Lei n.º 14.383/2022 10 Cf. o art. 440-G, § 6º, inciso VII, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra. 11 art. 440-I, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra.
Seu Vitinho era o Oficial-Maior do Registro de Imóveis da comarca. Era um homem de meia idade, atarracado, nervoso, mal cabia no terno cinza surrado e camisas puídas e amareladas. A gravata era verde esmeralda, destoava do conjunto, mas sempre lhe pareceu que o complemento o tornava ainda maior. Afinal, ele era o Oficial "Maior" da Serventia. Já Seu João Arconte era o Oficial do Registro de Imóveis. Homem bondoso, tímido, de poucas palavras. Não tinha filhos. Era casado com Dona Rutinha Arconte, de quem se dizia ter sido escrevente autorizada em priscas eras. Era uma mulher de "boa família e fina estampa", diziam os que um dia a conheceram. Com sorte se podia encontrar sua letrinha miúda e caprichada perenizada nalgum livro de transcrição das transmissões. Os mais velhos juravam que se devia a ela o fato de o Cartório jamais contratar mulheres. Seu João Arconte havia acedido ao cargo de Oficial ainda na década de 50, por concurso público, nomeado pelo Governador do Estado. Encontrou o Cartório como o deixara o antecessor, importante figura da Primeira República. Mantinha o mobiliário que vinha de outras gerações de notários, escrivães, depois registradores. Ali havia carimbos, penas, mata-borrões, tinteiros, sovelas, prensas, mimeógrafos. O cartório terá sido sempre assim, cravado no mesmo lugar, imune à passagem de corregedores, promotores, advogados e do próprio tempo, que fluía lenta e preguiçosamente. O prédio do Registro de Imóveis era um casarão de várias salas, cada qual com sua especialização: havia a sala de conferência, exame e extrato, a de certidão, a de transcrição. Os escreventes lavravam atos manuscritos por cópia dos extratos que eram redigidos pelos mais experientes. Havia ainda o arquivo, a sala do café e o balcão de atendimento das "partes". No final do corredor, bem escondidinho, achava-se a saleta do Oficial. Seu João se deliciava em ouvir os clássicos na Rádio Eldorado enquanto prenotava os títulos, sempre munido de sua Parker 51 e de seus indefectíveis óculos Persol 649. Escreventes, auxiliares, fiéis. Os escreventes, auxiliares, fiéis, formavam um grupo heterogêneo. Era como se fossem colegiados de uma ordem muito especial. Havia cerimônias que se repetiam, tal qual no noviciado. Uma delas era o rito de iniciação. Quando um jovem auxiliar ingressava no cartório, logo o submetíamos a uma tarefa "muito importante". Encarregávamos o moleque de realizar uma grave missão: deveria encomendar uma nova pedra de "amolar carimbo" na vetusta Papelaria Bambino. A pedra em uso, dizíamos cerimoniosos, estava "cega". O jovem então saía às ruas imbuído da nobre incumbência. Todos nós ficávamos espiando para ver quando voltava de mãos abanando e soprando pelas ventas. Tudo isto era motivo de boas gargalhadas e não raro o jovem ganhava, ali mesmo, um apelido que o acompanharia pelo resto de sua vida. Sim, antes que eu me esqueça, quem ingressava num cartório, raramente dele saía. Cartórios eram mais do que um mero trabalho; representavam um "nobile officium". Havia o "Pezão", o "Melão", o "Alemão" (esse era eu), o "Bodão", o "Fininho", o "Tim" (Maia), o Bepo, o Camonga. quantos apodos! Hoje soaria muito mal chamar alguém de "Camonga" (de camundongo), mas eram outros tempos. Às vezes as diferenças se resolviam nas vias de fato. Os ritos probatórios dos jovens eram variados. Encarregava-se o noviço de lavar papéis-carbono ou de enxaguar fitas das máquinas de escrever, instávamos os noviços a comprar "selos raros" na Coletoria Estadual. O velho coletor já sabia das patranhas dos cartorários e de bom coração aproveitava o ensejo para aconselhar o bom menino. Além de coletor, "Seu" Jaziel Silveira era pastor evangélico. Sempre nos divertíamos quando uma parte se irritava e alterada bradava do balcão - "quero falar com o Oficial MAIOR, entenderam?!". Todos nós sabíamos que o oficial maior não era muito mais do que qualquer dos nossos escreventes autorizados. Espiávamos de soslaio e lá vinha ele, o Oficial-Maior, enfezado como um delegado de polícia que fosse despertado de uma soneca no plantão vespertino. "Seu" Vitinho mal sabia de leis e provimentos, era um prático, mas dava bons conselhos e orientações. Quando confrontado, metia-se a falar num jargão inexpugnável que poucos compreendiam além das fronteiras do balcão do cartório. A "parte" saia dali sem entender muita coisa, mas confortava-se com o fato de ter podido "reclamar com o bispo", não com o baixo-clero cartorário. A tecnologia no passar do tempo Havia no arquivo do cartório uma coleção de máquinas de escrever e de somar. Porém, uma geringonça misteriosa sempre me chamava a atenção - os mais velhos diziam tratar-se da gelatina. Era um apetrecho desajeitado, coberto com uma manta borrada de tons arroxeados. Diziam que era para reproduzir extratos antes do advento da moderna reprografia. O "gelatinógrafo" dorme o seu sono eterno, ao lado da prensa, dos carimbos, da sovela e seus colchetes, do mimeógrafo. Aliás, eu era perito na datilografia às cegas sobre o estêncil e acho, mesmo, que ficava embriagado aspirando o vapor de álcool à medida que reproduzia os extratos. O resultado me parecia deveras lindo e maravilhoso. Eu vivi este cartório e posso lhes dizer que ele ainda vive em mim. Penso como cartorário, ajo como cartorário, lavro atos como os velhos cartorários. Suscito dúvidas sem qualquer hesitação verdadeira. Os que se achegam ao cartório, chamo-os de "partes", jamais de "utentes" ou de "clientes". Hoje vivo com os fantasmas que povoam a minha memória. Eles habitam o velho casario do cartório, assentam-se no canto das salas de audiência, perambulam pelos corredores do fórum, deleitam-se com a beleza exuberante do entardecer pelas janelas do sobrado. Todos eles partiram, mas deixaram o menino cartorário encarregado de contar suas lembranças e afetos. Nada mais a certificar. O referido é verdade e dou fé. __________ * Esta crônica é dedicada a meus mestres, Ademar Fioranelli e João Baptista Galhardo. O primeiro, por sua vida profissional exemplar e sua generosidade inigualável; o segundo, além de tudo disso, por ser o nosso cronista maior. Peritos na arte registral, mestres na pena.
Inauguramos hoje mais uma Seção da Coluna Migalhas Notariais e Registrais: "Tudo é verdade e dou fé". Nela o leitor terá acesso a crônicas - não necessariamente ficcionais - envolvendo o quotidiano dos serviços notariais e registrais. O objetivo é trazer a lume como os cartórios possuem papel decisivo no quotidiano do homem comum. É também transmitir aos profissionais do Direito experiências colhidas no exercício da nobre atividade da fé pública. O Direito é também cultura. Sabemos que essa coluna colaborará para o aperfeiçoamento do Direito. Começamos hoje com este texto, de lavra do registrador Sérgio Jacomino. E, como diz o título da nova Seção, "tudo é verdade e dou fé". __________ A intervenção em cartórios é uma operação traumática. As serventias extrajudiciais são fiscalizadas de modo permanente, visitadas por juízes em correições ordinárias ou extraordinárias. Ao final, lavra-se no Livro de Atas de Visitas e Correições elogios, advertências, suspensões, podendo chegar até mesmo à perda da delegação. Olavo Limoeiro era um Oficial da velha-guarda. Impunha-se pelo porte físico avantajado, voz tonitruante, era dono de um linguajar que alguns consideravam vulgar e inadequado. Homem duro e corajoso, sabia enfrentar desafios, mas era também um sujeito divertido, pescador, exímio contador de piadas, tinha extraordinária presença de espírito. Olavão adorava organizar churrascos regados a cerveja à beira da represa. O juiz da comarca, o promotor, velhos advogados do foro, todos frequentavam o seu rancho arejado e bem cuidado. Embora não tivesse completado o segundo grau, seu nome era sempre lembrado pelos juízes quando a situação de determinado cartório era crítica e reclamava a decretação de intervenção, com o afastamento do titular. Certa feita, Olavão foi nomeado pelo Corregedor-Geral de Justiça para intervir num cartório problemático da Alta Mogiana. As denúncias eram fartas: selos e verbas sonegados, longas ausências injustificadas, atecnia na lavratura dos atos, depósitos extraviados, atrasos no registro de títulos e muitas outras irregularidades. Todas elas seriam elencadas na ata de correição que foi publicada no DOJ (Diário da Justiça) para opróbrio do serventuário e de seus pares. Mal chegando ele à cidade, e passados poucos dias, espalhou-se a notícia de que o interventor cancelaria todos os registros feitos pelo Dr. Peralva, o Oficial titular, sob o argumento de que eram nulos de pleno direito. Dizia-se que a Corregedoria faria uma razia nas inscrições, não restaria pedra sobre pedra. A notícia era falsa e fora propagada primeiramente pelo dono de um pasquim local, Chico Cachoeira, velho jornalista e amigo de infância do Oficial, parceiro de noitadas num certo lupanário da região. E depois, como se não bastasse, a notícia se alastraria feito fogo pela rádio de um político local, aumentando ainda mais a confusão. As pessoas acorreram ao Cartório para certificar-se de que o seu registro não seria cancelado. Alguns diziam que as escrituras não tinham sido registradas porque o "safado do Peralva" consumira os selos e emolumentos em jogos de azar e noitadas no mal afamado "Espora de Prata". Foram dias tumultuados, gritarias no balcão, filas na calçada, pessoas passando mal, a polícia fora chamada. O cabo Aleixo aproveitaria o ensejo para certificar-se de que o registro do seu rancho não seria "cassado". Eu havia sido nomeado para auxiliar na intervenção e procurava ajudar Olavão como podia, mas a desconfiança da população parecia invencível. Forasteiro na cidade, eu me perguntava - que diabos eu vim fazer neste fim de mundo? Numa sexta-feira, um velho postou-se ameaçadoramente num canto da recepção. Ali ficou plantado, observando o movimento, o entra e sai das partes, a algaravia, fitava tudo com ar sisudo, cara fechada, o chapéu enterrado na cabeça e as mãos enfiadas nos bolsos de um desbotado paletó ocre. A verdade é que a figura começava a provocar certo receio no pessoal. Seria um pistoleiro contratado pelos fazendeiros? Um jagunço? Pensaria que o registro do sítio que recebera de herança seria cancelado? No final do expediente, como o sujeito ainda persistisse no local, as escreventes esconderam-se no arquivo; outros refugiaram-se no banheiro, espiando pelas frestas da porta entreaberta. Tinham medo de sair, o expediente findava, escurecia. Olavão, peito aprumado, lançou um olhar desafiador antes de enfrentar-se com o mal-encarado desconhecido que vinha em sua direção. Ao aproximar-se do balcão lentamente, as mãos socadas no bolso, o estranho fez um gesto inesperado, parecia inclinar-se, e com voz fina e desafinada, quase ao pé do ouvido de Olavão, disse: - Dotor, discurpa priguntá... É que sou meigo no assunto...  Olavão desatou uma risada sonora e desbragada. O velho começou a rir também, sacudia o paletó terroso e o corpo desajeitado, as mãos tapavam o sorriso desdentado, os funcionários respiraram aliviados. Encerramos o expediente, apagamos as luzes, fechamos o cartório e Olavão foi tomar umas cervejas no boteco acompanhado do velho mal-encarado. Pouco a pouco, a paz voltaria ao cartório. Os registros não foram cancelados, o Dr. Peralva foi aposentado e a vida da comarca retomou o seu modorrento ritmo normal. Sobre o velho, jamais pude saber o seu nome, apenas que era um cidadão leigo nos assuntos de cartório. O referido é verdade do que dou fé.
Resumo 1. Para produção de efeitos entre as partes, a resolução do contrato pela ocorrência do evento resolutivo independe de pronunciamento judicial, seja no caso de cláusula resolutiva expressa, seja na hipótese de cláusula resolutiva implícita. 2. No caso de cláusula resolutiva expressa, a resolução dá-se na data da ocorrência do evento resolutivo. Em regra, o envio de notificação é conveniente, mas não obrigatório. Quando, porém, se tratar de condição resolutiva expressa consistente no inadimplemento do preço, entendemos que, salvo prova de manifesta inutilidade do programa contratual, há obrigatoriedade em a parte lesada notificar a outra a fim de lhe permitir purgar a mora e de deixar claro o desinteresse na conservação do contrato. 3. Em se tratando de cláusula resolutiva tácita, a resolução dá-se na data da notificação inequívoca da outra parte. Essa notificação pode ser judicial (por meio da interpelação judicial ou por uma citação em uma ação) ou extrajudicial (por intermédio de uma notificação via Cartório de Registro de Títulos e Documentos ou mesmo por uma postagem com Aviso de Recebimento). 4. Perante terceiros - como o Cartório de Imóveis, um banco etc. -, há necessidade de o fato resolutivo ser certificado por uma via legalmente ungida com a tinta da fé pública caso não haja nenhum documento consensualmente assinado por ambas as partes. As duas principais vias são a decisão judicial e a ata notarial de que trata o art. 7º-A, I e § 2º, da Lei nº 8.935/1994. Mas pode haver outras, como: (a) o procedimento de cancelamento extrajudicial do registro da promessa de compra e venda na forma do art. 251-A da LRP; e (b) certidão do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais comprovando a ocorrência da morte, se esta for o evento resolutivo. 1 Introdução No caso de haver justa causa, qual é a forma adequada para romper um contrato? É sobre esse tema que nos debruçaremos, defendendo que, atualmente, o melhor entendimento é por uma corrente extrajudicialização. E, nesse ponto, agradecemos ao amigo Professor Rodrigo Toscano de Brito, um dos mais brilhantes estudiosos do tema, pelas conversas que nos ajudaram a amadurecer nossa posição. Também registramos que o tema assume importância elevada após a recente autorização para a lavratura de atas notariais que atestem o implemento de condições e outros elementos de negócios jurídicos (art. 7º-A, I e § 2º, da Lei nº 8.935/1935, acrescido pela recente Lei das Garantias1). Pensemos em um exemplo corriqueiro. Suponha que o amigo leitor tenha contratado uma empresa de consultoria de casamento. A empresa, nos dez meses antecedentes ao casamento, deveria auxiliá-lo na preparação nupcial, fazendo cotações de serviços, comparecendo às reuniões, respondendo a dúvidas etc. Em contrapartida, o amigo leitor se obrigou a pagar dez prestações mensais em dinheiro. Foi pactuada uma multa de 20% (vinte por cento) do valor total do contrato no caso de resolução contratual por culpa de qualquer das partes. Se a empresa incorrer em inadimplência, faltando às reuniões e deixando de fazer as cotações, indago: o que o amigo leitor poderá fazer? De um lado, o amigo leitor poderá reter as prestações mensais enquanto a empresa não voltar a cumprir a sua prestação. Trata-se do uso da exceptio non adimpleti contractus (art. 476, Código Civil - CC). Nesse caso, o vínculo contratual persistirá, ainda que em crise. Confira aqui a íntegra da coluna.
Preocupada com as mudanças climáticas decorrentes da ação humana, a ONU tem trabalhado, desde os anos 1990, para reduzir as emissões dos gases que provocam o efeito estufa (GEE).1 Dentre os esforços previstos pelos acordos internacionais, busca-se interromper a degradação da natureza e estimular que os países convertam as suas matrizes energéticas evitando a emissão desses gases.2 Os créditos de carbono (green bonds) configuram um título de crédito vinculado exclusivamente à finalidade de financiar projetos que tenham um impacto positivo para o meio ambiente, como é o caso das energias renováveis e de construções ecológicas3. É um nascente mercado, mas já vem massudo, estimado em um trilhão de dólares para 2023, podendo chegar a U$ 130 trilhões4. A emissão começou com capital público, com a União Europeia, o Banco Mundial e a Fanny Mae (EUA) injetando dinheiro em projetos ecológicos. Após, vieram as empresas privadas, como Pepsi e Verizon5. O Brasil tem realizado esforços para atender aos compromissos ambientais assumidos no Protocolo de Quioto (1997) e no Acordo de Paris (2015). O ecossistema legal brasileiro para a proteção ambiental conta com a lei 12.187/09, que institui a PNMC - Política Nacional sobre Mudança do Clima e fixa parâmetros claros para a redução dos GEE, a lei 12.651/12 (Código Florestal), e o decreto 11.550/23, que dispõe sobre o Comitê Interministerial sobre a Mudança do Clima. A lei 12.651/2012 introduziu, no Brasil, o crédito de carbono, definido como um título de direito sobre bem intangível e incorpóreo transacionável (art. 3º, inc. XXVII). Também nela, há que se destacar a criação das áreas de preservação adotadas pelo país para o meio ambiente, a área de reserva legal obrigatória, cujos índices variam de 80% a 20%, nunca menos, e a área de preservação permanente. Além disso, foi instituído o CAR, o Cadastro Ambiental Rural obrigatório para todas as propriedades rurais (art. 29).6 Como é fixado o valor do crédito de carbono A expressão "mercado de carbono" se consagrou, mas o correto é entender que falamos de todos os gases de efeito estufa (GEE) que elevam a temperatura do planeta. Quando nos referirmos a "carbono", estamos nos referindo aos GEE. As ações para a redução das emissões de GEE podem envolver: 1. Descarbonizar os processos de investimentos, 2. Alterar a geração de energia para meios renováveis, 3) Melhorar a eficiência energética das edificações, 4. Criação de distribuidoras de energia locais, 5. Encerrar a geração de energia oriunda do carvão, e 6. Mudança da economia linear para a economia circular, na qual há reciclagem do lixo, aproveitamento da energia não usada ou do carbono liberado, e coleta e separação dos detritos para seu reuso. O sistema de créditos de carbono usa a lógica de mercado para precificar. Uma empresa elabora um projeto indicando o volume de toneladas de redução do GEE, emitindo títulos de crédito correspondentes. Pelos padrões internacionais, cada crédito de carbono representa uma tonelada métrica de dióxido de carbono evitada ou removida (tCO2e). A redução de carbono se materializa em títulos de crédito que podem ser negociados para empresas cujas emissões de carbono são superiores que, por sua vez, poderão compensar o excesso com estes títulos. Feita a compensação, o título se exaure, aposenta-se, pois não pode ser reutilizado. Estes títulos de crédito são causais7, ou seja, decorrem da não geração ou da redução da emissão de créditos de carbono. Eles são negociáveis, podendo ser cedidos, mas a lei deverá indicar o momento de sua extinção em decorrência de seu exaurimento. Como todo mercado emergente, o sistema de emissão e comércio de créditos de carbono se ressente de metodologia e mensuração confiáveis, o que deverá ocorrer com a maturação dos projetos e regulação adequada pelos organismos internacionais e por cada país. Somente assim, o mercado terá padrões de segurança para os investimentos.8 O PL 412 - Aprovado no Senado Federal O PL 412, que institui o SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, principia com uma lista de definições que são fundamentais para orientar o novo mercado. O inc. XV, do art. 2º, por exemplo, foca no problema da metodologia informando que o sistema deve mensurar, relatar e verificar de forma padronizada as emissões por fontes ou remoções por sumidouros, bem como as reduções e remoções de gases de efeito estufa decorrentes da implementação de atividades, programas ou projetos. O mais importante para o mercado de crédito é a criação do sistema, com princípios e agentes estatais reguladores, a definição dos ativos integrantes do sistema e a possibilidade de negociação desses ativos, inclusive os créditos de carbono, no mercado financeiro e de capitais, seja na Bolsa de Valores, com supervisão da CVM - Comissão de Valores Mobiliários ou fora, num regime de livre negociação. Os ativos devem ser lançados na plataforma digital de Registro Central do SBCE, que receberá e consolidará informações sobre emissões e remoções dos GEE, controlará a concessão, aquisição, detenção, transferência e cancelamento de ativos integrantes do SBCE, e, finalmente, rastreará as transações nacionais sobre os ativos integrantes do SBCE e transferências internacionais de resultados de mitigação. Insegurança, um problema brasileiro e... global O primeiro leilão de créditos de carbono realizado pela bolsa B4, em agosto de 2023, decepcionou: apenas 1% dos créditos listados obteve aprovação, situação que, de acordo com a B4, demonstra que o greenwashing ("lavagem verde", em inglês), isto é, o ato de oferecer ações falsas de sustentabilidade também estaria ocorrendo no mercado brasileiro de carbono.9 Repito, invertendo o dado: 99% dos créditos listados foram reprovados. Contudo, este não é um problema só brasileiro, é mundial. Reportagem dos jornais The Guardian e Die Welt indicou que 94% dos créditos de carbono credenciados pela maior empresa do mundo, a Verra, seriam imprestáveis e, pior, podem colaborar para o aquecimento global.10 Os padrões fixados para a certificação, aparentemente, não são adequados.11 Somente enfrentando esta descrença, fixando os padrões e mensurando dados confiáveis, o mercado de créditos de carbono poderá obter a credibilidade necessária para receber os aportes financeiros imensos que são necessários para frear a emissão dos GEE. A atividade notarial para segurança e regulação do mercado de carbono No mercado aberto internacional de créditos de carbono, as empresas certificadoras dos projetos têm sempre exigência de um verificador previamente credenciado e aprovado por elas. Este verificador é um terceiro imparcial, um profissional ou empresa com conhecimento técnico dos padrões estabelecidos e que fará a auditoria do projeto e da evolução de seus propósitos. No séc. XIII, os comerciantes e banqueiros criaram a Letra de Câmbio, provocando uma disrupção valiosa no mercado financeiro, integrando as economias e multiplicando o comércio. Como o crédito de carbono, a letra de câmbio é um título causal, fundado num negócio, e pode circular através de sucessivos endossos. Para certeza da mora do devedor perante terceiros, os cessionários, os credores buscaram a fé pública do tabelião, que intima o devedor para aceite ou para pagamento. Vem daí o protesto notarial de títulos, a busca da certeza estatal para uma situação negocial. Foi uma solução singela, rápida e que se provou eficaz para a segurança e desenvolvimento do comércio. O mercado de crédito de carbono, como ocorreu com a letra de câmbio, poderá se beneficiar da intervenção notarial. O tabelião de notas é o profissional com delegação do Estado, presente em todo o Brasil, a maioria com formação jurídica e aprovada em concurso público. Trabalha sob fiscalização das Corregedorias estaduais dos Tribunais de Justiça e do CNJ. Os tabeliães utilizam minutas que podem ser uniformizadas por ato do CNJ, permitindo um documento padrão, de fácil compreensão dos investidores, contendo os dados imprescindíveis para a certeza do crédito e do investidor. O treinamento e capacitação dos 8.500 tabeliães de notas brasileiros pode ser feito em prazo curto12 pelo Colégio Notarial do Brasil, e os atos podem ser feitos na plataforma digital e-Notariado, mantendo os registros e operar a transmissão eletrônica e instantânea para a plataforma do SBCE. Os tabeliães de notas brasileiros integram a União Internacional do Notariado, na qual estão presentes 91 países, entre eles a Europa Continental, a China e a Rússia. Com isso, o prestígio e reconhecimento institucional da atuação notarial dará confiança ao investidor estrangeiro e estimulará o tráfego internacional dos créditos de carbono emitidos aqui. Concretamente, os tabeliães poderiam elaborar uma escritura de emissão de títulos de crédito de carbono vinculadas ao Projeto x. Neste instrumento, o tabelião verificará e atestará: a) o registro do projeto junto aos órgãos competentes; b) a identidade e capacidade civil dos proponentes, com verificação de sua participação e representação na empresa; c) a titularidade dos direitos relativos ao projeto; d) a constituição e execução do projeto; e e) as declarações dos proponentes e obrigações assumidas. A ata notarial, o instrumento que atesta a existência de algo pré-constituindo prova (CPC, art. 384), pode ser largamente utilizada para garantia dos proponentes, dos investidores e do SBCE. Vejamos algumas sugestões: - Ata de verificação do local do projeto e existência de suas premissas, informando que: a) o projeto atende as normas e demais exigências técnicas; b) as metodologias estão aplicadas corretamente; c) as leis locais e seus regulamentos são respeitados; d) o projeto não induz a efeitos negativos para a comunidade local; e e) outros requisitos previstos no regulamento. - Ata de emissão e vinculação dos créditos de carbono ao projeto verificado, evitando a multiplicação de emissão no mesmo projeto, bem como a verificação da circulação escritural dos créditos, seja nos mercados tradicionais, com seus mecanismos de custódia, ou em blockchain (CC, art. 889, § 3º). - Ata periódica sobre a evolução e sequência do projeto, de suas metas e resultados, como previsto na proposta e na regulamentação. Importância existencial e econômica, o futuro do planeta O mercado de carbono é essencial para a redução das emissões dos GEE. É incipiente e necessita de recursos trilionários para a sua implementação. Constitui-se num avanço de nossa civilização, que poderá seguir o seu desenvolvimento econômico com energias sustentáveis sem agressão à atmosfera, do que, afinal, dependemos para sobreviver. O aproveitamento do tabelião como ente verificador independente e capacitado, com presença em todo o país, possibilitará que os investidores nacionais e estrangeiros tenham confiança nos projetos e créditos de carbono aqui emitidos. Com isso, o Brasil poderá aproveitar o nascente mercado dos green bonds, explorando com inteligência e equilíbrio ecológico os seus imensos recursos naturais. ----- Referências 1 Em inglês, Greenhouse Gases (GHG). 2 Segundo o Protocolo de Kioto (2015), são: dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O), hexafluoreto de enxofre (SF6) e duas famílias de gases, hidrofluorcarbono (HFC) e perfluorcarbono (PFC). 3 https://www.weforum.org/agenda/2021/10/what-are-green-bonds-climate-change/ 4 Idem. 5 Ibidem. 6 Segundo a Climainfo, 92% das propriedades já estão cadastradas, por declaração dos proprietários, mas apenas 12% foram conferidas pelos governos estaduais. Destes, apenas 2% dos cadastros foram concluídos. https://climainfo.org.br/2023/04/17/apenas-2-das-analises-do-cadastro-ambiental-rural-foram-concluidas-mostra-estudo/ 7 Ascarelli, Tulio. Títulos de Crédito. São Paulo: Saraiva ed., 1943, p. 417. 8 Para critérios internacionais, veja o International Institute for Environment and Development em https://www.iied.org/about 9 https://www.estadao.com.br/economia/governanca/bolsa-credito-carbono-tentativa-listagem-creditos-falsos/. 10 https://en.wikipedia.org/wiki/Verified_Carbon_Standard. 11 Este é um problema que envolve a segurança dos investidores e, sobretudo, a segurança das empresas e da sociedade que precisa ter certeza de que o imenso esforço e capital dirigido para reduzir a emissão dos GEE serão eficazes. 10 https://en.wikipedia.org/wiki/Verified_Carbon_Standard. 11 Este é um problema que envolve a segurança dos investidores e, sobretudo, a segurança das empresas e da sociedade que precisa ter certeza de que o imenso esforço e capital dirigido para reduzir a emissão dos GEE serão eficazes. 12 A edição da Lei 11.441/2007, permitindo o divórcio e inventário e partilha por escritura pública, demonstra como foi rápida a capacitação dos notários brasileiros. Ressalto que, na época, não havia cursos à distância e uso tão intenso dos meios eletrônicos.
RESUMO DO QUE SERÁ APROFUNDADO NESTE ARTIGO   3 I.             INTRODUÇÃO   5 II.            CLÁUSULA CROSS DEFAULT NO CASO DE HIPOTECA (ART. 1.477, § 2º, DO CC)  6 III.          SUB-ROGAÇÃO EM FAVOR DE CREDOR HIPOTECÁRIO QUE PAGA DÍVIDA HIPOTECÁRIA ANTERIOR (ART. 1.478, CAPUT, DO CC)  7 IV.           CONTRATO DE ADMINISTRAÇÃO FIDUCIÁRIA DE GARANTIAS (ART. 853-A DO CC)  9 IV.1.1. Conceitos prévios: negócios fiduciários, regime fiduciário, dever fiduciário e o caso do contrato de administração fiduciária em garantia   10 IV.2. Contrato de administração fiduciária em garantia como uma forma de terceirização de cobrança de créditos (art. 853-A, caput, do CC)  11 IV.3. Prestação de serviços ao devedor: discussão sobre eventual conflito de interesse e o dever de transparência perante o credor (art. 1.587-A, §§ 7º e 8º, CC)  12 IV.4. Situação jurídica do agente de garantia: representação ou substituição? (art. 853-A, caput, do CC)  14 IV.5. Problemas do polo nas ações processuais: discussão sobre litispendência e legitimidade ad causam (art. 853-A, caput, do CC)  15 IV.5. Limites dos "poderes" do agente de garantia   18 IV.6. Pluralidade de credores de uma obrigação objeto do contrato de administração fiduciária: polo contratual, gestão, substituição e rescisão (art. 853-A, §§ 3º e 4º, do CC)  19 IV.7. Patrimônio de afetação e dever de repasse do pagamento aos credores (art. 853-A, §§ 5º e 6º, do CC)  20 V.            DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO DE CRÉDITO HIPOTECÁRIO (ART. 9º E ART. 18, I, DA LEI DAS GARANTIAS - LEI Nº 14.711/2023)  22 V.1. Noções gerais (art. 9º da Lei nº 14.711/2023)  24 V.2. Frustração do segundo leilão: qual o valor a ser amortizado na dívida e comparação com o caso da execução da alienação fiduciária em garantia (art. 9º da Lei nº 14.711/2023). 25 V.3. Ata notarial de arrematação: cabimento, qualificação tabelioa e competência territorial (art. 9º, § 11, da Lei nº 14.711/2023) 27 VI.          CONCURSO DE CREDORES E EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS  DE GARNATIAS IMOBILIÁRIAS (ART. 10 DA LEI Nº 14.711/2023)  28 VII.         ATESTO DE EVENTO DE IMPLEMENTO DE CONDIÇÃO RESOLUTIVA E DE OUTROS ELEMENTOS NEGOCIAIS POR TABELIÃES DE NOTAS (ART. 7º-A, I E § 2º, DA LEI Nº 8.935/1994) 29 VIII.       ESCROW ACCOUNT POR TABELIÃES DE NOTAS (ART. 7º-A, § 1º, DA LEI Nº 8.935/1994)  31 VIII.1. Definição e casos de escrow account sem tabelião   32 VIII.2. Avaliação da ocorrência do evento futuro autorizador e a necessidade de notificação posterior  33 VIII.3. Operacionalização do escrow account  34 IX.          TABELIÃO DE NOTAS COMO ÁRBITRO, MEDIADOR E CONCILIADOR (ART. 7º-A, II E § 3º, DA LEI Nº 8.935/1994)  34 X.            DESJUDICIALIZAÇÃO DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE NO CASO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA SOBRE MÓVEIS (ART. 8º-B A 8º-E DA LEI Nº 8.935/1994) 35 XI.          RCPN E CERTIFICADO DE VIDA, DE ESTADO CIVIL E DE DOMICÍLIO (ART. 29, § 6º, DA LRP)  38 XII.         CESSÃO DE CRÉDITOS ORIUNDOS DE PRECATÓRIOS E O TABELIÃO DE NOTAS (ART. 6º-A DA LEI Nº 8.935/1994)  39 XIII.1. Procedimento notarial de cessão de precatório, a forma de entrega da comunicação premonitória e interação eletrônica com Tribunal de Justiça   40 XIII.        TABELIONATO DE PROTESTOS E APRIMORAMENTOS (ARTS. 11-A, 14, §§ 3º A 6º, 15, § 1º, 26-A, 37, §§ 1º E 6º, E 41-A, §§ 3º A 5º, DA LEI Nº 9.492/1997) 42 XIV.        LOTEAMENTO E OFERECIMENTO DE MESMO IMÓVEL COMO GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES DO LOTEADOR PERANTE O PODER PÚBLICO E PERANTE FINANCIADORES (art. 18, § 8º, da Lei nº 6.766/1979)  46 XV.         CONTRATO DE CONTRAGARANTIA COMO NOVO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL (ART. 784, XI-A, CPC)  46 XVI.       LEGITIMADOS A EXTRATOS ELETRÔNICOS RELATIVOS A MÓVEIS (ART. 8º, §§ 1º E 2º, DA LEI Nº 14.382/2022)  RESUMO DO QUE SERÁ APROFUNDADO NESTE ARTIGO  1.      De início, exponho, em resumo, as ideias que serão desenvolvidas ao longo deste artigo:  1. Nas hipóteses de hipoteca, a cláusula cross default no caso de um mesmo sujeito ser titular de mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel está prevista no art. 1.477, § 2º, do CC. Apesar, porém, do silêncio legal, entendemos que, para ter eficácia contra o devedor, há necessidade de previsão expressa no contrato e de expressa manifestação de vontade do credor em ativá-la por meio de notificação no curso do procedimento executivo. Além disso, entendemos que a boa técnica registral recomenda a notícia da cláusula cross default na matrícula do imóvel (capítulo II). 2. Nos casos de hipotecas sucessivas ou de recarregamentos de hipoteca, o credor hipotecário posterior não pode executar o imóvel enquanto a dívida hipotecária anterior não vencer, salvo insolvência do devedor. Por isso, há interesse de o credor posterior em, como terceiro interessado, pagar a dívida hipotecária anterior, caso em que haverá a sub-rogação (art. 1.477, § 2º, CC) (capítulo III).\ 3. O contrato de administração fiduciária de garantias envolve duas partes: o credor e o agente de garantia. O seu objeto é a gestão de garantias oferecidas a créditos, como hipotecas, alienações fiduciárias em garantia, penhores etc. Entendemos que, mesmo garantias fidejussórias (como fiança e aval), podem ser incluídas no âmbito do contrato de administração fiduciária em garantia (capítulo IV.1. e IV.2.). 4. O agente de garantia que decide prestar serviços ao devedor terá de adotar um grau elevadíssimo de transparência e lealdade, na mais estrita de boa-fé. A tendência é que esses serviços sejam relacionados à própria gestão da dívida, como receber pagamentos, atualizar dados cadastrais etc. (capítulo IV.3). 5. O agente de garantia é um substituto, e não um representante do credor (capítulo IV.4). 6. O agente de garantias pode figurar nos polos ativo ou passivo de ações judiciais envolvendo discussões sobre o crédito garantido. Há, porém, particularidades (capítulo IV.5). 7. O agente de garantia pode praticar qualquer ato relativo ao crédito garantido, como receber pagamento, renegociar a dívida, perdoar etc. (capítulo IV.6). 8. A cessão do polo contratual do agente de garantia para outro agente pode ocorrer por decisão da maioria simples dos credores: cessão de contrato por expromissão. Já a celebração ou a resilição do contrato de administração fiduciária de garantias depende da participação de cada credor (capítulo IV. 7). 9. Caso o agente de garantia receba o pagamento, é seu dever repassar o dinheiro ao credor, deduzidos, obviamente, eventual remuneração que tenha sido pactuada. Como forma de blindar juridicamente o dinheiro ou a outra coisa utilizada para pagamento da obrigação, o § 5º do art. 853-A do CC cobre esse bem com o manto protetor do patrimônio de afetação por 180 dias (capítulo IV.8). 10. Salvo no caso de crédito do agronegócio, o crédito hipotecário poderá ser executado judicialmente ou, a critério do credor, na via extrajudicial, perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, na forma do art. 9º da Lei das Garantias (capítulo V.1). 11. O rito executivo extrajudicial da hipoteca espelha-se no da execução extrajudicial da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis, com poucas particularidades. Uma delas é que, no caso de frustração do segundo leilão, o credor pode tentar realizar a venda da coisa sem as formalidades de leilão dentro do prazo de 180 dias do último leilão, caso em que terá mandato legal para formalizar a transferência (capítulo V.2). 12. A ata notarial de arrematação não se resume à mera descrição fria dos fatos, mas envolve também a qualificação tabelioa (capítulo VI.3). 13. Somente o tabelião de notas do local do imóvel é competente para lavrara a ata notarial de arrematação (capítulo VI.4). 14. No caso de pluralidades de credores com garantia sobre o mesmo imóvel, o art. 10 da Lei das Garantias disciplina as regras a serem adotadas no procedimento executivo extrajudicial pertinente (capítulo VI.5). 15. O tabelião de notas é legitimado a atestar o implemento ou a frustração de condições ou de outros elementos dos negócios jurídicos, respeitada a competência do tabelião de protesto. Trata-se de mais um caso de desjudicialização. Entendemos que se deve aplicar, por analogia, o procedimento previsto para a adjudicação extrajudicial de que trata o art. 216-B da LRP e os arts. 440-A ao 440-AM do Código Nacional de Normas do CNJ, salvo quando houve expressa pactuação em contrário (capítulo VII). 16. O tabelião de notas a operacionalizar a figura do escrow account (ou da conta escrow, ou da conta-garantia), blindando-os de constrições judiciais por créditos alheios ao negócio em razão do regime do patrimônio de afetação. O tabelião de notas é quem fará o juízo de qualificação da vontade e dos fatos para verificar se, à luz do negócio, já se operou ou não o evento futuro autorizador do levantamento dos valores (capítulo VIII.1). 17. Entendemos que o levantamento dos valores depositados no escrow account só pode acontecer após 5 dias úteis da notificação da outra parte, sem qualquer impugnação justificada desta. O tema merece regulamentação pelo CNJ. Por efeitos práticos, pode-se pensar em adotar, por analogia, o mesmo procedimento que - no capítulo VII - defendemos para o caso da ata notarial de atesto de implemento ou frustração de condições ou de outros elementos (capítulo VIII.2). 18. Conforme convênio a ser firmado pelo Colégio Notarial do Brasil e as instituições financeiras, a sistemática da abertura de escrow account deve ser similar à dos depósitos judiciais, razão por que convém que cada ato notarial contenha uma numeração própria que viabilize a vinculação da conta bancária (capítulo VIII.3). 19. No caso de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, o rito extrajudicial de consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário está disciplinado nos arts. 8º-B ao 8º-D do Decreto-Lei nº 911/1967. Consolidada a propriedade, o credor pode valer-se do seu ius persequendi na forma da lei, podendo, por exemplo, no caso de veículos, requerer à autoridade policial a inserção, no Renajud, de comandos de apreensão do veículo (capítulo X). 20. O Registro Civil das Pessoas Naturais pode emitir certidões destinadas à prova de vida, de estado civil e de domicílio de pessoas naturais. Entendemos que, na certidão de prova de vida, de estado civil e de domicílio, o registrador deve consignar a fonte da qual ele extraiu os dados, a fim de permitir que terceiros possam avaliar eventual risco de fraudes (capítulo XI). 21. O procedimento notarial de cessão de precatório é uma alternativa muito aconselhável às partes. A comunicação premonitória feita pelo tabelião garante direito de prioridade perante titulares de direitos contraditórios pelo prazo de 15 dias. A comunicação da conclusão do negócio, com envio da escritura pública, deve ocorrer em 3 dias úteis. Ambas as comunicações dependem de requerimento do interessado (capítulo XII). 22. A CENPROT nacional (Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados dos tabelionatos de protestos) está autorizado a exercer a atividade de emissão e escrituração de documentos eletrônicos passíveis de protesto (art. 41-A, § 1º, da Lei nº 9.492/1997) bem como a emitir - mediante autorização do Poder Público - o Documento Eletrônico de Transporte (DT-e) (capítulo XIII). 23. Está positivada a autorização de os tabelionatos de notas adotar medidas destinadas a obter uma solução negocial da dívida, tanto antes do protesto, quanto depois, o que poderá exigir atualização dos arts. 375 do CNJ - CNN-CNJ (capítulo XIV). 24. A forma de intimação do devedor no procedimento de protesto foi desburocratizada, abrindo-se espaço para intimações eletrônicas e facilitando a intimação por edital (capítulo XIV). 25. Aprimoram-se as regras relacionadas à dispensa de depósito prévio dos emolumentos, com o esclarecimento de que o fato gerador dos repasses obrigatórios que incidem sobre os emolumentos só ocorre com o efetivo recebimento dos emolumentos (capítulo XIII). 26. O inciso XI-A do art. 784 do CPC prevê esse contrato de contragarantia ou outro instrumento com negócio de similar objetivo como título executivo extrajudicial (capítulo XIII). 27. Sem prejuízo de outros a serem indicados pelo CNJ, são legitimados a apresentar extratos relativos a móveis perante o SERP: o notário, os cessionários de crédito e o arrendador mercantil (capítulo XVI). Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
Resumo do que será aprofundado neste artigo  De início, exponho, em resumo, as ideias que serão desenvolvidas ao longo deste artigo:  1. É cabível subalienações fiduciárias em garantia, também chamadas de alienações fiduciárias sucessivas (art. 22, lei 9.514/1997). 2. Nas subalienações fiduciárias em garantia, os credores fiduciários de segundo ou mais graus serão titulares de um direito real de propriedade sujeito a duas condições: (i) a condição resolutiva consistente no adimplemento da respectiva dívida garantida; e (ii) a condição suspensiva consistente na extinção da propriedade fiduciária de grau inferior (capítulo IV.1.1.). 3. Apesar do silêncio da Lei das Garantias, entendemos que as subalienações fiduciárias em garantia de bens móveis são plenamente admissíveis, porque a alienação de coisa futura é permitida pelo nosso ordenamento, especialmente pelo art. 483 do CC. O outro caminho que chegaria a resultado prático similar é a realização de cessão fiduciária (que pode ser sucessiva) do direito real de aquisição pelo devedor fiduciante (capítulo IV.1.2.). 4. Na subalienação fiduciária em garania, a cláusula cross default precisa estar consignado no instrumento constitutivo e não se opera automaticamente: depende de manifestação do credor na intimação do procedimento executivo extrajudicial (capítulo IV.1.3.). 5. Penhoras e alienações (fora da alienação fiduciária) não devem recair sobre a propriedade superveniente, e sim sobre o direito real de aquisição do devedor fiduciante: é a solução que enxergamos diante da opção não adequada do legislador em ter preferido focar a propriedade superveniente ao disciplinar a garantia fiduciária sucessiva (capítulo IV.1.5.). 6. O recarregamento, também chamado de extensão, compartilhamento ou refil, da hipoteca ou da alienação fiduciária em garantia de imóveis é admitido como o objetivo de facilitar, do ponto de vista cartorário, a conexão de novas obrigações a uma anterior garantia real imobiliária: basta ato de averbação na matrícula. Não se confunde com hipóteses de meros aditivos contratuais (capítulos IV.2.1., IV.2.3. e IV.2.7.). 7. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia de imóveis só pode ser realizado por instituição financeira ou por empresas simples de crédito em qualquer tipo de negócio, ao contrário do recarregamento de hipoteca (livre a qualquer sujeito) (capítulo IV.2.2.). 8. Vigora, no recarregamento das garantias reais imobiliárias, a regra da unicidade do credor, admitida, porém, no caso de hipotecas recarregadas, que fato superveniente enseje a diversidade de credores. A preferência creditória seguirá o princípio da prioridade registral, resumido no brocardo prior in tempore potio in iure (capítulo IV.2.4. e capítulo IV.2.5.). 9. Terceiros com direitos contraditórios na matrícula previamente ao recarregamento da garantia real não perdem a preferência creditória (capítulo IV.2.6.). 10. Quanto ao cabimento do recarregamento da garantia imobiliária na hipótese de preexistir direito tabular em favor de terceiros, há solução diferente a depender do tipo de garantia: é vedado o recarregamento apenas quando se tratar de alienação fiduciária em garantia (capítulo IV. 2.6.). 11. O recarregamento da garantia real há de respeitar o prazo e o valor previstos no registro para a dívida originária (capítulo IV.2.8.). 12. No recarregamento da garantia real, a cláusula cross default é admissível, mas tem de ser consignada no instrumento. Sua ativação, porém, depende de manifestação do credor na notificação expedida no curso do rito executivo extrajudicial. Essa regra vale mesmo para o caso de hipoteca, apesar do silêncio legal (capítulo IV.2.9.). 13. A boa técnica de redação registral recomenda que, ao averbar o recarregamento da garantia, o registrador deve consignar expressamente os efeitos jurídicos potencialmente lesivos a terceiros, como a existência da cláusula cross default, o respeito a direitos contraditórios e as informações essenciais sobre os dados dos sujeitos e do valor da dívida (capítulo VI.2.10.). 14. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia sobre imóvel pode ser formalizado por instrumento particular, sem necessidade de reconhecimento de firma. Já o recarregamento da hipoteca depende de escritura pública, salvo se o imóvel for de valor inferior a 30 salários mínimos (capítulo IV.2.11.). 15. Há autonomia do devedor em quitar antecipadamente qualquer uma das obrigações penduradas na mesma garantia real recarregada (capítulo IV.2.12.). 16. A regra do no negative equity guarantee restringe-se à alienação fiduciária em garantia envolvendo financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial e fora do sistema dos consórcios (capítulo IV.3.). 17. Mesmo para casos de cobranças judiciais, a regra acima é válida e eficaz (capítulo IV.3.2.). 18. É cabível a aplicação do duty to mitigate the loss contra o credor fiduciário no caso de demora desarrazoada em iniciar a execução da dívida, com a consequente perda do direito sobre os encargos moratórios incidentes a partir da caracterização da inércia (capítulo IV.3.3.). 19. O próprio devedor tem legitimidade para iniciar o rito executivo extrajudicial da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis, desde que tenha sido frustrada a tentativa de solução amigável com o credor (capítulo IV.3.4.). 20. No segundo leilão envolvendo alienação fiduciária em garantia em casos de financiamentos de imóveis residenciais, o piso é o valor da dívida, ainda que seja inferior a 50% do valor do imóvel (capítulo IV.4.1.). 21. No segundo leilão nos demais casos de alienação fiduciária em garantia, há dois pisos: o principal (valor da dívida) e o piso subsidiário (metade do valor do imóvel). O piso subsidiário depende do exclusivo arbítro do credor fiduciário e, por isso, não pode implicar o aumento do eventual saldo devedor remanescente a ser arcado pelo devedor no caso de negative equity. Além disso, na hipótese de o valor da dívida ser inferior ao do piso do segundo leilão, caberá ao credor pagar, em pecúnia, a diferença para o devedor (capítulo IV.4.2.). 22. Registro é para atos jurídicos destinados a instituição de direito real sobre imóvel ou a transmissão da propriedade, independentemente do tipo de ato jurídico escolhido pela parte (capítulo IV.5.). 23. RCPN pode colher prova de vida e de domicílio da pessoa natural para instituições interessadas (capítulo V). 24. Desjudicializou-se a busca e apreensão de bens móveis alienados fiduciariamente, fixando um rito perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos e facultando, no caso de veículos, o rito ocorrer perante o respectivo Detran (capítulo V). 25. Positiva-se a busca de soluções negociais no Cartório de Protestos (capítulo V). 26. Desburocratizou-se o procedimento de comunicação no procedimento de protesto (capítulo V). 27. Aprimoraram-se regras de emolumentos e de serviços da central nacional de serviços eletrônicos compartilhados no caso dos Cartórios de Protestos (capítulo V). 28. Disciplina-se a atuação dos cartórios de notas em cessões de precatórios (capítulo V). 29. Autoriza-se os notários a atuarem como árbitro, mediador e conciliador, além de certificarem a ocorrência de condições ou de outros elementos negociais, ademais de outras questões (capítulo V). 30. Tratou-se de legitimados a apresentarem extratos eletrônicos relativos a bens móveis no âmbito do SERP (capítulo V). 31. Desjudicializou-se a execução do crédito hipotecário (capítulo V). 32. Disciplina-se o procedimento nos ritos executivos extrajudiciais de crédito hipotecário ou fiduciário quando há mais de um crédito sobre o mesmo imóvel (capítulo V). 33. Autoriza-se que, em loteamentos, o mesmo imo'vel sirva como garantia ao Município ou ao Distrito Federal na execução das obras de infraestrutura e a créditos constituídos em favor de credor em operações de financiamento a produção do lote urbanizado (capítulo V). 34. Admite-se, como título executivo extrajudicial, o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores (capítulo V). 35. Disciplinou-se o contrato de administração fiduciária de garantias (capítulo V). 36. Ajustara,-se regras de hipoteca (capítulo V). 37. Prevê-se multa de 0,5% ao mês contra o credor fiduciário no caso de atraso na entrega do termo de quitação (art. 25, § 1º-A, da lei 9.514/1997). 38. Realizaram-se outros ajustes na lei 9.514/1997 (arts. 24; 26; 26-A, § 2º; 27, §§ 2º-A, 2º-B, 3º, 11 e 12; 27-A; 30; 37; 39) (capítulo V).  Introdução  Nasceu a Lei das Garantias (lei 14.711/2023), com significativas alterações legislativas. Neste artigo, buscaremos detalhar as mudanças ocorridas, expondo a razão de ser de muitas delas a partir dos debates ocorridos durante o processo legislativo. No Parlamento, a proposição contou com a dedicação proativa de destacados Parlamentares, como o Senador Weverton (que relatou a matéria no Senado Federal) e o Deputado João Maia (relator na Câmara dos Deputados). Diversos juristas e entidades estiveram nos bastidores dos debates, caso do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) - que chegou a emitir nota técnica subscrita pelos Professores Flávio Tartuce e Pablo Malheiros da Cunha Frota -, do IBRADIM, do Colégio Notarial do Brasil e outros. Destacamos também a participação de Fábio Rocha Pinto e de Melhim Chalhub, cujas ideias estiveram na base das alterações ocorridas nos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária em garantia. Também foram decisivas a participação de outros juristas e autoridades, como Marcos Barbosa Pinto (Secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda) e o advogado Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, além do talento de técnicos, como a de Tatiany Elizabeth Barata Pereira.  Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
De proêmio, insta salientar que a lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, regulamentou o artigo 236 da Constituição Federal. No capítulo IV, em relação às incompatibilidades e os impedimentos, em seu artigo 25, trata que "(o) exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão". Nesse toar, o PL 16, de 1994 (nº 2.248/91 na Câmara dos Deputados) teve o parágrafo § 1°, do artigo retro citado, vetado pela Presidência, conforme a Mensagem nº 1.034, porém tal articulado preconizava a seguinte redação: § 1º Poderão notários e oficiais de registro exercer mandatos eletivos, cargos de Ministro de Estado, Secretários Estaduais e Municipais ou de magistério, bem como cargo executivo em autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações, federais, estaduais e municipais. Razões do veto As exceções previstas no § 1 º são por demais abrangentes, pois a incompatibilidade para exercício de cargo ou emprego público, em comissão, ocorre apenas no âmbito da administração direta, já que os chamados "cargos executivos" em autarquias e fundações públicas são, na realidade, cargos em comissão, regidos pelo regime jurídico único, previsto no art. 39, caput, da Lei Maior. Essa impropriedade é somada ao conceito elástico de "cargo executivo", que não tem seu contorno precisado no projeto, e que pode ter ampla aplicação. Entretanto, é necessário aduzir que não mais se admite o veto a parte de artigo, parágrafo, inciso ou alínea (, § 2º, da CF), mão pela qual o interesse público deve ser verificado à luz da supressão total do § 1 º, o que importa dizer que as incompatibilidades não art. 66admitem exceção." (grifos nossos). Sobretudo, diante da impossibilidade de aplicação do princípio da parcelaridade1, na forma do artigo 66, § 2°, da Lei Maior, antes adotado na Reforma Constitucional de 1926, o Presidente poderia vetar apenas algumas palavras dentro de um dispositivo, o que surgiu para arrostar as causas orçamentárias. Pelo excerto grifado na citação, entrevê-se que não era interesse do presidente proibir todas as funções ao Notário e Oficial de Registro. Nessa ordem de ideias, a elasticidade do termo "cargo executivo", bem como a menção à entidades da Administração Direta e Indireta, convém reconhecer que o veto de per se não proibia o magistério, tampouco a ocupação de cargos eletivos, segundo a inteligência das razões sobreditas. Nesse passo, o § 2° do artigo 25 preceitua que "(a) diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse, nos demais casos, implicará no afastamento da atividade", o qual foi objeto normativo da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN n.° 1531, ementado da seguinte forma: EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. Ação Direta de Inconstitucionalidade do § 2 do art. 25 da Lei federal n 8.935, de 18.11.1994, que dizem: "Art. 25 - O Exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão. § 2 - A diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse nos demais casos, implicará no afastamento da atividade." Alegação de ofensa ao art. 38, inciso III, da Constituição Federal, que dá tratamento diverso à questão, quando se trate de mandato de Vereador. Medida cautelar deferida, em parte, para se atribuir ao § 2 do art. 25 da Lei n 8.935, de 18.11.1994, interpretação que exclui, de sua área de incidência, a hipótese prevista no inciso III do art. 38 da C.F., mesmo após a nova redação dada ao "caput" pela E.C. n 19/98. Decisão por maioria. (ADI 1531 MC, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 24-06-1999, DJ 14-12-2001 PP-00022  EMENT VOL-02053-01 PP-00196) Nesse trilhar, continua vigente o artigo 25, § 2º, da lei 8.935, de 18.11.1994, pelo que se postularia pela mesma interpretação conforme dada na ADI acima, olvidando-se das mudanças de Ministros, e da oxigenação do Direito, ou seja, o texto continua, mas e a norma jurídica extraída? Sendo assim, insta dizer que o art. 54 da Constituição Federal estabelece como regra a incompatibilidade da atividade legiferante com o exercício de função ou cargo em entidades públicas ou privadas que utilizem, gerenciem ou administrem dinheiros, bens e valores públicos, cujas exceções estão expressamente previstas no texto constitucional (arts. 38, III; e 56, I) e, com aplicação do princípio da simetria, relativos aos mandatos de deputado estadual e vereador estatuídos nos artigos 27, § 1º, e 29, IX, da Constituição. Outrossim, com espeque nos artigos 236, § 1º, c/c art. 22, XXV, da Constituição, assim como artigo 5º, XIII, todos da Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Ao largo disso, consabido que a interpretação do texto constitucional "restrições ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão" deve ser interpretada estritamente, máxime por ser norma de eficácia contida, a título ilustrativo. E se o STF interpretar que se trata de norma não restringível? O pedido liminar foi deferido em parte, para atribuir ao § 2º do art. 25 da Lei 8.935, de 18.11.1994, interpretação que exclui, de sua área de incidência, a hipótese prevista no inciso III do art. 38 da Lei Maior, mesmo após a nova redação dada ao caput pela EC 19/98. Em assim sendo, à época, o artigo 38, inciso III, da Carta Magna propugnava, com a Reforma Administrativa, que "(a)o servidor público da administração direta, autárquica e fundacional, no exercício de mandato eletivo, aplicam-se as seguintes disposições: I - tratando-se de mandato eletivo federal, estadual ou distrital, ficará afastado de seu cargo, emprego ou função; II - investido no mandato de Prefeito, será afastado do cargo, emprego ou função, sendo-lhe facultado optar pela sua remuneração; III - investido no mandato de Vereador, havendo compatibilidade de horários, perceberá as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo, e, não havendo compatibilidade, será aplicada a norma do inciso anterior; IV - em qualquer caso que exija o afastamento para o exercício de mandato eletivo, seu tempo de serviço será contado para todos os efeitos legais, exceto para promoção por merecimento; V - na hipótese de ser segurado de regime próprio de previdência social, permanecerá filiado a esse regime, no ente federativo de origem.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)(grifos nossos) Posto isso, o Conselho Nacional de Justiça despontou com o Provimento n° 78, de 7 de novembro de 2018, o qual foi alterado em razão da ADIN n.º 1531, a qual julgou constitucional o § 2ª, do artigo 25 da lei 8.935/94. De todo modo, vejamos a redação do Provimento a seguir: Seção I De mandatos eletivos Art. 72. O notário e/ou registrador que desejarem exercer mandato eletivo deverão se afastar do exercício do serviço público delegado desde a sua diplomação. § 1.º O notário e/ou registrador poderão exercer, cumulativamente, a vereança com a atividade notarial e/ou de registro, havendo compatibilidade de horários, e nos demais tipos de mandatos eletivos deverão se afastar da atividade, segundo os termos do caput. § 2.º No caso de haver a necessidade de o notário e/ou registrador se afastarem para o exercício de mandato eletivo, a atividade será conduzida pelo escrevente substituto com a designação contemplada pelo art. 20, § 5.º, da Lei § 3.º O notário e/ou o registrador que exercerem mandato eletivo terão o direito à percepção integral dos emolumentos gerados em decorrência da atividade notarial e/ou registral que lhe foi delegada. Considerando os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da ADIN com o fito de manter os titulares de cartórios de notas e de registro já eleitos e em exercício quando do julgamento da ação concentrada. Sucede que o Provimento nº 149 de 30 de agosto de 2023, um dia antes do meu aniversário, instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro trouxe à baila o seguinte regramento no artigo 72 de seu corpo normativo, senão vejamos: Art. 72. O notário e/ou registrador que desejarem exercer mandato eletivo deverão se afastar do exercício do serviço público delegado desde a sua diplomação. § 1.º O notário e/ou registrador poderão exercer, cumulativamente, a vereança com a atividade notarial e/ou de registro, havendo compatibilidade de horários, e nos demais tipos de mandatos eletivos deverão se afastar da atividade, segundo os termos do caput. § 2.º No caso de haver a necessidade de o notário e/ou registrador se afastarem para o exercício de mandato eletivo, a atividade será conduzida pelo escrevente substituto com a designação contemplada pelo art. 20, § 5.º, da Lei Federal 8.935/1994. § 3.º O notário e/ou o registrador que exercerem mandato eletivo terão o direito à percepção integral dos emolumentos gerados em decorrência da atividade notarial e/ou registral que lhe foi delegada. Visto isso, pergunto-me, e aos leitores: essa disposição se trata de mero erro material, ou reavivamento da questão aos olhos de um STF com novos membros e um novo estado constitucional. Pois bem, caso se entenda pelo erro material, cabe oficiar ao CNJ para a devida correção. Entrementes, no caso de ser uma reviravolta da discussão, o CNJ, no uso de seu poder normativo, reabriu a discussão anteriormente assentada, lembrando que, em matéria constitucional, o poder constituinte difuso permite novas interpretações aos mesmos dispositivos, haja vista a diferenciação entre texto e norma. Importa assinalar que o artigo 556, inciso XXXVI, do CNN CN-CNJ-Extra, revogou totalmente o antigo Provimento n° 78, de 7 de novembro de 2018. Ao mesmo tempo, a ADIN n.° 1531 transitou em julgado em 28/04/2020, antes do Provimento n.° 149 da CNN/ Cn-CNJ - Extra. Sabendo-se que o STF já aceitou o poder normativo, de status primário e autônomo, do CNJ, bem como integra os mesmo Ministros integram o referido órgão na presidência e vice-presidência, nos moldes constitucionais. Jogo ao debate, diante do não acatamento da transcendência dos motivos determinantes, apenas o dispositivo vigora. Em arremate, indaga-se houve erro material ou uma releitura do direito à vereança pelos delegatários? Caberá ao tempo nos dizer. Referências BRASIL, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.°1531. Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. BRASIL, Provimento n.º 149/2023. Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui, acesso em 28. 10. 2023. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui, acesso em 28.10.2023. BRASIL, Provimento n.º 78. Conselho Nacional de Justiça. Disponível aqui, acesso em 28.10.2023. BRASIL, Entenda a tramitação do veto. Disponível aqui, acesso em 28.10.2023. FILHO, João Trindade Cavalcante. A ciranda do veto: tradicional, meio-veto, desveto, reveto e não veto, acesso em 28.10.2023. __________ 1 Reveto Por razões semelhantes às que justificam a refutação do "desveto", também não tem sido aceita entre nós a figura do "reveto". É que não pode o presidente da República, caso exerça o poder de veto parcial, vir a, num segundo momento, vetar outros dispositivos antes não vetados (ou seja, sancionados), promovendo uma espécie de "segunda rodada de vetos", ou "exercício renovado do poder de veto". "DesvetoDiz-se que o veto é irretratável, porque, uma vez aposto, não pode mais ser desfeito. Assim, quando o presidente da República veta um projeto de lei, não é possível "desvetá-lo". O máximo que pode fazer é rogar ao Congresso para que rejeite o veto do qual ele (presidente) se arrependeu". Disponível no CONJUR referenciado abaixo.
Introdução No transcurso dos trabalhos realizados na gestão da ministra Maria Thereza de Assis Moura à frente da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (2020-2022), tivemos ocasião de encaminhar, para alguns membros do Conselho Consultivo, estudo e minutas de provimentos abaixo reproduzidos. Elas foram elaboradas antes da edição da MP 1.085, baixada ao apagar das luzes de 2021 (27/12) e anteriormente à legislação relativa às assinaturas eletrônicas. Portanto, as referências deste artigo são anteriores ao novo quadro legal. A ideia de tornar públicas as discussões e ideias que surgiram no interregno visa a contribuir com os debates. Lamentavelmente, as discussões não chegaram a termo. Azafamados por questões mais urgentes, seja regulamentando aspectos considerados mais relevantes, seja defendendo o Projeto SREI de iniciativas açodadas de reforma do sistema registral, o texto dormitou na gaveta, esperando a oportunidade mais propícia para o encaminhamento ao então magistrado-auxiliar, integrante do órgão Agente Regulador da CN-CNJ, à época o Des. Marcelo Berthe, de São Paulo. Os textos devem ser considerados estudos preliminares para discussões, ajustes e aperfeiçoamentos. Não têm caráter oficial, nem esgotaram a matéria. São disponibilizados somente para figurar no bojo do capítulo - vésperas do SERP - uma ideia fora do lugar, série de artigos veiculados no Migalhas Notariais e Registrais na busca de registrar a história das tratativas e movimentos que precederam o advento da reforma da Lei de Registros Públicos brasileira. Assumo inteiramente a responsabilidade pela redação e pelas propostas apresentadas. Requerimento ao CNJ Ao Desembargador MARCELO MARTINS BERTHE MM. Magistrado da Corregedoria Nacional de Justiça CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Brasília - DF. Atendendo à solicitação de Vossa Excelência, apresentamos o resultado preliminar dos estudos empreendidos no sentido de oferecer sugestões para colmatar a lacuna verificada no processo de registro, com a quebra do trato sucessivo, ocorrente nas cessões de créditos garantidos por direitos reais. A proposta abaixo esboçada busca apresentar uma visão integrada do sistema do Direito Civil e de sua contraparte formal - o Registro Imobiliário - na publicização das situações jurídico-reais nas várias etapas da mutação de titularidade dos direitos. Além disso, propõe-se a criação de repositórios inteiramente eletrônicos, compartilhados por todas as unidades de serviços de Registro de Imóveis do país, para a inscrição online das cessões, buscando oferecer soluções consentâneas com as demandas da sociedade digital, na busca incessante de modernização e eficiência na prestação do serviço registral (art. 37 da CF c.c. art. 11 da LRP c.c. arts. 4º e 38 da Lei 8.935/1994). Vossa Excelência saberá encaminhar as propostas para discussão no âmbito da  Coordenadoria de Gestão de Serviços Notariais e de Registro, criada pela Portaria CN-CNJ 53/2020 com base no Provimento 109/2020, de 14/10/2020, baixado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Apresentamos a Vossa Excelência os protestos de elevada estima e consideração. São Paulo, 12 de outubro de 2021. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
Em 15 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento 150, atualizando o Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (Provimento 149, do CNJ) com a regulamentação do artigo 216-B, da lei 6.015/73, que trouxe a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, requerida, processada e deferida diretamente perante o Ofício de Registro de Imóveis competente. O Provimento 150, do CNJ, foi construído por várias mãos, sendo fruto de um trabalho técnico conjunto e participativo liderado pelo Corregedor Nacional, Ministro Luis Felipe Salomão1. O processo idealizado pelo Ministro resultou em um texto claro e objetivo, que esclareceu muitas dúvidas práticas que permeavam a aplicação da adjudicação compulsória extrajudicial. Neste artigo, abordaremos algumas dúvidas que foram resolvidas pelo Provimento 150, trazendo as primeiras considerações sobre o ato normativo, objetivando fomentar a discussão em torno deste instituto que promete ser mais um grande passo em favor da desjudicialização. Vamos lá! a) Quais contratos podem dar fundamento à adjudicação compulsória extrajudicial?  Um ponto muito importante definido pelo Provimento 150, do CNJ, foi quais contratos podem dar fundamento à adjudicação compulsória extrajudicial. E o ato normativo foi muito feliz na redação do artigo 440-B, ao prever que "podem dar fundamento à adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta, bem como as relativas cessões ou promessas de cessão, contanto que não haja direito de arrependimento exercitável." Em primeiro lugar, o referido artigo deixou expresso que, ao lado da promessa de compra e venda, a promessa de permuta também pode fundamentar a adjudicação compulsória, conforme já defendia o Dr. João Pedro Lamana Paiva, brilhante jurista e Registrador de Imóveis do 1º Ofício de Porto Alegre/RS.2 Em segundo, o artigo 440-B, ao prever que quaisquer atos ou fatos jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta podem dar fundamento à adjudicação compulsória, foi ao encontro do que prevê o artigo 112, do Código Civil, que estabelece que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Assim, independente do nome que foi dado ao contrato preliminar, seja ele uma promessa de compra e venda, um contrato particular de compra e venda, ou mesmo um recibo, se ele tiver sido celebrado com observância do disposto no artigo 462, do Código Civil, ou seja, se ele contiver todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado, partes, objeto e preço, ele poderá dar fundamento a adjudicação compulsória extrajudicial.3 O artigo 440-B é digno de aplausos, pois leva em conta a realidade social brasileira, onde a maioria esmagadora dos contratos preliminares são feitas sem assistência jurídica, de forma que é imperioso considerar mais a intenção consubstanciada nestes instrumentos preliminares do que ao sentido literal da linguagem.4 Em relação ao direito de arrependimento "exercitável" a que faz menção o artigo 440-B, é preciso analisar o alcance da expressão "exercitável". É certo que se houver prazo no contrato preliminar para o exercício do direito de arrependimento, o transcurso deste prazo torna o direito de arrependimento não exercitável e, portanto, a adjudicação compulsória pode ser proposta pelo requerente. Dúvida remanesce, contudo, em relação ao contrato preliminar que tem cláusula de arrependimento, mas não tem prazo ali previsto para o seu exercício. A expressão "exercitável" abrangeria também estes contratos, tendo em vista que a lei e a jurisprudência colocam diversos limites à cláusula de arrependimento e ao momento em que pode ser alegada? Neste aspecto, Nelson Rosenvald salienta que tal direito potestativo não pode ser exercido de forma abusiva (art.187 CC). Segundo o autor, "o prazo decadencial para o exercício do poder de desconstituição da relação será o momento anterior ao cumprimento de todas as obrigações constantes do pacto (v.g. pagamento da última prestação pelo promissário comprador na promessa de compra e venda)."5 Assim, já tendo decorrido vários anos do contrato, havendo prova da quitação do preço e não havendo litígio envolvendo o contrato, seria o direito de arrependimento ainda exercitável? Temos um importante ponto de discussão aqui, de forma que a questão da cláusula de arrependimento terá que ser analisada com cautela por notários, registradores e advogados. b) É obrigatório o reconhecimento de firmas nos contratos preliminares?  O Provimento 150, do CNJ, não traz a obrigatoriedade de firma reconhecida nos contratos preliminares. Na verdade, ele traz a possibilidade do controle de autenticidade do documento ser efetivado pelo notário que lavrará a ata notarial através do reconhecimento de firma "a posteriori", conforme previsto § 7º, do artigo 440-G: "o tabelião de notas poderá dar fé às assinaturas, com base nos cadastros nacionais dos notários (art. 301 deste Código Nacional de Normas), se assim for viável à vista do estado da documentação examinada." Nesta linha, o CORI-MG, na Nota Técnica nº 03/2022, prezando pelo princípio da busca da conservação dos negócios jurídicos, já entendia ser possível que a autenticidade do contrato fosse apurada pelo reconhecimento das firmas dos envolvidos, pela autenticidade de documentos eletrônicos apresentados, como também pela apresentação de documentos complementares que reafirmem a vontade das partes ou ainda pela notificação dos envolvidos, nos termos do artigo 411, inciso III, do Código de Processo Civil, sem prejuízo da análise do caso concreto pelo registrador.6 c) Onde inicia o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial: no Tabelionato de Notas ou no Registro de Imóveis? Uma das grandes questões de debate em torno da adjudicação compulsória extrajudicial, sobre a qual, inclusive, já tivemos a oportunidade de escrever7, era onde deveria começar o procedimento, no Registro de Imóveis ou no Tabelionato de Notas? A parte deveria ir primeiro no Tabelionato de Notas, para lavrar a ata notarial, que é requisito obrigatório previsto no inciso III, do §1º, do artigo 216-B, e então protocolar o requerimento de adjudicação no Registro de Imóveis devidamente instruído com o respectivo ato notarial? Ou, o procedimento deveria começar no Registro Imóveis, com a prévia notificação de quem deve outorgar ou receber o título de propriedade para a efetiva prova e caracterização do inadimplemento? Pois o Provimento 150, do CNJ, encerrou com a discussão, ao prever, no artigo 440-M, que "o requerimento inicial será instruído, necessariamente, pela ata notarial de que trata este Capítulo deste Código Nacional de Normas e pelo instrumento do ato ou negócio jurídico em que se funda a adjudicação compulsória." Ora, ao prever que o requerimento inicial será instruído, necessariamente, com a ata notarial, o Provimento não deixa dúvidas que o procedimento deverá iniciar no Tabelionato de Notas. Somente após a lavratura da ata, o requerimento inicial ingressará no Registro de Imóveis, para, então, ser promovida a notificação do requerido. O início do procedimento no Tabelionato de Notas é corroborado pelo §4º, do artigo 440-M, o qual prevê que "a pedido do requerente, o requerimento inicial do processo extrajudicial, a ata notarial e os demais documentos poderão ser encaminhados ao oficial de registro de imóveis pelo tabelião de notas, preferencialmente por meio do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - Serp". Assim, a primeira providência do requerente da adjudicação compulsória extrajudicial deve ser a elaboração da ata notarial, em um Tabelionato de Notas de sua confiança. Neste ponto, cabe pontuar mais dois aspectos muitos bem esclarecidos pelo Provimento: a competência territorial e o que deve conter na ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial.  d) Competência territorial da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial O Provimento 150, do CNJ, pôs fim a outra discussão em relação à adjudicação compulsória extrajudicial: há competência territorial para a lavratura da ata notarial de adjudicação tal qual existe na usucapião extrajudicial, que observa o município de localização do imóvel?8 O artigo 440-F deixou claro que a ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial será lavrada por tabelião de notas de escolha do requerente, salvo se envolver diligências no local do imóvel, observados os artigos 8º e 9º, da lei 8.935/94.9 Ou seja, a ata notarial de adjudicação segue a regra de todos os demais atos feitos presencialmente perante o notário: é livre a escolha do tabelião de notas, exceto se o notário tiver que se deslocar ao local do imóvel, caso em que deverá ser observada sua circunscrição territorial, conforme prevê o artigo 9º, da lei 8.935/94.10 O artigo 440-F deixa claro também, e não podia ser diferente, que no caso de ata notarial eletrônica, lavrada pela plataforma do e-Notariado, devem ser observadas as regras de competência territorial previstas no artigo 20, do antigo Provimento 100, do CNJ, atual artigo 303, do Código Nacional de Normas.11 e) Requisitos da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial  O artigo 440-G traz os requisitos e normatiza alguns aspectos importantes da ata notarial de adjudicação compulsória extrajudicial. O primeiro ponto que é crucial destacar é a necessidade de a ata notarial conter as duas premissas fundamentais da adjudicação compulsória, previstas nos artigos 1417 e 1418 do Código Civil12: a prova da quitação e a prova do inadimplemento de quem deve receber ou outorgar a escritura pública definitiva. Em relação à prova da quitação, o §6º, do artigo 440-G, elenca, mas não esgota13, as formas do notário constatar o pagamento do preço, incluindo mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado, comprovantes de operações bancárias, informações prestadas em declaração de imposto de renda, entre outros. Um aspecto que merecerá discussão e aprofundamento é se a prescrição poderá ser alegada, substituindo a prova de quitação, já que o §6º, do artigo 440-G, menciona a expressão "além de outros fatos e documentos", deixando claro que o rol ali previsto é meramente exemplificativo. Com efeito, o Código de Normas do Rio de Janeiro permite que a prescrição seja alegada, substituindo a prova da quitação, se for acompanhada das certidões forenses demonstrando a inexistência de litígio envolvendo o contrato14. De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça tem decisões no sentido de não aceitar a prescrição como presunção de quitação, nem mesmo na adjudicação compulsória judicial.15 Desta forma, o tema da prescrição merecerá uma atenção especial dos advogados, notários e registradores, já que ele não foi trazido expressamente no Provimento 150, do CNJ. Talvez a solução perpasse pelo caminho do meio, onde a prescrição possa ser utilizada como um elemento para a prova da quitação, mas não o único. Neste aspecto, o notário terá um papel essencial, podendo utilizar-se de todos os meios de prova em direito admitidos para tentar provar a quitação, inclusive diligência no local do imóvel, uma vez que a constatação de posse ad usucapionem poderá, eventualmente, ser considerada como mais um elemento a favor da pretensão do requerente. Em relação à prova do inadimplemento do requerido, o Provimento 150, do CNJ, caminhou no sentido do que já defendíamos em artigo publicado anteriormente16, ou seja, de que a caracterização do inadimplemento na ata notarial não requer obrigatoriamente a notificação extrajudicial, podendo ser feita de inúmeras outras formas, valendo-se da essencial fé pública do tabelião. Assim, conforme prevê o 440-G, inciso IV17, entendemos que é possível comprovar as tentativas que o requerente fez de obter ou outorgar a escritura através da transcrição na ata notarial das mensagens trocadas entre as partes, de e-mails, de carta AR. Além disto, o tabelião pode ele mesmo tentar ligar para o requerido, orientando-o quanto à necessidade da escritura e das consequências de sua não realização, dando de tudo fé na ata. Aliás, em relação ao contato do tabelião com o requerido, o Provimento 150, do CNJ, trouxe a possibilidade de o tabelião de notas instaurar a conciliação ou a mediação dos interessados, desde que haja concordância do requerente, conforme prevê o §8º, do artigo 440-G. Por fim, outra novidade trazida pelo ato normativo do CNJ no artigo 440-G, que trata da ata notarial, é a previsão do § 4º, que prevê que caberá ao notário fazer constar informações que se prestem a aperfeiçoar ou a complementar a especialidade do imóvel, se houver. Ou seja, a ata notarial contribuirá para a especialidade objetiva do imóvel. Neste artigo, fizemos as primeiras considerações sobre o Provimento 150, do CNJ -, abordando principalmente a Seção I - "Disposições Gerais". No próximo artigo, abordaremos as questões atinentes ao Procedimento, que é trazido na Seção II. Até breve! __________ 1 NERBASS, Carolina Ranzolin; CHEZZI, Bernardo; e, LEITÃO, Fernanda de Freitas. A regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial. Disponível aqui. Acesso em 21.09.2023. 2 PAIVA, José Pedro Lamana. Adjudicação compulsória extrajudicial. Disponível aqui. Acesso em 21.09.2023. 3 É oportuno salientar que não se desconhece julgados que consideram nulo o contrato preliminar no qual o imóvel ultrapasse o valor de 30 salários-mínimos e o pagamento do preço tenha sido à vista, por ferir o artigo 108 do Código Civil, que exige escritura pública para transmissão de imóveis neste valor. Com todo respeito a este entendimento, consideramos que ele se afasta do melhor direito, já que o contrato preliminar para compra de imóveis não opera a transferência definitiva do bem e é autorizado pelos artigos 463 e 1418, do Código Civil. Assim, com a previsão do artigo 440-B, do Provimento 150, do CNJ, mesmo que o contrato preliminar tenha como objeto imóvel que ultrapasse o valor de 30 salários-mínimos e o pagamento do preço tenha sido à vista, no ato da assinatura do contrato, entendemos que ele pode dar sim fundamento à adjudicação compulsória extrajudicial. 4 Nesta linha de entendimento, é o Código de Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro: Art. 1.108. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112 do CC).    Parágrafo único. A regra estabelecida no caput se aplica, entre outras hipóteses, à promessa ou cessão de direitos que atender a todos os requisitos da compra e venda, inclusive a forma pública, que poderá ser assim recepcionada, a requerimento, desde que pagos os impostos de transmissão e o laudêmio.    5 Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Claudio Luiz Bueno de Godoy et al. Coordenação Cezar Peluso. 15. ed. rev. atual. Barueri/SP: Manole, 2021. 2.464 p. 6 Nota Técnica nº 03/2022, do Colégio Registral de Minas Gerais - CORI/MG. Disponível em: NT-AC-24_05_2023_V2.pdf (corimg.org). Acesso em: 30 jun. 2023. 7 SANTOS, Carolina Edith Mosmann dos. Onde começa o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial: Tabelionato de notas ou registro de imóveis? Disponível aqui. Acesso em 22.09.2023. 8 Prov. 149/CNJ: Art. 402. A ata notarial de que trata esta Seção será lavrada pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele, a quem caberá alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa no referido instrumento configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei. 9 Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio. 10 Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação. 11 Art. 303. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. 12 Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel. 13 O § 6º, do artigo 440-G, ao mencionar a expressão "além de outros fatos ou documentos", deixa claro que o rol ali previsto é exemplificativo. 14 Art. 1.257. Com o registro do parcelamento do solo urbano, poderão ser registrados, para os fins dos artigos 26, § 6º, e 41 da lei 6.766/1979, os compromissos de compra ou reserva de lote devidamente quitados. (...)  § 2º. A prova de quitação poderá ser substituída por certidão forense de inexistência de ação de cobrança ou de rescisão contratual, bastando esta última se já decorrido o prazo de prescrição da pretensão ao recebimento das prestações. Art. 1.260. O requerimento será assinado por advogado constituído pelo requerente e instruído ao menos com os seguintes documentos. (...) VII - comprovante do pagamento integral do preço do imóvel, por meio de declaração escrita do credor ou de apresentação da quitação da última parcela do preço avençado, recibo assinado pelo proprietário com firma reconhecida, certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente demonstrando a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação (art.  1.257, § 2º) ou outro meio de prova inequívoca. 15 "A quitação do preço do bem imóvel pelo comprador constitui pressuposto para postular sua adjudicação compulsória, consoante o disposto no art. 1.418 do Código Civil de 2002" (REsp 1.601.575/PR, relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, DJe de 23.8.2016). "A prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo" (REsp 1.694.322/SP, relatora MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe de 13.11.2017). 16 "Assim, entendemos que a caracterização do inadimplemento na ata notarial não requer obrigatoriamente a notificação extrajudicial, podendo ser feita de inúmeras outras formas, valendo-se da essencial fé pública do tabelião. Entendemos que é possível comprovar as tentativas que o requerente fez de obter a escritura através da transcrição na ata notarial das mensagens trocadas entre as partes, de e-mails, de carta AR. Além disto, o tabelião pode ele mesmo tentar ligar para o requerido, orientando-o quanto à necessidade da escritura e das consequências de sua não realização, dando de tudo fé na ata." In: SANTOS, Carolina Edith Mosmann dos. Onde começa o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial: Tabelionato de notas ou registro de imóveis? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/388158/tabelionato-de-notas-ou-registro-de-imoveis. Acesso em 22.09.2023. 17 Art. 440-G. Além de seus demais requisitos, para fins de adjudicação compulsória, a ata notarial conterá: (...) inciso IV - a identificação das providências que deveriam ter sido adotadas pelo requerido para a transmissão de propriedade e a verificação de seu inadimplemento.
No artigo anterior1, vimos como nasceram as entidades registradoras e se inaugurou um novo regime registral das garantias reais e mobiliárias ao lado do sistema tradicional de publicidade jurídica. Na sequência, veremos como as forças econômicas e corporativas buscaram pespegar estas mudanças na ordem civil, subvertendo os paradigmas do direito brasileiro. A MP 897/2019 - a entidade registradora "registral" A tramitação do PLC 30/2019 (MP 897/2019, convertida afinal na lei 13.986/2020) revelaria o movimento concentrado, e muito bem orquestrado, no sentido de se buscar a modificação dos paradigmas do sistema de registro de direitos e de distribuição de competências e funções notariais e registrais. No relatório final do dito PLC 30, apresentado pelo deputado PEDRO LUPION, houve a tentativa de incluir, na redação derradeira, a criação de uma Central Nacional de Registro Imobiliário (art. 51)2. Na complementação de voto, o nobre deputado ainda alteraria a redação do art. 51 "para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica". A emenda assim achava-se redigida: "art. 51 do PLV: alteração do caput para permitir à Central Nacional de Registro de Imóveis atuar como entidade registradora, observada a legislação específica; alteração no §2° para conferir maior abrangência ao recebimento eletrônico de títulos pela Central Nacional de Registro de Imóveis; supressão do §3º, pois o ato notarial somente adquire eficácia após sua confirmação pelo registro; e alteração do §7°, renumerado para §6°, para atribuir ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e o funcionamento da Central Nacional de Registro de Imóveis"3. A ideia de uma entidade registradora, ou como preferia o Deputado DENIS BEZERRA - Central Nacional de Gravames -, se insinuava nos debates legislativos de modo discreto. Assim a concebia o ilustre deputado (e notário) do Ceará: "Por fim, a criação de uma central nacional de gravames atende a uma necessidade do mercado de crédito, para que o agente financiador possa obter, de maneira rápida e efetiva, informações sobre a capacidade de pagamento e grau de endividamento do produtor, de forma a avaliar mais assertivamente o risco de crédito e as garantias ofertadas e ter uma plataforma de acesso aos cartórios. Quanto mais fácil e transparente foram essas informações, mas rápida será a concessão do crédito e mais fortes serão as garantias recebidas pelo financiador". Com fundamento nesta justificativa, o deputado apresentaria sua emenda, cujo teor era o seguinte: "Art. XXX. Fica criada a Central Nacional de Gravames organizada pelos registradores de imóveis, em cooperação com os registradores de títulos e documentos e tabeliães de protesto, e que compreenderá os registros de garantias, gravames, constrições judiciais, indisponibilidades e protestos, indexados a partir do número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), ou número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda (CNPJ). Parágrafo único. Até 31 de julho de 2022 todos os atos anteriores constantes e vigentes até a edição desta lei serão inseridos na base de dados da Central Nacional de Gravames"4. Todo o minucioso arcabouço então criado acabou soçobrando por um despacho lacônico do Presidente da Mesa Diretora: "Comunico ao Plenário que a Medida Provisória n. 897/2019 recebeu 350 (trezentas e cinquenta) emendas parlamentares e que a Comissão Mista, no Parecer n. 1/2019, concluiu pela apresentação do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019. Na esteira do entendimento externado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.127, ocorrido em 15 de outubro de 2015, e nos termos do artigo 7º, II, da Lei Complementar n. 95/1998 e dos artigos 55, parágrafo único, e 125 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados - RICD, considero como não escritos o § 2º do art. 19 e os arts 51, 62 e 63 do Projeto de Lei de Conversão n. 30/2019, por não guardarem relação temática com a Medida Provisória n. 897/2019"5. Assim terminaria esta aventura de centralização - de modo melancólico e infrutífero. A proposta que havia sido veiculada pelo Dep. LUPION acabou por revelar pontos de contato com a MP 1.085/2021, como veremos a seu tempo. A comparação entre elas pode ser bastante instrutiva por permitir retraçar a autoria das propostas que seriam consumadas no futuro com o advento da MP 1.085/2021, depois convertida na lei 14.382/2022. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 JACOMINO. Sérgio. Vésperas do SERP - uma ideia fora do lugar - parte II. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais. 2 Parecer CN 1/2019 da Comissão Mista do CN. Relator Dep. PEDRO LUPION in Diário da Câmara dos Deputados, n. 221, de 10/12/2019, p. 1.311. 3  Complementação de voto do Dep. PEDRO LUPION, loc. cit. p. 1.375. A leitura atenta do relatório revela os íntimos pontos de contato com as propostas ensejadoras da MP 1.085/2021. 4 Emenda 222, de 8/10/2019, Dep. DENIS BEZERRA. In Diário da Câmara dos Deputados n. 221, de 10/12/2019, p. 973-4. A CNG - Central Nacional de Gravames não vingou na lei 14.382/2022, embora seus apologistas ainda insistam na sua consagração - seja na regulamentação ou mesmo na prática do SERP. ABELHA. André. CHALHUB. Melhim Namem. VITALE. Oliver. Org. Sistema Eletrônico de Registros Públicos - lei 14.382 de 27 de junho de 2022 comentada e comparada, p. 27, n. 4. 5 Dep. CÉSAR MAIA, despacho de 11 de fevereiro de 2020. O projeto seria aprovado na sessão de 18/02/2020 e encaminhada ao Senado Federal, convertido na lei 13.986/2020.
segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A construção do e-Notariado

Jorge, ou George Santayanna, foi um filósofo, ensaista, romancista e poeta, expoente da era do ouro da filosofia do século XX. Um homem de dois mundos, espanhol de berço, americano por escolha, optou por filosofar na Itália, onde, como o Papa, não era obrigado a devolver as visitas. Na América, negaram-lhe o Pulitzer por não ser nativo1; na Europa, custaram a permitir o seu funeral no solo escolhido, Roma. Santayanna é autor da seguinte boutade: A história é um monte de mentiras sobre eventos que nunca aconteceram contadas por pessoas que não estavam lá. O notariado brasileiro documenta em seus livros os atos das pessoas que aqui vivem desde os primórdios coloniais, mas deixa uma lacuna em se auto historiar. Como sabemos por nossa tradição milenar, a história não deve ser um fardo para a memória, mas sim um brilho da alma.2 Como pequeno coadjuvante na construção do e-Notariado, na gestão 2017-2019 do Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal, quero documentar para que as gerações presente e futura possam compreender como foi pensada, gestada e, finalmente, lançada esta plataforma de serviços digitais que revoluciona a atividade notarial e tem gerado atenção da UINL, a União Internacional do Notariado. As conquistas não nascem fáceis, grandes mudanças exigem muito trabalho, obstinação, inteligência e certa dose de sorte. O e-Notariado, como Roma, não foi construído em um dia.3 Tampouco em cinco semanas. Disrupção A tecnologia disruptiva, termo cunhado em 1995 por Bower e Christensen4 foi, e ainda é, a expressão da onda: novos meios de fazer operações necessárias à sociedade, quebrando os paradigmas de produção existentes, permitindo o atendimento massificado, com recursos tecnológicos de custos muito inferiores aos praticados até então. A disrupção move as empresas de tecnologia, consolidadas ou start-ups, que buscam um lugar ao sol no final do arco-íris, bem ao lado do baú com ouro. A disrupção criou empresas que valem mais que o PIB da maior parte dos países. Dentre os 100 maiores orçamentos do planeta, 69 são de empresas privadas, restando 31 entes estatais.5 A disrupção é ameaça aos cartórios, ao notariado. No auge do blockchain hype, em 2016, jovens empreendedores falavam no fim dos cartórios6, vistos como entidades arcaicas que seriam suprimidas por linhas de código consensuais e imutáveis e, portanto, seguras, numa simplificação desconexa e grotesca. Seria a extinção dos cartórios.7 O notariado brasileiro sentiu o ataque e reagiu. A diretoria do Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal (CNB) eleita por aclamação em 2016, para o mandato de 2017 a 20198, tomou a si o desafio de buscar a autodisrupção, ou, mais modestamente, desenvolver as tecnologias necessárias para que a atividade notarial fosse ofertada em meio eletrônico, com uso de programas e aplicativos capazes de garantir os pilares da atividade, dentre eles, a legalidade, autenticidade, privacidade publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, e guarda perpétua dos arquivos. Enfrentar o desafio tecnológico foi uma decisão política consensual do notariado brasileiro. Ainda assim, construir e moldar a atividade notarial em meio eletrônico requereu debate constante, a busca de pequenos consensos em meio às naturais disputas ideológicas, agravadas pela incerteza, preconceitos tecnológicos, recursos limitados e fetiches institucionais9. Transformar os meios, abandonando sólidas práticas de sucesso milenar por uma tecnologia que contém riscos (ataques de terceiros, vírus, fragilidade de códigos de programação e obsolescência acelerada e constante, para citar uns poucos), foi e é tarefa temerária, requerendo a prudência do gato que vaga pela borda da banheira. Atrair e capacitar os notários, profissionais autônomos com independência negocial, usualmente capacitados em Direito e ignorantes dos meios tecnológicos, submetidos aos juízes corregedores de 26 estados e Distrito Federal, com normas e regramentos próprios. Construir uma sólida base tecnológica para os 8.800 cartórios de notas, 6.600 deles com parcos recursos financeiros, integrando-os numa rede conectada e ofertando serviços padronizados, este era e segue sendo o desafio. Na prática, tínhamos que emular os atos notariais em meio eletrônico e, ao mesmo tempo, buscar ganhos em decorrência dos meios tecnológicos: atendimento remoto, redução de processos, de tempo e de recursos, serviços instantâneos, oferta massificada com atenção à singularidade, pesquisa e oferta de novos atos notariais ou captura de nichos de serviços inusitados decorrentes da nova tecnologia. Esta postura do notariado brasileiro foi corajosa. Os primeiros passos envolveram estudos e a formação de uma equipe experiente em novas tecnologias que pudessem aliá-las às necessidades da atividade notarial. A equipe: pessoas qualificadas são indispensáveis O CNB é uma entidade institucional que representa os notários brasileiros e colabora com as autoridades públicas para a segurança jurídica. Atua com o apoio e junto de suas seccionais estaduais, que são independentes. Em 2017, a entidade não tinha uma equipe especializada em tecnologia. A diretoria do CNB, junto com as seccionais estaduais e distrital, fixaram os passos necessários para a construção do e-Notariado10: - Concentrar no CNB as iniciativas de desenvolvimento tecnológico: na época, como era natural, tabeliães e seccionais estaduais desenvolviam projetos que, ainda que meritórios, não buscavam a integração e desenvolvimento da atividade e de todos os notários brasileiros. - Manter estrutura própria e desenvolver conhecimento para conservar, atualizar e redesenhar permanentemente os aplicativos de tecnologia específicos para a atividade notarial. - Desenvolver e implementar a Censec 2.0: a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados, o sistema que gerencia e fornece informações sobre a existência de testamentos, procurações e escrituras públicas de qualquer natureza, inclusive procurações, necessitava atualização, ampliação para outros Estados e mudança de sua operação para Brasília. - Desenvolver e implementar um modelo de certificação digital para notários: o certificado digital é a assinatura em meio eletrônico. O domínio da tecnologia seria indispensável para qualquer projeto de geração de documentos eletrônicos. - Desenvolver e implementar um Portal de Contratação: o foco principal do e-Notariado seria a possibilidade de montar escrituras públicas e submeter seus textos para aprovação e assinatura das partes e dos tabeliães. - Aperfeiçoar a Central de Autenticações de Documentos Eletrônicos, CENAD, a ferramenta do e-Notariado para autenticações digitais de documentos, escrituras e procurações públicas, permitindo a verificação da autenticidade desses documentos. - Central de cartões de firmas e biometria: os tabeliães de notas tinham a sua riquíssima base documental pessoal dispersa, atomizada em milhares de profissionais. O projeto do e-Notariado pensou a sua integração, agregando os dados biométricos para identificação pessoal e controle sistêmico de falsidades, criando, assim, uma base higienizada de dados. - Desenvolver e implementar a autenticação de biometria e comportamento: o e-Notariado planejou e implementou a autenticação por biometria ou dado comportamental (como a ação de teclar). A identificação pessoal vai além dos documentos oficiais. - Desenvolver e gerir um sistema de back-office: os tabeliães brasileiros necessitam um sistema para criar os seus documentos, gerir os atos desde o contato inicial das partes até a final assinatura e complemento dos atos, permitindo a gestão integral do processo. - Desenvolver e implementar o Protocolo Eletrônico Notarial: o sistema notarial brasileiro sempre foi atomizado. A integração em uma plataforma permite a introdução de uma numeração de protocolo de atos única para todos os cartórios do país, permitindo consultas remotas com segurança. - Contratar dispositivos de infraestrutura para a era da tecnologia: o CNB, reunindo todo o notariado brasileiro, pode contratar equipamentos e projetos de desenvolvimento de aplicativos robustos, o que não seria viável para um só tabelião. - Cloud computing, proteção de rede etc.:  a implementação de soluções de integração e conexão com a internet exige o fornecimento de ferramentas periféricas indispensáveis no meio eletrônico. - Hardware padrão (computador, dispositivos móveis e periféricos): o CNB pode definir e recomendar equipamentos e aplicativos padrões para todos os profissionais interligados, suprindo a carência de conhecimento técnico informático de cada tabelião. Perseguindo estes objetivos, o CNB começou a montar a equipe de tecnologia já no início de 2017. Foi contratado um profissional para atuar como diretor de tecnologia, Marcos de Paola, e, no início de 2018, agregamos a consultoria de Renato Martini, ex-presidente do ITI, responsável pelo desenvolvimento da ICP-Brasil.11 Os dois, junto à secretária-executiva, Claudia Rosa, e da equipe jurídica, Karin Rick Rosa e Luiz Carlos Weinzenmann, formaram uma equipe enxuta que buscou desenvolver os aplicativos necessários com a contratação de empresas de tecnologia e deram suporte gerencial e jurídico ao projeto. Marcos ficou responsável pelo desenvolvimento dos modelos lógicos, orçamento e contratação do serviço de terceiros; Renato trouxe o conceito, o denominado "barramento", que vinculava o desenvolvimento dos aplicativos a uma superestrutura lógica que se interconecta facilmente.12 Os primeiros passos Em 2017, o CNB contratou dois estudos preliminares para fundamentar a ação no meio tecnológico: o primeiro, foi para implementar um hub biométrico notarial e o segundo buscou a análise da viabilidade dos tabeliães atuarem com certificados digitais. Desenvolvemos também o conceito de todo o trabalho, a implementação de uma plataforma com o barramento dos serviços notariais em meio digital. Esta ideia deu origem ao e-Notariado. No mesmo ano, 2017, o CNB publicou o Manual de Boas Práticas para o Ambiente Tecnológico do Notariado, para que os tabeliães brasileiros tivessem um roteiro e suporte para atender o Prov. 74, do CNJ, que dispunha sobre padrões mínimos de tecnologia da informação para a segurança, integridade e disponibilidade de dados para a continuidade da atividade pelos serviços notariais e de registro do Brasil.13 Neste mesmo ano, visando demonstrar ao Banco Mundial e ao seu Relatório Doing Business a capacidade produtiva do notariado brasileiro em meio digital14, em conjunto com as seccionais do RJ e SP, o CNB desenvolveu o site escriturasimples.org.br. Nele, uma pessoa poderia escolher um cartório e iniciar a elaboração de sua escritura à distância, conduzindo o processo todo remotamente, até o momento da assinatura final, que deveria ser perante o tabelião ou seu escrevente. O Escriturasimples, lançado em 201815, contou com mais de 1.000 tabeliães integrados, mas foi posteriormente desativado pela baixa utilização e pelo fim do Doing Business. Foi, de qualquer modo, a primeira experiência com a escritura remota, introduzindo padrões de atendimento aceitos por tabeliães de todos os Estados brasileiros. O consenso político Ao mesmo tempo que se iniciavam os estudos e desenvolvimento de aplicativos, era necessário integrar o notariado brasileiro no processo, para que os tabeliães conhecessem o trabalho que se desenvolvia, perdessem as fobias tecnológicas e, sobretudo, para que houvesse um razoável consenso sobre a informática e a sua imposição de padrões. Isolados em seus cartórios, ciosos do atendimento a seus clientes, barriga no balcão e o Código Civil sempre à vista, os tabeliães tinham que ser trazidos para o processo. O trabalho com as seccionais estaduais e do distrito federal e constantes palestras em congressos regionais seriam fundamentais para o amálgama. Ao longo de 2017, a diretoria do CNB convidou as seccionais da entidade para um debate e redação do pedido de regulamentação do e-Notariado. O debate exaustivo, com mais de 11 versões, resultou no documento, aprovado por unanimidade em reunião no Rio de Janeiro, em 27.09.2017. A estrutura normativa do projeto foi apresentada ao CNJ em março de 2018.16 A estas alturas, a entidade já havia promovido o registro do domínio e da marca, em setembro de 2017, garantindo a plena titularidade para o CNB. Mais tarde, em 2019, ainda no esforço para chamar as lideranças para o conhecimento do futuro e para a coragem em romper paradigmas, o CNB convidou todos os presidentes de seccionais para o workshop sobre a tecnologia e o futuro, em Porto Alegre. O trabalho, com duração de dois dias, apresentou aos dirigentes os estudos e iniciativas mais vanguardistas sobre tecnologia, não apenas no âmbito legal, mas em todo o espectro social. Os resultados: tecnologia e relações institucionais O debate e interação com a sociedade e as autoridades, especialmente o Executivo e o Judiciário, foram também cruciais. Como sempre, os notários carregavam uma carga de preconceito imensa. As empresas de tecnologia temiam que buscássemos o monopólio das atividades de certificação digital e de contratação em meio tecnológico. Obviamente, também buscavam proteger os seus nichos de mercado, temendo a competição de um segmento com tradição milenar nestas áreas. Ao longo de toda a construção, foram inúmeros os encontros com autoridades como a Casa Civil da Presidência da República, o Instituto de Tecnologia da Informação, o Tribunal Superior Eleitoral, o SERPRO, o DENATRAN e, obviamente, com a Corregedoria do CNJ. A busca por integração com bases de dados oficiais foi incessante. Inicialmente, o CNB tentou obter junto à Justiça Eleitoral uma integração com a biometria lá depositada, o que foi negado por vedação legal. Estes esforços culminaram no convênio com o Serpro e o Denatran para que os tabeliães pudessem utilizar a base de dados lá existente para a conferência de identidade das entradas de dados dos clientes dos tabelionatos brasileiros. Em 2018, o CNB assinou importante documento de colaboração com a Casa Civil da Presidência da República, permitindo que os tabeliães brasileiros desenvolvessem o seu projeto de certificação digital. A partir deste convênio, foi também firmado um acordo de cooperação entre o ITI e o CNB,17 iniciando tratativas para o ingresso do notariado na ICP-Brasil. O projeto da entidade envolvia a operação de dois certificados: o e-Notariado off ICP e o e-Notariado ICP-Brasil. A Autoridade Certificadora do e-Notariado nasceu em 23 de março de 2018, com tecnologia toda da entidade, com os mesmos padrões da ICP Brasil, em HSM18, e publicação de sua primeira DPC, Declaração de Práticas de Certificação.19 Em maio de 2019, já havia 38 tabeliães credenciados como autoridades notariais aptos a emitirem certificados digitais. Junto com o CNJ, a ANOREG e a ARPEN, o CNB desenvolveu o novo aplicativo para Apostilamento Eletrônico e-App da Haia, que foi doado para o CNJ. Esta modernização do apostilamento foi considerada pioneira e modelo para outros países integrantes da Convenção. Em maio de 2018, o CNB iniciou estudos para o desenvolvimento de um projeto de big data com o objetivo de agregar as informações obtidas nos atos notariais eletrônicos para estudo e desenvolvimento de novos projetos para o notariado e para fornecer dados e estatísticas à sociedade brasileira. Também em 2018, desenvolveu o projeto para a Autorização eletrônica para a viagem de menores.20 O trabalho envolveu uma complexa tecitura de desenvolvimento de tecnologia para que pudesse ser aceito pelas companhias aéreas e pela Polícia Federal em seus postos de atendimento nos aeroportos brasileiros. Ao mesmo tempo, tínhamos que manter a Corregedoria do CNJ atenta a todo o trabalho para que a indispensável autorização para implementação ocorresse oportunamente. Para atender toda a infraestrutura, foi contratado um backup em nuvem garantindo a segurança das informações, que ficam replicadas em ambiente externo. O desenvolvimento de um blockchain fechado, constituído exclusivamente por tabeliães anunciou para a sociedade que a cruz que carregaria o notariado à sua cova, era, na verdade, apenas mais uma ferramenta que auxiliaria o crescimento da atividade. Um verdadeiro plot twist! O Backup em Nuvem e-Notariado é um serviço de armazenamento de dados, e o Notarchain, o blockchain dos notários.21-22 Essas funcionalidades são serviços que foram integrados à plataforma do e-Notariado. A marca Notarchain foi registrada em nome do CNB em novembro de 2018.23 Naquele mesmo ano, um tabelião do Distrito Federal conduziu pela plataforma a primeira eleição do quinto constitucional através do Notarchain.24-25 No final de 2018, o CNB contratou o desenvolvimento da CENSEC 2.0, uma nova plataforma com código mais atualizado e de propriedade da entidade, permitindo mais facilidade de operação para o tabelião. A Censec 2.0 foi inaugurada em 07.10.2019 na sede de Brasília. Em janeiro de 201926, o e-Notariado integrou o serviço de autenticação de cópias eletrônicas, permitindo que este serviço milenar, oriundo das públicas-formas, começasse a ser oferecido também em meio digital.27 A partir de abril de 2019, com a plataforma já operacional28, o CNB organizou workshops em diversas cidades: Brasília, Porto Alegre, Florianópolis29, Curitiba30, Recife e Campo Grande receberam os eventos. Para mim, será inesquecível as expressões de incredulidade, surpresa e, algumas vezes, desdém dos tabeliães com a plataforma. No XXIV Congresso Notarial daquele ano, na Praia do Forte, Bahia, os tabeliães brasileiros e autoridades presentes, como uma senadora e deputados, emitiram os seus certificados digitais gratuitamente, assinando documentos simbólicos. Mais de 220 novos tabeliães foram credenciados como AN, Autoridades Notariais para a emissão do certificado off ICP da plataforma. O e-Notariado estava plenamente operacional e os tabeliães emitiam seus certificados com facilidade, entendendo o processo e, portanto, aceitando a nova tecnologia e a transformação da atividade. A incredulidade e desconfiança que havia nos encontros regionais foram substituídas pelo otimismo e vibração com a nova plataforma de serviços. Em dezembro de 2019, o CNB lança o Manual da Lei Geral de Proteção de Dados, um guia para que os tabeliães de notas brasileiros atendam a lei da LGPD.31 Proteção legal Ao longo deste processo de inovação, era imprescindível garantir a titularidade dos domínios e marcas nos órgãos competentes, o INPI e o Registro.br. Foram registradas as marcas do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, Escritura Simples, Notarchain e e-Notariado. Um empurrão ao futuro: a pandemia do Covid-19 O texto original da proposta de regulamentação do e-Notariado foi precedido, como disse, de longo e profícuo debate pelos tabeliães e seccionais do CNB. Apresentada ao CNJ, a proposta foi objeto de análise e discussão por todas as Corregedorias de Justiça dos Estados e Distrito Federal. A disrupção da atividade, permitindo o atendimento remoto, dá umas caneladas em costumes e práticas milenares da atividade, como o atendimento físico presencial e a assinatura de próprio punho. A proposta de regulamentação do CNB pensou em preservar os princípios notariais, adotando práticas consagradas na sociedade, como a assinatura digital e a plataforma de contratação. Buscou também atenção à territorialidade do tabelião, que sempre atendeu a sua comunidade e é proibido, por lei, de lavrar atos fora dela; por isso, a normativa fixou base territorial para atos que envolvam imóveis e critérios de domicílio das partes para atas e procurações. Alguns tabeliães debateram se o princípio da imediação, que permite o contato direto do tabelião com a parte, com a verificação da autenticidade de sua pessoa, seus documentos e, ao final, da manifestação da vontade livre e soberana, estaria mantido com o uso da plataforma remota. A verdade é que, ao longo da segunda metade do século XX, o atendimento já vinha se realizando primordialmente pela forma remota, com a comunicação ocorrendo por telefone, depois por fax e finalmente pela via telemática. A imediação ocorria quase sempre no momento da assinatura. Por isso, a disrupção exigiu a quebra deste paradigma. Ora, toda a preparação do ato mais os elementos contemporâneos de identificação e expressão da vontade, dão igual segurança de autenticidade para a atividade. Os elementos contemporâneos foram indicados no pedido inicial do CNB ao CNJ. O e-Notariado se propõe a garantir: - Confidencialidade: para que o acesso às informações seja efetuado somente por pessoas autorizadas. - Disponibilidade: para que as informações estejam disponíveis sempre que necessário para acesso dos usuários autorizados. - Autenticidade: para garantia da identidade de um usuário ou sistema com que se realiza uma comunicação. - Integridade: para que a informação seja mantida em seu estado original e proteção contra alteração indevida, intencional ou acidental na guarda ou transmissão. - Não repúdio: para garantir que um autor não possa negar falsamente uma manifestação ou documento de sua autoria. Isto é condição necessária para a validade jurídica de documentos e transações. Ademais, os sistemas informáticos devem prover: - Interoperabilidade: os sistemas e atos notariais devem possibilitar a comunicação com outros sistemas e operações, permitindo os ganhos de produtividade e segurança. Como exemplo, cita-se a interação com os órgãos corregedores, com as fazendas públicas, com os serviços registrais. - Fiscalização: os sistemas devem possibilitar a auditoria e fiscalização remota e segura, permitindo que a Corregedoria Nacional de Justiça e os demais juízes corregedores possam acessar, verificar e fiscalizar os serviços notariais. - Preservação a longo prazo: os atos notariais lavrados são públicos, sendo o notário detentor e responsável pelas informações enquanto titular da delegação. Os dados devem ser produzidos de forma a manterem-se perenemente. Todo este arcabouço de segurança, tecnológica e jurídica, está contemplado no e-Notariado. A pandemia do Covid-19 começou no Brasil após o Carnaval de 2020. Em abril, o Prov. n. 95, do CNJ, declarou que a prestação dos serviços notariais e registrais eram essenciais reconhecendo que a atividade não poderia ser interrompida durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2).32 O provimento autorizou a prática de meios remotos de atendimento, como o uso do Whatsapp e Skype, e a recepção de documentos eletrônicos em padrão PDF-A ou XML que deveriam ser assinados com o certificado digital ICP-Brasil. Também nestes formatos poderiam ser emitidos os documentos notariais e registrais, como traslados e certidões. Antes dele, em 30.03.2020, o CNB, por sua nova diretoria, apresentou uma proposta de regulamentação substitutiva ao texto anterior, pedindo urgência na aprovação para que os tabeliães brasileiros pudessem atender remotamente durante a pandemia. Na nova proposta, foi introduzido um sistema de sala de reunião através de videoconferência, cujo resultado fica gravado na plataforma para evidência futura de cumprimento dos requisitos necessários ao ato notarial. A proposta sofreu oposição de uma entidade de Santa Catarina. Contrapondo-se a ela, o CNB apresenta em 16.04.2020 uma nova minuta de regulamentação. Esta proposta foi aceita e, em 26.05.2020, a CGJ do CNJ edita o Prov. 100/2020, que dispunha sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras providências.33 Consolida-se, com o provimento 100, a formatação normativa do e-Notariado. Passado, presente e futuro, sempre inovar Nada substitui a conexão humana. O contato pessoal é o que nos aproxima e nos fez Civilização. As ferramentas para a conexão são sempre necessárias, seja o código do idioma ou o do software, sejam os cifrados sinais de fumaça, ou a criptografia. O uso dessas ferramentas, qualquer delas, pelo Notariado, com a prudência e o estudo técnico que a profissão exige, só nos eleva como servidores do povo e da sociedade. Ainda este ano, o e-Notariado superará mais de um milhão de atos protocolares realizados em meio eletrônico. O certificado notarial, oferecido gratuitamente, tem sido largamente aceito pelas pessoas que o utilizam em seus telefones celulares. A plataforma está consolidada com estatística irrefutável do sucesso. Sempre haverá muito a fazer. São exemplos do dever de casa, o desenvolvimento do sistema de back office com ferramentas de gestão, a introdução da Inteligência Artificial, a IA, na geração, produção e gestão posterior dos atos notariais. Como qualquer software, o e-Notariado está em constante evolução. A aplicação prática motiva aprimoramentos. Notários não gostam muito de mudanças constantes. Acostumemo-nos. A vida contemporânea nos terá integralmente impulsionados no invisível wireless. O trabalho de uma geração de notários brasileiros está consagrado no e-Notariado. É imprescindível honrá-la com a lembrança de todos os últimos dirigentes do CNB,34 responsáveis, cada um, por pequenos avanços, pela participação política ativa e desprendida. Louis D. Brandeis, juiz da Suprema Corte norte-americana no século XX, disse que a maior parte das coisas que valem a pena fazer no mundo foram declaradas impossíveis antes de serem feitas.35 O notariado brasileiro foi lá e fez. __________ 1 Pela novela The Life of Reason. 2 John Dalberg-Acton. 3 "Roma não foi construída em um dia" é expressão cunhada por Filipe da Alsácia no século XII. 4 Bower, Joseph L. & Christensen, Clayton M. (1995). "Disruptive Technologies: Catching the Wave" Harvard Business Review, January-February 1995. 5 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 18h01. 6 "A questão não é se os cartórios vão desaparecer, mas quando", acessado em 08.09.2023, às 18h10. 7 Uma das dezenas de matérias jornalísticas da época, em 2016, por todas, acessada em 08.09.2023, às 17h15. 8 Juntamente com o autor, Danilo Alceu Kunzler, Emanuelle Perrota, Filipe Andrade Lima Melo, Otavio Guilherme Margarida, Walquiria Maria Rabello, Carlos Firmo, Hercules Benício, Ana Paula Frontini, Ângelo Volpi Neto, Maxwell Pariz Xavier e Fabio Zonta. 9 Explico: o papel e a escrita, primeiro manual, depois impressa, moldaram a civilização e o notariado, em particular, desde a sua fundação com o Código de Justiniano, no ano 536, renovada em nossa tradição portuguesa com o regulamento de D. Diniz, em 1215. Como, agora, confiar em códigos e programas feitos por terceiros? 10 Apresentados no XI Encontro Notarial e Registral do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no dia 28.04.2017. 11 Marcos de Paola e Renato Martini seguem colaborando com o CNB até hoje. 12 Este modelo impediu que fossem aproveitados aplicativos já desenvolvidos pelas seccionais, gerando certo atrito. 13 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h23. 14 O país que tivesse uma plataforma digital de contratação somava pontos no relatório. 15 A data exata do lançamento da plataforma é 28.12.2018. 16 O pedido de providência de n. 0001333-84.2018.2.00.0000 foi aprovado e resultou no Prov. 100, em 26.05.2020. O processo completo pode ser baixado aqui. 17 DOU 20/08/2019. Processo n.º 00100.000012/2019-24. Vigência: início: 15/08/2019 - término: 60 meses. Título do Projeto: Acordo de Cooperação Técnica entre o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI e o Colégio Notarial do Brasil Conselho Federal - CNB-CF, com a intervenção da união, por intermédio da Casa Civil da Presidência da República. Objeto: O presente Acordo de Cooperação Técnica - ACT tem por objetivo viabilizar a cooperação técnico-normativa entre o ITI e o CNB-CF, com vistas ao aprimoramento e compatibilização do sistema e-notariado, mantido pelo CNB-CF e, assim, usado exclusivamente pelo notariado brasileiro, apoio técnico para sua implantação como uma Autoridade Certificadora da ICP-Brasil, bem como a realização de estudos para a possível utilização da base biométrica e biográfica mantida pelo e-notariado de forma compatível aos padrões da ICP-Brasil. Partícipes: pelo ITI, MARCELO AMARO BUZ, Diretor-Presidente, pelo CNB-CF, PAULO ROBERTO GAIGER FERREIRA, Presidente e pela Casa Civil da Presidência da República, ONYX DORNELLES LORENZONI, Ministro-Chefe. 18 Os módulos de segurança HSM (hardware security modules) são dispositivos de hardware sólidos e resistentes a manipulações que asseguram os processos criptográficos gerando, protegendo e administrando as chaves utilizadas para encriptar e desencriptar dados, e criar assinaturas e certificados digitais. Os HSM se provam, validam e certificam com padrões de segurança mais elevados., 19 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h20. 20 PP 00111315-25.2018.2.00.0000 autuado pelo Corregedor Nacional de Justiça em 06.02.2019, e que resultou no Prov. 103/2020, criando o módulo do e-Notariado para a emissão da Autorização Eletrônica de Viagem. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h35. 23 A data exata de lançamento é 09.08.2019. 24 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h33. 25 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h34. 26 A data exata é 07.01.2019. 27 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h23. 28 E-notariado promete revolucionar a prestação de serviços dos cartórios, artigo de 17.06.2019, acessado em 08.09.2023, às 17h30. 29 Tabeliães de Santa Catarina poderão aderir ao e-notariado durante Congresso Regional da Anoreg/SC, notícia de 28.06.2019, acessado em 08.09.2023, às 16 horas. 30 Gazeta do Povo - 02.08.2019 - tutorial sobre o e-Notariado, acessado em 08.09.2023, às 16h05. 31 Disponível aqui. 32 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h40. 33 O Prov. 100 CNJ e todos os demais, anteriores a maio de 2023, foram revogados e seus textos consolidados no Prov. 249/2023. 34 Tullio Formicola, Ângelo Volpi Neto, João Figueiredo Ferreira, Índio do Brasil Artiaga Lima, José Flávio Bueno Fischer, Ubiratan Pereira Guimarães e suas diretorias. 35 "Most of the things worth doing in the world had been declared impossible before they were done."
Hoje damos seguimento à série iniciada com o texto publicado no site Migalhas Notariais e Registrais, na sua edição de 29/5/2023. O objetivo destes artigos é iluminar o caminho acidentado que nos conduziu ao SERP, "uma ideia fora do lugar"1. Ao lado dos tradicionais registros de direitos, previstos na Lei 6.015/1973, foram criadas, ao longo do tempo, outras modalidades de registros públicos2. As chamadas entidades registradoras, que tantas apreensões suscitou entre registradores, estreariam no cenário brasileiro com a criação do CDA (Certificado de Depósito Agropecuário) e do WA (Warrant Agropecuário3) pela MP 221/2004, convertida depois na Lei  11.076/2004, alterada posteriormente pela Lei 13.986/2020. Ali se constituía uma modalidade de registro de ativos financeiros e de valores mobiliários de que trataria posteriormente a lei 12.810/2013 (inc. III do art. 4º). Mais tarde, com o advento da lei 12.543, de 8 de dezembro de 2011, seria acrescentado o art. 63-A à lei 10.931/2004, in verbis: Art. 63-A. A constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários em operações realizadas no âmbito do mercado de valores mobiliários ou do sistema de pagamentos brasileiro, de forma individualizada ou em caráter de universalidade, será realizada, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, exclusivamente mediante o registro do respectivo instrumento nas entidades expressamente autorizadas para esse fim pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, nos seus respectivos campos de competência. Parágrafo único. O regulamento estabelecerá as formas e condições do registro de que trata o caput, inclusive no que concerne ao acesso às informações. A lei era defectiva e francamente criticada pelos agentes do mercado. A redação do dispositivo acabava por limitar a constituição de ônus e gravames a operações realizadas unicamente no âmbito do mercado de valores mobiliários ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro, gerando incertezas jurídicas nos operadores. Afinal, quais operações estariam contempladas em seu plexo?4 Assim nascia a lei 13.476, de 28 de agosto de 2017, que alteraria a lei 12.810/2013, a fim viabilizar a constituição de ônus e gravames de ativos financeiros e valores mobiliários depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que tais operações dissessem respeito. O típico instrumento jurídico-financeiro da securitização desenvolvia-se e ganhava espaço no Direito brasileiro. Aqui aparece, também, e novamente, a locução "entidade registradora", expressão vaga e imprecisa, sem nome próprio, que se implantava no quadro normativo e vicejaria no cenário legal com bastante vigor. Art. 26. A constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado será realizada, exclusivamente, nas entidades registradoras ou nos depositários centrais em que os ativos financeiros e valores mobiliários estejam registrados ou depositados, independentemente da natureza do negócio jurídico a que digam respeito. § 1º Para fins de constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários que não estejam registrados ou depositados nas entidades registradoras ou nos depositários centrais, aplica-se o disposto nas respectivas legislações específicas. § 2º A constituição de gravames e ônus de que trata o caput deste artigo poderá ser realizada de forma individualizada ou universal, por meio de mecanismos de identificação e agrupamento definidos pelas entidades registradoras ou pelos depositários centrais de ativos financeiros e valores mobiliários. § 3º Nas hipóteses em que a lei exigir instrumento ou disposição contratual específica para a constituição de gravames e ônus, deverá o instrumento ser registrado na entidade registradora ou no depositário central, para os fins previstos no caput deste artigo. § 4º Compete ao Banco Central do Brasil e à Comissão de Valores Mobiliários, no âmbito de suas competências, estabelecer as condições para a constituição de gravames e ônus prevista neste artigo pelas entidades registradoras ou pelos depositários centrais, inclusive no que concerne ao acesso à informação. § 5º Compete ao Banco Central do Brasil, no âmbito de suas atribuições legais, monitorar as operações de crédito afetadas pelo disposto neste artigo, com a verificação do nível de redução do custo médio dessas operações, a ser divulgado mensalmente, na forma do regulamento. Segundo o Diretor do Banco Central, REINALDO LE GRAZIE, esta mudança "ocorreu para ampliar o escopo de atuação das infraestruturas do mercado financeiro, mais especificamente das entidades registradoras, na constituição de gravames e ônus sobre operações realizadas no âmbito do mercado financeiro, não mais limitadas ao universo do mercado de valores mobiliários e do sistema de pagamentos brasileiro. Com isso, pretendeu-se que os benefícios alcançados com a constituição de gravames e ônus, realizados nestas infraestruturas, fossem estendidos a outras operações realizadas entre as instituições financeiras e seus clientes"5. Muito embora o arcabouço legal criado almejasse prover segurança às ditas operações, com o registro dos chamados "ônus e gravames", a assimilação de expressões como eficácia perante terceiros, publicidade constitutiva, entidade registradora etc., tão caras ao direito civil6, causava apreensões entre os registradores brasileiros. Seria possível que estas entidades para-registrais progressivamente avançassem ainda mais e absorvessem a constituição de direitos reais de garantia mobiliária e imobiliária? Eu mesmo cogitaria que o avanço sobre domínios da publicidade jurídica, criada por lei, regulada e fiscalizada pelo Poder Judiciário, poderia representar uma espécie de fato consumado e de nada nos adiantaria argumentar com princípios registrais e com a tópica da "segurança jurídica" etc. Por essa razão o texto era provocativo: A inconstitucionalidade dos meteoros...7 A inquietação não era ociosa. O abandono de instrumentos tradicionais de garantia real imobiliária, como a hipoteca, nos levaria à adoção de sistemas das garantias fiduciárias, recuperando modelos dissonantes na perspectiva da larga tradição do sistema da Civil Law8. Ademais, a cessão dos créditos imobiliários, nos termos do § 1º do art. 22 da lei 11.931/2004, além de transferir os créditos garantidos ao cessionário, investe-o na propriedade resolúvel. As mutações na titularidade dos direitos reais ocorreriam, a partir desta lei, fora do Registro, em repositórios extra tabulares, e o trato sucessivo se interromperia, inaugurando cadeias formadas no âmbito de entidades registradoras, em afronta aos artigos 195 e 237 da LRP, dentre outros9. Esta espécie de fork registral deixa inscrições abertas e adéspotas nos cartórios. Afinal, não se sabe quem seja, num dado momento, o titular do crédito e das garantias reais representadas pela propriedade fiduciária. Desde sua concepção, ainda no século XIX, o Sistema Registral busca atrair para seus livros de registro as vicissitudes que, muitas vezes, mantêm-se ocultas e têm o condão de inocular o germe de incertezas e insegurança no tráfico jurídico-imobiliário, abalando a plena eficácia dos direitos inscritos. Sempre foram conhecidas as tenebrosas figuras de ônus e gravames ocultos, cujos efeitos deletérios o Registro de Imóveis buscou remediar ao longo de mais de uma centúria. Entretanto, vez por outra, experimentamos recidivas desse fenômeno que representa uma nódoa sistemática e que pode acarretar graves repercussões jurídico-econômicas. A legislação não cerca, com o rigor necessário, as hipóteses que escapam aos tradicionais processos da publicidade registral que deve ser concentrada no Registro de Imóveis, entes criados e fiscalizados pelo Poder Público, cuja experiência provada remonta há mais de um século. Causa espécie a "fuga privatística"10 de certas transações com transcendência real de seu estrado natural de publicidade jurídica. Como se sabe, a disposição legal contida no art. 169 da LRP criou um ônus - não em sentido estrito de obrigação ou dever jurídico, ou "gravame", como se diz na novilíngua registral, mas de faculdade concedida pela lei ao interessado e que tem o condão de desencadear certas e importantes consequências jurídicas11.  Ao dispor que os atos de registro são obrigatórios, consagrou o princípio da inoponibilidade de atos, fatos e negócios jurídicos não inscritos12 - nota bene: não inscritos nos registros públicos. A regra se associa com a disposição contida no art. 252 da LRP, pois o registro, "enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido". Note-se que a lei 13.097/2015 é posterior à lei 10.931/2004. Esta norma, de 2004, previu, no § 2º do artigo 22, a dispensa de averbação das cessões de crédito garantidos por direitos reais. O fato representado pelo advento de lei posterior é um dado que deve ser relevado na compreensão dos problemas postos pela lei 10.931/2004, especialmente pelo advento de novas tecnologias que permitiriam operações em XML, em tempo real e a custo modicíssimos. Além disso, a dispensa da averbação não se compagina com os princípios do direito civil e registral. É da tradição do direito registral brasileiro a obrigatoriedade do registro (hoje averbação) de cessões de crédito e de sub-rogações nos direitos reais (n. 30 e 35, inc. II, do art. 167 cc. art. 246 da LRP). AFRÂNIO DE CARVALHO enfrentaria, a seu tempo, a obrigatoriedade da averbação da cessão do crédito garantido por hipoteca. Diz: "Assim, importa reconduzir claramente a cessão da hipoteca ao sistema do registro com caráter obrigatório e esclarecer, de uma vez por todas, qual a formalidade adequada para consigná-la. A obrigatoriedade tem por fim assegurar ao cessionário a permanência da inscrição e a impossibilidade do seu cancelamento à sua revelia. Afinada com o sistema de publicidade, foi aplaudida ao tempo do Regulamento n.º 370, de 1890, e, a despeito do texto dúbio do Código Civil, continua a ser havida como vigente". (...) "Além de prevenir a reabertura de uma discussão estéril, o registro obrigatório da cessão fará com que esta surta normalmente efeitos contra terceiros, impedindo assim que estes venham a ser ludibriados mediante sucessivas transferências do mesmo crédito feitas indevidamente pelo credor. Terceiros são principalmente os eventuais cessionários do crédito, uma vez que, registrada a cessão por um deles, este se torna o verdadeiro titular da hipoteca, sem que os demais lhe possam opor qualquer pretensão, em vista da prioridade do seu registro"13. O foco das digressões de AFRÂNIO DE CARVALHO repousava sobre os direitos reais de garantia hipotecária. Ora, a alienação fiduciária é um típico direito real de garantia e a sua equivalência com a hipoteca, nos aspectos de garantia, eficácia e oponibilidade, é perfeitamente admissível. Por fim, alie-se ao princípio de continuidade os de presunção ("presume-se pertencer o direito a quem o inscreveu assim como o inscreveu"14 - art. 1.231 do CC) - e o de eficácia da inscrição (enquanto o registro não for cancelado, este "produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido" (art. 252 da LRP) e teremos um quadro mais nítido. O advento de instituições custodiantes e de registro ocorre no contexto das operações de securitização e de cessão de direitos de garantia por meio de cédulas ou de recebíveis15. Mesmo após o seu début no registro imobiliário, com a criação dos CRIs (certificados de recebíveis imobiliários) sempre buscou-se manter o liame entre os recebíveis (securitizados) e o seu lastro na garantia real por ocasião de emissões dos títulos (arts. 7º e 8º da Lei 9.514/1997). Entretanto o elo foi rompido com o advento da lei 14.430/2022; desde então, não há um vínculo persistente que permita a atualização, em tempo real, das cessões sucessivas que podem ter origem na mesma garantia inscrita. Dizem BRANDELLI e MAZITELI NETO que a supressão do vínculo orgânico entre o produto financeiro e o imóvel, que lhe dá lastro, representa um grau de opacidade criticável: "Ao reverso, na contramão da necessidade de maior publicidade para a análise do risco de crédito, não há, na Lei 14.430/2022, qualquer menção à matrícula. Mais que isto, agora, sob este novo marco regulatório, o registro do termo, ao contrário de se dar no registro imobiliário oficial, agora é obrigatório em entidade, autorizada pelo Banco Central ou pela CVM, a exercer tal função"16. O que é central ou periférico nesta discussão? A criação de plataformas e repositórios digitais eletrônicos, a latere dos registros públicos tradicionais, é um fenômeno que se instaura e desenvolve rapidamente pelo advento de novas tecnologias da informação e comunicação17. Além disso, o surgimento e o desenvolvimento de novas modalidades de operações - como a securitização - acarreta a necessidade de novas e adequadas soluções de publicidade e eficácia das transações que se desdobram a partir do objeto da garantia imobiliária cuja âncora é a matrícula eletrônica. A primeira grande tentação de todos aqueles que cogitam a criação de um sistema registral eletrônico - moderno, rápido, eficiente e barato -, é tentar promover a centralização de dados, concentração de operações, de acesso e de intermediação de transações. Confundem-se a centralização de acesso (universalização) com a concentração de dados, operações e intermediação. Já tive ocasião de apontar que esta tentação é reacionária e representa um retrocesso na ideia genial que foi a nossa blockchain analógica18 - a criação dos cartórios brasileiros, com distribuição de atribuições, competências e dados entre todas as unidades do círculo registral: "Em tempos de ereção de cripto-soluções descentralizadas, vendidas como remédio para todos os vícios tipicamente humanos - como os NFT's baseados em blockchain, [...] pensar em centrais, como o SERP, soa-nos um irremediável soluço reacionário. Entretanto, é ainda pior. Quando se pensa que os protocolos divinos do sistema criptográfico podem oferecer soluções paliativas ao sistema estatal de prevenção, adjudicação, defesa e garantia de direitos, até mesmo NICK SZABO seria capaz de nos convencer do acerto de soluções apresentadas ainda em 1998: 'Straightforward transcription of written records into a centralized online repository would make many of these problems even worse - electronic records can be highly vulnerable to loss and forgery, and insiders are the most common source of such attacks. This paper proposes a secure, distributed title database to prevent such attacks against property rights in the future'. Ele concluiria, afinal, que a descentralização é a solução: 'this technology will give us public records which can survive a nuclear war'"19. A maior agilidade e liberdade de atuação, livre das peias fiscalizatórias e regulamentares do Poder Judiciário, ao lado de facilidades de gestão de registros concentrados em grandes bancos de dados, parece ter inspirado a decisão de emular as ditas entidades registradoras, buscando-se uma precária equiparação20. Esta foi, possivelmente, a senha para o apoio entusiasmado que alguns setores deram às iniciativas legislativas de criação de entidades registradoras registrais, com o perdão da tautologia. Além disso, pretendeu-se muito mais: abarcar, entre os leques de atribuições próprias, as de registros extravagantes, criados no âmbito do mercado de capitais, com a assimilação de novas e poderosas ferramentas de tecnologia financeira, de comunicação e informação21. Vamos reprisar as iniciativas que se sucederam no tempo. Afinal, vale a pena ver de novo... PL 9.327/2017 - a dança das cadeiras: protesto sai - RTD entra Vamos iniciar nosso périplo pelo PL 9.327/2017, depois convertido na lei 13.775/2018. Buscou-se disciplinar a emissão de duplicatas sob a forma escritural por entidades que exerceriam a "atividade de escrituração de duplicatas", dispensado, de partida, o protesto do título, tornado meramente facultativo, (§ 2º do art. 6º do PL 9.327/201722). O projeto nos revelaria uma nova entidade registradora, fiscalizada pelo Banco Central do Brasil, nos termos de diretrizes do Conselho Monetário Nacional (parágrafo único do art. 2º do projeto original do deputado JÚLIO LOPES). O PL ganharia emendas na sua tramitação e a previsão da criação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto (afinal consagrada no art. 41-A da Lei 9.492/1997) foi assim justificada pelo deputado RUBENS OTONI:     "Ademais, o substitutivo prevê a criação, pelos Tabeliães de Protesto, de uma central nacional de serviços eletrônicos, cuja adesão deverá ser obrigatória sob pena de responsabilização disciplinar, que permitirá à sociedade o acesso centralizado e eletrônico a diversos serviços que, hoje, são prestados de forma descentralizada, aspecto que é de grande relevância para o país"23. Nesta altura, uma característica gravosa se revelou no âmbito dos serviços notariais e registrais - advinda certamente do impacto das novas tecnologias de informação e comunicação e ela despontaria claramente neste projeto: a confusão de atribuições próprias de cada especialidade. Depois da tentativa de provocar a depressão da atuação do tabelião de protesto, tal como disposto no PL 9.327/2017, o Dep. ELI CORRÊA FILHO apresentaria uma emenda criando outra central - a do RTD - justificando-a deste modo: "[...] motivo que evidencia a conveniência da concentração das informações registrais pela Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos, que fornecerá acesso fácil e unificado às informações registrais, mas com a vantagem de ter o suporte de uma rede integrada por mais de 3.000 cartórios espalhados por todo o país, atuando toda essa estrutura em apoio às entidades autorizadas pelo Banco Central para a formação de um banco de dados seguro e confiável, com absoluta transparência e imparcialidade, bem como para a aproximação do cidadão comum e de micros e pequenas empresas a esse robusto sistema de informações integradas"24. Notem-se as expressões - concentração de informações em central nacional, banco de dados seguro etc. São expressões que denotam o impulso de concentrar as atividades registrais em entes destacados do sistema constitucional dos Registros Públicos. A criação da  Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto foi afinal consagrada na lei 9.492/1997 (art. 41-A). Já a Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos (§ 2º do art. 3º da lei 13.775/2018), criada com finalidades muito específicas, dependeria de regulamentação do Poder Executivo, o que aparentemente não ocorreu. A lei 13.775/2018 criaria uma Central de RTD homóloga ao estereótipo das entidades registradoras. No § 2º do art. 3º previu-se que, no caso da escrituração de que trata o caput do dito artigo (emissão de duplicata sob a forma escritural), a ser feita pela Central Nacional de RTD, após autorizada a exercer a atividade prevista no caput (§ 1º do mesmo artigo25), a referida escrituração caberia, em regra, ao oficial de registro do domicílio do emissor da duplicata. Escrituração de duplicatas escriturais? A cargo de registradores? Isto soa, deveras, extravagante. Esta bizarrice somente seria suplantada pela tentativa de criação do dublê de registrador e agente de garantias, como proposto por alguns registradores e veiculado por emendas oferecidas na tramitação da MPV 992/2020, como se verá em detalhes à continuação deste trabalho. O RTD buscou, àquela altura, ombrear-se às entidades registradoras, que exerceriam "a atividade de escrituração de duplicatas escriturais". Como vimos, estas entidades deveriam "ser autorizadas por órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta a exercer a atividade de escrituração de duplicatas", vale dizer, pelas autoridades monetárias ligadas ao Banco Central ou Conselho Monetário Nacional. Buscava-se, de quebra, escapar da regulamentação e fiscalização do Poder Judiciário... Entretanto, essa configuração extravagante não logrou êxito. Ficou na história das leis que "não pegaram". Os ditos órgãos da administração federal jamais regulamentaram tal entidade registradora de registradores que assim ficou à deriva, sem lastro e direção. Busca-se, agora, ancorá-la no SERP (inc. VI do art. 7 da lei 14.382/2022), dispondo, dita lei, que o CNJ deverá regulamentar "a forma de integração da Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos, prevista no § 2º do art. 3º da lei 13.775/, de 20 de dezembro de 2018, ao SERP". Deslocou-se o eixo do "órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta" para o Poder Judiciário (Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ). Seja como for, o Provimento CNJ 139, de 1 de fevereiro de 2023, não tratou disso. A Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Protesto deverá interoperar com o SERP (art. 15), bem assim os tabeliães de notas (art. 16). Já a Central Nacional de Registro de Títulos e Documentos restou à margem e as unidades de RTDPJ ficarão vinculadas diretamente ao ON-RTDPJ (parágrafo único do art. 3º) que, por seu turno, integrará o ON-SERP (art. 3º). Todos sob a regulação, fiscalização e coordenação do Poder Judiciário. Entidades registradoras registrais - a história se repete No próximo capítulo, vamos nos debruçar sobre as medidas provisórias e vários projetos de lei que buscaram alterar a Lei de Registros Públicos, produzindo conteúdos que serviriam para fundamentar as reformas que culminariam com a Lei 14.382/2022. Em seguida, vamos igualmente nos debruçar sobre a minuta de medida provisória e do projeto de Home Equity encaminhados por registradores ao Governo Federal. Nesta documentação, aparecerão figuras controversas - como o agente de garantias (a cargo de registradores de RI e RTD) e o malsinado Serviço Central de Gestão de Garantias, que originalmente ficaria a cargo da "Central Nacional de Serviços Eletrônicos Compartilhados, de que trata o art. 41-A da lei 9.492, de 1997". __________ 1 JACOMINO. Sérgio. SERP - Uma ideia fora do lugar - parte I. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 29/5/2023. "Uma ideia fora do lugar", é paráfrase do célebre livro de ROBERTO SCHWARS que apontou, ainda em 1973, que as ideias importadas acabam se desfigurando na sua realização prática. A nouvelle vague registral, subserviente aos ditames da cultura jurídica alienígena, nos revelou um monstro disforme - SERP - o "Monstro de Horácio" dos Registros Públicos. 2 A própria LRP o prevê no § 2º do art. 1º que "os demais registros reger-se-ão por leis próprias". Há vários exemplos: Registro de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998, art. 18 e ss. c.c. § 2º do art. 17 da Lei 5.988, de 14.12.1973); Registro de Marcas e Patentes e Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996); Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (Lei 8.934/1994). O exemplo emblemático se daria com o registro de veículos automotores e de seus gravames. O STJ decidiria que o registro administrativo da alienação fiduciária de veículos automotores no órgão de licenciamento faria as vezes do registro jurídico a cargo do Cartório de Títulos e Documentos (RTD), "por isso que, mercê de a exigência de duplo registro revelar odiosa imposição, afronta o princípio da razoabilidade, posto impor desnecessário bis in idem". Koll: http://kollsys.org/ofl. Os precedentes mais gravosos são do STF: ADIs 4.227 (http://kollsys.org/jb0), 4.333 (http://kollsys.org/jb1) e o Recurso Extraordinário 611.639 (http://kollsys.org/jb2), com repercussão geral reconhecida. V. JACOMINO. S. RTD - crônica de uma morte anunciada. In Observatório do Registro, 22/10/2015: http://bit.ly/rtd-stf-obregistro. 3 O CDA é "título de crédito representativo de promessa de entrega de produtos agropecuários, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico". Os CDA's são depositados em conformidade com a Lei 9.973/2000. Já o warrant agrário "é título de crédito representativo de promessa de pagamento em dinheiro que confere direito de penhor sobre o CDA correspondente, assim como sobre o produto nele descrito" (art. 1º da Lei 11.076/2004). 4 Esta foi a avaliação na reunião do Banco Central (Ata BCB 3.2O7a), parecer de REINALDO LE GRAZIE, Diretor de Política Monetária, firmado em 5/9/2018. Koll: http://bit.ly/193-2018-bcb. A mensagem que encaminhou a MP 775/2017 ao Congresso já destacava este aspecto. V. EMI 00005/2017, BACEN, MF, de 31/3/2017. 5 Idem, ibidem. 6 Ônus e gravames são expressões polissêmicas. Uma abordagem preliminar, necessária para a especificação do SREI, pode ser consultada aqui: JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas, 2022. Acesso aqui. 7 JACOMINO. Sérgio. Registro de Garantias no BACEN - um ataque ao sistema registral. São Paulo: Observatório do Registro, 25.5.2012. Acesso aqui. Vide também JACOMINO. Sérgio. A inconstitucionalidade dos meteoros. Loc. cit. Acesso aqui. 8 Bastante impressiva era a opinião de TEIXEIRA DE FREITAS. Na reforma de Paranaguá (1862) o jurista do Império disse a propósito da chamada venda a retro: "A legislação, como todas as instituições humanas, não está condemnada á immobilidade, e na parte relativa ás hypothecas muito convém estudar a historia della, para ver-se como da primitiva e grosseira idéa da transmissão do immovel no penhor e na venda a retro chegou-se ao systema das hypothecas occultas do Direito Romano, e como das instituições feudaes brotou o germen das hypothecas publicas e especiaes, hoje em maior ou menor escala estatuidas nos codigos e legislações modernas". V. Reforma Hypothecaria. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1860, p. 88-89. 9 A tendência igualmente se verifica nos artigos 7º e 8º da Lei 11.922/2009. Cheguei a discutir brevemente as questões que decorrem da opção legislativa em pequeno artigo publicado. JACOMINO. Sérgio. A opacidade dos registros eletrônicos privados e o risco sistêmico ao crédito imobiliário. In Registro Público de Imóveis Eletrônico - riscos e desafios. Op. cit., p. 127 e ss. 10 A expressão é de Ricardo DIP. Registros sobre registros # 50, 3/5/2017. Acesso: https://bit.ly/3d7nw6w  [mirror].  11 GRAU, E. R. Direito, Conceitos e Normas Jurídicas. São Paulo: RT, 1988, p. 118-119 ; JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. SREI - Ontologia titular - Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações, 10/11/2021, São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais. Acesso aqui. 12 O duplo aspecto decorrente da inscrição - inoponibilidade e fé pública registral -, a partir da Lei 13.097/2015, é bem estudado por IVAN JACOPETTI DO LAGO. Segundo o autor, inaugurou-se a novidade da eficácia material do registro trazida pela Lei 13.097/2015 que, segundo ele, é "mais ampla, e tem por objeto proteção geral ao  terceiro de boa-fé, pela eficácia material do registro". Cf. LAGO. Ivan Jacopetti do. A Lei 13.097 de 2015 e sua contribuição para a Governança Fundiária. RDI 81, jul./dez. 2016, p. 178. 13 CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 152. 14 CARVALHO. Afrânio. Op. cit., p. 299. 15 Sobre as distinções entre cédulas escriturais e cartulares, bem como acerca do papel das entidades registradoras e custodiantes, criadas e fiscalizadas pelo Banco Central, confira: JACOMINO. Sérgio.  CNGR -Central Nacional de Gravames Registrais. São Paulo: Observatório do Registro, 2023. Acesso aqui. 16 BRANDELLI. Leonardo. MAZITELI NETO. Celso. Avaliação de risco de créditos em recebíveis imobiliários e a Lei 14.382/2022. In Sistema Eletrônico de Registros Públicos comentado. NALINI. José Renato, Org. São Paulo: Forense, 2022, p. 80, passim. O colapso ocorrido com conhecido banco de investimentos brasileiro, que acabou por gerar rombo bilionário, deu-se por não se registrar operações de cessão liquidadas. A reação do mercado foi a criação de mais um registro especializado - Central de Cessão de Crédito (C3). 17 JACOMINO. Sérgio. Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Boletim do IRIB em Revista n. 354, mar.2016, especialmente O registro é o  que os seus meios condicionam e determinam, p. 74 et seq. 18 "Os dados dos registros de imóveis de todo o país estão descentralizados e é justamente essa arquitetura tradicional, uma espécie de blockchain analógica, que tem impedido, ao menos até agora, que os dados registrais sejam devassados, ao contrário de outras bases de dados do próprio governo federal, por exemplo. JACOMINO. Sérgio. Protocolo para-registral. São Paulo: Observatório do Registro, 1/10/2020. Acesso aqui. 19 JACOMINO. Sérgio. MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9/3/2022. Acesso aqui. O assalto às bases de dados centralizados não poupou os cartórios. Desde a invasão do site da AnoregSP em 27/12/2007, vários órgãos foram vítimas, como a ARISP, IRIB e o próprio CNJ. Entretanto, o mais grave terá sido o acesso à base de dados da ARPEN: Falha de cartórios expõe dados de ao menos 1 milhão de pais, mães e filhos. FSP 29/10/2019. [mirror]. 20 Curiosamente, a recente regulamentação de entidades registradoras, encarregadas da securitização dos recebíveis, a cargo do Banco Central do Brasil, aponta para a criação de plataformas interoperáveis, não centralizadas, resguardando as atribuições próprias de cada entidade registradora e estabelecendo protocolos de interação entre elas. V. art. 9º e seguintes da Resolução BCB 308, de 28/3/2023, publicada no DOU de 30/3/2023, Seção 1, p. 148. 21 Os movimentos de reforma são revérberos de práticas recomendadas pela UNCITRAL. Third-party effectiveness of a security right. UNCITRAL. Guide on the Implementation of a Security Rights Registry. Viena. UN, 2014, p. 10 et seq. A ideia de publicidade de direitos de garantia, uma evolução tradicional e natural da Civil Law, foi assimilada pelo Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, como se pode ler em Publicity of Security Rights Guiding. Principles for the Development of a Charges Registry. EBRD, 2004. Acesso aqui. São ideias que se espraiaram em vários contextos. 22 Diário da Câmara dos Deputados, ed. 6/2/2018, p. 187-190. 23 Emenda de Plenário EMC 6/2018, Dep. RUBENS OTONI. 24 EMC 8/2018 CDEICSDE 9/5/2018, Dep. ELI CORRÊA FILHO. 25 § 1º As entidades de que trata o caput deste artigo deverão ser autorizadas por órgão ou entidade da administração federal direta ou indireta a exercer a atividade de escrituração de duplicatas.