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Processo e Procedimento

As principais questões do novo CPC.

Guilherme Pupe da Nóbrega e Jorge Amaury Maia Nunes
Jorge Amaury Maia Nunes Continuamos com o estudo das ações possessórias, iniciado na semana passada e que corresponde, no novo Código, ao exame dos arts. 554 a 568. Em ambos os códigos (o de 1973 e o de 2015), a primeira preocupação do legislador foi marcar o caráter de fungibilidade entre as diversas ações possessórias, que, no novo Código, estão tratadas no capítulo III do Título III do Livro I da Parte Especial: ação de manutenção da posse, ação de reintegração da posse e interdito proibitório. Tanto é assim que a redação dos artigos, nos dois códigos, de abertura é bastante semelhante: a propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados, diz o novo Código. Implica dizer que a nominação da ação e mesmo o pedido não vinculam o juiz que há de prestar a tutela necessária, desde que os pressupostos narrados estejam provados. O código anterior, em lugar de pressupostos, cuidava de requisitos. Não tenho muita convicção sobre se o legislador sabe por que mudou a redação, mas a presunção é de que sim. Nas suas respectivas teorias gerais, Pontes de Miranda, Calmon de Passos e Marcelo Rebelo de Souza (este último no direito português) cuidaram da teoria dos três planos para explicar os atos jurídicos: (i) plano da existência; (ii) plano da validade; e (iii) plano da eficácia. Em linguagem bem simples, dizemos que o plano de existência tem pertinência com os pressupostos, i.e, aqueles supostos lógicos do ser ou da coisa, aqueles elementos que devem existir antes do ser ou da coisa considerada. Pense, por exemplo, no conceito de filho biológico, na década de 50 do século passado. Pressuporia pais de diferentes sexos, uma cópula carnal, uma fecundação bem-sucedida, o decurso de certo tempo sem intercorrências graves e, finalmente, o nascimento. Antes do advento do ser, muitos pressupostos estiveram presentes, sem os quais não poderíamos falar naquele específico filho biológico. O plano da validade tem pertinência com os requisitos (ou elementos, expressão preferida por Marcelo Rebelo de Souza), isto é com aquilo que permite seja a coisa identificada como tal. Todas as coisas, de acordo com essa teoria, têm um figurino que permite a sua identificação imediata. Se você diz a uma vendedora de certa loja de roupas, digamos assim, normais: quero comprar uma calça comprida. Em condições normais, ela poderá mostrar vários modelos que atendam a uma ideia que está na mente de ambas, vendedora e compradora; mas não trará shorts, bermudas, vestidos de noite (pelo menos, no primeiro momento, não trará!) porque as outras peças de vestuário não cabem no figurino calça comprida, como percebido pela sociedade em geral. O plano da eficácia (de menor interesse neste momento) tem pertinência com as condições para que certo ato seja gerador de efeitos, por exemplo, a publicação de uma norma que se quer ver cumprida. Se a norma não é tornada pública, o seu editor não poderá esperar o cumprimento por parte dos destinatários. Voltando ao tema do art. 554, o legislador parece ter querido dizer que a concessão da proteção possessória será realizada por meio da ação do Estado-juiz que corresponda aos supostos fáticos (pressupostos) que sejam provados no curso da relação processual, isto é, o conjunto de situações geradoras daquela situação de fato apelidada de posse, como tal reconhecida e protegida pelo Direito. Em outras palavras, reafirmou a teoria da substanciação. Penso, entretanto, que o legislador andaria melhor se tivesse feito alusão tanto aos pressupostos como aos requisitos da posse. Uma coisa é o plano da existência, outra é o plano da validade.O Código modernizou-se, no que concerne à tutela possessória, ao perceber que conflitos dessa natureza perderam o caráter individual e passaram a ser preponderantemente coletivos. Essa mudança gerou a necessidade de outra forma de estabilização e gestão da relação processual apta a solucionar o problema. Nesse sentido, o § 1º do art. 554, estabelece que, quando o polo passivo for composto de grande número de pessoas, a citação ocupantes será pessoal (e o oficial de justiça realizará uma única diligência) para os que forem encontrados no local designado; será editalícia para os demais, cabendo, ainda, a intimação do Ministério público e, se o caso, da Defensoria Pública.A maior publicidade possível em relação a ações envolvendo conflitos desse jaez é desejada pelo Estado, razão por que o magistrado deve determinar a sua divulgação por meio de anúncios de jornal e rádio, além da divulgação de cartazes na região do conflito. Como as ações possessórias são ações sumárias (pertinentes aos processos sumários determinados), fato que poderia conduzir ao estreitamento da tutela por essa via obtenível, houve por bem o legislador estabelecer que é lícito cumular o pedido possessório com outros pedidos que, sem ostentar a mesma natureza, sejam conexos com a matéria em discussão. Assim, é lícito ao autor, cumular ao pedido possessório outro pedido de condenação em perdas e danos, ou de indenização dos frutos, (e, aqui, a hipótese é de cumulação própria: o autor formula mais de um pedido e pretende obter a proteção estatal em relação a todos, diferentemente da cumulação imprópria, em que o autor formula mais de um pedido, em ordem subsidiária ou alternativa, mas só será satisfeito com o atendimento de um deles). Quando dizemos que os pedidos devem ser conexos, queremos afirmar que as perdas e danos hão de estar vinculadas, atreladas, à ofensa possessória. Parece que continua a ter algum fundamento é o fato de que, se o pedido cumulado não tiver essa vinculação, sua apreciação somente será possível que a ação não for processada pelo rito especial das possessórias e se subordinar as regras do procedimento comum, em atenção ao comando do art. 327, § 2º do novo Código.Corretamente, estabeleceu no parágrafo único, a possibilidade de requerimento de tutelas processuais tendentes a evitar nova turbação ou esbulho e, também, para cumprimento de tutela provisória ou final, até porque, como visto semana passada, é da natureza das ações possessórias, desde o procedimento interdital romano, a concessão de proteção antecipada ao autor da ação.Vale, em continuação, anotar que não se pode dizer que é a própria natureza da ação possessória, que supõe um poder de fato sobre a coisa possuída, que cria a desnecessidade de aviar reconvenção para realizar pedido dessa natureza em favor do réu. De fato, se não foi a natureza da relação jurídica, então foi a lei quem deu caráter dúplice às ações possessórias. Isso está, hoje, tão arraigado à cultura do processo civil que fica até difícil imaginar outro contexto. O certo é, entretanto, que a reconvenção, de maneira geral, perdeu sua autonomia procedimental no novo código, sendo mero capítulo da contestação. Sem embargo do que foi dito, fica claro que o réu pode, em contestação de ação dessa natureza, alegar que foi ele o ofendido na posse e, portanto, o verdadeiro titular do direito a ser protegido pelo Estado juiz, cabendo também a ele a indenização pelos prejuízos decorrentes da turbação ou do esbulho.Já foi dito, na semana passada que, uma vez aviada a ação possessória, não cabe ao réu lançar mão da exceptio proprietatis por meio de uma ação de reconhecimento do domínio (também o autor não pode fazê-lo). Nada obsta, entretanto, a discussão da propriedade se a ação for aviada contra terceira pessoa (o código fala em "deduzida em face de terceira pessoa", mas venho sustentando, há mais de trinta anos, que não impropriedade de espécie alguma em dizer ação contra fulano de tal). Regra que talvez pudesse suscitar debate interessante está encartada no art. 558, que vincula a utilização do rito das ações de manutenção e reintegração da posse apenas àquelas ações que sejam propostas dentro de ano e dia contado da turbação ou do esbulho narrado na petição inicial. Ultrapassado esse prazo, a ação possessória deverá seguir o procedimento comum. A origem desse prazo certamente deflui do direito romano e constou do código civil de 1916, que dividiu a posse de força nova e posse de força velha, sendo interessante reproduzir os artigos 507, 508, e 523 do velho Código, que limitam a proteção imediata apenas às ações de força nova, com base provável nos interditos retinendae possessionis (Uti possidetis et Utrubi).1 Art. 507. Na posse de menos de ano e dia, nenhum possuidor será manutenido, ou reintegrado judicialmente, senão contra os que não tiverem melhor posse. Parágrafo único. Entende-se melhor a posse que se fundar em justo título; na falta de título, ou sendo os títulos iguais, a mais antiga; se da mesma data, a posse atual. Mas, se todas forem duvidosas, será seqüestrada a coisa, enquanto se não apurar a quem toque. Art. 508. Se a posse for de mais de ano e dia, o possuidor será mantido sumariamente, até ser convencido pelos meios ordinários.Art. 523. As ações de manutenção, e as de esbulho serão sumárias, quando intentadas dentro em ano e dia da turbação ou esbulho; e passado esse prazo, ordinárias, não perdendo, com tudo, o caráter possessório. Parágrafo único. O prazo de ano e dia não corre enquanto o possuidor defende a posse, restabelecendo a situação de fato anterior a turbação, ou ao esbulho. Quando trazemos nossos olhos para o Código Civil Brasileiro de 2002, não encontramos essa separação relativa ao ano e dia para as ações possessórias. A única referência da espécie tem pertinência com o direito de construir. Não há distinção material entre ação de força nova e ação de força velha. Como temos afirmado que o direito processual há de ser dúctil, ajustável ao direito material, não vemos como adequado o procedimento do legislador processual de 2015 que limita o procedimento das possessórias àquele prazo. Afinal, a alteração procedida no direito material há de ter algum significado até porque, a todas as luzes, não se tratou de mera questão de estilo, de elegância cosmética na redação do Código Civil de 2002. É certo, poder-se-ia invocar princípios (essas coisas elásticas que servem para tudo) e dizer que a função social da propriedade seria capaz de justificar a escolha do legislador do novo código. Princípios, hoje em dia, explicam tudo e retiram a necessidade do invocador de justificar por que o faz! Mudando de assunto: Tal qual ocorre com as tutelas de urgência, em que o legislador, no art. 300, § 1º, estabeleceu, conforme o caso, as chamadas contracautelas, também nas possessórias, e dependendo das condições econômicas do autor para responder pelos danos que a proteção liminar pode causar ao réu, pode o magistrado impor ao beneficiário da tutela provisória o dever de prestar caução real ou fidejussória. É claro, entretanto, que o juiz deverá examinar com parcimônia a necessidade da exigência da contracautela. É que, em muitas situações, o autor dessapossado não dispõe de qualquer meio para garantir eventual dano em hipótese de reversão da proteção. Em boa hora, o legislador, ao final do art. 559 ressalvou a impossibilidade da parte economicamente hipossuficiente de prestar a contracautela. Não fosse assim e as ações possessórias seriam destinadas única e exclusivamente à defesa dos interesses dos mais bem aquinhoados financeiramente. Depois eu conto sobre os procedimentos de manutenção e reintegração de posse e sobre o interdito proibitório. ________ 1 Garsonnet, Eugene. Traité Théorique et pratique de Procedure. Paris: L. Larose, 1898. Tome premier, p. 577. ________ Confira: "A tutela da posse no novo Código de Processo Civil - Primeira parte"
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A tutela da posse no novo Código de Processo Civil

Jorge Amaury Maia Nunes O caminho mais fácil para os estudos de Direito, nos dias de hoje, é abrir os códigos e tentar decifrar/decorar os artigos, incisos, parágrafos, alíneas e o que mais neles aparecer escrito. Esse sistema pode até ajudar a aprovar alguém em algum desses concursos atuais em que as bancas examinadoras somente podem exigir praticamente o que está na lei, na jurisprudência pacífica e assentada, e na doutrina indisputada (aquela parte em que todos se copiam uns aos outros). Se aparecer um que divirja, melhor ou pior o argumento, tanto faz, a questão não poderá ser exigida em concurso. O caminho mais fácil, entretanto, parece ser o mais incompleto. A simples leitura dos códigos e dos informativos de jurisprudência é insuficiente para dar, ao bacharel em Direito, a formação de que ele necessita. Manuais simplificados, sinopses, roteiros de petições e quejandos não formam juristas. Por isso mesmo, artigos rápidos, como o presente, servem apenas para tentar despertar a curiosidade do leitor, fazer com que ele vá atrás de suas próprias fontes e tire as informações e conclusões que a inteligência e a dedicação autorizem. A esse respeito, lembro que uma das situações a exigir mais do estudante na minha época de faculdade (primeira metade dos anos 70), era o exótico tratamento concedido a certas ações possessórias, em que a parte, logo no início da lide, poderia ter a si atribuído o bem da vida vindicado (a garantia da posse). Exótico porque, àquela época, único, ao menos no âmbito do novo código de 1973. Fora dele, era possível encontrar algo semelhante no procedimento especialíssimo da ação de mandado de segurança, então regida pela lei 1.533, de 1951 e a proteção liminar no habeas corpus. Como era possível uma ação possessória contrariar toda a lógica do sistema Buzaid? Essa a pergunta do estudante. O Pior: nenhum professor daquela época chegava a ensinar a parte dos procedimentos especiais, dada a alegada falta de tempo. A dificuldade despertou o interesse e a percepção de que o tema, de si belo, era inçado de armadilhas. Duas vertentes eram as principais geradoras de problemas: (i) o próprio conceito de posse, obtenível com o estudo do direito material, máxime considerando o dissenso, a meu ver algumas vezes descabido, entre os trabalhos de Savigny (Friedrich Carl von1) e Ihering (Rudolph von); (ii) a natureza da atividade que, no direito romano, era exercida com vista à proteção da posse. Qual a natureza do processo interdital romano? Atividade de jurisdição ou procedimento administrativo? Quais as bases dessa discussão? O que autoriza uma ou outra conclusão? Há algum sentido em, hoje, continuar a discutir o tema? A leitura a fazer da obra de Savigny deve ter a cautela de considerar que o autor estuda a teoria da posse na conformidade do direito romano (mais centrado no Direito Justinianeu), conforme os postulados do direito romano, especialmente no que concerne aos direitos que defluem da posse e não ao direito de possuir2, independentemente de toda ideia de propriedade. Dentre esses direitos enuncia a usucapião e os interditos. Claro, há pontos em que Savigny cede à tentação de interpretar os institutos de direito romano com as luzes do seu tempo e com significações ou ressignificações que talvez nunca estivessem presentes na antiguidade. Não é necessário aprofundar o tema, tentativa que nos afastaria da proposta de cunho processual da coluna. Ihering, como anota Moreira Alves, baseava-se no elemento jurídico, a causa possessionis [objetivamente considerada], que era o fundamento da distinção entre detenção e posse, diferentemente de Savigny, que buscava demonstrar as condições permissoras de que a simples detenção de convolasse em posse. Presente em Savigny, muito mais do que em Ihering, a ideia de que a caracterização da posse está na qualidade do animus (a rigor, corpus + animus) daquele que tem o poder físico sobre a coisa, de tê-la como sua. Isso não seria, em Ihering, elemento destacável e fundamental para a caracterização da posse. Não obstante o pensamento em contrário, o Código Civil não adotou de maneira pura nenhuma dessas teorias. Clovis Bevilacqua pode ter pretendido privilegiar a de Ihering, mas o trabalho da comissão revisora, antes da remessa ao Congresso Nacional3, terminou por retirar a pureza da pretensão. O Código Civil de 2002 não deu grandes saltos ao cuidar da matéria possessória, mas eliminou, no âmbito de discussão das ações possessórias, a possibilidade da invocação da exceptio proprietatis (§ 2º do art. 1.210), tanto que não acolheu a parte final da redação do art. 505 do Código Civil de 1916: "Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertence". Embora seja muito necessário e esclarecedor o estudo da teoria desses dois próceres do Direito (nesta e em muitas outras áreas do Direito!), há de ter em mira que os institutos jurídicos, sob exame, evoluíram e devem ser interpretados na conformidade do direito positivo vigente. A doutrina, é certo, esclarece o âmbito e forma de incidência das regras e princípios, mas não tem o condão de revogá-los. No que concerne ao segundo tema de nossa preocupação de hoje, as ações possessórias, valem alguns apontamentos iniciais. O direito processual civil somente realizará a função a que se destina se suas regras forem dotadas de ductilidade, isto é, se puderem ajustar-se, sem fratura, ao direito material que visam a proteger, a dar efetividade. Por isso, para a proteção da posse, é necessário realizar alguns ajustes nos meios processuais normalmente postos à disposição das partes jurisdicionadas que se vejam na necessidade de alegar em juízo alguma ameaça, turbação ou esbulho possessório. Esses ajustes no proceder foram produto de longa maturação. Sabido de todos, o Direito Romano (graças ao espírito prático que aos poucos aquele povo foi emprestando às formas de solução de controvérsia) era, sobretudo, um direito de ações e, como estas, tinha vocação essencialmente privada (não por outro motivo, nos sete primeiros séculos da vida de Roma, vigorou o ordo iudiciorum privatorum, ou período da Ordem Jurídica Privada), em que somente a primeira fase tinha seu desenvolvimento perante um funcionário do Estado e em que a segunda era desenvolvida perante um cidadão comum, a quem competia proferir a sentença. Havia, de outra parte, e em menor dimensão, a proteção do Direito Público, mas não pelas mesmas vias e pelos mesmos meios de proteção dos direitos eminentemente privados, especialmente em face da força do poder político do Estado Romano. Registre-se, por isso que, ainda que fosse adequado pensar em uma ação de natureza eminentemente privada para a defesa da posse, como esclarece Giuseppe Gandolfi4, dada a ideia de compropriedade das coisas públicas, o fato era que a defesa da posse terminava por beneficiar toda a coletividade, razão por que a decisão nele proferida haveria de ser enunciada por algum funcionário dotado de imperium, e não por um juiz privado, que apenas manifestava o seu sentir (sententia), sem força cogente. Igualmente importante, o processo ordinário desenvolvia-se segundo um calendário especial (rerum actus), de poucos dias úteis para impulsionamento processual, sendo certo, também, que o pretor não poderia dar curso aos processos nos chamados dias nefastos, nem nos dias comiciais (dedicados às assembleias populares). Ao revés, nos procedimentos interditais (sobre a natureza jurisdicional do processo interdital, ver o citado trabalho de Giuseppe Gandolfi, especialmente p. 44), o detentor do imperium não estava sujeito a essas limitações, nem vinculado ao rerum actus. De outra parte, dada a natureza dos direitos protegíveis por via do processo interdital, em que o risco da demora era sempre presente, o início desse processo já pressupunha uma ordem por parte do funcionário do Estado (pretor ou procônsul), que poderia ser (i) uma proibição - interdictum prohibitorium; (ii) ordem de apresentação de algo ou alguém perante o magistrado - interdictum exhibitorium, como, por exemplo, o interdito para exibir homem livre, ancestral do nosso atual habeas corpus; ou (iii) ordem de fazer retornar ao estado anterior - interdictum restitutorium. Mais importante, ainda, nas ações comuns, fossem as ações da lei, fossem as ações de natureza pretoriana, não havia espaço para nenhuma espécie de proteção liminar. Ao contrário, nos processos interditais, havia a possibilidade de uma proteção inicial, como admite a generalidade dos romanistas e, mesmo, inaudita altera parte, como sustenta com bons argumentos Gandolfi, no seu já citado estudo sobre o procedimento interdital romano (cf. pp. 47 e segs.). Desde então, a proteção possessória passou a seguir o sistema de possibilidade de concessão da tutela initio litis, quando demonstrado, por óbvio, estar presente certo conjunto de elementos/situações que, num primeiro juízo, autorizem a crer na existência de um direito protegível. É o caso clássico de antecipação de tutela decorrente da especial proteção da posse que, após, passou a ser estendida a outras situações de direito material fraturadas ou sob ameaça de fratura, que, no nosso novo código de processo civil, tiveram tratamento geral no Livro V (Da Tutela Provisória - art. 294 a 311). A pergunta a ser feita, dada a extensão dessa antecipação de tutela a uma miríade de situações não-possessórias, é a seguinte: o que impõe ou autoriza, agora, a regência em separado das chamadas ações possessórias, em área destinada aos procedimentos especiais, nomeadamente, arts. 554 a 568 do novo Código de Processo Civil. Isso é tema, porém, para nossa conversa da próxima terça-feira. __________ 1 Traité de La Possession em Droit Romain, trad. Para o francês por Henri Staedtler, deuxième édition, revue et corrigée. Paris: A. Durand &Pedone Lauriel, Librairies-éditeurs. 2 Especialmente pp. 3 e 5. 3 Moreira Alves, José Carlos. Posse. 1: Introdução Histórica. - Rio de Janeiro: Forense, 1985, p.3. 4 Lezione Sugli interdettti: Corso di Diritto Romano. Milano: La Goliardica, 1960, p. 41.
Guilherme Pupe da Nóbrega Depois de tecer considerações a respeito dos artigos 1º a 6º do novo Código de Processo Civil (lei 13.105/15)1, retomamos nossa explanação com uma abordagem conjugada dos artigos 7º, 9º e 10, que tratam do contraditório. Direito fundamental inserto no artigo 5º, LV, da Constituição, o contraditório, por algum tempo, foi enxergado apenas como direito das partes à bilateralidade da audiência, nota essa que remanesce presente no CPC/15 e que é ilustrada pela previsão expressa de que o aditamento do pedido ou da causa de pedir pelo autor confere ao réu o direito de se manifestar e de requerer produção de prova suplementar (artigo 329, II) e pela positivação de entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de que embargos de declaração com pretensão infringente ensejam a oitiva da parte embargada (artigo 1.023, § 2º). O CPC/15, nada obstante, coroa o ápice de um processo de gradativa hipertrofia do contraditório, que tem na adequada informação à parte e na oportunização de sua manifestação instrumentos-meio para seu verdadeiro fim, que é a possibilidade real e efetiva de influenciar a decisão que haverá de ser tomada2 - bem representam essa evolução para um contraditório substancial no CPC/15 a possibilidade de o juiz dilatar prazos com vistas à preservação do contraditório, prevista nos artigos 139, VI, e 437, § 2º, e a necessidade da observância do "contraditório efetivo" como pressuposto para que questão prejudicial decidida seja alcançada pela coisa julgada material, na forma do artigo 503, § 1º, II. A leitura do contraditório, tal qual exposta acima, sofistica-se ainda mais conforme desenvolvemos o raciocínio a seu respeito. Isso porque, pressupondo o contraditório efetivo, substancial, a capacidade de a parte influenciar a decisão, a conclusão lógica há de ser no sentido de que inexistirá poder de influência sempre que a decisão for proferida à revelia das partes, surpreendendo-as. Se é basilar que a trazida aos autos de elemento novo, fático ou jurídico, por uma das partes assegura à outra o direito de manifestar-se, não deveria soar estranho que o juiz, igualmente sujeito do processo, deva oportunizar às partes manifestação acerca de ponto novo ou que, ainda que não se cuide de inovação, lhe haja escapado à percepção, embora repercuta na decisão. Disso deflui que, na equação que resulta no contraditório como direito de efetivamente influenciar a decisão judicial, se a reação é ônus da parte, a adequada informação é dever judicial para que daquele ônus a parte tenha condições de se desincumbir, o que será impossível se for ela pega de surpresa. Daí as normas insertas nos artigos 9º e 10, que concernem à vedação a que as partes sejam surpreendidas por decisões a respeito das quais não tenham tido poder de previamente se manifestar a respeito e que impõem ao juiz o dever de consulta prévia. A vedação às decisões-surpresa como corolário do contraditório não é propriamente uma invenção brasileira, encontrando inspiração nos Códigos de Processo Civil alemão (139, 2), italiano (artigos 101 e 183), português (artigo 3º, 3) e francês (artigo 16). Diferentemente do direito alienígena, porém, o CPC/15 trouxe em seu bojo não apenas uma regra geral, mas uma profusão de dispositivos impondo o dever de informação e de consulta às partes: além dos artigos 9º e 10, cuja observância é estendida aos tribunais pelos artigos 927, § 1º, e 933, há a necessidade de prévia advertência para imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da jurisdição (artigo 77, § 1º) - exigência essa estendida ao processo de execução (artigo 772, II) -, informação a respeito da eventual inversão do ônus da prova previamente à instrução (artigo 373, § 1º) e imperiosa oitiva das partes diante da constatação oficiosa de fato superveniente suscetível de influenciar no julgamento (artigo 493, parágrafo único). Naturalmente, há exceções. O próprio artigo 9º põe a salvo da necessidade de consulta prévia as hipóteses de tutela provisória liminar, seja de urgência, seja de evidência (quanto a essa última, apenas nos casos dos incisos II e III do artigo 311), além, ainda, da situação prevista no artigo 701, que não passa, em verdade, de mais outro caso de tutela da evidência, embora não constante do artigo 311. Há, ademais, ressalvas outras, além daquelas constantes dos incisos do artigo 9º. É o caso da liminar em ação de reintegração ou de manutenção de posse (artigo 562), espécie de tutela de urgência, e das sentenças de indeferimento liminar da inicial (artigo 330) ou de improcedência liminar do pedido (artigo 332), hipóteses em que o contraditório do réu é inútil, porque a decisão lhe favorece (como também ocorre no artigo 932, IV em relação à parte recorrida), e o contraditório do autor fica diferido para eventual recurso de apelação, diante do qual haverá possibilidade de retratação judicial (artigos 331 e 332, § 2º, respectivamente). Ainda merece menção a existência de exceções fora do CPC/2015 (liminar em mandado de segurança, na forma do artigo 7º, III, da lei 12.016/2009, e liminar em ação de despejo, prevista no artigo 59, § 1º, da lei 8.245/1991, por exemplo). A par dessas exceções legais, a magistratura dá sinais de que a proteção contra decisões-surpresa presente no artigo 10 merecerá ainda outras flexibilizações judiciais, contra legem. Nessa senda, vale a leitura crítica dos enunciados 1 a 6, editados em 2015 pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) tendo por objeto o CPC/15.3 Um dos fundamentos para essa flexibilização judicial é o de que a consulta prévia às partes, como regra geral, afetaria a celeridade, atravancando o processo. Em sentido contrário é possível sustentar que essa dimensão do contraditório, muito além de evitar nulidades, é mecanismo de aprimoramento da decisão que poderá ter o condão de evitar recursos, reformas e cassações, viabilizando um filtro apriorístico e preventivo da decisão, viabilização uma jurisdição mais efetiva e, quiçá, por tabela, menos morosa. Sigamos, passando à abordagem dos artigos 11 e 12. O primeiro desses dispositivos trata da publicidade como regra dos julgamentos pelo Judiciário e da necessidade de que sejam fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. A fundamentação das decisões é norma constitucional disposta no artigo 93, IX, da Constituição, não trazendo o CPC/15, em seu artigo 11, nenhuma novidade aparente. O que é digno de menção, porém, é que o novo Código impõe uma migração da fundamentação exigida: de suficiente para exauriente.4 Nesse particular, merece leitura atenta o artigo 489, § 1º5, que traz um rosário de artifícios vedados ao Judiciário na fundamentação de suas decisões, impondo-se-lhe ônus argumentativo a exigir que a decisão: (i) demonstre adequadamente a subsunção da causa ou da questão decidida à norma aplicada, proibida a simples menção; (ii) estabeleça liame entre conceito jurídico aberto e sua incidência ao caso concreto; (iii) não se valha de motivos-coringa, aptos a arrimar qualquer sorte de decisão para qualquer sorte de caso; (iv) não enfrentar todos os argumentos suscetíveis de influenciar a conclusão; (v) invocar precedente judicial ou súmula - válidos e não superados, naturalmente - sem evidenciar em que medida se ajustam ao processo; (vi) deixar de seguir súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte sem efetuar o necessário distinguishing, consideradas como "precedente" apenas as decisões a que aludem os incisos do artigo 927, e não, obviamente, toda e qualquer decisão insulada. A disposição é salutar. Jurisdição é poder exercido com déficit democrático por agentes não-eleitos. A dimensão legitimadora do exercício desse poder é a fundamentação, por meio da qual o Judiciário se abre ao controle social, lato sensu, e endoprocessual, quando viabiliza o próprio direito de as partes recorrerem das decisões. A decisão, a toda evidência, haverá de ser tão forte quanto seu fundamento mais fraco. O que a norma inserta no artigo 489, § 1º pretende evitar, portanto, são decisões-padrão que atendam apenas formalmente, mas não materialmente, ao que contido no artigo 93, IX, na Constituição, prestando um desserviço à segurança jurídica, deslegitimando a jurisdição e, por via reflexa, o Estado, frustrando, ademais, sua "capacidade de orientação de condutas sociais."6 Também aqui houve insurgência por parte da magistratura, notadamente contra o inciso III do § 1º do artigo 489.7 Em síntese, as principais críticas são as de que a fundamentação, tal qual exigida pelo CPC/15, demandaria o enfrentamento de toda sorte de argumentos, mesmo aqueles manifestamente descabidos, contribuindo para a morosidade judicial e, ainda, de que haveria vulneração à separação de poderes, com o Legislativo editando norma cogente a determinar como deve ser prestada a jurisdição pelo Judiciário. De nossa parte, as críticas não possuem fundamento. Não são todos os argumentos a merecer enfrentamento judicial, mas apenas aqueles suscetíveis de influenciar a conclusão judicial. Quanto a esses argumentos, especificamente, a conclusão sobre se são eles cabíveis ou descabidos pressupõe, antes, sua análise. O que se demanda, pois, é que essa operação intelectual realizada pelo magistrado seja publicizada. A respeito da possível morosidade, o que em tese toma mais tempo do julgador é a análise dos argumentos, que necessariamente haverá de ser feita. A exigência de que suas conclusões sejam materialmente transferidas para o papel não demanda muito mais tempo e tem o condão, em verdade - como dito anteriormente quando da abordagem do contraditório -, de oferecer uma decisão de maior qualidade, que mais bem contribua com a efetividade, possivelmente diminuindo recursos, cassações e reformas. Aliás, bem vem à balha a menção feita ao contraditório no parágrafo anterior. O sistema do CPC/2015, como vimos, exige o dever de consulta prévia às partes em seu artigo 10. Não faria sentido, portanto, que cumprida a exigência de consulta prévia às partes, o juiz pudesse simplesmente ignorar as manifestações, decidindo à revelia das alegações trazidas a seu conhecimento ainda que suscetíveis de influenciar as suas conclusões, num regresso ao contraditório meramente formal. Já no que toca à suposta vulneração à separação de poderes, também já foi dito que a exigência de fundamentação das decisões judiciais possui assento constitucional. Seguramente, para a elucidação de disposições constitucionais, o Legislativo ostenta maior legitimidade democrática que o Judiciário. A ressalva possível seria a inconstitucionalidade da norma, o que, contudo, em nossa opinião, não se afigura presente: o artigo 489, § 1º, não elimina a autonomia judicial (iura novit curia) e nem, tampouco, impõe como devam ser proferidas as decisões, limitando-se a estabelecer o que não deve ser adotado como artifício a pretexto de fundamentação. Sem prejuízo de todas essas considerações em defesa do artigo 489, § 1º, também aqui parcela da magistratura, lamentavelmente, adiantou tendência de flexibilização. O artigo 12, finalmente, inova ao estabelecer ordem cronológica para prolação de sentenças e acórdãos , já se notando, de pronto, que as decisões interlocutórias escapam à regra. A norma possui razão de ser. É que a razoável duração do processo é direito titularizado por todos, indiscriminadamente, seja aquele que litiga em processo simples, seja aquele que integra relação processual complexa. O que se pretende coibir, pois, é uma afronta à isonomia que autorize o magistrado a preferir matérias "fáceis" e preterir julgamentos mais "difíceis", ainda que esses sejam mais antigos que aqueles.Também a regra da ordem cronológica, sem embargo, comporta exceções, previstas nos incisos de seu § 2º , e flexibilização, contida no § 6º do mesmo dispositivo.No que tange às exceções, privilegiou-se o lógico. Fogem à regra da ordem cronológica: (i) sentenças em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido, (ii) decisões que julguem processos em bloco para aplicação de tese firmada em julgamento de casos repetitivos, (iii) recurso afetado como paradigma de casos repetitivos e incidente de resolução de demandas repetitivas, que firmarão tese a orientar o julgamento em bloco na forma do item anterior, (iv) sentenças terminativas do artigo 485 e decisões monocráticas do relator nas hipóteses do artigo 932, (v) julgamento de embargos de declaração, porque representam, em verdade, continuação de julgamento para sanação de suposto vício que jamais deveria ter constado de decisão já proferida, (vi) julgamento de agravo interno, também por se tratar de prolongamento de decisão de certa forma já iniciada monocraticamente, (vii) preferências legais (que seguem ordem cronológica própria e apartada, na forma do artigo 12, § 3º) e metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça, (viii) processos criminais, nos órgãos que possuam essa competência e (ix) causas que exijam urgência reconhecida por decisão fundamentada. Uma vez mais, a ENFAM, em seu enunciado 32, indicou a tendência de relativização da norma abrindo brecha para a prolação de sentenças e acórdãos fora da ordem estabelecida pelo artigo 12, desde que "fundamentadamente". Esse raciocínio findou repercutindo na Emenda (EMP) 13/15 ao PL 2.384/15, para introduzir no caput do artigo 12 a expressão preferencialmente: "Os juízes e tribunais deverão obedecer, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão." A referida proposição já foi aprovada na Câmara dos Deputados e na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (lá sendo registrada como PLC 168/15), pendendo de votação pelo Plenário dessa casa revisora. De nossa parte, em que pese a iminente aprovação de mudança que terá o condão de excepcionar a ordem cronológica para além das hipóteses ope legis, criando situação genérica ope iudicis, reputamos que ao menos dois ganhos remanescem intactos: a exigência de publicidade da ordem cronológica pelos juízos, favorecendo o controle dos jurisdicionados, e a disposição contida no artigo 12, § 4º, no sentido de que o atravessamento de requerimento que não dê ensejo à reabertura da instrução ou à conversão do julgamento em diligência não faz com que o processo vá para o final da fila, norma que evita atos protelatórios das partes e, ao mesmo tempo, elimina qualquer intimidação que poderia recair sobre aquele que se vê na situação de ter deduzir requerimento plausível, tendo de encarar como efeito colateral o retardamento da resolução de seu processo (no limite da regra, a norma evita a paradoxal situação de uma parte que pretenda noticiar nos autos superveniente idosidade e que, indo para o final da fila, tenha, na prática, eventualmente postergada a conclusão de seu processo). Com isso, nobres leitoras e leitores, encerramos nossas ponderações sobre as normas fundamentais do CPC/15 e o nosso segundo semestre de 2015. Que a partir de 2 de fevereiro de 2016, quando retomaremos a coluna, continuemos merecedores de seu prestígio nesta já profícua relação virtual. __________ 1 As normas fundamentais do processo civil no CPC/15 - Primeira parte. 2 "(...) há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas, sim, como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa. Tal concepção significa que não se pode mais na atualidade, (sic) acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo possa ser meramente fictícia, ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no plano substancial." THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Princípio do Contraditório: tendências de mudança na sua aplicação. In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas n. 28, jan./jun. 2009, p. 177-206. 3 (Clique aqui) 4 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo CPC. Código de Processo Civil. Lei 13.105/2015. Inovações, alterações e supressões comentadas. São Paulo: Método, 2015, p. 7. 5 Art. 489. (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. 6 MARINONI, Luiz Guilherme et. al. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 2015, p. 110. 7 (Clique aqui)
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Exigir contas, tudo bem. Prestar, não mais

Jorge Amaury Maia Nunes Já vimos, em outro momento, que o novo Código de Processo Civil fez uma espécie de reconfiguração nos procedimentos especiais. Antes versados no Livro IV, com reconhecimento de certa dose de autonomia, estão, agora, confinados no Título III, do Livro I, da parte especial. Vários dos procedimentos especiais não foram acolhidos pelo novo CPC. Dentre esses, cabe mencionar a ação de depósito, a ação de nunciação de obra nova, as ações relativas a vendas a crédito com reserva de domínio, as alienações judiciais, a execução dos testamentos, entre outros. A ação de prestação de contas, que cabia a quem tinha o direito de exigi-las ou a obrigação de prestá-las, agora é somente ação de exigir contas, e é dela que vamos tratar no texto de hoje. O velho código de processo civil de 1939 não tratou dessa ação de forma autônoma, mas a incluiu dentre as chamadas ações cominatórias para prestação de ato, no art. 302, ao estabelecer: Art. 302. A ação cominatória compete: ...V - a quem tiver direito de exigir prestação de contas ou for obrigado a prestá-las; O legislador processual de 1973 concedeu-lhe posição de autonomia, com epígrafe própria, encimando o art. 914, que dispunha: Art. 914. A ação de prestação de contas competirá a quem tiver: I - o direito de exigi-las; II - a obrigação de prestá-las. Essa ação prevista no inciso I possuía uma característica muito singular no concerto dos procedimentos especiais, na medida em que possuía três fases (duas de conhecimento e uma de execução/cumprimento) e autorizava a prolação, no mesmo processo, de duas sentenças de mérito. Na primeira delas, se o réu não contestasse ou se contestasse para negar a obrigação de prestar contas, o juiz, se fosse o caso de dar pela procedência do pedido, proferia julgamento de mérito para condenar o réu a prestar as contas no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de não Ihe ser lícito impugnar as que o autor apresentasse. Por certo, como se tratava de sentença, cabia condenação em honorários advocatícios e, também, recurso de apelação. Condenado a prestar contas, passava-se à segunda fase, relativa à fase propriamente da prestação de contas. Sobre as contas acaso prestadas, estabelecer-se-ia o necessário contraditório, com produção de provas, se necessária. Vale aqui um apontamento lateral: quando as instituições financeiras eram rés, a construção jurisprudencial (leia-se, o STJ) eliminou a distinção do processo de conhecimento em duas fases. Havia como que um reconhecimento de que as instituições em tela (os banqueiros, segundo apontava, nos muito idos de 1863, FERDINAND LASSALE, em seu clássico Über die Verfassung, constituem o grupo dos fatores reais do poder) sempre forneciam extratos e, portanto, não havia lide quanto a isso. Assim, concentrava-se tudo em uma única fase, com única sentença, e sem condenação em honorários na primeira sentença, que deixava de existir. Isso, somente para as ações em que os réus fossem instituições financeiras. Com relação a outros réus, valia a separação: duas fases de conhecimento e uma eventual fase de execução/cumprimento. Voltando ao tema principal: caso o réu não apresentasse contas, poderia apresentá-las o autor dentro em 10 (dez) dias, sendo essas julgadas segundo o prudente arbítrio do juiz, que poderia determinar a realização do exame pericial contábil. O saldo credor declarado nesta segunda sentença (a favor de qualquer das partes) poderia ser cobrado em execução forçada que seria a terceira fase da ação. A par disso, como antecipado, ocorria a possibilidade de o obrigado a prestar contas vir a juízo para compelir a outra parte a recebê-las. Diz o artigo 916, do Código/1973: Art. 916. Aquele que estiver obrigado a prestar contas requererá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias, aceitá-las ou contestar a ação. Como indicado no início, o Código de 2015 não cuidou dessa segunda modalidade. Não se cogita mais da ação de prestar contas, mas somente da de exigir contas. No que concerne a essa, houve algumas modificações sensíveis. Em primeiro plano, a norma de regência (art. 550) esclarece, ainda que isso não fosse imperativo, que o autor especificará, detalhadamente, as razões pelas quais exige as contas, instruindo-a com documentos comprobatórios dessa necessidade, se existirem. É claro que essa especificação se impõe. Afinal, o processo civil brasileiro impõe sempre ao autor, na inicial, o dever de indicar os fatos e fundamentos jurídicos do pedido e a necessidade da indicação das provas com que pretende demonstrar a veracidade de suas alegações. Diversamente do que ocorre com a petição inicial do procedimento comum, aqui se impõe a necessidade do requerimento de citação do réu para que (i) preste as contas; ou (ii) ofereça a contestação que tiver, no prazo de quinze dias (convém lembrar que o prazo da contestação da ação de prestação de contas, no CPC/1973, era de apenas 5 (cinco) dias, a teor do disposto no art. 915 daquele codex). No pertinente à conduta do réu, os parágrafos que explicitam o art. 550 não foram exatamente felizes, porquanto deixaram sem regência hipótese que acontece frequentemente e que também não tinha tratamento adequado no Código de 1973. Deveras, o § 2º cuida de hipótese em que o réu atenda ao quanto vindicado na inicial e preste as contas; o § 3º cuida de ato do autor que impugna as contas prestadas; o § 4º cuida da hipótese de o réu não contestar o pedido para afirmar que aí pode caber o julgamento antecipado do mérito; os §§ 5º e 6º já cuidam de momentos processuais posteriores. O que faltou, então? Faltou a hipótese mais comum. Proposta a ação de exigir contas, o réu pode comparecer para contestar (o código de 1973 cuidava da contestação na hipótese de se tratar de ação de prestar contas, mas não na ação de exigi-las) e dizer que não tem a obrigação de prestar contas ao autor porque, v.g., não tem nenhuma espécie de relação de direito material com o autor, que os coloque nessa posição. Não administra bens do autor, não possuiu nem nunca possuiu mandato do autor para praticar negócios que envolvam o patrimônio daquele, não foi seu administrador ou gestor de negócios, etc. É certo que a jurisprudência há de sobreviver sem o correspondente comando normativo, mas que a parcimônia do legislador é incômoda, com certeza é. Penso que, após a contestação eventualmente oferecida, o procedimento a ser adotado é o comum, a partir das providências preliminares e do saneamento (capítulo IX, do título I, do Livro I, da parte especial). Depois disso, e sem nenhuma especificidade, aplicam-se as regras do capítulo X (do julgamento conforme o estado do processo), e assim sucessivamente até a prolação e cumprimento da sentença (que pode indicar saldo credor em favor do réu). Se, em vez da contestação, forem prestadas as contas pelo réu, o autor será intimado para sobre elas manifestar-se, no prazo de 15 (quinze) dias. A impugnação não poderá ser genérica. O autor/impugnante deverá fundamentadamente hostilizar o lançamento que considere indevido total ou parcialmente, ou até, indicar a ausência de determinado lançamento que o réu deveria ter efetuado. A partir daí, o procedimento perde sua especialidade e passa a reger-se pelas regras do procedimento comum. Vale um apontamento: diversamente do que sustentado em relação ao problema anterior, na hipótese agora examinada, as regras do procedimento comum são aplicadas a partir do capítulo X (do julgamento conforme o estão do processo). A uma porque o próprio texto do § 2º do art. 550 indica que assim deve ser. A duas porque, aqui, não parece pertinente, já que houve contas prestadas (e não contestação), falar-se em providências preliminares. Já se disse, se o réu não contestar a ação, nem prestar as contas, cabe a aplicação da regra do art. 355, que disciplina o julgamento antecipado de mérito. O § 5º do art. 550 cuida da sentença que marca o eventual fim da primeira fase de conhecimento da ação de exigir contas. Julgado procedente o pedido, o réu será condenado a prestar contas no prazo de quinze dias. Se não o fizer, não poderá impugnar as que o autor vier a apresentar. Isso, entretanto, não constitui um cheque em branco ao autor para que apresente as contas que quiser, descompromissadas com os fatos indicados na petição inicial, até porque as contas do autor devem ser apresentadas na forma adequada, instruídas com todos os documentos justificativos, especificação das receitas, aplicação das despesas e os investimentos, se houver, bem como o respectivo saldo. Ainda que o Código não o diga, na hipótese acima versada, e como se trata de uma ação de exigir contas, é possível que o autor tenha alguma dificuldade em apresentar lançamentos e instrumentos comprobatórios de despesas que, normalmente, estão em poder do réu. Há de haver comedimento do magistrado no apreciar as contas assim prestadas, porque o autor não pode, em face da inércia do réu, ser condenado a residir no sol! Não por outro motivo, é dado ao magistrado o poder de determinar a realização de exame pericial, sendo possível até ao perito indicar, por arbitramento, o valor habitual das despesas da espécie. Se, em outra hipótese, o réu houver prestado contas, já se viu, ocorre a "conversão" para o procedimento comum. Esgotada fase de instrução processual, o magistrado proferirá nova sentença de mérito, em que apurará o saldo eventualmente existente em favor de uma das duas partes. Essa segunda fase é marcada pelo caráter dúplice. O saldo pode favorecer ao réu que, em seu favor terá um título executivo judicial apto a satisfazer seu crédito.
Guilherme Pupe da Nóbrega Dando uma pausa na série de textos sobre o overruling ope legis1, cuidaremos, no texto de hoje, da primeira parte do exame a respeito das normas fundamentais do processo civil, que inauguram o Código de Processo Civil de 2015. Como o próprio nome sugere, os doze primeiros dispositivos do codex veiculam normas-base donde emanam regras e princípios que irão regular o processo - em rol não taxativo, vale dizer, porque remanescem vigentes e operantes as disposições constitucionais aplicáveis ao processo, ainda que não constem expressamente do CPC. O artigo 1º, à partida, dispõe que o "processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código." Nada mais lógico. Como lei infraconstitucional que é, o CPC, por óbvio, deve obediência hierárquica à Constituição. O que o legislador buscou reforçar, sob inequívoca influência do fenômeno da constitucionalização dos diversos ramos do Direito, nada obstante, é que o CPC deve ser encarado como vetor de realização de disposições constitucionais, propiciando direitos básicos como ao amplo acesso a uma jurisdição efetiva, ao contraditório, à ampla defesa, ao controle da jurisdição como exercício de poder pela via da exigência de fundamentação etc. O processo civil, antes de ser estruturado pelo CPC, é orientado pela Constituição. O CPC, assim, tem como uma de suas funções a de densificar direitos constitucionalmente assegurados. Há, contudo, abertura pouco saudável trazida pelo vocábulo "valores". Ora, os valores, para merecerem eficácia normativa, devem estar contidos em princípios ou regras positivados (WAMBIER et. al., 2015, p. 56) ou consagrados pela doutrina, de modo que a norma antes referida, ao fazer tal previsão, dá perigosa margem às mais variadas interpretações pelo hermeneuta: é possível que diferentes juízes vislumbrem ou extraiam da Constituição "valores" distintos. O controle sobre qual deles estará certo é extremamente volátil, etéreo, complexo. A norma prevista no artigo 1º traz consigo, ademais, questão importante: vulnerado direito processual constitucional por acórdão de tribunal de segundo grau, caberá recurso especial, recurso extraordinário ou ambos? Em outras palavras, vulnerado por acórdão de tribunal de segundo grau um certo direito fundamental que encontre naturais desdobramentos no CPC, que parâmetro de controle para o aviamento do recurso se deverá privilegiar: o CPC ou a Constituição? "Quando estiver em causa o significado do direito fundamental tal como reproduzido ou densificado pelo Código, caberá recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça. Quando, porém, estiver em causa eventual questionamento sobre injusta proteção ao direito fundamental processual pelo Código (por ausência de proteção, proteção insuficiente ou retrocesso de proteção), caberá recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal." (MARINONI et. al., 2015, p. 91). É dizer, a violação somente comportará recurso extraordinário se se tratar de ofensa flagrante, frontal e autônoma ao dispositivo constitucional. Demandando o exame do mérito do recurso extraordinário como escala a análise de norma infraconstitucional que contenha desmembramento ou reflexo de disposição constitucional, a ofensa à Carta é meramente reflexa, na esteira da jurisprudência do STF.2 A prática jurídica demonstra que em situações em que há dúvida sobre se o acórdão objeto de futuro recurso contém fundamento constitucional e/ou infraconstitucional, o advogado, a fim de furtar-se à incidência da súmula 126/STJ3, acaba interpondo simultaneamente recursos extraordinário e especial a fim de se resguardar contra o risco do não-conhecimento do seu especial. Essa praxe, nada obstante, pode possuir tendência ao esvaziamento com a inovação trazida pelos artigos 1.032 e 1.033, que preveem a fungibilidade "em mão-dupla" entre os recursos extraordinário e especial.A regra, portanto, e em suma, é que eventual violação a dispositivo do CPC ensejará recurso especial; somente haverá espaço viável para recurso extraordinário se a violação à norma constitucional trouxer consigo força suficiente a evidenciá-la dissociada do exame da norma infraconstitucional, ou seja, se a violação à Carta prescindir, para sua verificação, de incursões na norma do CPC que represente singelo desdobramento daquela. Indo além, o CPC/15 unifica no artigo 2º do CPC/15 os artigos 2º e 262 do CPC/73, prevendo o já conhecido princípio dispositivo, ou da demanda, ou da inércia, a exigir a iniciativa da parte como mecanismo que visa a assegurar a imparcialidade do juiz - ne procedat iudex ex officio; nemo iudex sine actore. A norma, contudo, comporta relativizações: em se tratando de obrigações de fazer, não fazer ou de entrega de coisa, cuja exigibilidade é fundada em título executivo judicial já aperfeiçoado, pode o juiz dar início ao cumprimento de sentença de ofício (artigos 536 e 538) - regra essa que flexibiliza, também, o princípio da disponibilidade da execução. Há, ademais, outras situações que admitem a atuação oficiosa do juiz, aqui exemplificadas pela possibilidade de instauração procedimento especial de restauração de autos (artigo 712), de incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 976), suscitação de conflito de competência (artigo 951), incidente de arguição de inconstitucionalidade (artigo 948). Ainda quanto ao artigo 2º, a segunda parte do dispositivo fala do impulso oficial, isto é, se a iniciativa da parte se presta a retirar o Judiciário da inércia em repouso, o processo, dali pra frente, se desenvolve naturalmente, dispensadas novas provocações. Também o impulso oficial, todavia, observa temperamentos: dependendo o processo, para seu prosseguimento, de atos a serem praticados pelas partes, e evidenciada a negligência - contumácia - pelo prazo de um ano, o processo haverá de ser extinto, sem resolução do mérito (artigo 485, II); de igual sorte, com relação ao autor, isoladamente, deixando ele de praticar os atos ou de promover as diligências que lhe incumbir no prazo de trinta dias, dará igualmente ensejo à extinção sem resolução do mérito (artigo 485, III); no que toca aos recursos, merece ainda menção o princípio da voluntariedade recursal, uma espécie de iniciativa derivada, uma reiteração do pedido de jurisdição4 pela parte que subjaz à necessidade de sua manifestação expressa do desejo de recorrer, eis que, sendo dois os possíveis caminhos - conformar-se com a decisão ou confrontá-la -, não caberá ao Estado presumir ou deduzir qual dentre essas opções será escolhida pelo verdadeiro interessado. O impulso oficial ainda releva por guardar relação com a razoável duração do processo e com importante inovação trazida pelo CPC/15: a prescrição intercorrente. Sobre a razoável duração do processo, mais bem esmiuçada adiante, merece ser dito que a impulsão do feito pelo juiz deve ser contínua, evitando-se o chamado "tempo morto" do processo, isto é, os intervalos entre a prática de atos processuais que, somados, têm o condão de resultar na prestação jurisdicional morosa. O dever do juiz de combater essa morosidade deflui dos incisos II e III do artigo 139 do CPC/15 e a recusa, retardo ou omissão do magistrado em impulsionar o feito têm o condão de atrair sua responsabilidade civil regressiva, consoante disposto no artigo 143, II5, que manteve a norma antes inserta no artigo 133, II, do CPC/73. Quanto à prescrição intercorrente, por outro lado, trata-se de instituto de antes somente previsto expressamente pela lei de execução fiscal (n.º 6.830/1980), em seu artigo 40, § 4º, mas que agora passa a ser possível nas execuções em geral, na forma do artigo 921, §§ 1º a 5º.6 A reabertura do cômputo do prazo prescricional, todavia, pressupõe a inércia da parte exequente diante do fracasso em se encontrarem bens penhoráveis - daí porque se fala em flexibilização do impulso oficial. Já o artigo 3º reflete o artigo 1º e a necessidade de se encarar o CPC como vetor de realização de ditames constitucionais ao repetir o que contido no artigo 5º, XXXV, da Constituição: "Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito." A jurisdição está aberta a todos e alberga o direito contra lesão, efetiva ou potencial, não fazendo nenhum sentido que se imponha à parte a espera pela concretização de prejuízo para que, somente então, busque deduzir pretensão perante o Estado. Mais que "norma processual programática", é possível ilustrar no CPC/15 reflexo real da inafastabilidade jurisdicional com a positivação da tutela inibitória, presente no artigo 497, parágrafo único.7 Se, por um lado, o amplíssimo acesso ao Judiciário é garantido pelo caput do artigo 3º, por outro, o Código admite nos §§ 1º e 3º - mais: estimula - métodos outros de solução de conflitos, como a arbitragem, a conciliação e a mediação. A mensagem presente na norma é a de que embora a jurisdição seja o método oficial de resolução de conflitos, não é ela o único método existente. Não se trata de mensagem propriamente nova - vide resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo -, mas que é reforçada sobremaneira pelo novo Código. O Judiciário, assoberbado por um congestionamento de processos que lhe são levados a conhecer, pretende cada vez mais colocar-se, ele sim, como método alternativo, ultima ratio, apenas quando frustradas possibilidades diversas de solução. Essa tentativa prévia de resolução do conflito por vias não-judiciais, é claro, não pode ser estabelecida como condição ou pressuposto para o acionamento judicial, mas pode e deve ser o mais estimulada possível.8 Sobre esse ponto, aliás, já se escreveu neste espaço.9 Os artigos 4º e 6º, de sua vez, são analisados em conjunto por estarem intimamente relacionados, deles sendo possível extrair como direito das partes a tutela a respeito do mérito prestada em tempo razoável, incluída a satisfativa. A razoável duração do processo não é disposição inédita. A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, LXXVIII, já trazia a previsão, antes constante também das Constituições de 1934 (artigo 113, n.º 35) e 1946 (art. 141, § 6º, I) e, no plano externo, no Pacto de San José da Costa Rica (artigos 6º, 1, 8º, 1 e 25, 1) e nas Constituições dos Estados Unidos (speedy trial clause), de Portugal (artigo 20, nºs 4 e 5), da Espanha (artigo 24), do México (artigo 17) e da Itália (artigo 111), tendo esse último país, bem a propósito, sofrido condenações pela Corte Europeia de Direitos Humanos por inobservância daquele direito, presente também no artigo 6º, 1, da Convenção Europeia de Direitos Humanos. A preexistência da razoável duração do processo, contudo, não torna inócua a sua previsão no CPC/15. Para além do prudente reforço desse direito no caderno processual, passa a ser previsto expressamente que seu escopo alcança a atividade satisfativa, isto é, de efetivação do direito já reconhecido em maior ou menor grau. Tarefa importante que se põe, então, é a de mais bem balizar toda essa amplitude conferida ao que seja razoável duração do processo no CPC/15. Com razoável duração do processo não se está a dizer que o processo deve ser célere, custe o que custar. O processo tem um tempo, natural, que é seu e que é considerável, mas que existe em razão da necessidade de se garantirem outros princípios constitucionais (ampla defesa, contraditório, isonomia e o próprio acesso à Justiça). Razoável duração do processo, portanto, quer dizer que o tempo necessário seja apenas o necessário. Que a jurisdição seja prestada com efetividade e eficiência segundo as peculiaridades do caso concreto10, evitando-se o dano marginal para as partes e "dilações indevidas."11 O CPC/15, possivelmente inspirado nos artigos 97-A, da lei 9.504, e 49, da lei 9.784/99, buscou maior objetividade na definição do que se consideraria desarrazoado, fixando prazos para os atos do juiz nos artigos 226 e 227 e, na linha punitiva presente antes no artigo 35, I e II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n.º 35/1979), manteve no artigo 143, II, já mencionado, a responsabilidade civil e regressiva do juiz por perdas e danos oriundas de recusa, de retardo ou de omissão indevidos a respeito de providência que devesse adotar de ofício ou a requerimento, norma antes constante no CPC/73 no artigo 133, II, mas que carecia, para maior aplicação, de maior objetividade que agora é trazida pelos antes citados artigo 226 e 227. Avançando ainda mais, o CPC/15, no artigo 235, § 3º, inovou ao estabelecer consequência processual inédita e extrema resultante da inobservância da razoável duração do processo, prevendo que o excesso injustificado de prazos legais (daí, mais uma vez, a importância dos artigos 226 e 227), regulamentares ou regimentais pelo juiz pode dar azo à remessa dos autos ao substituto legal do magistrado moroso - consagrando analogia com os efeitos decorrentes do impedimento e da suspeição - para que profira decisão em dez dias. Não se cingindo ao aspecto punitivo, o CPC/15, em contrapartida, também buscou dotar o julgador de mecanismos para assegurar a razoável duração do processo, fundando-se no seguinte tripé: (i) estímulo à solução consensual de conflitos; (ii) simplificação de procedimentos; e (iii) maior objetivação na prestação jurisdicional com a hipertrofia dos precedentes (incidente de resolução de demandas repetitivas, incidente de assunção de competência e maior fortalecimento dos recursos repetitivos, todos esses assuntos que serão verticalizados mais adiante. Também merecem registro, por sua relação com a razoável duração do processo, as normas do CPC/2015 que dizem respeito à ordem cronológica para prolação de decisões (artigo 12, a ser analisado noutro momento) e ao aproveitamento, sempre que possível, dos atos processuais (artigos 188, 277 e 282, § 1º). Acontece que não é o Estado-juiz sujeito único do processo. Se a razoável duração é inequivocamente um direito das partes assegurado pela Constituição e pelo artigo 4º do CPC/2015, dali igualmente decorre uma obrigação que lhes é imposta pelo artigo 6º, que consagra o dever de cooperação e cuja inobservância pode desencadear sanções por ato atentatório à Justiça (contempt of court - artigo 77, III e IV, §§ 1º a 8º) ou por litigância de má-fé (artigos 80, IV a VII, e 81). O que o dever de cooperação presente no artigo 6º propõe, portanto, é que, muito embora o processo veicule, em seu bojo, teses divergentes e versões em choque, a relação processual em si, autônoma quanto ao direito material, pressupõe que seus sujeitos convirjam em suas ações e unam forças para consecução de um interesse comum que lhes é comum: a solução da controvérsia por meio do exame do mérito, com a brevidade possível. Merece censura, assim, qualquer tentativa de sabotagem que pretenda desvirtuar a finalidade do processo, de realização do direito material, para transmudá-lo em um conjunto de empecilhos à prestação efetiva da jurisdição - essa leitura do dever de cooperação, porém, não é pacífica, encontrando ceticismo e acesa discussão acerca de sua constitucionalidade.12 Dando seguimento em nosso exame, convém, a partir do que dito no parágrafo anterior, explorar outra faceta dos artigos 4º e 6º, que vem sendo apelidada pela doutrina como um novo princípio: primazia da decisão de mérito (DIDIER, 2015, p. 136). É ele, o Código de Processo Civil, instrumento viabilizador de uma jurisdição efetiva, que assegure um acesso à Justiça não meramente formal, mas real. Essa visão de processo como veículo de efetivação de direitos materiais se contrapõe a um modelo não tão distante de nós, em que se privilegiava (i) a forma em detrimento do conteúdo; (ii) formalismo exacerbado como paradoxal óbice que, ao revés de facilitar, dificultava a apreciação do direito; (iii) uma noção de processo que militava em favor de quem estivesse mais atento aos meandros formais em detrimento, por vezes, daquele que de fato titularizava o melhor direito. A solução do conflito e a segurança jurídica somente são atingidas quando o mérito é enfrentado. Não coadunam com a finalidade do processo, por conseguinte, preciosismos formais e uma banalização de irregularidades processuais que, embora tenham o efeito placebo de num primeiro momento "livrar" o juiz do processo, apenas perpetua o conflito e procrastina a sua resolução, já que a extinção sem resolução do mérito autorizará a renovação da ação que será distribuída por dependência àquele mesmo juízo, na forma do artigo 286, II, do CPC/15. É tendo presentes esses fatores que o CPC/2015 traz uma série de possibilidades - algumas já existentes; outras novas - voltadas para a viabilização do exame do mérito, mesmo o mérito recursal: artigos 76, 139, IX, 317, 321, 932, parágrafo único, 938, § 1º a 4º, 941, 1.007, §§ 2º a 7º, 1.017, § 3º, 1.024, § 5º, 1.025, 1.032, 1.033. Duas dessas inovações merecem destaque em apartado. A primeira delas está presente nos artigos 282, § 2º, e 488 e reza que o juiz, em deparando com nulidade processual ou hipótese de extinção do processo sem resolução do mérito, verificando que o enfrentamento do mérito aproveita a parte a quem aproveitaria a nulidade ou a extinção do feito, deverá preferir a formação da coisa julgada material, superando a questão processual. A segunda grande inovação está contida no artigo 485, § 7º, e estabelece que em havendo a interposição de recurso de apelação contra sentença terminativa fundada em quaisquer dos incisos do artigo 485, ou seja, para extinguir o processo sem resolução do mérito, será franqueado ao juiz prazo de cinco dias para retratação, a exemplo do que ocorria no CPC/73 (artigo 296) restritamente à apelação contra sentença de indeferimento liminar da inicial. Cuidam-se, como se nota, de inovações sem paralelo no CPC/73, voltadas para a facilitação da prolação de decisão que efetivamente solucione o conflito posto a exame. Com essas considerações, encerramos este primeiro exame a respeito de algumas das normas fundamentais do processo civil. Em breve, daremos um desfecho ao assunto abordando os dispositivos faltantes. ______________ 1 Primeira e segunda partes: clique aqui e clique aqui. 2 Nesse sentido: AI 796.905-AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 21.5.2012; AI 622.814-AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 08.3.2012; ARE 642.062-AgR, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, DJe de 19.8.2011. 3 "É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer um deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário." 4 Aliás, a própria etimologia da palavra recurso (um novo curso) sugere a necessidade da ratificação da iniciativa (WAMBIER et. al., 2015, p. 58).5 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...)II - velar pela duração razoável do processo;III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias; (...)Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: (...)II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte. 6 Há quem defenda que a prescrição intercorrente é possível mesmo na fase de conhecimento, diante da inércia da parte autora (AURELLI, Arlete Inês. Uma revisita ao tema da prescrição intercorrente no âmbito do processo civil com ênfase no Código de Processo Civil projetado. In: ALVIM, Arruda et. al. (coord.). Execução civil e temas afins. Do CPC/1973 ao novo CPC. Estudos em homenagem ao professor Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 44), algo com o que não se concorda. Isso porque a retomada do cômputo da prescrição demandaria, face à inércia da parte autora, sua prévia intimação. Ultimada a intimação, e persistindo a inércia, não seria o caso de se manter em curso o processo para eventual futura pronúncia da prescrição intercorrente, mas, sim, de extinguir o feito por restar configurado o abandono processual pelo autor, na forma do artigo 485, III, CPC/15. 7 Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo. 8 No CPC/15, esse estímulo se dá de diferentes formas, ilustradas a seguir: isenção de custas na hipótese de transação antes da sentença (artigo 90, § 3º); o dever do juiz de promoção da composição (139, V); a certificação pelo oficial de justiça de proposta de autocomposição feita pela parte por ocasião de comunicação de ato processual (artigo 154, VI); a previsão da criação pelos tribunais de centros judiciários de solução consensual de conflitos (artigo 165); os conciliadores e mediadores como auxiliares do juízo com disposições normativas próprias (artigos 165 a 175); a suspensão de prazos processuais durante a execução pelo Judiciário de programa de promoção de solução consensual de conflitos (artigo 221, parágrafo único); a audiência de conciliação e de mediação no limiar do processo (artigo 334); a hipótese de produção antecipada de prova que tenha o condão de viabilizar autocomposição (artigo 381, II); eficácia executiva da sentença de homologação de autocomposição judicial ou de acordo extrajudicial, bem assim a transação extrajudicial referendada pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por tribunal (artigos 515, II e III, § 2º, e 784, IV); previsão expressa da possibilidade de homologação de autocomposição pelo relator em grau de recurso (artigo 932, I). 9 (Clique aqui) 10 Para maior aprofundamento da repercussão das peculiaridades do caso concreto na razoável duração do processo, vale a leitura da decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos proferida em 1981 no caso Buchholz vs. Alemanha, disponível em: clique aqui. Acesso em 26.11.2015. 11 Sobre o tema, vale a leitura do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no HC 98.878, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 20.11.2009, disponível em: clique aqui. 12 (Clique aqui)
terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ação de consignação em pagamento no novo CPC

Jorge Amaury Maia Nunes Nos dias atuais, não são raras as situações em que o devedor se vê compelido a procurar meios de saldar dívidas, por resistência de qualquer natureza apresentada pelo credor. Quando por motivo outro não seja, pelo fato de que o devedor supostamente inadimplente corre o sério e muito provável risco de ver seu nome inscrito em um dos diversos cadastros de maus pagadores que pululam em nossa terra. A existimatio do cidadão, i.e., a sua reputação é, hoje, condição necessária (porém, não suficiente) para obtenção de crédito e, às vezes, até para firmar contratos onerosos, fato que impõe a todos o zelo com o próprio nome. Nesse espaço, opera a consignação em pagamento, instituto do Direito Civil, pertinente ao adimplemento e extinção das obrigações, por meio do qual é considerado pagamento e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais (art. 334 do Código Civil). A ação de consignação em pagamento é procedimento especial que visa a permitir a realização daquele instituto de direito material, por meio do qual o autor da ação, se procedente o pedido, obterá uma sentença declaratória da extinção da obrigação que foi cumprida. Observe-se que o Código Civil cuida de (i) depósito judicial; ou (ii) depósito em estabelecimento bancário da coisa devida. Já o anterior Código Civil, de 1916, cuidava apenas e tão somente de "depósito judicial da coisa devida" (art. 972), sem nenhuma alusão a depósito em estabelecimento bancário. Essa alusão a depósito bancário como forma de consignação em pagamento surgiu, primeiramente, não em uma lei civil, mas sim, de forma heterotópica, em uma lei processual, a lei 8.951, de 13/12/1994, que alterou o CPC de 1973, e nele inseriu este comando: " Art. 890...§ 1º Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o devedor ou terceiro optar pelo depósito da quantia devida, em estabelecimento bancário oficial, onde houver, situado no lugar do pagamento, em conta com correção monetária, cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de dez dias para a manifestação de recusa. Cabe lembrar que essa lei e mais outras três leis processuais1, da mesma data, são originárias de projetos apresentados pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura e passaram praticamente sem emendas no Congresso Nacional. Nelas foi aproveitado, e muito, o conteúdo do Anteprojeto de Modificação do Código de Processo Civil, elaborado por uma comissão de eméritos processualistas, composta por LUÍS ANTÔNIO DE ANDRADE, JOSÉ JOAQUIM CALMON DE PASSOS, KAZUO WATANABE, JOAQUIM CORREIA DE CARVALHO JÚNIOR e SÉRGIO BERMUDES, publicado em Suplemento ao DOU de 24.12.852. Aí se encontra a fonte da inserção do depósito bancário como forma de consignação extintiva da obrigação. O CPC/15 cuidou da matéria no art. 539/549 e trouxe algumas modificações de natureza cosmética, cabendo fazer o mesmo comentário que se fez quando veio a lume a lei 8.951/94: sendo um Código de Processo Civil, que traça regras de composição jurisdicional de conflitos ou de prestação de tutela jurídica em processos necessários, resolveu o legislador nele inserir regras extraprocessuais de solução de controvérsias. Dir-se-ia melhor, regras de direito material de exoneração de obrigações pecuniárias. Observe-se que o caput do artigo 539, tal como ocorria no caput do art. 890 do CPC/1973, cuida de consignação, com efeito de pagamento, de quantia ou coisa devida. Os parágrafos nele inseridos, entretanto, somente cuidam de consignação quando se tratar de obrigação pecuniária (mas não da consignação de coisa, que somente é regulada a partir do art. 543). Se se tratar de obrigação desse jaez, poderá o devedor (ou terceiro que pretenda efetuar o pagamento em seu lugar, presentes as regras do artigo 335 e seguintes do Código Civil Brasileiro) optar pelo depósito da quantia devida em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, cientificando-se o credor por carta com AR, fixando-lhe o prazo de 10 dias para a manifestação da recusa. É bem verdade que não incumbe ao legislador a preocupação com academicismos, cabendo-lhe apenas regrar os fatos da vida de modo a prevenir e solucionar conflitos sociais. À doutrina é que se impõe descobrir a natureza jurídica das figuras concebidas pelo legislador. Conceda-se, porém, que esse mister às vezes é dos mais ingratos. Esse depósito bancário firmado pelo devedor, em favor do credor, em estabelecimento bancário oficial, é um exemplo disso. Uma espécie de centauro do Direito. Se visto sob a ótica do devedor, depositante, é depósito voluntário; se visto sob ótica do estabelecimento bancário oficial (que não é parte em qualquer testilha), é depósito necessário, legal, porquanto o legislador não deferiu ao estabelecimento bancário o direito de recusar-se a recebê-lo. Ao revés, a Resolução nº 2814, do Conselho Monetário Nacional deixou claro que é obrigatório, para os bancos oficiais, receber depósitos dessa natureza. É depósito feito em conta aberta para esse fim (o devedor deverá indicar expressamente, na efetivação do depósito, qual o fim a que se destina, que obrigação objetiva extinguir), mas não esclarece o legislador quem é o titular da conta, se o depositante ou o beneficiário. A Resolução do CMN supre essa deficiência ao dispor: Art. 3º Acolhido o depósito de consignação em pagamento, este fica à exclusiva disposição: I - do credor, caso não seja recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no art. 4º, parágrafo único, inciso II, alínea "a"; II - do depositante, após recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no inciso anterior; III - do juízo competente, após proposta a ação de consignação em pagamento referida no art. 6º, prevista pela legislação em vigor. Por outro lado, cabe enfatizar que as regras estabelecidas nos parágrafos do art. 539, relativas ao depósito em instituição financeira concernem ao direito material e constituem uma opção do credor. Não se trata, pois, sequer daquilo a que sói a doutrina apelidar de condições de procedibilidade, até porque essas regras só têm possibilidade de incidir se no local houver estabelecimento bancário oficial. Se não, não poderá o devedor valer-se desse meio extrajudicialde exoneração de obrigação pecuniária. O § 1º do art. 890 do Código de 1973 cuidava de em depósito em conta com correção monetária. Não se trata de conta de poupança que, além da correção monetária, prevê o pagamento de juros remuneratórios. o que não está previsto nesse parágrafo. De outra parte, os depósitos à vista nas instituições financeiras não são corrigidos monetariamente. Criou, assim, o legislador um brutal problema para as instituições financeiras oficiais e outro para o País: no momento em que todas as leis econômicas buscavam a desindexação de toda espécie de obrigação pecuniária, o legislador processual, na contramão da história - ou dotado de poderes premonitórios indicadores de futuro econômico nada alvissareiro -, impunham correção monetária como que lançando uma "moção de desconfiança aos planos econômicos de fins do século passado. O novo Código eliminou a referência à correção monetária e remediou a questão. O credor é comunicado da realização do depósito, por carta, com aviso de recepção. Diz a lei cientificando-se o credor. Seria lícito perguntar: Quem cientifica, o devedor ou o banco depositário? Tenha-se em mente que o estabelecimento bancário não é sequer partícipe da relação obrigacional. Repugna o entendimento de impor-lhe graciosamente esse encargo. A resolução do CMN resolveu a questão, afirmando que o banco será o responsável pela cientificação, mas será ressarcido pelo depositante. Se o credor não manifestar a recusa ao estabelecimento bancário, no prazo decendial que a lei lhe concede, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada. Pode ocorrer, entretanto, que o credor não manifeste a recusa, não proceda ao levantamento do depósito e promova a competente ação de conhecimento ou de execução, conforme o título de que disponha. Nessas circunstâncias, competirá ao agora devedor/executado arguir, dentre outras defesas que tiver, a existência de fato extintivo do direito do autor, procedendo-se na forma do art. 350 do CPC, cabendo ao autor manifestar-se sobre o alegado depósito. É claro, isso é cabível se se tratar de ação de conhecimento. Se o credor aforar ação de execução, a matéria poderá ser discutida, pelo consignante, em objeção de pré-executividade ou em embargos. Ainda em caso de recusa de recebimento do depósito, reza a lei que o devedor ou o terceiro poderá propor, dentro de um mês a ação de consignação, instruída a inicial com a prova do depósito e da recusa. Quanto à natureza desse prazo certamente que dúvidas surgirão. Preclusão, prescrição ou decadência? Preclusão é fenômeno eminentemente endoprocessual e, até esse momento, não terá havido a instauração da relação processual. De prescrição não parece tratar-se porque, ainda que não aforada no prazo de trinta dias, continua o devedor com o direito de propor a ação (recorde-se que o parágrafo 1º cuidade uma opção do devedor, o que não se compadece com o instituto da prescrição, de evidente força cogente). A nosso ver, trata-se de prazo decadencial do direito de realizar eficazmente a oferta pela via prevista no art. 539. Parece claro que, tendo havido a recusa e não tendo ocorrido a propositura da ação no prazo de 30 dias o que ocorre é que a presunção de que a oferta foi realizada desaparece (parece induvidoso que o depósito da soma devida configura oferta real). Passa a haver necessidade de demonstrar a mora accipiendi. Nem o depósito nem a consignatória, é bom que seja recordado, inibem a propositura da competente ação de execução, se o credor dispuser de título executivo, em face da norma contida no § 1º do art. 784 do CPC/15. Na inicial, agora, além dos requisitos do art. 319 do CPC que sejam aplicáveis à espécie, o autor requererá o depósito da quantia ou coisa devida (que deve ser realizado no prazo de cinco dias contados do deferimento, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito) ressalvada a hipótese do § 3º do artigo 539, em que o autor já terá depositado a importância em conta bancária, à disposição do credor. Nessa circunstância, a inicial já deverá vir acompanhada da prova do depósito e da recusa, fornecida pela instituição financeira; deverá requerer, também, a citação do réu para levantar o depósito ou oferecer contestação. Quanto ao prazo para oferecer resposta, é bom observar que, à falta de regra específica, será o comum, de 15 dias. Na resposta, poderá alegar que: (i) não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida; (ii) foi justa a recusa; (iii) o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento; e (iv) o depósito não foi integral. No parágrafo único do artigo 544, merece especial atenção o fato de que o réu tem de indicar montante que entende devido, isto se sua contestação arguir que o depósito não foi integral. Casa-se a regra com a do art. 545 que permite ao autor complementar o depósito que tenha sido feito a menor. O § 1º do art. 545 contém regra que deve ser entendida cum grano salis: o levantamento do depósito feito a menor só é possível se a defesa do credor se fundar exclusivamente nessa circunstância ou em defesas processuais de caráter meramente dilatório. Se se tratar de outras defesas de conteúdo material ou processual de caráter peremptório, cumuladas com insuficiência do depósito, que possam conduzir à total improcedência do pedido, não é de ser deferido o levantamento. A regra do § 2º, na hipótese que regula, transforma a ação de consignação em pagamento numa espécie de actio duplex. De fato, é de comum ensinança que as sentenças que dão pela improcedência do pedido são declaratórias negativas. Negam a pretensão do autor e não atribuem qualquer direito ao réu (ressalvada a condenação na verba honorária, ressarcimento de despesas com o processo e condenação em litigância de má-fé). No artigo sob exame, a ser seguida a mencionada regra geral, se insuficiente o depósito para exonerar o consignante da obrigação, seria de dar-se simplesmente pela improcedência do pedido. O legislador, nesse caso, inverte os pólos da relação e transforma o réu em autor (sem pedido, mas com pretensão condenatória). A parte inicia o processo na qualidade de ré e termina como detentora de um título executivo judicial que é fruto do exame e decisão sobre uma relação jurídica de direito material. Especial hipótese de consignação ocorre quando o devedor tem dúvida sobre a quem deva pagar. Nessa circunstância, deverá proceder ao depósito e requerer a citação de todos os possíveis titulares do crédito para que venham a juízo demonstrar sua legitimação. Independentemente de quantos acorram ao chamado citatório, se não houver discussão quanto ao valor do depósito, o juiz deverá (i) declarar satisfeita a obrigação e o processo continuará apenas entre os supostos credores, se houver mais de um; ou (ii) determinar a entrega do valor depositado ao réu, se apenas um comparecer. Não comparecendo pretendente algum, o depósito realizado é convertido em arrecadação de coisa vaga, com regência parca no art. 746 do CPC/15, mas que sugere uma recompensa ao inventor (aquele que achou a coisa) e a entrega do saldo à União, ao Estado ou ao Distrito Federal. _____________ 1 Lei 8.950 (recursos), Lei 8.951 (consignação em pagamento e usucapião), Lei 8.952 (processo de conhecimento e processo cautelar), Lei 8.953 (processo de execução),de 13 de dezembro de 1994, Lei 9.028 (capacidade postulatória da AGU) de 12 de abril de 1995, Lei 9.079 (ação monitória) de 14.07.95, Lei 9.139 (recurso de agravo) de 30.11.95 e Lei 9.245 (procedimento sumário) de 26.12.95. 2 Servimo-nos da publicação do Anteprojeto feita na Revista de Processo nº 43, jul/set 1986.
Guilherme Pupe da Nóbrega Seguindo na investigação a respeito dos pontos em que o Código de Processo Civil de 2015 rechaçou entendimentos jurisprudenciais consolidados, nos voltaremos, hoje, para o tema dos honorários advocatícios sucumbenciais, de especial destaque no novo Codex mercê da profusão de inovações por ele trazidas. Dentre as mudanças mais relevantes, merece registro, à partida, o alinhamento do CPC/2015 com o Estatuto da OAB (lei 8.906/94) no que toca ao direito do advogado aos honorários sucumbenciais. É que embora o artigo 23 do mencionado Estatuto já deixasse estreme de dúvidas pertencerem os honorários ao advogado, a redação do caput do artigo 20 do CPC/1973 ("A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios") dava alguma margem para o raciocínio de que a verba devida em razão de revés em feito judicial seria devida à parte - ao vencedor -, não ao seu patrono. No CPC/15, a correção é feita logo no caput do artigo 85 ("A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor"), repisada a titularidade do direito aos honorários no parágrafo § 14 daquele mesmo dispositivo ("Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial"). Essa ênfase dada pelo CPC/15 à titularidade do direito aos honorários findou por culminar na primeira superação jurisprudencial explorada neste texto: muito bem definido pertencerem os honorários ao advogado, não haveria falar em possibilidade de compensação em razão de sucumbência recíproca pelo simples fato de que aquela pressupõe, na forma do artigo 368 do CC, credores e devedores recíprocos. Sendo credores os advogados e devedoras as partes, inviável a compensação. Não fosse esse silogismo suficiente, o § 14 do artigo 85, antes transcrito, previu expressamente, como visto, a impossibilidade de compensação, esvaziando de vez a súmula 306/STJ ("Os honorários advocatícios devem ser compensados quando houver sucumbência recíproca, assegurado o direito autônomo do advogado à execução do saldo sem excluir a legitimidade da própria parte"). Indo adiante nas mudanças, por força do novo Código passam a ser devidos honorários sucumbenciais por faixa recursal (artigo 85, §§ 2º e 11). É objetivado, ademais, o arbitramento daquela verba nos feitos em que seja parte a Fazenda Pública (artigo 85, § 3º), eliminando-se espaço de subjetividade que por vezes redundava em honorários aviltantes. Além disso, passa a haver a previsão expressa de que o direito aos honorários sucumbenciais é igualmente titularizado pelos advogados públicos (artigo 85, § 19). Outro dispositivo, digno de elogio, é o § 7º do artigo 85, que houve por muito bem em condensar, com boa técnica legislativa, a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal e pela doutrina ao artigo 1º-D da lei 9.494/97, dispositivo esse vazado nestes termos: "Não serão devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções não embargadas." Mais bem explicando, no RExt 420.186, o STF adotou interpretação conforme a Constituição para declarar a constitucionalidade do artigo 1º-D da lei 9.494/97, afastando, contudo, a isenção de honorários da Fazenda Pública em execução não embargada em que se perseguisse débito definido em lei como pequeno valor.1 O raciocínio é o de que o artigo 1º-D da 9.494/97 se justificaria em razão da ausência de causalidade. A Fazenda Pública, por força do regime constitucional de precatórios, não teria a opção de efetuar, sponte sua, o pagamento de crédito contra ela imposto por decisão judicial transitada em julgado. É dizer, a execução era passo necessário, e eventual causalidade a atrair honorários sucumbenciais somente nasceria supervenientemente em virtual oposição de embargos à execução, no bojo dos quais a verba haveria de ser fixada. Diversamente, créditos definidos como de pequeno valor foram postos a salvo do regime de precatórios, na forma do artigo 100, § 3º, da Constituição - com redação inicialmente dada pela EC 20/98 e posteriormente alterada pela EC 62/09 -, e poderiam ser pagos espontaneamente, de sorte que a cobrança forçada pelo exequente derivaria de resistência injustificada da Fazenda, fazendo-se presente a causalidade ensejadora de honorários, independentemente do aviamento de embargos.A doutrina, bebendo na fonte do raciocínio antes desenvolvido, foi ainda mais além, também afastando a norma inserta no artigo 1º-D da lei 9.494/97 das execuções de obrigação de pagar contra a Fazenda Pública que se fundassem em título extrajudicial. Os fundamentos são trazidos pelo excelente Leonardo Carneiro da Cunha: Diversamente, quando há um título executivo extrajudicial que imponha ao Poder Público o pagamento de quantia certa, já há previsão orçamentária e rubrica específica para pagamento. Em outras palavras, ao firmar o contrato ou subscrever o documento que se encaixa na previsão contida no art. 585 do CPC, a Fazenda Pública já assumiu a dívida. Se não paga no prazo ajustado, está a dar causa ao ajuizamento da execução. Em razão da causalidade, haverá honorários na execução fundada em título extrajudicial, ainda que não embargada e mesmo que seja necessária a expedição do precatório. Não se aplica, portanto, o disposto no art. 1º-D da lei 9.494/97 nas execuções fundadas em título extrajudicial que não sejam embargadas.2 Como se depreende do excerto acima, também na hipótese de execução de obrigação de pagar quanta certa calçada em título extrajudicial, que depende, para sua adesão pela Fazenda, de prévia previsão/disponibilidade de recursos, se faria presente a causalidade ensejadora de condenação em honorários sucumbenciais independentemente de embargos, eis que, possível o pagamento espontâneo, os ônus oriundos da necessidade de se ajuizar a execução hão de recair sobre a Fazenda. Todo esse raciocínio, como adiantado, foi muito bem resumido pelo CPC/15 em norma simples, singela, constante do artigo 85, § 7: "Não serão devidos honorários no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje expedição de precatório, desde que não tenha sido impugnada."3 Quando fala em "cumprimento de sentença", o dispositivo naturalmente afasta a execução, autônoma, fundada em título extrajudicial; quando fala em "que enseje expedição de precatório", é rechaçado o crédito de pequeno valor. Assim, o artigo 20, § 4º, do CPC/73, que já havia sido parcialmente derrogado pelo artigo 1º-D da lei 9.494/97 - com todas essas ressalvas apontadas pelo STF e pela doutrina -, deu lugar ao § 7º do artigo 85 no CPC/15, norma autossuficiente. Retomando as inovações, concernentes aos honorários advocatícios, que confrontaram entendimentos sedimentados no seio do STJ, há dissonância que deflui do contraste entre a súmula 453 do STJ ("Os honorários sucumbenciais, quando omitidos em decisão transitada em julgado, não podem ser cobrados em execução ou em ação própria") e o § 18 do artigo 85 ("Caso a decisão transitada em julgado seja omissa quanto ao direito aos honorários ou ao seu valor, é cabível ação autônoma para sua definição e cobrança"). Analisados os julgados que culminaram na edição daquele enunciado, a justificativa para a impossibilidade de cobrança de honorários, quando omissa a esse respeito a decisão judicial, se calçava na preclusão máxima operada pela coisa julgada; em outras palavras, sendo os honorários sucumbenciais "pedido implícito" ou "efeito anexo da sentença", silenciando o julgador a esse respeito, a cristalização operada pela coisa julgada afastaria "revisitação" do tema. Ocorre que não há falar em efeito preclusivo da coisa julgada acerca do que jamais foi objeto de decisão. A sentença citra petita não transita em julgado quanto ao capítulo por ela omitido. A decisão, na parte em que deixou de decidir, não chega nem sequer a existir, não se podendo falar em vedação a reenfrentamento - propósito da coisa julgada material - do que não enfrentado. Esses fundamentos, curiosamente, já eram sustentados pelo Ministro Luiz Fux - que mais tarde presidiria a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do novo CPC - como ressalva de seu entendimento pessoal, embora acompanhasse a jurisprudência da Corte ao relatar julgado submetido ao rito dos recursos repetitivos, pouco antes da edição da Súmula 453: (...) 5. Ressalva do Relator no sentido de que o acórdão, que não fixou honorários em favor do vencedor, não faz coisa julgada, o que revela a plausibilidade do ajuizamento de ação objetivando à fixação de honorários advocatícios. Isto porque a pretensão à condenação em honorários é dever do juiz e a sentença, no que no que se refere a eles, é sempre constitutiva do direito ao seu recebimento, revestindo-o do caráter de executoriedade, por isso, a não impugnação tempestiva do julgado, que omite a fixação da verba advocatícia ou o critério utilizado quando de sua fixação, não se submete à irreversibilidade decorrente do instituto da coisa julgada.4 Merece registro, ademais, que a norma contida § 18 do artigo 85 é corroborada, em saudável diálogo sistemático, pelo artigo 503 também do CPC/15, que, em contraposição ao artigo 468 do CPC/73, consigna que somente serão atingidas pela coisa julgada "as questões expressamente decididas", tudo a convergir, como se percebe, para a caducidade da Súmula 453.Por fim, deve ser enfrentado o entendimento sedimentado pelo STJ sob a dinâmica dos recursos repetitivos por ocasião do julgamento do REsp 1.291.736, no sentido de que "Em execução provisória, descabe o arbitramento de honorários advocatícios em benefício do exequente." Em suma, o aresto do STJ se fundou nos argumentos de que em execução provisória, a obrigação exequenda ainda não é definitivamente exigível, sendo ilógica a imposição de seu cumprimento ao executado, que, adimplindo a obrigação, estará a praticar ato incompatível com o recurso por ele manejado e ainda pendente de julgamento. De mais a mais, dependendo o cumprimento provisório de iniciativa do exequente, por conta e risco de quem aquela haverá de tramitar, não haveria falar em causalidade da parte do executado. O CPC/15, no § 2º do artigo 520, todavia, passa a prever que "A multa e os honorários a que se refere o § 1º do art. 523 são devidos no cumprimento provisório de sentença condenatória ao pagamento de quantia certa." Referida norma positiva a tese doutrinária5 que, em contraposição à conclusão alcançada pelo STJ no REsp 1.291.736, se dá no sentido de que a obrigação objeto de cumprimento provisório tanto é exigível que é executável, exigibilidade essa não desmerecida pela provisoriedade - revertida a exigibilidade em cognição exauriente, os ônus sucumbenciais seguirão a mesma sorte. Assim, exigível a obrigação, o descumprimento pelo executado impõe a esse os ônus da instauração da execução, não havendo falar que a causalidade resida na iniciativa do exequente - toda ação, em última análise, deriva da opção da parte pelo exercício daquele direito -, mas, antes, na resistência injustificada do executado. Como visto, foram muitas as mudanças importantes relacionadas aos honorários no CPC/15, ganhando especial destaque, aqui, a superação das súmulas 306 e 453, ambas do STJ, e do que decidido no REsp 1.291.736, por essa mesma Corte, sob o rito dos recursos repetitivos. Voltamos em breve com o próximo texto da séria voltada à análise da superação jurisprudencial pelo CPC/15. Até! ________ A primeira parte da série de textos sobre o overruling ope legis pode ser acessada aqui. ________   1 "(...) IV. Fazenda Pública: execução não embargada: honorários de advogado: constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal, com interpretação conforme ao art. 1º-D da L. 9.494/97, na redação que lhe foi dada pela MPr 2.180-35/2001, de modo a reduzir-lhe a aplicação à hipótese de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública (C. Pr. Civil, art. 730), excluídos os casos de pagamento de obrigações definidos em lei como de pequeno valor (CF/88, art. 100, § 3º)." RE 420816, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29/09/2004, DJ 10-12-2006 PP-00050 EMENT VOL-02255-04 PP-00722. 2 (Clique aqui) 3 Quiçá o único reparo que pudesse ser feito no parágrafo fosse para nele incluir o que disposto na Súmula 345/STJ ("São devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas, ainda que não embargadas"), que, inobstante a omissão, remanesce válida aplicável. 4 (Clique aqui) 5 Nesse sentido: TALAMINI, Eduardo. Execução provisória e honorários. In: ALVIM, Arruda et. al. (Coord.). Execução e temas afins. Do CPC/1973 ao Novo CPC. Estudos em homenagem a Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 252-277; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 862. ________
terça-feira, 10 de novembro de 2015

O que importa é ser oposição

Jorge Amaury Maia Nunes Ao final de nosso último texto sobre recurso extraordinário, publicado aqui no Migalhas, tínhamos o compromisso de examinar o agravo em recurso extraordinário. Ocorre que, nesse intervalo, foi aprovado na Câmara dos Deputados projeto de lei que altera, entre outros dispositivos, justamente o que trata desse recurso. Após aprovação, o projeto em tela foi encaminhado ao Senado Federal para continuação do trâmite legislativo, com robustas possibilidades de acolhimento, embora não se saiba qual a sua redação final. Assim, enquanto perdurar esse estado de indefinição, não parece razoável tentar dissecar um instituto que talvez não tenha um dia sequer de vigência. Mudamos, em decorrência disso, nossas preocupações imediatas e passaremos a investigar alguns procedimentos especiais, notadamente aqueles que, no novo Código, trazem alguma curiosidade, provocam perplexidade ou insistem em algum ponto do Código de 1973 censurado pela doutrina. Vamos, hoje, cuidar da oposição, tema que está sempre no centro da cultura jurídica nacional. O Código de 2015 não trata do instituto da oposição como forma de intervenção de terceiro, inovando, pois, em relação ao Código de 19731. Isso não significa que o instituto tenha deixado de existir. O que ocorre, em verdade, é apenas e tão somente seu deslocamento para a Parte Especial, Livro I, Título III, dos procedimentos especiais, Capítulo VIII. Doravante e em tese, a oposição é, para os fins do Código, um procedimento especial que deve ser aviado de forma autônoma e independente. Convém lembrar que o projeto do Código/2015 começou a tramitar perante o Senado. Lá, o texto aprovado não previa a existência da oposição, cuja regulação foi simplesmente suprimida. Quando em apreciação pela Câmara dos deputados, foram recuperados quase que ipsis litteris os arts. 56 a 61 do Código de 1973, apenas com alteração de sua topologia e um ou outro detalhe cosmético; e assim foram mantidas a redação e a localização, até a aprovação final do parlamento. É bem de ver que, embora seja, agora, um procedimento especial, e não mais uma figura de intervenção de terceiros, foi quase que inteiramente preservada a estrutura do procedimento comum. Ora, o que caracteriza a especialidade do procedimento é a existência de alguma peculiaridade que impõe, em determinado momento, a alteração da ordem concebida para o procedimento comum. Aqui, a única coisa que sugere tenha a oposição se afastado do caminho atribuído ao procedimento comum foi a supressão do momento inicial destinado à conciliação e à mediação. Exceto isso, não existe nada de substancialmente diferente em relação ao procedimento comum que justifique a retirada desse instituto do âmbito da intervenção de terceiros (de lembrar que não há parte geral no Código de 1963) e a sua inserção no rol dos procedimentos especiais. A oposição era forma espontânea de intervenção de terceiros, por meio da qual alguém, até então estranho à relação processual estabelecida, e dela tendo tomado conhecimento, pedia seu ingresso para apresentar sua lide, contra ambas as partes em litígio. Tratava-se de intervenção ad excludendum. A expressão, todavia, há de ser interpretada com certa reserva. O que o opoente pretendia, certamente, era exercer ação contra ambos, visando a demonstrar não ser o autor da ação originária o verdadeiro titular do bem da vida vindicado, para poder exigir, ele mesmo, opoente, o bem ou direito contra o réu. Rigorosamente, a lei processual institui uma espécie de litisconsórcio entre o autor e réu da relação originária, os quais passarão a ser réus na oposição aviada, na qualidade de opostos. Se de litisconsórcio se trata, então deve ser litisconsórcio necessário simples, no sentido de que ambos comporão necessariamente o polo passivo da relação processual, mas a decisão não terá de ser obrigatoriamente uniforme em relação a eles. Na oposição, em regra, o opoente exerce duas pretensões diversas: (i) contra o autor da ação original, de natureza declaratória, para que o juiz declare que o autor da pretensão originariamente exercida não é o titular do bem ou direito controvertido, e sim o opoente; e (ii) contra o réu, de natureza geralmente condenatória para que este seja obrigado em relação ao opoente a pagar, dar, fazer, não fazer. No que diz com o procedimento em si, são dignos de menção alguns aspectos. O primeiro deles, relativo à redação que se emprestou ao artigo 683. Deveras, soa algo pleonástico, já à altura da seção VIII do Título III, do livro I da parte especial, que cuida dos procedimentos especiais, afirmar que o "opoente deduzirá seu pedido em observação aos requisitos exigidos para propositura da ação". Com efeito, fizesse algum sentido esse dispositivo, então todos os outros quinze procedimentos especiais previstos no Código mereceriam a mesma admoestação no sentido do dever de obedecer aos requisitos antes indicados. Isso fazia sentido, antes, quando o instituto era tratado como uma das figuras de intervenção de terceiros, a sugerir que não lançasse mão, o opoente, de simples petição nos autos, sem os requisitos do art. 282 do Código de 1973. O segundo, relativo ao fato de que, tal como dispõe o Código de 1973, também no de 2015 a oposição deve ser distribuída por dependência ao juízo perante o qual corre a ação relativa ao bem ou direito controvertido. A ideia que se faz presente é a de evitar possíveis decisões contraditórias que poderiam vir a ser proferidas se a oposição fosse submetida a uma livre distribuição. O terceiro, relativo ao fato de que os opostos são citados na pessoa de seus advogados, aos quais a lei processual confere mandato (uma espécie de mandato ex lege e não contratual) para recebimento de citação nessa específica hipótese, mesmo que não sejam detentores das informações de fato, aptas a permitir a oferta de adequada contestação. Isso até pode fazer algum sentido quanto se trata de uma intervenção de terceiros em processo que já está em curso; não, agora, quando se trata de um procedimento de natureza especial, inteiramente autônomo. Pense-se, por exemplo, que, além da falta de informações sobre os fatos narrados na petição inicial da oposição, o advogado que atua na ação originária pode não ter nenhum interesse em patrocinar a defesa da parte oposta, ou, até, os opostos podem não pretender que o patrocínio seja feito pelo mesmo causídico que atua na ação originária. O quarto, relativo ao prazo comum de 15 dias. A seguir-se o entendimento sedimentado sob a égide do Código de 1973, não cabe cogitar, aqui, da dobra de prazo de que trata o art. 229 do CPC, ainda que, na oposição, necessariamente as partes rés possuam diferentes procuradores. Essa limitação desiguala, de forma inusual, o direito dos réus, litisconsortes com procuradores diferentes, em relação a todas as outras situações em que ocorrem situações de mesma natureza. O texto do art. 684 (Se um dos opostos reconhecer a procedência do pedido, contra o outro prosseguirá o opoente) também tinha muita pertinência quando o instituto constituía figura de intervenção de terceiros. Agora, diz uma obviedade, até porque, pela natureza da oposição, o litisconsórcio não é unitário, com o que os opostos serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos. É claro que, se um deles reconhecer a procedência do pedido, o magistrado deverá, com relação a esse, atuar na forma disposta no art. 487, III, a, homologar o reconhecimento (por sentença!) e determinar o prosseguimento do feito com relação ao réu remanescente. Sob a égide do Código de 1973, em sua redação original, havia dúvida sobre se o ato do juiz que homologava a procedência do pedido deveria ser considerado sentença (art. 269, II, daquele Código), ou decisão interlocutória, com evidente repercussão sobre o recurso cabível, se apelação ou agravo de instrumento. Evidente está que pode haver recurso até para que o oposto possa questionar o próprio ato tido pelo juiz como de reconhecimento do pedido. Agora, com a regência emprestada à matéria especialmente pelo art. 354, c/c art. 487, III, o novo Código permite o julgamento parcial de mérito, por sentença. O parágrafo único, entretanto, visando a escoimar qualquer dúvida, já deixou expresso que, nesse caso, o recurso cabível será o de agravo de instrumento. No Código de 1973, porque o tema é tratado como hipótese de intervenção de terceiro, faz sentido falar-se em "admitido o processamento". Como, entretanto, o Código de 2015, cuida a oposição como um procedimento especial autônomo, ainda que distribuído por dependência, não parece adequado falar em "admitido o processamento". Talvez fosse mais adequado algo semelhante ao que lançado no início art. 334: Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz determinará seja a oposição apensada aos autos da ação originária. Isso, entretanto, não empana a compreensão do que pretendeu o novo Código. Como se percebe da dicção do parágrafo único do art. 685, o Código manteve, ainda que de forma menos explícita, a mesma distinção constante nos 59 e 60 do Código de 1973, bem cuidada pela doutrina. Diz-se que havia (i) oposição interventiva (art. 59), oferecida antes da audiência de instrução; e (ii) oposição autônoma (art. 60) oferecida após iniciada a audiência. A rigor, o Código de 1973 cuida de uma que podemos chamar de verdadeira hipótese de oposição, realizada em simultaneus processus, quando aviada antes da audiência de instrução e julgamento, hipótese em que era processada em apenso aos autos principais e decidida em uma mesma e única sentença. A outra forma de oposição, decorrente de oferecimento tardio, i.e., após iniciada a audiência de instrução e julgamento, não era verdadeira figura de intervenção de terceiro e sim de ação autônoma, que se estabelecia mediante outra relação processual. Apenas em razão de conveniência de trabalho, o juiz poderia sobrestar no andamento do feito anterior para que as duas ações pudessem ser julgadas conjuntamente. Se bem examinados os termos lançados no Código de 2015, a situação não mudou. Deveras, ao ler o parágrafo único do art. 685 (e parágrafos prestam-se a explicitar ou excepcionar um artigo), percebe-se que o caput cuida de oposição que, aviada antes do início da audiência de que cuida o art. 358, permite instrução simultânea e julgamento em uma única sentença. Ao revés, o parágrafo deixa claro que, aviada após o início da audiência, o magistrado deve concluir a fase de instrução e, somente após, suspender o curso da ação originária, salvo se entender que uma única instrução para as duas ações (oposição e ação originária) mais bem atende ao princípio constitucional da razoável duração do processo. Bem percebidas as coisas, o comando do artigo atende, antes de tudo, a uma questão de lógica. Deveras, a rigor, existirão três lides a ser apreciadas pelo magistrado: (i) a questão de direito material que é objeto da ação originária; (ii) a pretensão declaratória exercida pelo opoente contra o oposto que figura como autor na ação originária; (iii) a pretensão de natureza reivindicatória ou condenatória que o opoente exerce contra o réu da ação originária. Em se tratando de julgamento simultâneo, o juiz, em obediência à questão de lógica antes indicada, deve decidir primeiramente a oposição e somente após, se for o caso, decidir a ação principal. Deveras, se o pedido na oposição for julgado procedente, não haverá mais o que decidir a respeito da ação principal. É que, nesse caso, já terá decidido que o bem da vida deve ser atribuído ao opoente, não cabendo nenhum direito aos opostos! Se o legislador não fizer nenhuma movimentação suspeita, trataremos, no próximo texto, da consignação em pagamento. Até lá! __________ 1 São figuras de intervenção de terceiros, no novo Código: (i) assistência simples e litisconsorcial; (ii) denunciação da lide; (iii) chamamento ao processo; (iv) incidente de desconsideração da personalidade jurídica; e (v) amicus curiae. Deixam de existir, como intervenção: (i) nomeação à autoria; (ii) oposição.
Guilherme Pupe da Nóbrega Leitura superficial do Código de Processo Civil de 2015 (lei 13.105) já permite verificar como não foram poucos os entendimentos que, consolidados pela jurisprudência, findaram positivados pela nova lei. Por outro lado, noutras disposições tantas o legislador rechaçou jurisprudência consagrada, esvaziando súmulas e julgados em recursos repetitivos. Neste texto (o primeiro de quantos outros a empreitada exigir), cuidamos, pontualmente, de indicar algumas dessas superações, notadamente no que toca ao STJ. 1) Possibilidade de cumprimento provisório de preceito cominatório: art. 537, § 3º, CPC/2015 X REsp 1.200.856Debate candente no STJ em anos idos dizia respeito à (im)possibilidade de cumprimento provisório de decisão que fixasse preceito cominatório em antecipação de tutela, isto é, se já seria possível executar multa periódica (astreintes) acumulada face à inércia daquele obrigado por decisão precária ainda não confirmada por cognição exauriente. As distintas correntes eram pela (i) pronta exequibilidade do preceito cominatório, independentemente de sentença; (ii) necessidade de confirmação da antecipação da tutela por sentença transitada em julgado como requisito para execução do preceito cominatório; e (iii) possibilidade de cumprimento provisório do preceito cominatório, exigindo-se sentença confirmando a tutela antecipada que, ainda que não transitada em julgado, houvesse sido atacada por recurso sem efeito suspensivo. Mercê da divergência existente, o STJ houve por bem enfrentar o tema segundo a dinâmica dos recursos repetitivos no REsp 1.200.856, rel. Min. Sidnei Beneti, DJ de 17/9/13, firmando posição na linha do que sumariado em (iii) do parágrafo anterior, ou seja, pela possibilidade de cumprimento provisório da obrigação de pagar preceito cominatório devido em razão do não-cumprimento de determinação contida em decisão antecipatória da tutela desde que confirmada essa por sentença, prescindindo-se do trânsito em julgado, mas exigido que o recurso fosse desprovido de efeito suspensivo. Eis, bem a propósito, os termos do que decidido: A multa diária prevista no § 4º do art. 461 do CPC, devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo.1 O aresto em questão fiou-se, em grande parte, na segurança jurídica como fundamento para dar pela impossibilidade de execução do preceito cominatório fundado em decisão precária, mas mereceu a crítica de que o entendimento esvaziaria a coercitividade do instituto, técnica de execução indireta, na busca pelo cumprimento da tutela antecipada, ignorando, ademais, que a antecipação observa requisitos para sua concessão e que o cumprimento provisório guarnece o juiz de elementos que resguardem a segurança, como a exigência de caução para reversibilidade dos atos executivos praticados. O CPC/15, nada obstante, adotou posicionamento intermediário em seu artigo 537, § 3º, admitindo o cumprimento provisório do preceito cominatório independentemente da confirmação de sentença, até mesmo com a efetivação de constrição sobre o patrimônio do devedor, mas somente autorizando o levantamento de valores pelo exequente após o trânsito em julgado: Art. 537.  A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito. (...) § 3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte ou na pendência do agravo fundado nos incisos II ou III do art. 1.042. O meio-termo, como se vê, buscou o melhor de duas coisas: resguardar a coercitividade, ameaçando o devedor com a indisponibilidade patrimonial independentemente de cognição exauriente, mas observando a segurança jurídica, sujeitando o exequente à espera pelo trânsito em julgado para levantamento dos valores constritos. Ao menos em relação ao posicionamento anterior do STJ, pensamos ter havido franca evolução. 2) Excesso de execução suscitado pela Fazenda Pública e necessidade de declinação do quantum (exceptio declinatori quanti): arts. 535, IV, § 2º, e 910, § 3º, CPC/15 X REsp 1.387.248 No REsp 1.387.248, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJ de 19.5.2014, de sua vez, o STJ privilegiou a lógica ao dispor que a impugnação a cumprimento de sentença calçada em excesso de execução demanda a indicação do valor incontroverso: Na hipótese do art. 475-L, § 2º, do CPC, é indispensável apontar, na petição de impugnação ao cumprimento de sentença, a parcela incontroversa do débito, bem como as incorreções encontradas nos cálculos do credor, sob pena de rejeição liminar da petição, não se admitindo emenda à inicial.2 O exotismo da decisão, porém, ficou por conta da previsão de que o raciocínio não se aplica à Fazenda Pública, seja em razão da indisponibilidade do interesse público patrocinado em juízo, seja pelo fato de o artigo 741 não ter reproduzido a exigência presente no artigo 475-L, § 2º, ambos do CPC/73. O CPC/15 corrige essa parte final ao trazer a regra expressa de que a Fazenda, quando aventar excesso de execução em impugnação ao cumprimento de sentença (agora possível) ou em embargos à execução, tem a obrigação de indicar o valor reputado correto. Confiram-se, nessa senda, os artigos 535, IV, § 2º, e 910, § 3º, CPC/2015: Art. 535.  A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir: (...) IV - excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; (...) § 2º Quando se alegar que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante do título, cumprirá à executada declarar de imediato o valor que entende correto, sob pena de não conhecimento da arguição. Art. 910.  Na execução fundada em título extrajudicial, a Fazenda Pública será citada para opor embargos em 30 (trinta) dias. (...) § 3º Aplica-se a este Capítulo, no que couber, o disposto nos artigos 534 e 535. A correção, segundo pensamos, é benéfica, favorecendo a isonomia e pondo fim à censurável prática de posterior aditamento pela Fazenda para complementação de alegação de excesso. A crítica fica por conta da ausência de paralelismo normativo entre os arts. 525, § 4º, e 535, § 2º, CPC/2015: naquele, para além da exigência da indicação do valor reputado correto, impõe-se ao executado a colação à impugnação de demonstrativo de débito que respalde a sua insurgência; no que toca a impugnação pela Fazenda, houve omissão a respeito da necessidade de juntada de demonstrativo, o que, nada obstante, entendemos ser um consectário lógico da agora obrigação de apontamento de valor, já que pensamento em contrário produzirá risco de esvaziamento da nova norma e de lançamento, pela Fazenda, de valores a esmo para decote posterior, com a juntada de elementos, perpetuada a prática que se visou a rechaçar. _______________ 1 (Clique aqui) 2 (Clique aqui)
terça-feira, 27 de outubro de 2015

Os negócios processuais no CPC/15

Guilherme Pupe da Nóbrega De há muito vem sendo gradativamente detrimentada a noção do processo como fim em si mesmo. A evolução da ideia de um conjunto de relações jurídicas linear, angular e triangular de que decorrem direitos e deveres recíprocos para seus sujeitos passou a privilegiar o processo, mais, como veículo de realização do direito material; meio para um fim, que é a prestação, efetiva, da jurisdição, inserido nessa efetividade o enfrentamento do mérito para real solução do conflito e reafirmação/restauração da segurança jurídica. A forma pela qual se desenvolve esse conjunto de relações jurídicas é o rito, ou procedimento. Um marchar cadenciado para frente. Em dizeres Liebmanianos, uma série coordenada de atos tendentes à prática de um ato final, que é a sentença. Verdade, porém, que cada pretensão é uma pretensão e que especificidades há que terão o condão de repercutir na ordem dos atos processuais que formem o procedimento. Caso a caso, certas peculiaridades influenciarão o melhor caminho a tomar para adequada prestação da jurisdição. Tanto é assim que há os chamados procedimentos especiais a destoarem do procedimento comum, geral. A atual quadra vivida pelo Processo Civil brasileiro, nada obstante e como já adiantado, voltou-se com mais vigor para uma busca por maior efetividade. Como reflexo disso, surgem (i) a crença na insuficiênciada dicotomia entre procedimentos especiais e procedimento comum a encerrar as vias pelas quais tal ou qual processo haveria de percorrer; e (ii) a busca por seprivilegiar uma democratização do processo por meio de uma maior abertura à participação das partes, com evidente atenuação do sistema inquisitivo. A soma dessas duas coisas exerceu particular influência sobre o Código de Processo Civil de 2015, admitindo-se a uma maior flexibilização do procedimento por iniciativa dos sujeitos do processo. Ilustram o asserto os artigos 168, que trata da possibilidade de as partes escolherem de comum acordo conciliador ou mediador, e 357, §§ 2º e 3º, que abre à participação das partes o saneamento do processo, incluída a delimitação das questões de fato, sobre as quais se produzirá prova, e de direito, relevantes para a decisão de mérito. O artigo 139, VI, no mesmo norte - e com possível inspiração nas Civil Procedure Rules do direito inglês1 - deu margem a que o magistrado, oficiosamente, flexibilizasse o rito de forma a conferir maior efetividade à jurisdição. Sem embargo dessas previsões, os dispositivos do CPC/15 que mais têm chamado atenção no que toca à flexibilização procedimental e à participação das partes são os artigos 190 e 191.2 Bem verdade que no Código de 1973 já havia a possibilidade de as partes convencionarem o foro de eleição, a suspensão do processo e, mesmo, a distribuição do ônus da prova. A amplitude trazida pelo CPC de 2015 nos referidos artigos 190 e 191, porém, é algo inédito: é fraqueada às partes a possibilidade de, em comum acordo, dispor sobre "mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo", bem assim estabelecer vinculativo "calendário para a prática dos atos processuais". A novidade, que bebe na fonte do direito francês3, entusiasmou muitos doutrinadores,4 mas inspira atenção quanto aos seus limites. É que o próprio CPC/15 submete os negócios processuais ao crivo judicial sobre a "validade das convenções", que não devem ser aplicadas "nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade." Surge, então, a necessidade de mais bem definir esses parâmetros a separar negócio processual legítimo de ilegítimo. Iniciativas já há nesse sentido. Em seus comentários, Marinoni e Arenhart5 afirmam que, a despeito da previsão contida no artigo 190, não é dado às partes convencionar sobre seus próprios deveres, previstos no artigo 77 do CPC/15. Teresa Wambier et. al., de sua vez, aduzem que escapam à convenção processual as normas atinentes aos poderes do juiz.6 A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), nos enunciados que editou sobre o CPC/15, também rechaça a possibilidade de que os negócios processuais versem sobre os poderes do juiz de forma a limitar seus poderes de instrução e de sanção à litigância de má-fé. Também são reputadas inadmissíveis pela ENFAM convenções que retirem do juiz o controle da legitimidade das partes ou do ingresso de amicus curiae; criem hipóteses de cabimento recursal, de ajuizamento de ação rescisória ou de sustentação oral não previstas em lei; determinem o julgamento do conflito com base em lei alienígena; estabeleçam prioridade de julgamento não prevista em lei; afastem garantias processuais contra o uso de prova ilícita; vulnerem a regra da publicidade do processo; ou pretendam afastar normas sobre competência absoluta, dever de motivação e prazo de sustentação oral.7 O Fórum Permanente de Processualistas Civis também editou diversos enunciados a respeito do tema, deixando de reconhecer como válidas as convenções que afastem deveres inerentes à boa-fé e à cooperação, versem sobre competência absoluta; importem em supressão de instância; impeçam a participação do Ministério Público como fiscal da lei; ou vede a participação do amicus curiae. Por outro lado, os enunciados do FPPC admitem negócios processuais para realização e ampliação do tempo de sustentação oral, julgamento antecipado do mérito convencional, convenção sobre prova, redução de prazos processuais, entre outras matérias.8 Como se nota, já há um esboço sobre o âmbito de aplicação das normas insertas nos artigos 190 e 191. Há orientações em sua maioria coincidentes, mas em parte contrastantes. De nossa parte, importa ter bem presente que o artigo 190 fala na possibilidade de as partes se imiscuírem em regras procedimentais. Há ínsito nessa locução algo de relevante: caberia convenção sobre normas processuais? Já se disse mais acima o que distingue, em nossa visão, processo e procedimento. Regulando as normas processuais direitos e deveres recíprocos para os sujeitos do conjunto de relações jurídicas que forma o processo, revestem-se elas de interesse público, sendo em grande parte inderrogáveis pela vontade das partes. São alcançados por essa visão os deveres das partes e os poderes do juiz, competência absoluta, imparcialidade do juiz, entre outros. Quanto aos direitos, por outro lado, seria possível admitir maior liberdade para as partes, titulares que são do objeto de negociação. Isso somente é parcialmente verdade, havendo, sim, restrições. É que muitos dos direitos oriundos da relação processual possuem assento constitucional, fundamentais e, pois, indisponíveis, limitando o agir das partes, mercê de sua já consagrada eficácia horizontal. Por isso é que as convenções processuais devem ser examinadas pelo juiz com detida atenção quanto ao núcleo essencial do direito que integre o objeto da negociação. Ferida a essência de um direito fundamental, a convenção não poderá ser admitida. Com base nessa linha de pensamento, e deduzindo do devido processo legal o duplo grau de jurisdição - algo com o que nem todos podem concordar-, é que reputamos temerário, por exemplo, o "julgamento de instância única", isto é, a possibilidade de as partes renunciarem a recursos contra a sentença de forma prévia, antes mesmo de conhecido o teor da decisão.9 De igual sorte, como leciona Jorge Amaury Maia Nunes, a ingerência sobre prazos processuais deve observar o princípio da utilidade, não havendo de ser chancelada a redução de prazos recursais para aquém do menor prazo existente, de cinco dias.10 São essas algumas das limitações feitas intuitivamente ao artigo 190, que terá seu real âmbito de aplicação construído aos poucos com a prática judicial pós-entrada em vigor do CPC/15. _________ 1 (Clique aqui) Acesso em 10.10.2015. 2 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso. § 1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados. § 2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário. 3 O artigo 41 do Código de Processo Civil francês dispõe que: "Le litige né, les parties peuvent toujours convenir que leur différend sera jugé par une juridiction bien que celle-ci soit incompétente en raison du montant de la demande. Elles peuvent également, sous la même réserve et pour les droits dont elles ont la libre disposition, convenir en vertu d'un accord exprès que leur différend sera jugé sans appel même si le montant de la demande est supérieur au taux du dernier ressort."Disponível em clique aqui. Acesso em 10.10.2015. 4 A norma é interessante como novidade, mas quanto a ela somos céticos, acompanhando Daniel Amorim Assumpção Neves para crer que as convenções processuais não ganharão popularidade - ao menos não na dimensão em que alguns de seus grandes entusiastas acreditam. § 2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário. 5 Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015. 6 Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. 7 São os enunciados 36 a 39 e 41 da ENFAM, disponíveis em clique aqui. Acesso em 10.10.2015. 8 São os enunciados 6, 19, 20, 21, 254, 258, 262 e 392 do FPPC, disponíveis em clique aqui. Acesso em 10.10.2015. 9 Não se ignora que pode a parte renunciar ao recurso, mas assim se dá após a prolação da decisão recorrenda. 10 Não passaria de engodo fixar dez minutos como prazo para recurso especial.
Jorge Amaury Maia Nunes Em continuação à nossa conversa de terça passada, cuidaremos, hoje, das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e do procedimento desse recurso de acordo com o novo Código de Processo Civil. I. Hipóteses de cabimento do Recurso Extraordinário Com o advento da Constituição de 1988, houve o desdobramento do recurso extraordinário em recurso extraordinário e recurso especial, numa espécie (que não chega a ser inusitada) de divisão de competência funcional, em que dois órgãos da jurisdição são chamados a examinar diferentes matérias num mesmo processo. Ao STF coube o exame da matéria de natureza constitucional. Ao então criado Superior Tribunal de Justiça coube a última palavra sobre juízos de legalidade e sobre a uniformização do entendimento sobre o direito federal. O inciso III do art. 102 da Constituição em vigor trata das hipóteses em que cabe o recurso extraordinário: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: II - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Para caber recurso extraordinário é necessário que se trate de decisão de única ou última instância, isto é, no sentido de que tenha sido esgotada a instância ordinária, ou, dito de outra forma, desde que não caiba mais nenhum outro recurso. Somente porque esgotada a instância ordinária e que pode ser aberto o acesso à extraordinária. Vale o registro de que, diferentemente do que acontece em relação ao recurso especial, que somente é cabível de decisões de tribunais de justiça e de tribunais regionais federais (órgãos do segundo grau de jurisdição), é possível que seja aberta a via do extraordinário diretamente a partir do primeiro grau de jurisdição. É dizer, cabe recurso extraordinário contra decisão de juiz de primeiro grau, bastando, para isso, que não haja previsão de recurso para o segundo grau, de que são exemplos a sentença de que cogita o art. 34 da Lei nº 6.830, de 1980, que trata do executivo fiscal, e as decisões proferidas nos juizados especiais examinadas pelas turmas recursais, que não são órgãos de segundo grau de jurisdição. Assim, para efeito da redação do inciso III, causas decididas em única ou última instância são causas a cujo respeito não se pode mais falar em recorribilidade ordinária. Não por outro motivo, essa matéria foi objeto da Súmula nº 281 do STF, que dispõe ser inadmissível o recurso extraordinário, quando couber, na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada. A abertura da vereda extraordinária supõe, pois, a estabilização da moldura fática do processo, a respeito da qual não se permitirá revolvimento. Tem sido dito em doutrina que o STF não examina matéria de fato, no julgamento de RE, mas apenas e tão-somente matéria de direito. É difícil fazer esse discrímen entre questão de fato e questão de direito principalmente para os que se filiam ao entendimento de que o Direito é, a um só tempo, fato-norma-valor, como preconizado pela teoria tridimensional do Direito. O que talvez se queira dizer é que no STF, no âmbito específico do recurso extraordinário, assim como não se examina a interpretação de cláusula contratual, também não se reexaminam provas, matéria afeta exclusivamente à instância ordinária. Deveras, a moldura fática que chega e é examinada nas instâncias de superposição é aquela fixada no acórdão do tribunal ordinário. O que pode e deve fazer o órgão de superposição é, se for o caso, valorar a prova de forma diversa daquela exercida na instância ordinária. Mais do que isso não fará. Não cabem no conceito de causa, para fins de abertura da via excepcional, atividades praticadas nas instâncias ordinárias que não sejam de natureza jurisdicional, tais assim os processos meramente administrativos, como, v.g., os atos tendentes à expedição de precatórios em decorrência de execuções contra a fazenda pública, ou as decisões que julgam procedentes pedidos de intervenção federal. I.1 Cabimento pela alínea "a" Para que caiba o recurso pela alínea "a", é necessário que o acórdão recorrido tenha, ao menos, interpretado o dispositivo constitucional de forma equivocada, aplicando-o de forma inexata. É que contrariar significa uma forma de ofensa à Constituição, pela aplicação do fragmento constitucional a uma hipótese em que ele não poderia incidir ou por sua não-aplicação a uma situação em que ele deveria ter incidido, ou, ainda, aplicando-o a uma hipótese em que realmente deveria incidir, mas fazendo-o de forma inadequada, por força de interpretação errônea, retirando dele conclusões que seriam inextraíveis. Durante muito tempo, o STF teve dificuldades em separar, com relação à alínea "a", o juízo de admissibilidade do juízo de mérito. O STF ou (i) não conhecia o recurso, ou; (ii) dele conhecia e lhe dava provimento. Não era capaz a Corte de conhecer de um recurso pela aliena "a", mas negar-lhe provimento. Isso, por certo, tinha efeitos práticos de enorme repercussão, sobretudo no âmbito das ações rescisórias. Somente a partir de agosto de 2003, o STF modificou o posicionamento e passou a distinguir o juízo de admissibilidade do recurso - para o qual é suficiente que o recorrente alegue adequadamente a contrariedade pelo acórdão recorrido de dispositivos da Constituição nele prequestionados - e juízo de mérito, que envolve a verificação de compatibilidade ou não entre a decisão recorrida e a Constituição: Pleno: RF-370/280. Com o novo posicionamento, todas as alíneas do inciso III passam a ter o mesmo conteúdo axiológico. Cabe o registro de que a expressão "contrariar dispositivo desta constituição", supõe que a contrariedade seja frontal e direta. Não se admite a contrariedade por via simplesmente reflexa, assim considerada aquela que envolve, para sua demonstração, a interposição de algum raciocínio fulcrado em lei infraconstitucional. I.2 Cabimento do recurso pela alínea b No que concerne à alínea "b", a Constituição dispõe que cabe recurso extraordinário da decisão de última ou única instância que declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Importante destacar, a esse respeito, que, em homenagem ao disposto no art. 97 do Texto constitucional, somente por maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público. Existe aí uma espécie de divisão de competência funcional. Deveras, um recurso de apelação é julgado numa turma ou câmara, pelo voto de três desembargadores. Se estes, no julgamento da apelação, acolhem a arguição de inconstitucionalidade feita de maneira incidente, lavram o acórdão e determinam a remessa da questão ao tribunal pleno ou ao órgão especial. Este delibera exclusivamente sobre a (in)constitucionalidade e determina o retorno dos autos ao órgão fracionário para que prossiga no julgamento do recurso de apelação. É importante deixar claro que, a teor do disposto na súmula nº 513 do STF, a decisão que enseja o recurso extraordinário não é a do tribunal pleno ou do órgão especial que resolve o incidente de inconstitucionalidade, mas sim aquela da turma que conclui o julgamento do feito. Convém aduzir, quanto ao tema que, em boa hora, o legislador infraconstitucional fez inserir um parágrafo único no art. 481 do Código de Processo Civil de 1973 (atual parágrafo único do art. 949, do CPC de 2015) estabelecendo que os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. É só essa, entretanto, a exceção possível. Em qualquer outra circunstância a matéria deve ser submetida ao colegiado maior. Não se admite a utilização de subterfúgios pelos órgãos da jurisdição ordinária com o objetivo de furtar-se ao cumprimento do art. 97 do texto constitucional. Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal fez editar a Súmula Vinculante nº 10, dispondo que "viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, afasta a sua incidência no todo ou em parte". Aduza-se que se o acórdão recorrido (aquele que completou o julgamento do recurso de apelação) não estiver acompanhado da decisão proferida pelo plenário ou pela corte especial, será de todo conveniente a oposição de embargos de declaração para que, suprida a omissão, possa ser levada ao conhecimento da Corte Maior a argumentação desenvolvida pelo tribunal recorrido quando do julgamento do incidente de inconstitucionalidade. I.3 Cabimento pelas alíneas "c" e "d" Quanto ao cabimento pela aliena "c", a Constituição dispõe que será possível a interposição de recurso extraordinário sempre que a decisão proferida pelo Tribunal a quo "julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta constituição". Na Constituição de 1969 essa previsão constava no art. 119, III, c, com redação parcialmente diversa, dado que o recurso cabia contra decisão que julgasse "válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição ou de lei Federal". Com a criação do Superior Tribunal de Justiça houve uma cisão dessa hipótese, sendo remetida para aquele novo Tribunal a competência para o exame da validade de lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal. Posteriormente percebeu-se que uma das hipóteses remetidas ao STJ implicava, na generalidade dos casos, a existência de questão constitucional, razão por que a Emenda Constitucional nº 45 fez incluir a alínea "d" no inciso III do art. 102 (julgar válida lei local contestada em face de lei federal), justamente porque aí aparece a possibilidade de invasão de competência legiferante de uma esfera da Federação relativamente a outra esfera. II. O procedimento estabelecido pelo Código de 2015 II.1 Considerações iniciais Não é possível, neste espaço, examinar todas as novas questões procedimentais trazidas pelo Código de 201, relativamente ao recurso extraordinário. Tentaremos investigar um bom número de novidades, mas algo há de ficar pendente, com a promessa, entretanto, de que retornaremos ao tema, quando enfrentarmos o também novo agravo em recurso extraordinário. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, é possível que surjam algumas perplexidades, somente sanáveis com o tempo e com a prática à luz da nova regência. Deveras, deve-se ter sempre em mente o fato de que o recurso extraordinário é recurso formal, que há de atender aos requisitos a ele impostos pela Constituição e pela lei processual. Além das normas primárias, há ainda um verdadeiro rosário de súmulas vinculantes e persuasórias, no âmbito do STF, que devem ser levadas em consideração ao momento da interposição do recurso, além, é claro, das normas regimentais, expressamente invocadas pelo art. 1.036 do novo CPC. Sendo o caso de interposição de recurso extraordinário e especial (este último não é objeto de exame no presente momento), é necessário que se valha o recorrente de duas petições distintas, uma para cada recurso (art. 1029). Se assim, não proceder, a conclusão pode ser a de que ambos não atendem ao requisito da regularidade formal, o que gerará sua inadmissibilidade. Há, registre-se, solução menos radical, admitindo o conhecimento de recurso especial tirado na mesma peça do extraordinário. Dentro do tema, convém recordar que algumas vezes é impositiva a interposição de ambos os recursos, não cabendo escolha ao recorrente. Deveras, há ocasiões em que o acórdão a ser recorrido contém fundamentos de natureza legal e de natureza constitucional, cada um dos quais apto, por si só, a sustentar as conclusões do Tribunal ordinário. Nessas circunstâncias, o recorrente deve dar notícia, nas próprias petições de recurso, de que está procedendo a ambas as interposições, sob pena de ver os recursos não admitidos, sob o argumento da falta de interesse de recorrer, como, aliás, está expressamente previsto na Súmula nº 126. Questão interessante que pode ser suscitada a esse respeito decorre da Emenda Constitucional nº 45 que, como já sabido, criou o requisito da repercussão geral para fins de admissibilidade do Recurso Extraordinário. Não admitida a existência da repercussão geral, o recurso extraordinário não será conhecido, independentemente de a questão meritória poder indicar verdadeira violação constitucional (nem se chega a esse exame). Há, ao que parece, a necessidade de revisão da súmula nº 126. Enquanto isso não ocorrer, e em uma visão puramente pragmática, a solução é continuar aviando ambos os recursos, mesmo sabendo da inexistência de repercussão geral da matéria suscitada no recurso extraordinário. É importante destacar, também, a necessidade da inteireza do texto recursal no sentido de que o relator, na instância de superposição, deve ter condições de compreender a controvérsia constitucional sem necessidade de recorrer a qualquer outra peça dos autos. Deve-se, por isso, abrir uma epígrafe, talvez com a sugestiva expressão "para compreender a controvérsia" em que o recorrente possa estabelecer a verdade dos fatos, tal qual admitida nas instâncias ordinárias e, com base nessa moldura, demonstrar em que consiste a lesão constitucional. Diz o Código de 2015, que se trata da exposição do fato e do direito (art. 1.029, I), após o que o recorrente deverá demonstrar o cabimento do recurso interposto, indicando uma das hipóteses constantes da previsão constitucional e, de logo, afastando a incidência de eventuais súmulas impeditivas do processamento recursal. Demais disso, há de indicar as razões do pedido da reforma da decisão recorrida ou de sua invalidação. Essa última expressão, invalidação, é novidade inserida no ordenamento positivo pelo Código Processual de 2015. Não parece ter sido boa ideia lançar a inovação na parte das disposições gerais, haja vista que a hipótese de invalidação somente pode ter pertinência com o aviamento do recurso especial e não com o recurso extraordinário. De fato, fugiria à lógica mais comezinha ocupar a mais alta corte do Judiciário brasileiro, com fortes traços de corte de constitucionalidade, para a finalidade de exercer simples juízo de cassação de acórdão proferido no caso concreto. E assim é porque, desde o advento da Emenda Constitucional 45, somente serão examinados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal os recursos extraordinários que ostentem repercussão geral, assim considerada a situação em que as questões discutidas no recurso extrapassem os interesses das partes integrantes da relação processual. Bem examinada, a questão da invalidação trazida pelo direito positivo será sempre um juízo limitado, vinculado, restrito aos atores do processo considerado. De qualquer maneira, a regra existe e é aplicável ao recurso extraordinário, ainda que, como já dito, não haja muitas possibilidades práticas de que isso possa vir a acontecer. Dentro da ideia do código de privilegiar o julgamento do mérito, o § 3º do art. 1.029 autoriza o STF a desconsiderar vício formal de recurso extraordinário (que tenha sido interposto tempestivamente), ou determinar sua correção desde que não o repute grave. Na forma do disposto no art. 1.030, do Código de 2015 o recorrido é intimado para apresentar contrarrazões tanto com relação à admissibilidade do recurso excepcional interposto, quanto com relação às questões de mérito que houverem sido suscitadas. Diversamente do que ocorria sob a égide do Código de 1973, em que a abertura da vereda excepcional dependia de um juízo positivo de admissibilidade proferido pelo presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido, agora, o caminho é outro. O juízo de admissibilidade (não-vinculativo) partido em duas instâncias, uma ordinária e outra extraordinária, desapareceu (mas já há projeto em trâmite no parlamento visando a modificar o novo código relativamente a esse ponto). Somente há juízo de admissibilidade exercido pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Bem por isso, e tendo presente que os recursos excepcionais possuem apenas efeito devolutivo, convém examinar as súmulas 634 e 635, do STF, editadas na vigência do CPC/1973. Deveras, não parece haver compatibilidade entre elas e o novo Código. É que as súmulas indicadas previam que eventual requerimento de atribuição de efeito suspensivo haveria de ser direcionado ao presidente do tribunal recorrido e não ao STF. Pelo novo código, esse pedido há de ser dirigido ao próprio STF, desde que já tenha sido interposto o RE na instância de origem; se o recurso, além de interposto, já houver sido distribuído, o pedido de efeito suspensivo será dirigido diretamente ao relator. Em uma única hipótese o pedido de efeito suspensivo deve ser realizado na instância inferior: se o recurso tiver ficado sobrestado por lhe ter sido aplicada a técnica de julgamento do recurso extraordinário repetitivo, o requerimento de efeito suspensivo será dirigido ao presidente ou vice-presidente do tribunal ordinário. (inc. III do § 5º do art. 1.029) Se houver interposição de recurso especial e extraordinário, os autos, com as contrarrazões já ofertadas, serão encaminhados primeiramente ao STJ para exame e julgamento do especial. Se, no exame do REsp, não for o caso de integral atendimento das pretensões do recorrente, os autos do processo deverão ser encaminhados ao STF para que este aprecie o recurso extraordinário, sendo desnecessário qualquer ato do relator no STJ para que remessa seja realizada. Os autos vão por inércia. O procedimento retrodescrito somente não será levado a efeito se o relator do processo, no STJ, entender que a matéria do RE também interposto constitui matéria prejudicial (prae iudicium). Nessa hipótese, sobrestará o julgamento do Recurso Especial e determinará a remessa dos autos ao STF. A decisão do relator, no STJ, que identifica questão prejudicial no conteúdo da matéria contida no recurso extraordinário, é exercício de uma faculdade que se expressa mediante decisão irrecorrível. Já se tentou até aviar agravo regimental de decisões desse jaez, sem êxito. De fato, a dicção legal não deixa margem a dúvida quanto ao fato de que se trata de decisão irrecorrível. De outra parte, se o STF, por ato de relator ali sorteado, entender que não ocorre a alegada prejudicialidade, poderá determinar - também em decisão irrecorrível - o retorno dos autos ao STJ para que este decida o recurso especial. Novidade interessante e que privilegia as questões de fundo, em detrimento do formalismo vazio, é trazida pelo art. 1.032 do novo Código: se o relator, no STJ, entender que o conteúdo do recurso tem pertinência com matéria constitucional deverá conceder prazo de quinze dias para que o recorrente o complemente com (i) a demonstração da existência da repercussão geral; e (ii) a manifestação sobre a questão constitucional. Após isso, o relator deverá remetê-lo ao STF. Aqui, como bem anotado alhures por Guilherme Pupe da Nóbrega, o legislador deixou uma lacuna, visto como não percebeu a clara necessidade de, antes da remessa à corte de constitucionalidade, determinar a oitiva da parte recorrida para que essa pudesse, em homenagem ao princípio constitucional do contraditório, manifestar-se sobre esses dois novos temas. Em termos de novidade, também o inverso acontece. Se um recurso extraordinário, na visão do relator, contém ofensa meramente reflexa à Constituição, não lhe caberá simplesmente negar seguimento ao recurso, como acontece no CPC/1973. Deverá, isso sim, remetê-lo ao STJ para que o julgue como recurso especial. II.2 Repercussão Geral A repercussão geral foi introduzida no corpo da Constituição (art. 102, § 3º), como sendo um novo requisito de admissibilidade, nestes termos: no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. O art. 1.035 do CPC/15 regula a repercussão geral mais ou menos da mesma forma como o fazia o art. 543-A do código anterior, mas com alguns acrescentamentos. Trata-se de um filtro de acesso do jurisdicionado ao STF que reaproxima o nosso RE ao modelo norte-americano do certiorari, que foi a fonte de inspiração do constituinte brasileiro. Já se disse em outro momento, o STF já havia tentado limitar o acesso à instância excepcional, sob a égide da Constituição pretérita, por meio da chamada arguição de relevância da questão federal, com exaustiva indicação do rol das questões que não seriam alvo do exame pela Corte maior (ressalvada a demonstração dessa relevância). Partia-se da premissa de que, presentes as hipóteses descritas no regimento, o RE não seria cabível, e que seria necessário um juízo positivo dos ministros para que seu exame pudesse ser realizado. Agora, com a repercussão geral, presume-se que todo recurso extraordinário, em princípio, conduz ao STF uma questão relevante, sendo necessário um juízo negativo para impedir o exame do recurso, com a recusa de dois terços dos membros do colegiado. Com o filtro em tela, pelo menos duas novas orientações podem ser observadas: (i) quebra-se, pelo menos parcialmente, o mito de que, em todos os processos, sempre se tem o direito subjetivo ao acesso à instância excepcional. Passa a vigorar uma compreensão mais objetiva desse recurso e de sua finalidade, de modo que, independentemente das hígidas razões que possam ter sido apresentadas no recurso extraordinário, a Corte poderá não o julgar, se entender que o direito em jogo é particularizado e peculiar o suficiente para não colocar em risco a supremacia constitucional. Dito de outra forma: ainda que os argumentos a respeito da inconstitucionalidade do raciocínio desenvolvido no acórdão recorrido sejam pertinentes e convincentes, ainda que a conclusão nele encartada somente tenha sido possível em virtude de uma contrariedade ao texto da lei maior, mesmo assim a Corte não dará trânsito ao recurso e não examinará a alegação de contrariedade se a discussão não ultrapassar o âmbito dos direitos e interesses das partes diretamente envolvidas no litígio; (ii) o recurso extraordinário transita de um sistema de controle concreto de constitucionalidade de normas para outro, de natureza abstrata. Não por outro motivo, tem-se apelidado esse fenômeno de ?objetivação do recurso extraordinário?, para caracterizar a transmutação sofrida e que faz com esse recurso se torne mais uma ferramenta do controle abstrato de normas. O texto do art. 1.035 deixa claro: a decisão que não conhecer do recurso extraordinário, em razão da inexistência da repercussão geral, é irrecorrível. Da leitura dos parágrafos que explicitam o artigo em questão, parece que existem duas espécies de repercussão geral, que, à falta de melhor denominação, vamos chamar de repercussão geral subjetiva e repercussão geral objetiva, lançadas, respectivamente, nos parágrafos 1º e 3º (o parágrafo 2º, que cuida do procedimento da repercussão geral está topologicamente mal situado: deveria ser o § 3º.). A denominação que procuramos empregar considera a questão do ponto de vista do julgador na Corte Suprema. Para fins da repercussão geral de natureza subjetiva, diz o § 1º que o STF considerará a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo. O pequeno lapso redacional não deslustra o dispositivo em tela. Os interesses subjetivos não são do processo; são dos sujeitos de direito que nele figuram. Assim, seria melhor dizer: "que ultrapassem os interesses subjetivos defendidos no processo", ou qualquer outra redação semelhante. É certo que o legislador não especificou, nem deveria fazê-lo, quais interesses econômicos, políticos, sociais ou jurídicos devem ser considerados relevantes. Caberá ao STF, com alto grau de subjetividade, e tendo presente o momento histórico da sociedade, dar a devida densidade a esses conceitos para o fim de reconhecer, ou não, a existência de repercussão geral. No que concerne, entretanto, à hipótese do § 3º, a repercussão geral decorre de uma verificação objetiva: haverá repercussão geral sempre que (i) o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF; (ii) tiver sido proferido em julgamento de casos repetitivos; (iii) tiver reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, nos termos do art. 97 da Constituição. Embora não exista muita margem para manobra (nas últimas hipóteses mencionadas), é plausível admitir que, dada a natural vagueza e ambiguidade da linguagem de que se vale o Direito, o STF pode construir uma espécie de distinguishing e afirmar, que, em determinado caso, em que objetivamente deveria ser considerada presente a repercussão geral, por contrariedade sumular, tal não ocorreu, dadas as peculiaridades do caso concreto, capazes de afastar a incidência da firme jurisprudência da Casa. O § 4º do art. 1.035 do CPC/15 atribui ao relator o poder de admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Essa admissão, fruto de decisão irrecorrível, tanto pode decorrer de postulação de eventual interessado quanto pode decorrer de iniciativa do próprio relator, conforme se extrai do § 3º do RISTF. Tem-se aqui, por certo, a figura do amicus curiae, que nos dá mais um argumento de comprovação de que o recurso extraordinário passa por um processo de objetivação, de sorte a tornar-se mais um instrumento de controle abstrato constitucionalidade. Deveras, no direito Brasileiro, a figura do amicus curiae ingressou por meio do processo de controle concentrado de constitucionalidade. É que, da interpretação do § 2º, do art. 7º da Lei nº 9.868, conclui-se que podem manifestar-se, além dos órgãos e entidades formalmente legitimados para a propositura da ação direta, quaisquer outros entes dotados de significativa representatividade. Tal inovação teve por objetivo pluralizar o debate constitucional, permitindo maior participação social e atribuindo maior coeficiente de legitimidade às decisões dessa Corte. Além disso, a permissão que essa regra propicia enriquece o debate em sede constitucional pelas informações que o amicus curiae pode agregar ao conhecimento do Tribunal, dando-lhe ensanchas de proferir decisões de melhor qualidade. Não por outro motivo, além da previsão da participação do amigo na corte nessa fase de admissibilidade do recurso, há, no art. 1.038, já no pertinente ao mérito, a previsão da sua admissão, como também a previsão de audiência pública para ouvir pessoas com experiência e conhecimento na e da matéria, para instruir o procedimento. Novidade normativa é a consequência do reconhecimento da repercussão geral no STF: o relator determinará a suspensão (pelo prazo máximo de um ano) de todos os processos, individuais ou coletivos, que versem a mesma questão constitucional e estejam a tramitar no território nacional. Consequência do reconhecimento da inexistência de repercussão geral é a extensão desse entendimento a todos os recursos extraordinários sobrestados na origem, aos quais deverá ser negado seguimento. II.3 Julgamento de recursos extraordinários repetitivos Nem sempre foi feliz o legislador ao versar a matéria. Vez por outro deu alguns passos atrás em relação à regência do código de 1973 e, por tanto temer alguma prática malsã do STF, fez-se confuso e repetitivo. O art. 1.036 do Código de Processo Civil cuida do julgamento, pelo STF, de múltiplos recursos fundados em idêntica questão de direito. Esclareça-se que isso não significa absoluta semelhança quanto à moldura fática desses recursos; significa, isto sim, a discussão sobre a incidência de preceito constitucional ou legal (nas hipóteses do art. 102, III, "b") sobre relações jurídicas semelhantes, de mesma natureza, mas não necessariamente iguais. Cabe ao presidente ou vice-presidente do tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia para fins de encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal, determinando a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos que tramitem no Estado ou região. Independentemente da escolha feita nos tribunais de origem, o relator podem selecionar outros recursos, representativos da controvérsia para julgamento dessa questão, que sejam admissíveis e abranjam de forma larga a temática em discussão (aliás, esse critério deve ser adotado também pelos presidentes dos tribunais em que forem aviados os recursos extraordinários). Uma vez selecionados os recursos representativos da controvérsia, o Ministro relator proferirá decisão afetando-os ao rito dos recursos repetitivos, ocasião em que: I - identificará a delimitará a questão constitucional a ser decidida; II - determinará a suspensão dos processos que tramitem no território nacional nos quais a matéria em discussão seja a mesma; III - poderá requerer aos presidentes de tribunais que remetam um recurso representativo da controvérsia, de sorte a ter a seu dispor o mais amplo espectro de informações. É claro que a parte atingida pela decisão indicada em II, supra, pode dirigir-se (i) ao juiz; (ii) ao relator do acórdão recorrido; ou (iii) ao relator no STF, conforme o caso, para requerer o prosseguimento do feito, indicando ser indevido sobrestamento porque o recurso extraordinário cuida de matéria diversa daquela encaminhada à Corte maior. Se, ouvida a outra parte, realmente tiver procedência o distinguishing e o magistrado processante entender que sobresteve indevidamente processo, acolherá o requerimento formulado para o fim de corrigir o ato que praticou e, conforme o caso, determinar o prosseguimento do processo, ou comunicar a decisão ao presidente ou vice-presidente que houver determinado o sobrestamento para que efetue a imediata remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal. A resolução dessa questão, em qualquer sentido, pode ser objeto de agravo de instrumento, se o processo se encontrar no primeiro grau; ou de agravo interno, se houver sido proferida por relator. Cumprida a fase do art. 1.038 (deferimento de participação do amicus curiae, audiência pública, requisição de informações aos tribunais inferiores sobre a controvérsia e intimação do Procurador Geral da República para manifestar-se), deverá ser remetida cópia do relatório a todos os outros ministros, com a inclusão do feito em pauta, com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. O legislador foi hábil (ainda que pareça óbvio) ao esclarecer que a análise da matéria deve abranger todos os fundamentos da tese discutida e que tudo deverá constar do acórdão. Hábil no esclarecimento, péssimo na topologia da regra. Com efeito, esse parágrafo cuida do acórdão que julga o mérito do recurso extraordinário e está indevidamente encartado em artigo (1.038) que trata dos misteres do relator, os quais são exercidos antes do exame meritório. Somente no artigo seguinte (1.039) é que se cuida da decisão do (s) recurso(s) extraordinário(s) afetado(s). Julgado, agora sim, o recurso, o órgão colegiado (no STF) declarará (em relação aos recursos que já se encontrem no STF) prejudicados os demais recursos. Bem esclarecido, prejudicados (prae judicium) estarão todos os recursos extraordinários sobrestados cuja tese defendida mostre-se em desavença com o que decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos recursos que, selecionados, tiverem sido alçados àquele colegiado para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos. Já o parágrafo do art. 1.039 (o caput, parece-nos, cuida de julgamento de mérito) trata da possibilidade de o STF, em juízo dez admissibilidade, negar a existência de repercussão geral no recurso extraordinário afetado para julgamento pelo rito dos repetitivos. Nessa hipótese, serão considerados inadmitidos todos os recursos extraordinários cujo processamento tenha sido sobrestado. O texto do fragmento legal é correto na afirmação e equivocado, mais uma vez, na topologia. Não parece que o STF vá ter todo esse trabalho de instrução processual para, ao fim, exercer juízo de inadmissibilidade por ausência de repercussão geral. Deverão ser adotadas, aqui, as regras do Regimento Interno do STF (até por expressa invocação do art. 1.036 deste Código) que preveem o exercício de um juízo de admissibilidade, relativo à repercussão geral, em momento anterior (no chamado plenário virtual). Somente após reconhecida a presença desse pressuposto de admissibilidade é que serão dados os passos descritos nos arts. 1.038 e 1.039. Até agora, vimos a extensão do julgamento do acórdão paradigma a recursos que se encontrem no âmbito do próprio STF. Cabe, doravante, examinar essa extensão em relação aos processos que ainda se encontrem nas instâncias de origem. A lei diz que o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do STF. Se o mérito do recurso extraordinário for decidido em desacordo com a tese que houver sido esposada pelo tribunal de origem, os autos serão encaminhados ao órgão que deliberou para que reexamine a questão.. Vale lembrar que o tribunal de origem deve limitar o juízo de retratação apenas e tão-somente às matérias que tenham sido deliberadas no julgamento líder. Outras questões que não possuam relação de conexidade com o decisum do STF não podem ser reexaminadas, a não ser, evidentemente, que possuam alguma relação de prejudicialidade com o tema enfrentado pela Corte maior e que, por isso, percam sua sustentação, mas podem ser examinadas novas questões que surjam justamente em decorrência do julgamento proferido no STF. Se o colegiado de origem não se retratar e mantiver a decisão recorrida em dissidência com a deliberação do STF deverá o recurso extraordinário ser encaminhado ao Supremo Tribunal Federal que poderá cassar ou reformar liminarmente a decisão contida no acórdão recorrido. Também poderá ocorrer remessa do recurso ao STF se, além das questões objeto do julgamento em repetitivo, houver outras matérias de natureza constitucional, suscitadas no extraordinário, ainda pendentes de apreciação. Como dito precedentemente, é certo que várias questões relativas ao tema não foram enfrentadas neste artigo. É dívida líquida e certa, que pagaremos oportunamente.
Jorge Amaury Maia Nunes A história do nosso recurso extraordinário está umbilicalmente ligada à história da instituição da República e da Federação no Brasil. Deveras, ao copiarmos o modelo adotado pelos Estados Unidos da América do Norte (e que já havia sido também adotado pela nossa vizinha Argentina), trouxemos a ideia de uma Corte Federal, destinada à preservação da Federação e da aplicação uniforme da lei federal em todo o território nacional. Nos Estados Unidos da América, a competência recursal da Suprema Corte era provocada, originalmente, por meio da appellate jurisdiction, relativamente a certas causas que tivessem sido julgadas pelos órgãos jurisdicionais de estatura inferior no âmbito da União. No entanto, com o judiciary act de 1789, atribuiu-se-lhe competência para rever as decisões (de última instância) dos tribunais de justiça dos Estados, por meio do writ of error (que foi, após, rebatizado de appeal pelo Judiciary act de 1925), quando o tema estivesse vinculado à constitucionalidade das leis, à legitimidade das normas estaduais, aos títulos, direitos, privilégios e isenções que tivessem pertinência com a Constituição e com os tratados e leis da União. Além dessa possibilidade de revisão por meio do writ of error, cogitava-se, também, da utilização do certiorari, sendo certo, porém, que, nessa hipótese, a Corte poderia ou não, em exercício puramente discricionário (o que não acontecia em relação ao instituto anterior), examinar a súplica formulada. Esse último instituto acabou por prevalecer, sendo, hoje, reconhecido, o claro poder da Corte de rever ou não quaisquer processos em grau de apelo extremo, com arrimo no exercício do poder discricionário que lhe é deferido. Na história do direito brasileiro, por força da edição do decreto 510, de 22/6/90, verifica-se a inserção desse recurso no nosso ordenamento (art. 58, § 1º) ainda sem o nome de recurso extraordinário. Na mesma esteira, o decreto 848, de 11/10/90, que organizou a Justiça Federal brasileira, o adotou no art. 9º, parágrafo único. A respeito da redação do Decreto por último citado, vale a referência a dois primorosos apontamentos da lavra de MATOS PEIXOTO: 1) Estas disposições, difusas e mal articuladas do dec. n. 848 (quão diversas das normas correspondentes concisas e elegantes da Constituição do Governo Provisório, nas quais transparece o esmeril de RUY BARBOSA!) moldaram-se também pelo Judiciary Act, sem se levar em conta as prescrições dessa lei, promulgada para um país no qual os Estados Federados legislam sobre o direito substantivo, somente poderiam aplicar-se ao Brasil, se eles aqui tivessem egual competencia, a menos que se quisesse erigir o Supremo Tribunal em instancia de revista, sempre que interpretando a legislação federal, a justiça dos Estados decidisse contra o direito pleiteado pela parte, com apoio nessa legislação. 2) O dec. n. 848, imitando a Constituição do Governo Provisório, creou um caso de recurso para o Supremo Tribunal, não destacado no Judiciary Act: - quando a justiça estadual julga em última instância contra a aplicabilidade de lei Federal.1 A primeira Constituição da República, de 24/2/91, dispunha, no seu art. 59, sobre a competência do Supremo Tribunal Federal, estabelecendo, no § 1º, o cabimento de recurso para a corte: a) quando se questionar sobre a validade ou a applicação de tratados e leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado for contra ella; b) quando se contestar a validade de leis ou de actos dos governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado considerar validos esses actos, ou essas leis impugnadas.2 Observa-se, aí, a descrição de hipóteses de cabimento de recurso que coincidem com o que hoje constitui tema dos recursos extraordinários: caberia recurso quando se tratasse de decisão da justiça dos Estados (as decisões da justiça federal eram julgadas em grau de recurso ordinário). Percebe-se que o recurso de que se cuida ainda não tem a denominação de extraordinário, que somente viria ser adotada com edição do primeiro regimento interno do STF, de 26 de fevereiro de 1981. Na legislação ordinária, essa denominação apareceu no art. 24 da lei 221, de 1894, e, a partir daí, pode-se considerar que foi consagrada.3 Na seara constitucional, a denominação recurso extraordinário somente aparece na Constituição de 1934, que trocou a denominação do STF para Corte Suprema, e dispôs, no art. 76: Art. 76. À Corte Suprema Compete: 2. Julgar: III. Em recurso extraordinario, as causas decididas pelas justiças locaes em unica ou ultima instancia: a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicabilidade se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou a validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do tribunal local negar applicação á lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou acto dos governos locaes em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do tribunal local julgar valido o acto ou a lei impugnado; d) quando occorrer diversidade de interpretação definitiva de lei federal entre Côrtes de Appellação de Estados diferentes, inclusive do Districto Federal ou dos Territórios, ou entre um destes tribunaes e a Côrte Suprema, ou outro tribunal federal. A Constituição de 1937 retornou à antiga denominação (Supremo Tribunal Federal) e dispôs no art. 101: Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: III - julgar, em recurso extraordinário as causas decididas pelas justiças locais em única ou última instância: a) quando a decisão for contra a letra de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição e a decisão do tribunal local negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos governos locais em face da Constituição ou de lei federal, e a decisão do tribunal local julgar válida a lei ou o ato impugnado; d) quando decisões definitivas dos Tribunais de Apelação de Estado diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou decisões definitivas de um dêstes Tribunais e do Supremo Tribunal Federal derem à mesma lei federal inteligência diversa. A Constituição de 1946 inovou (sem que isso tenha tido repercussão na jurisprudência pátria como se verá no momento oportuno), ao dispor, no art. 101, de forma apenas parcialmente semelhante:Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: ...III - julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais ou juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição a letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada fôr diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros tribunais ou o próprio STF. A Constituição de 1967 dispôs: Art. 114 - Compete ao Supremo Tribunal Federal: .... III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas, em única ou última instância, por outros Tribunais, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência a tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato do Governo local, contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) dar à lei federal interpretação divergente da que lhe haja dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal. A Emenda Constitucional 1 de 1969 não inovou na matéria, dispondo, no art. 119: Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: ....... III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato do govêrno local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal. Finalmente, a Constituição de 1988, já com a redação da Emenda Constitucional nº 45, estabeleceu: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. É esse o regramento constitucional positivo, com sua pertinente evolução, que informa o exame que passa a ser feito sobre o recurso extraordinário. A natureza do recurso extraordinário Como resulta do rápido apanhado histórico que se fez, o nosso recurso extraordinário tem origem no writ of error e no certiorari norte-americanos, e tem como objetivo a preservação da supremacia da Constituição e da unidade da federação. Costuma-se dizer, nesse sentido, que o recurso extraordinário não é um recurso com função precípua de realização da justiça. É claro, o cidadão, quando avia o seu recurso extraordinário, normalmente não se preocupa com as mazelas que uma lesão pode causar à Carta Política. O seu objetivo mais imediato é a possível reparação de um direito subjetivo eventualmente desrespeitado. Para o Estado, entretanto, o que está em jogo são outros valores objetivamente considerados, de natureza constitucional e que visam à própria preservação do Estado e da estrutura para ele preconizada pelo poder constituinte. Bem examinado, o recurso extraordinário prestava-se a funcionar como último elo da cadeia de controle de constitucionalidade por via incidental, isto é, da técnica de controle em que o bem da vida perseguido pelas partes tinha como pressuposto o reconhecimento (incidenter tantum) de que determinada norma legal era compatível ou incompatível com o texto constitucional que estivesse vigendo. A decisão proferida no recurso extraordinário, entretanto, somente fazia coisa julgada em relação às partes. Como, todavia, o raciocínio disseminado no seio da advocacia (e da sociedade leiga) não percebia as qualidades e especificidades do recurso extraordinário, rapidamente passou-se a acreditar que ele constituiria uma espécie de terceiro grau de jurisdição ao qual todos deveriam ter acesso, máxime porque, diversamente do ocorrido no direito norte-americano - que se baseara também no certiorari, (Lê-se na Rule 10, da Suprema Corte: Considerations Governing Review on Certiorari: Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion.) por meio do qual era pacificamente admitido o poder discricionário da Suprema Corte para deliberar se iria ou não examinar determinado pedido de revisão -, no direito brasileiro, o entendimento era o de que havia um direito absoluto ao recurso, desde que atendidos os pressupostos previstos nas diversas constituições republicanas. É certo que as três primeiras constituições republicanas deixavam evidenciado que seria necessário - para permitir ao cidadão o acesso ao Supremo Tribunal Federal, que a matéria tivesse pertinência com a letra de tratado ou lei federal sobre cuja aplicação se houvesse questionado. Vale anotar, aqui, que o decreto 23.055, de 9 de agosto de 19334, instituiu uma espécie de recurso extraordinário ex officio (com efeito suspensivo) que deveria ser interposto pelas justiças locais e do Distrito Federal sempre que o julgado se fundasse em disposição ou princípio constitucional ou decidisse contrariamente a leis federais ou a decretos ou atos do governo da União.Voltemos ao ponto central: passou-se a ter como certo que, além dos pressupostos e requisitos genéricos, i.e., comuns a todos os recursos, o extraordinário, até por inserir-se na categoria dos recursos de fundamentação vinculada, teria pressupostos específicos, dentre os quais avultava o do questionamento (após, prequestionamento), na instância da qual se recorria, da aplicabilidade do tratado ou lei federal. Mais: considerava-se ocorrido o prequestionamento quando tivesse havido debate sobre o tema no âmbito do colégio julgador. Não bastava que a matéria tivesse sido simplesmente apontada no recurso de apelação pela parte interessada. Era necessário que sobre ela o tribunal se houvesse pronunciado. Ocorre que essa exigência deixou de ter assento constitucional desde a Constituição de 1946. Dizendo de outra forma, pelo menos em tese, a partir de 1946 não seria mais possível ao Supremo Tribunal Federal exigir o requisito do prequestionamento. Parcela da doutrina tenta sustentar que o requisito do prequestionamento está mantido por força da expressão ?causas decididas? que consta no inciso III do art. 102. O argumento vale zero. A uma porque de causas decididas não se pode, nem por larga concessão hermenêutica, inferir a necessidade do prequestionamento. Causas decididas quer dizer causas em que houve deliberação judicial (e não necessariamente debate sobre lei federal) sobre o bem da vida vindicado. A duas porque as constituições de 1934 e 1937 possuíam nos incisos III dos arts. 76 e 101, respectivamente, a mesma expressão ?causas decididas?, mas, nas alíneas "a" havia a exigência de que tivesse havido questionamento sobre a matéria federal. Dizendo de forma bem clara: a exigência do questionamento sempre esteve lançada na alínea "a" e não na cabeça do inciso dessas constituições. Quando o legislador constituinte efetuou a modificação na redação das alíneas "a" dos textos constitucionais subsequentes (ressalvada a hipótese de cochilo do constituinte, o que não se pode presumir) fê-lo porque entendeu necessário mudar o sistema. Se antes o exigia, depois deixou de fazê-lo. Sem embargo da clara modificação constitucional, o Supremo Tribunal Federal continuou a exigir o requisito do prequestionamento, chegando a editar a súmula nº 282, dispondo ser inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada. Ora, com certeza, a edição da súmula em questão, que não homenageia o direito constitucional brasileiro, ocorreu como forma de evitar que o STF sucumbisse literalmente sobre o peso dos recursos que desabariam sobre ele após a supressão da exigência constitucional do prequestionamento. Assim, a medida preconizada na súmula atende muito mais à necessidade de construção de uma jurisprudência defensiva (como tem sido apelidado esse fenômeno) do Supremo Tribunal Federal do que propriamente ao direito que passou a vigorar com a Constituição de 1946. Com ela, o STF corrigiu o fato de que nossa cultura não havia importado a discricionariedade na admissão dos recursos extraordinários (para se ter uma ideia, em apenas dois anos -2004/2005 - o Supremo Tribunal Federal recebeu em seu protocolo um número de processos superior a todos os que foram julgados pela Suprema Corte norte-americana em toda a sua história, até aquela data.) Daí em diante, e sem embargo de nenhuma constituição brasileira haver repetido a exigência do prequestionamento, permaneceu inalterado o posicionamento da Corte quanto a esse requisito. É bem verdade que outros mecanismos constitucionais foram criados visando a dar ao STF outras formas de exercer o poder discricionário sobre a subida de recursos extraordinários de modo a permitir que a Corte continuasse a funcionar. Deveras, a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 dispôs no parágrafo único do art. 119 que as causas a que se refere o item III, alíneas "a" e "d" deste artigo serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário. E, realmente, o Regimento Interno, desde 1970, passou a prever no art. 308 hipóteses nas quais não se admitia o cabimento do recurso extraordinário, sempre com a ressalva de que essas limitações que criara não incidiriam quando se tratasse de ofensa à Constituição ou discrepância da decisão recorrida com a assim chamada jurisprudência dominante da casa. Logo após, em 1975, com a emenda regimental 3, o STF alterou o art. 308 do seu Regimento para adotar a chamada arguição de relevância da questão federal em substituição à formula exceptiva que acaba de ser mencionada5. A arguição de relevância passou a ser considerada como um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, sendo, nas palavras do Ministro VITOR NUNES LEAL, a melhor forma de aliviar a sobrecarga de trabalho em que se encontrava o STF. Percebe-se que a arguição era uma tentativa de aproximar o Recurso Extraordinário de seu símile norte-americano, dando-lhe dignidade e estatura de sorte que o STF pudesse preocupar-se somente com aquelas questões que considerasse realmente importantes ou significativos para justificar uma revisão. A arguição era ofertada na própria petição de recurso extraordinário, em capítulo destacado daquele em que se apresentavam as razões do recurso propriamente dito e nelas a parte buscava superar os óbices regimentais, expondo as razões por que entendia que naquele específico caso estariam presentes elementos de natureza jurídica, social, etc., que extrapassariam os lindes da causa, a sugerir a necessidade de deliberação da Corte maior. Ocioso lembrar que o instituto foi objeto de críticas porque a relevância, tal como concebida, de forma discricionária, poderia conduzir ao arbítrio por parte dos Juízes da Corte, ou no sentido de que a relevância é um dado axiológico que deve ser ponderado pelo legislador ao momento da edição da norma jurídica primária e não pelo julgador, ao momento de sua aplicação. Ora, a ideia da discricionariedade em relação à admissão do RE é justamente fundada no fato de que um cidadão tem direito a um duplo grau de jurisdição, não mais do que isso. Não há um terceiro ou quarto grau de jurisdição. Ao depois, dizer que ponderações axiológicas são prerrogativa do legislador e não do aplicador da lei é afirmação destituída de qualquer fundamento lógico. Ao contrário, não se pode conceber a adequada aplicação da norma jurídica sem considerar a sua dimensão axiológica. Vale lembrar que, não obstante a defesa que fazemos da arguição de relevância, o fato é que, talvez por se tratar de instituto nascido na época da ditadura militar, a Constituição de 1988 não acolheu esse requisito de admissibilidade e o Supremo Tribunal deixou de contar com o filtro de que dispunha para selecionar as demandas a examinar, o que teve como consectário natural o aumento da carga de recursos extraordinários em condições de ir a julgamento (independentemente de o STF continuar utilizando aquele malsinado critério do prequestionamento). Nem por outro motivo, a Emenda Constitucional nº 45 reinseriu na Carta Política outra e necessária forma de filtro, por meio do qual o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, para que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. Semelhantemente à arguição de relevância, a repercussão geral é um pressuposto específico de admissibilidade do Recurso extraordinário, cujo exame compete exclusivamente ao STF, diferentemente do que acontece com os demais pressupostos de admissibilidade, que podem ser valorados pelo presidente ou vice-presidente do tribunal a quo. Certamente que a doutrina será capaz de encontrar formas distintivas entre um instituto e outro (um é includente, outro, excludente. Um tem presumida a existência, outro, a inexistência, etc.), mas, na essência, são a mesma coisa. As diferenças são mais pertinentes ao procedimento da repercussão geral, que será examinado mais à frente. Adicione-se a isso o instituto da súmula vinculante que tem conexão com a atividade do STF relativa ao julgamento dos recursos extraordinários e se terá uma nova configuração do recurso extraordinário: cada vez mais o RE deixa de ser o último elo na cadeia do controle de constitucionalidade incidental para se tornar mais um instrumento de controle in abstracto de constitucionalidade naquilo que já vem sendo chamado, não sem razão, de objetivação do recurso extraordinário, em evidente alusão ao fato de que o controle abstrato de constitucionalidade se faz por meio de processos objetivos, não de partes. Com isso, o julgamento do recurso extraordinário pela Corte maior passa a ter o condão de ultrapassar os lindes da causa para ter eficácia erga omnes derramando-se sobre todas as outras questões de mesma natureza. Na próxima terça, examinaremos as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e a regência que o CPC de 2015 emprestou ao tema. __________ 1 Recurso Extraordinário, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1935, pp. 105/108 2 Mantida a grafia da época para todos os textos históricos. 3 Matos Peixoto, op. cit. p. 112 4 Esse Decreto vigorou menos de um ano e não foi recebido pela constituição de 16 de julho de 1934. 5 Esse Decreto vigorou menos de um ano e não foi recebido pela constituição de 16 de julho de 1934. 6 Cf. Mancuso, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e especial. P. 65.
terça-feira, 6 de outubro de 2015

Inexistência, nulidade e outras perplexidades

Jorge Amaury Maia Nunes Há algumas coisas que temos como sedimentadas no âmbito doutrinário e que não se chocam com o que está no CPC de 2015. Outras, certamente, podem assustar. Quando queremos entender a teoria do direito processual, primeiramente temos de entender a teoria do direito com amparo em suas categorias mais fundamentais, por exemplo, lícito e ilícito. Ora, o lícito e o ilícito são, sobretudo, uma ideia que se tem sobre eles. Não existe uma coisa essencial em um ilícito. Então a ideia de lícito ou ilícito vai depender, sempre e sempre, de um dizer da sociedade. Vai depender de um dizer do detentor do poder político naquela sociedade. Esse detentor do poder político é que vai, de acordo com a sociedade, dizer: vamos nos comportar desta maneira. E essa maneira vai ser a forma lícita de comportamento. Toda vez que uma conduta ou apropriação de qualquer natureza, e não necessariamente de natureza patrimonial, escapulir da forma estipulada pelo detentor do poder político para dizer que essa apropriação é válida, este escapulir constituirá um ilícito. Essa é a regra geral das licitudes e ilicitudes. Essa ilicitude vai coincidir, em grande medida, com a teoria das validades ou das invalidades, que é apropriada pelos outros ramos do direito. Pelo direito penal, que vai apenar essas condutas; pelo direito civil, que vai dizer se a forma de apropriação de que se lançou mão é válida ou inválida e, portanto, se sua apropriação pode ser eficaz no mundo da sociedade; e assim sucessivamente, até chegarmos ao direito processual civil. Aqui, também, o detentor do poder político há de traçar um figurino, que entre nós atende pelo apelido de Código de Processo Civil. Este figurino é que vai dar os moldes, os modelos que podem ser utilizados pela sociedade; em particular, pela sociedade daqueles que atuam no foro, para provocar a prestação da atividade jurisdicional do Estado. Diante disso, aparecem teorias várias sobre eventual desrespeito ao figurino preconcebido, não sendo raro falar-se em teorias dicotômicas e tricotômicas de nulidades. Temos muita preocupação com relação a esses desenhos que se fazem, até porque não se vê um magistrado dizer assim: "Declaro que aqui acontece uma nulidade relativa e, portanto, desconstituo o ato". Ou: "Declaro que essa nulidade é absoluta e desconstituo o ato". Essas manifestações no âmbito do judiciário, sobre ser a nulidade absoluta ou relativa, acontecem no máximo quando ele quer afastar uma eventual preclusão para pronúncia da nulidade, apenas e tão somente isso, mas não é usual encontrar-se uma manifestação dizendo que tal nulidade é absoluta ou relativa, por parte do magistrado. No máximo, as partes que, quando se defendem, dizem: é absoluta, é relativa, porque perderam o tempo para a sua arguição. Ou, "essa nulidade é cominada ou não é cominada", expressão que era utilizada no CPC de 1973 e que foi afastada no Código de 2015. Posto o cenário, vamos tentar apenas ressuscitar a discussão sobre a inexistência de um ato jurídico processual. Parece certo afirmar que, entre os antigos, conceito de inexistência do processo coincidia, mais ou menos, com a chamada nulidade absoluta ou com o ilícito absoluto, e que, talvez, a ideia sobre inexistência não fizesse nenhuma falta para a teoria das nulidades. Não havia discrímen entre o nulo absoluto e o inexistente. As Ordenações Filipinas também não tinham muita clareza quanto à diferença existente entre o nulo absoluto e a inexistência, mas preferiam cuidar da inexistência. Tanto é assim que, numa passagem das Ordenações Filipinas, Livro III, LXXV, está escrito assim: "a sentença, que é per direito nenhuma [inexistente], nunca jamais em tempo algum transita em cousa julgada". Quer dizer que a sentença jamais será exigível. As Ordenações, então, trabalhavam com a ideia de inexistência, mas em detrimento da ideia de nulidade absoluta. Pode parecer que um estudo dessa natureza seja obra de mero diletantismo. Deveras, se se trabalha somente com as consequências do reconhecimento da inexistência de um ato ou com a pronúncia de sua nulidade, não haverá distinção, mas quando se pretende verticalizar o exame do tema - até na aplicação prática - a ideia do inexistente e do nulo começam a gerar conseqüências diversas. Vamos investigar. Imagine-se uma sentença proferida por um cidadão que não é mais juiz. Aposentado compulsoriamente porque completou setenta anos (ou setenta e cinco!), esse cidadão, muito zeloso e cumpridor dos seus deveres, um dia após o septuagésimo aniversario, foi ao gabinete para encerrar sentenças que estavam praticamente produzidas, faltava um detalhezinho ou outro. Fez as correções e assinou as peças processuais. Ocorre que esse cidadão, com setenta anos e um dia, não tem mais jurisdição. Tecnicamente, ele é um ex-juiz, um não-juiz, mas assinou a peça processual. Para os fins do direito, essa sentença vale tanto quanto uma sentença que tenha sido assinada por um advogado militante. É a mesma coisa, é uma não-sentença. O ato, entretanto, tem forma, cara e jeito de sentença. Pois bem, identificado que a sentença foi proferida por um não-juiz, não é necessário fazer nada em relação a ela, não é necessária nenhuma providência, porque ela em si não tem o "pressuposto mínimo de identificabilidade" com um ato sentencial que exige, para merecer essa qualificação, ser proferido por alguém dotado de jurisdição. No processo civil brasileiro, havia (e ainda há) o exemplo clássico da inexistência dos atos processuais quando firmados por advogado desdotado de procuração e que não a apresentara no prazo que lhe fora conferido. Dizia-se que aqueles atos eram considerados inexistentes, porque assim dispunha o texto do Código de Processo Civil de 1973. Ocorre que o novo Código não diz isso, com o que talvez se pudesse alegar que o arrimo da construção doutrinária, da construção teórica, está afastado. Apesar de afastado, seria possível insistir: se o ato é praticado e tem até o jeito de sentença, mas sentença não é, então não é preciso fazer nada para hostilizar esse ato. E ele em si jamais vai existir. De outra sorte, um ato sentencial viciado é válido, sem que isso represente uma contradição. Deveras, a nulidade é sempre um fenômeno endoprocessual, um fenômeno que ocorre dentro do processo. Exatamente por isso, uma vez transitada em julgado a sentença, aquele ato sentencial revestido de algum vício que costuma ser apelidado de nulidade, vale e pode ser cumprido, se for o caso de se tratar cumprimento, evidentemente. É claro, dir-se-ia, "cabe ação rescisória". Considere-se, entretanto, que somente cabe ação rescisória de ato que é, de ato que vale. Tanto que a ação rescisória é, sobretudo, uma ação de natureza constitutiva-negativa. Então, se o ato não fosse nada, não seria necessário lançar mão da rescisória. Do ato que é, mas é nulamente, cabe o uso da rescisória para sua desconstituição. Assim, até do ponto de vista prático, é possível sustentar que há atos que são inexistentes (a rigor, não-atos) e atos que são viciados e que existem válida ou invalidamente. Isso parece tão mais claro quando se percebe o trânsito em julgado e nota o seguinte: se existe uma nulidade processual no ato chamado sentença, a apelação, aviada no tempo próprio, pode versar sobre os chamados errores in procedendo, ao lado dos erros de julgamento, errores in iudicando. Então, é possível encontrar um vício processual e arguir a seu respeito para que o tribunal, em exame do recurso de apelação, casse aquela decisão, desconstitua aquela decisão e determine a volta do processo ao primeiro grau de jurisdição, se for o caso, para que o magistrado profira outra sentença, escoimada do vício que foi apontado, evidentemente se o vício permitir sanação. Uma coisa deve ficar clara: só existe, segundo pensamos, uma teoria das nulidades universal na medida em que todos os ordenamentos sejam os mesmos. Como isso não acontece, não se pode falar em uma teoria universal das nulidades. As nossas teorias de nulidade têm a ver com aquelas coisas que julgamos ser logicamente adequadas, e com aquelas coisas que aparecem em determinado ordenamento positivo, em determinado código. Em outras palavras, uma teoria das nulidades deve estar baseada no código de processo civil respectivo, essa a regra; mas, humanamente, devemos ser capazes de entender que há categorias lógicas que podem, primeiro, alimentar o texto legal chamado código de processo e, depois, podem hostilizar esse mesmo código. Toda a ideia de nulidade no CPC visa a retirar a eficácia do ato cujo vício tenha sido judicialmente reconhecido. No que concerne à chamada eficácia normativa, parece que os resultados são alcançáveis, mas a eficácia social, o ato nulo pode ter e normalmente tem. Isso é inevitável, inescapável, até porque CHIOVENDA sempre suscitou, com muita pertinência, que o processo por si só gera um dano para o autor que tem razão. Pelo só decurso do tempo, o autor que tem razão perde alguma coisa. Um ato viciado, praticado em determinado processo, pode ter a nulidade pronunciada no futuro e até com eficácia retro-operante; mas não interessa, ele já gerou um dano, o desenvolvimento da máquina processual contra o autor. Então, eficácia social o ato viciado pode ter. O que se afasta com a decretação da nulidade é a eficácia normativa prevista para aquele ato em específico. Nulidade declarada ou decretada? Havia certo consenso de que nulidade era declarada e não decretada. Temos afirmado que a nulidade processual é apenas o reconhecimento da desconformidade do ato praticado com a sua previsão in abstracto. O código faz uma previsão, e um sujeito do processo, na hora de praticar o ato, desborda da previsão e constrói um ato seu, um ato próprio, que não é aquele que está no figurino legal. Essa desconformidade existe desde o momento que o ato é praticado. Então a nulidade seria apenas a declaração dessa desconformidade. Apesar de não haver muita discussão a esse respeito, a generalidade da doutrina, ao se manifestar, fala em anular o ato. Ora, toda vez que se disser "anular o ato", não se está praticando ato verdadeiramente declaratório, e sim ato desconstitutivo ou, se quiserem, constitutivo-negativo. Isso conduz a questões bastante interessantes. Primus: há diferença entre desconstituir o ato e declarar que o ato é nulo, se for levada a ferro e fogo a questão dos efeitos? Sim, poderia haver, mas é bom lembrar que os conceitos jurídicos não possuem nenhuma essencialidade. Então é plenamente possível construir uma teoria como parece pretender o Código de 2015, desde que se afirme: uma decretação de nulidade de ato (uma desconstituição de ato) pode ter efeitos retro-operantes. É certo que atos com natureza constitutiva têm (admitindo-se uma categoria lógica para esse fim) a tendência natural para operar efeitos prospectivos, daqui para frente, jamais retrospectivos. Assim é porque houve uma convenção coletiva, uma convenção comunitária da nossa linguagem que levou a esse resultado; mas nada impede que se pense diferente e construa diferente, exatamente porque a linguagem do direito não possui nenhuma essencialidade. Um exemplo pode demonstrar isso de maneira mais clara. Quando o Ministro CÉSAR PELUSO apresentou o projeto de alteração da Constituição para fazer que a coisa julgada se operasse assim que esgotada a instância ordinária, houve uma grita da comunidade acadêmica, porque isso ofenderia o "princípio da coisa julgada". Ora, de que princípio superior e divino decorre a afirmação de que a coisa julgada só pode ser constituída após o julgamento em quatro instâncias, duas ordinárias e duas de superposição? Onde está escrito isso? Não está escrito em lugar nenhum do mundo! Ao contrário, em vários ordenamentos da Europa continental, a coisa julgada se opera justamente no segundo grau. Acabou o segundo grau, transitou em julgado. Não por outro motivo, os recursos extraordinários, na França, por exemplo - e na Itália -, são recursos que hostilizam o quê? Hostilizam a coisa julgada. Só há recurso extraordinário da decisão que transitou em julgado. Secundus: diz o art. 276 do CPC de 2015: "quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa." Ora, como não há essencialidade, poder-se-ia pensar assim: apesar de ser decretação, deve possuir efeitos retro-operantes, se não vai haver um ato que vale na metade no processo e não vale na outra metade. CALMON DE PASSOS, no livro que escreveu sobre nulidades, já na introdução faz advertências belíssimas quanto ao fato de que a única coisa que nos legitima como operadores do direito, já que a nossa língua é imperfeita, é a precisão terminológica. A nossa precisão terminológica, o nosso não-render ao arbítrio, é que vão fazer de nós, operadores do direito, dignos de legitimação social. Assim, se o legislador pretendeu, ao tratar o ato judicial de reconhecimento do vício processual, atribuir-lhe eficácia constitutiva-negativa, então deveria encontrar uma fórmula de deixar claro que abandonara a linguagem comunitariamente aceita, que estabeleceu uma espécie de correspondência biunívoca: a nulidade se declara; a anulação se decreta. Assim não se houve, entretanto, o novo CPC.
Guilherme Pupe da Nóbrega Como dito anteriormente, na versão original do CPC de 1973, fosse com base em título executivo judicial, fosse com base em título executivo extrajudicial, a execução sempre nascia do zero, com petição inicial própria, inaugurando relação processual desvinculada de eventual relação processual outra que lhe precedesse: no título extrajudicial inexistia, mesmo, qualquer processo anterior; o título executivo judicial, por outro lado, pressupunha processo de conhecimento anterior formador do título. Pouco a pouco, porém, foi se fazendo possível a prática, no processo de conhecimento, de atos executivos, de efetivação do direito, de concretização de decisões. Em outras palavras, a regra é que, no caso de título judicial, somente depois de sentença reconhecendo o direito da parte, e dessa decisão não mais cabendo nenhum recurso, é que haveria a entrega do bem da vida ao vencedor, transmudando-se o conteúdo da decisão em efetiva alteração dos fatos. Acontece que essa regra foi comportando cada vez mais exceções. Em 1990, o artigo 84 do CDC abre a possibilidade de efetivação de determinados atos decisórios em ação coletiva, antes mesmo da sentença. Em 1994, com a lei 8.952 e a mudança por ela promovida no artigo 461 do CPC/73, se torna possível a execução de obrigação de fazer na tutela individual. Além disso, a mesma norma inova no ordenamento ao prever a tutela antecipada (artigo 273 do CPC/73), executável antes da sentença - tema esse abordado mais à frente. Em 1995, a lei 9.099, dos Juizados Especiais, inova não para admitir atos de execução antes da sentença (o que já era possível em razão da tutela antecipada introduzida em 1994 pela lei 8.952), mas para estabelecer que o cumprimento das sentenças transitadas em julgado se daria no mesmo processo, como uma fase processual, dispensando a parte exequente de instaurar nova relação a partir de uma inicial de execução (arts. 52 e 53). Em 2002, a lei 10.444 insere no CPC/73 o art. 461-A, que prevê a possibilidade de execução de tutela antecipada em obrigação de entrega de coisa, também antes da sentença ou de seu trânsito em julgado. Finalmente, em 2005, a lei 11.232 inverte a lógica: se a regra exigia nova petição inicial para instauração de processo de execução, a regra passava a ser a execução incidental por meio do cumprimento de sentença. Bastaria, para execução, uma petição incidental da parte exequente, petição essa que prolongaria a relação processual pré-existente, saindo de uma fase de conhecimento, de acertamento do direito, para uma fase de execução, de efetivação, tudo num mesmo e único processo, sem citação, mas, sim, intimação do réu-condenado, agora executado.Essas mudanças refletiram uma mudança de paradigmas que vinha ocorrendo em nível mundial1: conferir efetividade, no mundo dos fatos, àquilo que foi decidido no plano normativo (na norma jurídica individual apelidada de sentença). É dizer, a partir do final do século XX, o processo civil deslocou seu foco dos conceitos e categorias para a funcionalidade da prestação jurisdicional (essa busca por celeridade e efetividade reverberou na própria CF). No processo executivo, concentrou-se na instrumentalidade e na efetividade. Em suma, pouco importa se a ação é direito subjetivo, potestativo ou faculdade, pouco importa a diferença do direito formal e material se não se produzirem resultados socialmente satisfatórios que, desde um primeiro momento, ensejaram a própria necessidade da jurisdição. O direito processual não pode ser um fim em si mesmo, e sim um veículo, de modo que, ao revés de distanciar-se, deve o processo aproximar-se do direito material. Passa-se a um processo de resultado. O CPC de 2015 bebeu desta fonte. Enquadrou a tutela cautelar como espécie do gênero tutela provisória, deixando de tratar do tema em livro próprio. Também adotou "ainda mais" como regra a execução incidental de título judicial, pelo rito do cumprimento de sentença (inclusive em se tratando de alimentos2 ou de execução contra a Fazenda Pública, diferentemente do que se sustentava no CPC de 1973), admitindo com ainda mais ênfase tutelas cognitiva e executiva numa mesma relação processual passou a ser incidental. Mais do que nunca, a quadra vivida pelo processo civil brasileiro tem no sincretismo regra, sem enxergar separação das tutelas em diferentes processos. Privilegia-se a efetividade jurisdicional com o enfrentamento do mérito3, a simplificação de procedimentos, sem descuidar da segurança jurídica. Por isso a opção em se falar em fase de conhecimento, em vez de "processo" de conhecimento. Pois bem. Já foi dito aqui que a fase de conhecimento é o momento processual destinado à investigação dos fatos pelo juiz, às alegações das partes. Essa atividade cognitiva pode se desenrolar de diferentes formas, por diferentes ritos, procedimentos, a depender, por exemplo, do conteúdo da pretensão. Dito de outro modo, os atos processuais, de acordo com determinados aspectos como o pedido deduzido ou o valor da causa, podem se organizar de diferentes formas. No CPC de 1973, havia procedimentos ordinário, sumário e especiais. No CPC de 2015, passou-se a ter, exclusivamente, procedimentos comum e especiais. Neste ponto, cuidar-se-á do procedimento comum, que, na forma do artigo 318, caput e parágrafo único, do CPC de 20154, porque mais rico, é aplicado subsidiariamente, no que não for derrogado (artigo 1.046, § 2º, CPC/15)5 por normas específicas, à execução e aos procedimentos especiais, sejam os catorze expressamente previstos no CPC, sejam os outros tantos tratados em legislação esparsa (leis 9.099/95 e 12.016/09, por exemplo). Dentro do procedimento comum, são estudadas quatro diferentes fases: (i) postulatória: as partes apresentam ao juiz a matéria sobre a qual discutem, é a fase em que as partes, e eventuais terceiros, postulam a tutela, rompendo efetivamente com a inércia; (ii) ordinatória: o juiz, a partir dos atos praticados na fase postulatória, define os atos processuais subsequentes, sanando eventuais vícios e irregularidades que possam comprometer, futuramente, a decisão. O processo, em outras palavras, é colocado em ordem e preparado para a fase seguinte. Não sendo possível ordenar o processo, é possível que o juiz, à falta de pressupostos ou condições básicas, que inviabilizem a atuação jurisdicional, extinga o processo, sem adentrar o mérito; (iii) instrutória: o juiz, como destinatário das provas que é, age de ofício ou a requerimento das partes, autorizando a produção de provas a fim de formar seu livre convencimento, sempre motivado, acerca dos fatos e de suas consequências jurídicas. (iv) decisória: o juiz, convencido, efetivamente decide, sentenciando o processo e, preferentemente, reconhecendo ou não a existência de direito, ou seja, adentrando o mérito. Essa separação não é rígida. Leva em conta a atividade que prepondera num e noutro momento processual. Assim, tanto é possível que uma dessas fases simplesmente não ocorra (não haverá fase instrutória se ocorrer o indeferimento da inicial ou o julgamento antecipado da lide), como é possível que haja uma decisão do juiz (que teoricamente integraria a fase decisória) em meio à fase postulatória (por exemplo, deferindo liminarmente tutela provisória de urgência ou determinando a emenda da inicial, providência essa ordinatória). São esses exemplos que relativizam, mas não desmerecem essa classificação doutrinária, que tem fim didático. Cuidando primeiro da fase postulatória, e lembrando que é esse o momento em que as partes deduzem pretensão e resistência, cada alegação da parte é considerada um ponto. Quando um ponto suscitado por uma das partes esbarra num ponto suscitado pela outra, surge uma controvérsia, e aquele ponto passa a ser tratado como algo controvertido, uma questão, de fato ou de direito, a ser dirimida pelo juiz. O conjunto de questões forma o objeto do processo. Há uma organização, porém, na solução das questões. Em determinados casos, a solução de uma questão poderá repercutir ou prejudicar a solução de outra. Por isso é que temos questões preliminares e prejudiciais. As preliminares criam ou eliminam obstáculos para a solução de outra questão, ou seja, o exame de um ponto controvertido depende de que se resolva, antes, outro ponto controvertido, seu antecedente lógico. São elas classificadas em: (i) preliminares de conhecimento do mérito da causa (pressupostos processuais e condições da ação, que, ausentes, impedem o exame do mérito); (ii) preliminares recursais (pressupostos recursais, intrínsecos ou extrínsecos); e (iii) preliminares de mérito (prescrição ou decadência). As prejudiciais não condicionam o exame de outra questão, mas repercutem na forma como essa será analisada. Exemplo é dado pela discussão sobre a validade do contrato em ação de cobrança (se inválido, a cobrança será necessariamente improcedente). Outro exemplo surge com a discussão sobre a inconstitucionalidade de lei em ação de repetição de indébito tributário (se inconstitucional a lei que apoia a exação tributária, a cobrança será indevida, o que redundará na procedência do pedido). Tudo bem. Mas como se inicia a fase postulatória, primeiro momento da fase de conhecimento? Da mesma forma que se inicia o processo. Com um pedido a alguém. Acontece que esse pedido não pode ser feito de qualquer forma, porque não é feito a qualquer "pessoa". O pedido deve atender a requisitos formais mínimos a fim de romper a inércia judicial. Como é pedido a iniciar o processo a provocar a tutela jurisdicional, natural que o mecanismo para sua dedução se chame "petição inicial". Os requisitos que devem ser observados pela petição inicial? Isso já é assunto para outro dia... ____________ 1 Tiveram reformas na execução civil: a Espanha, em 2000; Rússia, em 2002; Portugal, em 2003; Itália, em 2005; Honduras, em 2007; entre outros. CÂMARA, Alexandre Freitas. A eficácia da execução e a eficiência dos meios executivos: em defesa dos meios executivos atípicos e da penhora de bens impenhoráveis. In: Execução civil e temas afins - do CPC/1973 ao Novo CPC: estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. Coord. Arruda Alvim et . al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 15. 2 Havia dúvida, na doutrina, sobre a possibilidade de execução de alimentos pelo rito do cumprimento de sentença no CPC de 1973. Sustentavam a possibilidade, entre outros, Maria Berenice Dias, Alexandre Câmara e Luiz Guilherme Marinoni. Posteriormente, o STJ encampou a tese (STJ, Quarta Turma, REsp 1.177.594, rel. Min. Massami Uyeda, DJ de 22.10.2012), que findaria por também ser acolhida pelo CPC de 2015. 3 As diversas normas a positivarem o privilégio no enfrentamento do mérito consagram tendência já há tempos existente: "(...) III - Sem escapar ao regramento que disciplina o nosso sistema processual, o julgador não pode estar apegado ao formalismo exacerbado e desnecessário, devendo-se esforçar ao máximo para encerrar a sua prestação jurisdicional apresentando uma composição para a lide, cumprindo assim a atribuição que lhe foi conferida." STJ, REsp 707.997, rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 27.3.2006. 4 Art. 318. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei. Parágrafo único. O procedimento comum aplica-se subsidiariamente aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução. 5 Art. 1.046. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. (...) § 2º Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código. _____________ Leia o primeiro texto do tema: "Da separação 'rígida' das tutelas em processos no CPC/73 ao sincretismo processual do CPC/15 (primeira parte)"
Guilherme Pupe da Nóbrega O processo é um conjunto de relações jurídicas de que decorrem direitos e deveres recíprocos para os seus sujeitos e que se desenvolve segundo um procedimento ao longo e ao cabo do qual é prestada a jurisdição. A jurisdição pode ser exercida de diferentes formas, reconhecendo, efetivando e/ou protegendo direitos. A fase de conhecimento é a quadra do processo em que se concentra a tutela cognitiva, isto é, o momento em que o Estado-Juiz conhece dos fatos para, em seguida, declarar o direito das partes, outorgando certeza jurídica à questão a fim de extirpar o litígio do seio social. É a etapa em que (i) o autor, dirigindo-se ao órgão competente, rompe a inércia judicial, (ii) é assegurada resposta ao réu, (iii) são investigadas as questões de fato e de direito que formam o objeto do processo, tudo isso culminando numa sentença. Nessa fase específica, a preocupação das partes é tentar demonstrar ao magistrado o direito que alegam possuir. Em contrapartida, é durante essa mesma fase cognitiva que se estabelece uma relação entre o magistrado e o conteúdo do processo (lide e questões processuais). É o momento da percepção no esquema sujeito-objeto. Preocupa-se o julgador em investigar os elementos narrados na petição inicial e na contestação para, ao fim, inteirado quanto à certeza dos fatos, atribuir o bem da vida em disputa ao autor ou ao réu. Essa certeza, contudo, nunca será absoluta - do contrário, não haveria recurso ou ação rescisória contra qualquer decisão, que estaria, sempre, certa. A sentença, ao revés, se funda num juízo de probabilidade, na verdade formal que emerge dos autos, e que não necessariamente coincidirá com a verdade real. Em outras palavras, como o Estado não pode se abster do dever de prestar a jurisdição, a incerteza sobre os fatos ou o risco, sempre existente, de uma decisão que não se imiscua em todos os elementos necessários para que se alcance a verdade real (nem sempre possíveis de serem provados) não o desonera de julgar. O juiz, a partir do que produzido no processo, firmará seu convencimento1, chegará à "verdade do processo" e fundamentará suas conclusões na sentença. Ainda que não se chegue à justiça em sua concepção mais ampla - conceito mais metafísico-filosófico que prático -, a solução almejada será a que mais se aproximar de uma concepção idealizada juridicamente do que seja justiça. Acontece que nem sempre o que contido na sentença é prontamente cumprido por aquele que sucumbiu na demanda. Há, então, um giro que transforma a pretensão resistida em pretensão insatisfeita: "uma coisa é a resistência no plano do juízo que põe em pauta a incerteza sobre quem tem razão. Outra coisa é a resistência no plano da vontade, que evidencia a necessidade de satisfazer a quem tem razão."2 Embora durante determinado período do Império Romano a execução por mão própria fosse possível (período das ações da lei, ou legis actiones), a evolução determinou que caberia ao Estado o monopólio do exercício legítimo da força. Assim, na versão original do CPC de 1973, cabia ao vencedor provocar uma vez mais o Estado, agora para executar o título executivo judicial.3 Porque a execução, aqui tratada superficialmente, se ocupa da tarefa de implementar, satisfazer o direito reconhecido ao longo da tutela cognitiva, é que se diz que na fase de conhecimento o juiz olha para os fatos e, em seguida, para o Direito, a fim de encontrar a solução aplicável, enquanto que na fase executiva o juiz olha para o Direito e, depois, para os fatos, a fim de alterá-los para fazer valer a decisão judicial, até então um simples comando jurídico abstrato. Surge ainda, ao lado das tutelas cognitiva e executiva, a tutela cautelar, que visa à proteção, conservação do direito objeto de discussão presente ou futura. O objetivo da cautelar é, pois, o de resguardar a utilidade do processo. Exemplificando: suponha-se que alguém pretenda reaver um veículo dado em comodato quando já exaurido o prazo e, antes mesmo do ajuizamento da ação, descubra que o possuidor do bem está em vias de desmanchá-lo para vender as peças; ou que no curso de uma ação em que os pais discutam a guarda de um menor a mãe ameace viajar com a criança para outro país; ou o caso de uma mulher que, em meio a processo de divórcio litigioso, se vê obrigada a abandonar o lar por correr risco de morte em razão das ameaças feitas por seu marido. Em todos esses exemplos, o direito objeto de discussão corre sério perigo, que, se confirmado, esvaziaria a própria razão de ser do processo: (i) nenhuma efetividade terá a busca e apreensão se não se puder mais localizar o bem móvel; (ii) ainda que logre êxito no processo, o pai terá embaraçada a guarda de fato do menor subtraído pela mãe; (iii) de nada importará o culpado pelo divórcio se a mulher for assassinada por seu marido. É para proteção desses direitos, objeto de discussão presente ou futura, que se prestam as providências cautelares. O Código de Processo Civil de 1973, em sua feição original, possui divisão rígida: o Livro I cuidava do processo de conhecimento; o Livro II, do processo de execução; o Livro III, do processo cautelar; o Livro IV, dos procedimentos especiais; e o Livro V, das disposições finais e transitórias. Na versão original do CPC de 1973, portanto, a relação processual variava conforme variava a tutela pretendida, de modo que, para a tutela cognitiva, havia um processo com início, meio e fim, que era a sentença. Quando se passava ao momento de implementação, de efetivação do que decidido em sentença transitada em julgado, o vencedor tinha o ônus de iniciar nova relação processual, aviando petição inicial que continha, agora, pretensão não mais de reconhecimento de um direito, mas de sua concretização consoante decidido em processo de conhecimento, com a execução da sentença, título executivo judicial. Também a execução, autônoma em relação ao processo de conhecimento, teria início, meio e fim. No processo cautelar era um pouco diferente. A providência cautelar poderia (ainda poderá, no NCPC) ser requerida antes mesmo do ajuizamento do processo principal, dando início a um processo autônomo, mas também poderia sê-lo incidentalmente (ainda poderá, no NCPC), no curso da demanda, caso o risco para o direito fosse superveniente ao ajuizamento da demanda que o discute. Isso quer dizer que era e é possível haver tutela cautelar "dentro" do processo/fase de conhecimento: no exemplo dado acima, a respeito da guarda de menor, ainda enquanto ocorre a discussão sobre o direito à guarda, ainda em meio à produção de provas, é possível que seja requerida pelo marido, e deferida pelo juiz, providência cautelar no sentido de impedir a evasão do menor do território nacional caso esse risco surja supervenientemente ao ajuizamento da ação de guarda. A mesma coisa poderia acontecer no processo de execução: imagine-se que o credor de um cheque execute a obrigação de pagar. Citado para pagamento, o executado/devedor começa a dilapidar patrimônio visando a frustrar a execução. A par do fato de que os atos de disposição patrimonial serão ineficazes em relação ao credor, porque praticados em fraude à execução, visando a impedir a prática de ainda mais outros atos, pode o exequente lançar mão de cautelar de arresto, afetando tantos bens quantos bastem para pagamento do crédito exequendo. Uma vez mais, a providência cautelar, aqui, tem a finalidade de evitar o esvaziamento do processo, de proteger o direito, creditório, objeto do processo principal - será infrutífera a execução em que não se logre localizar bens para penhora.4 Se desde o início vislumbrou-se a possibilidade de ocorrer tutela cautelar no bojo de processo de conhecimento, o processo de execução, ao revés, foi perdendo sua autonomia gradativamente. Na próxima semana, abordaremos as etapas percorridas pelo CPC de 1973 rumo ao sincretismo processual, culminando no CPC/2015. ______________ 1 Caso, mesmo depois de produzidas as provas, o magistrado não se considere apto a julgar, precisamente porque os fatos não foram esclarecidos, deverá ele valer-se de uma regra de julgamento de aplicação subsidiária chamada de "ônus da prova", abordada no capítulo reservado à teoria geral da prova. 2 NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Tutela jurídica processual, ação, processo e procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 29. 3 Sem aprofundar o ponto, que é tratado em tópico próprio reservado à execução, cabe a explicação de que o título executivo aparelha a execução. É requisito indispensável, ao lado do inadimplemento. Pode o título executivo ser judicial ou extrajudicial. Os títulos executivos judiciais, como se infere do nome, são produzidos em processo judicial e estão taxativamente enumerados no artigo 512 do NCPC (artigo 475-N, CPC/73). Os títulos extrajudiciais, por outro lado, igualmente aptos a desencadear a execução, possuem eficácia executiva não por certeza construída em processo judicial, mas sim porque essa eficácia lhes é atribuída por lei. Isso quer dizer que inexiste, em princípio, dúvida sobre o direito do credor de obrigação contida em título extrajudicial. Com isso, está o credor autorizado a "saltar" a fase de conhecimento, ingressando em juízo diretamente com a execução, caso inadimplida a obrigação (o credor de um cheque não ajuíza ação de cobrança a fim de obter sentença que reconheça o crédito. O cheque já possui, por lei, essa certeza como algo intrínseco. O credor, então, simplesmente executa o cheque). Os títulos executivos extrajudiciais estão arrolados no artigo 782 do NCPC (585, CPC/73) e em leis esparsas. 4 Além desses dois exemplos, que demonstram a possibilidade de providência cautelar no bojo de processo de conhecimento e de execução e desabonam a autonomia do processo cautelar, deve ser enfatizado que as cautelares possuem inequívoco caráter acessório, no mais das vezes ainda carecedor de qualquer grau de cognição, mesmo superficial, sobre o mérito que envolve o objeto litigioso da ação principal., motivo também por que se questiona a sua própria autonomia processual. CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Trad. da edição italiana de 1936. Campinas: Servanda, 2000, p. 160-161; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 401. Ainda no mesmo sentido: NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Tutela jurídica processual, ação, processo e procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 27.
terça-feira, 15 de setembro de 2015

O importante é contestar

Jorge Amaury Maia Nunes O novo Código de Processo Civil já sofre algumas sérias ameaças de não entrar em vigor em 18 de março do ano que vem, dada a existência de projeto de lei que prorroga o fim do seu período de vacatio para as calendas, como tem sido insistentemente preconizado por parcela do Judiciário. Sem embargo disso, i.e., enquanto não se concretiza o atentado de 11 de setembro contra o processo civil brasileiro, discutamos o tratamento dispensado à contestação no novo Código, sempre com o intuito de condensar o máximo de informações com o mínimo de palavras, ainda que com o evidente risco de lavrar na seara da superficialidade acadêmica. O Código de 2015 inovou no tratamento da matéria. O antigo art. 297 do Código de 1973 cuidava da possibilidade de oferecer contestação, exceção e reconvenção. Agora, de exceção (instrumental) não mais se cuida e a reconvenção, tratada no art. 343, passou a ser parte integrante da própria contestação. A ideia que ilumina o novo código é a concentração das defesas possíveis na contestação, consagrando o princípio da eventualidade, com a eliminação de penduricalhos e de intermináveis incidentes que as exceções instrumentais causavam. Cabe observar que, com o deslocamento da audiência de conciliação e mediação para momento anterior à oferta da contestação, em procedimento técnico superior àquele determinado pelo Código de 1973, foi necessário descer a minúcias com relação ao prazo para contestar. Antes de tudo, não deve ser olvidado que o prazo será sempre contado em dias úteis, por força do disposto no art. 219 deste código. Depois, deve ter-se em mente que o prazo, no procedimento comum, é de 15 dias, ressalvada a concessão em dobro para: Ministério Público; União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de direito público; Defensoria Pública (e entidades com ela conveniadas que prestam assistência jurídica gratuita) e escritórios de prática jurídica de faculdades de Direito reconhecidas por lei. Além disso, cabe atentar para o termo inicial do prazo. Deveras, dadas as múltiplas possibilidades existentes na fase processual que antecede a contestação, o legislador optou pela cautela: em uma primeira hipótese, admitiu que a audiência de que trata o art. 334 (i) ocorra em uma única sessão; (ii) ocorra em mais de uma sessão; (iii) designada, haja o não-comparecimento de qualquer das partes, ou, em todas as hipóteses até então versadas, as partes não cheguem à solução do litígio. Nessas circunstâncias, a data da última audiência frustrada marca o termo inicial do prazo para contestar. Incide aqui a antiga regra, renovada no art. 224, de que deve ser excluído o dia do início e incluído o dia do vencimento. Já se viu que o autor pode, na petição inicial, indicar seu desinteresse na realização da audiência de conciliação ou mediação. É necessário, entretanto, que haja, também, o desinteresse do réu (ou de todos os litisconsortes, se for o caso), que deve formular pedido de cancelamento, na forma do inciso II do art. 335. Se essa a hipótese, o termo inicial do prazo para contestar será a data da realização do protocolo desse pedido. Se não se tratar de hipótese em que deva realizar-se a audiência de conciliação ou mediação, porque, por exemplo, a matéria não comporta autocomposição, o termo inicial do prazo obedece ao disposto no art. 231 do CPC, a saber: a data da juntada do AR aos autos; a data da juntada do mandado de citação devidamente cumprido; ou a data da própria citação quando esta se der por ato do escrivão ou do chefe de secretaria. Há duas considerações adicionais a fazer, relativamente ao prazo para contestar, na hipótese de existência de litisconsórcio passivo. A primeira relativa ao fato de que o novo Código quebra a tradição do prazo comum para a contestação dos litisconsortes passivos: agora, em havendo manifestação de desinteresse na realização da audiência de conciliação ou mediação por parte de todos os litisconsortes passivos, o termo inicial do prazo para contestar será individual e contado da data da apresentação do respectivo pedido de cancelamento da audiência. A segunda, que repete parcialmente a regra do parágrafo único do art. 298 do CPC de 1973: se não cabe autocomposição e o autor desiste da ação em relação ao réu que ainda não foi citado, o prazo para resposta começa a fluir da data da intimação da decisão que homologar a desistência. Nessa hipótese, o prazo é comum para todos os litisconsortes remanescentes, aplicando-se, se for o caso, a dobra de que trata o art. 229 deste Código, ressalvados, por expressa disposição de lei, os processos eletrônicos. O novo Código de Processo Civil determina (art. 343) que a contestação e a reconvenção sejam oferecidas na mesma peça processual. Agora, entretanto, somente será tratado da contestação, que continua regida, até com maior vigor, pela regra da eventualidade. Na contestação, há possibilidade de oferecer defesa direta e indireta. Na defesa direta, o réu responde e nega a pretensão exercida pelo autor no seu núcleo, por exemplo: "não contratei ou peguei dinheiro emprestado com a parte autora", isto é, ele nega o motivo da demanda, refuta a causa de pedir remota e a próxima, ou nega a qualificação que foi dada pelo autor na petição inicial. A qualificação em tela diz respeito à compreensão jurídica do fato supostamente ocorrido, ou de como enquadrá-lo no mundo jurídico. Em outras palavras, o fato simples, em si, pode ter ocorrido, mas a configuração dada a ele pelo autor não se ajusta ao direito porque, no entendimento do réu, a premissa maior que deve incidir é outra, não aquela eleita pelo pretenso legitimado ativo. Assim, no exemplo acima, o réu pode requalificar a entrega material dos valores pecuniários; não há discussão sobre o fato de que houve a entrega de dinheiro do autor ao réu. O autor alega haver emprestado e o réu, entretanto, alega ter havido doação. O mesmo fato, entrega de numerário, pode ser qualificado de mais de uma forma, gerando consequências diversas no mundo jurídico. Na defesa indireta, o réu admite o fato alegado pelo autor, mas opõe outro capaz de impedir a consequência pretendida pelo adversário. Por exemplo, alega que a dívida não está vencida, que foi novada, que possui recibo de quitação, que a pretensão está prescrita, etc.  Pode ser percebido que os exemplos enunciados são pertinentes ao pedido mediato, ao bem da vida perseguido. A defesa indireta, sob essa ótica, consiste na alegação de fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor. Além das defesas diretas e indiretas demérito, há outras que são de natureza meramente processual. A respeito dessas, a doutrina costuma dizer que se trata de defesas indiretas  processuais. Cabe lembrar que as defesas contra o processo são lançadas na própria contestação, em forma de preliminar, e constam no rol do artigo 337. Essas preliminares pertencem a duas ordens distintas. Umas são peremptórias (do latim perimere) e sua alegação tende a extinguir o processo. Outras, de natureza dilatória, não têm essa virtualidade; apenas visam à correção do rumo processual. Exemplo da primeira é a alegação de coisa julgada. Exemplo da segunda é a alegação de conexão de causas e de incompetência do juízo. Em primeiro plano, cabe ao réu alegar inexistência ou nulidade de citação. Citação inexistente é a citação que falta, a que não foi realizada, ou foi realizada por quem não detinha poderes para realizá-la (o filho de um juiz, por exemplo, que não seja agente do Estado), ou feita a pessoa diversa daquela indicada para recebê-la, ou que indique processo de conteúdo diverso daquele de onde se extraiu a ordem, etc. Citação nula é a citação existente, porém não formulada na conformidade de seu figurino legal, estabelecido a partir do artigo 238 do Código de Processo Civil, como por exemplo, a citação que é feita ao cônjuge do morto exatamente no dia do óbito, em ofensa ao disposto no artigo 244, II, do Código de Processo Civil. A inexistência ou nulidade de citação podem e devem ser arguidas pelo réu, comparecendo espontaneamente para fazê-lo. Dessa data, então, começará a fluir o prazo para contestar (art. 239, § 1º). Nesse caso, o réu pode apresentar toda defesa que tiver, juntamente com a alegação de inexistência ou nulidade, circunstância em que, se o magistrado reconhecer efetivamente um desses dois eventos, proclamará a tempestividade do ato praticado pelo réu. Caso contrário, este será considerado revel. Pelo inciso II do art. 337, se o réu tiver razões para crer que a ação foi aviada perante juízo incompetente (tanto faz seja incompetência absoluta ou relativa), deverá discutir a matéria antes de ingressar na questão meritória. Advirta-se, entretanto, que, se não alegar em preliminar a incompetência absoluta, poderá fazê-lo posteriormente, até porque a admissão desse tipo de incompetência é ato que o magistrado pode praticar de ofício. Diferentemente, se não alegar a incompetência relativa, neste momento processual, esta será automaticamente prorrogada, na forma do disposto no art. 65 do Código. Os arts. 291 e seguintes do Código de Processo Civil tratam das regras de fixação do valor da causa, que deve ser lançado tanto na petição inicial quanto na reconvenção. Ressalvado ao juiz o poder de corrigir esse valor de ofício, é na contestação e de forma preliminar que o réu deve arguir a incorreção do valor à causa atribuído pelo adversário, sob pena de preclusão. Sobre a inépcia da inicial, de que cogita o art. 337, IV, convém alguma detença. A petição é inepta quando contém vícios relativos ao libelo, isto é, relativos ao pedido ou à causa de pedir quais sejam: se a inicial não possuir pedido ou causa de pedir; o pedido for indeterminado (salvo se a lei autorizar a formulação de pedido dessa natureza) da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão;  ou contiver pedidos incompatíveis entre si. Se lhe falta pedido, o Estado-Juiz está impedido de acionar os mecanismos próprios da jurisdição. Com efeito, lição antiga ensina que nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos caos e formas legais. Ademais, o art. 141 dispõe que o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige iniciativa das partes. Esse fragmento legal firma a convicção de que vigora, no direito brasileiro, o princípio da disponibilidade da demanda, não sendo possível ao magistrado (i) saber qual o bem da vida que o autor pretende obter por meio da intervenção estatal; (ii) substituir-se ao autor para o fim de suprir a omissão e formular pedido em seu lugar. Ora, se assim é, não havendo pedido formulado, impossível ao magistrado acatar a petição inicial a que falte uma de suas partes fundamentais. O mesmo deve ser dito em relação à ausência de causa petendi. O Direito Processual Civil brasileiro não admite que um eventual sujeito de direitos venha a juízo formular pedido sem indicar quais as razões jurídicas que o autorizam a tanto.  É necessário que o autor indique, para que o pleito para que o pleito possua as mínimas condições de exame, o fato constitutivo de seu direito e, se for o caso, da obrigação do réu. Assim também, é necessário que a parte formule pedido certo e determinado. Para a doutrina prevalecente, formular pedido determinado é fazê-lo indicando o bem da vida da forma mais precisa possível, extremando-o de quaisquer outros. Formular pedido certo é formular pedido que não deixa margem a dúvida quanto ao que se pretende, seja em termos de qualidade, seja em termos de extensão, seja em termos de quantidade. Diversamente, acreditamos que pedido certo é o pedido formulado de forma expressa, sem a utilização de formas vagas, genéricas e destituídas de sentido exato. E o pedido deve ser expresso justamente porque não se admitem pedidos implícitos, ressalvadas as exceções indicadas no próprio Código de Processo Civil. Como consequência, para nós, a determinação do pedido engloba todas as características relativas à certeza e determinação indicadas nas anteriores lições doutrinárias. A hipótese prevista no inciso III do § 1º do art. 330 dispõe sobre a inépcia da petição inicial naquelas situações em que da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão. A questão que se coloca nesse dispositivo tem pertinência com uma espécie de congruência endógena da petição inicial. O discurso da peça de ingresso assume uma forma de (=é apresentado como se fosse) silogismo em que o autor apresenta (a) os fatos, premissa menor, (b) a regra jurídica que deve incidir no caso concreto, premissa maior, e (c) o pedido, que é a conclusão e que tem de ser absolutamente compatível com a subsunção de uma premissa na outra. Se não há essa compatibilidade lógica, o magistrado não tem como determinar o prosseguimento do feito, porque, a rigor, se trata de uma de duas coisas: (i) ou de pedido sem a correspondente causa petendi; ou de (ii) causa de pedir sem pedido, hipóteses já mencionadas no inciso I do mesmo parágrafo. Considerando que o novo código não cuidou da impossibilidade jurídica do pedido, a última hipótese de inépcia consiste no fato de a petição inicial apresentar pedidos que são incompatíveis entre si. Vale um registro importante a esse respeito. A incompatibilidade de pedidos de que aqui se cuida é somente a que decorre da chamada cumulação própria. Dizendo de outra forma, se se tratar de cumulação imprópria, seja alternativa, seja eventual, não haverá inépcia da inicial por incompatibilidade de pedidos. O raciocínio da doutrina é claro quanto ao tema: ocorre inépcia da inicial que contém pedidos incompatíveis entre si na cumulação simples, porque o autor formulou dois pedidos, quer obter provimento em relação aos dois pedidos, mas a simples leitura da petição permite verificar que o simples acolhimento de um deles implica a automática frustração, exclusão, do outro. Por exemplo, o autor pede a anulação de um testamento e, também, que lhe seja entregue um legado, decorrente do próprio testamento que quer ver anulado. Há evidente incompatibilidade absoluta entre esses dois pedidos. Diversamente ocorre com relação à cumulação imprópria. Nesse caso, apesar de o autor haver formulado mais de um pedido, sua pretensão é obter apenas um deles; então, a questão da incompatibilidade entre pedidos não se põe.  Os incisos IV, V, VI e VII do art. 337, tratam de litispendência, coisa julgada e perempção, conhecidos pressupostos processuais litisingresso impedientes, na escorreita definição adotada pelo professor CELSO NEVES, são defesas preliminares que encontram definição no próprio Código de Processo Civil: (i) quanto à perempção, diz o artigo 486, § 3º: Se o autor der causa, por três vezes, a sentença fundada em abandono da causa, não poderá propor nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa o seu direito. A perempção, assim, é a sanção processual que decorre do abandono da causa pelo autor, quando esse tipo de conduta omissiva tiver ensejado, por três vezes anteriores, a extinção do processo sem resolução de mérito. Quanto à litispendência e à coisa julgada, o próprio artigo 337 traz os elementos necessários à conceituação. O § 1o desse dispositivo identifica a ocorrência de litispendência ou de coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada, esclarecendo que uma ação será idêntica à outra quando possuir as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. Na litispendência, repete-se ação que ainda está em curso. Na coisa julgada, diz o § 4º do artigo sob comentário, repete-se ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado. Aqui, por certo, o legislador andou mal das pernas e disse mais do que deveria ter dito: enunciou conceito que compreende também a coisa julgada formal, e não só a coisa julgada material. Ora, somente a coisa julgada material (vale dizer, a coisa julgada a que se submete a sentença que resolveu o mérito) funciona como preliminar peremptória. A coisa julgada formal não obsta a que o autor promova nova ação com a mesma pretensão de direito material. A conexão, preliminar de natureza dilatória, também tem definição legal, prevista no artigo 55 do Código: reputam-se conexas duas ou mais ações, quando lhes for comum o pedido ou a causa de pedir. Se realmente a hipótese for de conexão, porque um dos dois elementos é comum às duas demandas propostas, esse evento, em tese, pode provocar o deslocamento da competência ao juízo prevento, ou seja, aquele perante o qual foi feito o registro ou da distribuição da inicial em primeiro lugar, conforme disposto no art. 59 do CPC. Incapacidade de parte, defeito de representação, ou falta de autorização de que trata o inciso IX são defeitos relativos a pressupostos processuais subjetivos. Aqui,  estão abrangidas tanto as questões relativas à capacidade de ser parte, a de estar em juízo (artigo 70 e seguintes do CPC) como também a capacidade postulatória (advogado impedido de advogar, ou advogado excluído dos quadros da OAB). A lei 9.307, de 23/9/96, alterada pela lei 13.129, de 26/5/15, institui a arbitragem, que pode ser eleita pelas partes previamente, como forma de solução de conflitos relativos a direitos disponíveis. A convenção de arbitragem tanto pode estar presente na forma de uma cláusula compromissória por meio da qual as partes comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que eventualmente possam vir a surgir relativamente ao contrato em que lavrada a referida cláusula; como na forma de um compromisso arbitral que é o ajuste por meio do qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. Se houver o ajuste pela convenção de arbitragem, as partes não poderão promover uma ação a respeito daquilo que seria objeto da arbitragem (ver, entretanto, a parte final deste comentário), a não ser que questionem a própria existência ou validade da convenção ou a nulidade da sentença arbitral, na forma do artigo 32 da lei de regência. No que concerne ao inciso XI, ausência de legitimidade ou de interesse processual, o Código manteve duas das três anteriores condições da ação a cuja ausência apelidava de carência de ação. A terceira era a possibilidade jurídica do pedido, que não foi mantida pelo novo CPC. Nesses casos, o juiz deve extinguir o processo sem resolução de mérito, a teor do disposto no artigo 485, VI, do mesmo Código. Em breves palavras, o Código tentou romper com a teoria do trinômio desenvolvida por LIEBMAN e abraçada pelo Código de 1973, mas não teve coragem suficiente para tanto. Faltou-lhe pulso para proclamar, por exemplo, que legitimidade é sempre uma questão de mérito e que não possui conteúdo processual. Falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar. Trata-se, aqui, de impedimentos processuais de que cogitam, por exemplo, os arts. 83 e 92 do Código de Processo Civil. No primeiro caso, se um estrangeiro sem bens no Brasil promove, por exemplo, milionária ação indenizatória contra a Petrobrás e vem a ser vencido na demanda, consectário natural disso é arcar com os ônus da sucumbência e pagar os honorários dos advogados. Para que a execução não seja infrutífera, há de ter sido respeitado o artigo 83 do CPC que impõe o dever de prestar caução suficiente ao pagamento das custas e os honorários. No segundo caso, dispõe o artigo 92: Quando, a requerimento do réu, o juiz proferir sentença sem resolver o mérito, o autor não poderá propor de novo a ação, sem pagar ou depositar em cartório as despesas e os honorários em que foi condenado. A impugnação à gratuidade da justiça era realizada em petição autônoma, que deveria ser apensada ao processo, na forma da Lei nº 1.060, de 1950. Referida lei teve a grande maioria dos seus artigos revogada pelo CPC atual (art. 1072) e seu conteúdo material incorporado ao Código, nos arts. 98 a 102. Dentro da filosofia implantada pelo novo Código, não mais se cuida de incidente processual e sim de mera preliminar de contestação. Quanto ao tema de arguição de preliminares, cabe o registro final de que, salvo a convenção de arbitragem (e a ausência de alegação da convenção, neste momento, implica renúncia ao juízo arbitral) e a incompetência relativa, todas as matérias enunciadas nos incisos deste artigo são de ordem pública e, de conseguinte, podem ser conhecidas de ofício pelo magistrado. Boa inovação aparece no art. 338 do novo CPC. Deveras, o Código de 1973 regulava, nos arts. 62 e seguintes, uma figura de intervenção de terceiros denominada nomeação à autoria, por meio da qual o réu em ação reivindicatória ou indenizatória buscava sua exclusão do processo (extromissão), efetuando, para tanto, a indicação do nome daquele que julgava ser o verdadeiro legitimado passivo. Ainda que não fosse a parte passiva legítima, a lei atribuía ao réu original o dever de nomear a pessoa em nome de quem detivesse a coisa demandada ou houvesse praticado o ato. Essa figura de intervenção de terceiros foi excluída do novo Código e, em seu lugar, foi instituído o procedimento de que cuidam os arts. 338 e 339 do Código de 2015. É bem de ver que, na nova regência, não se trata de extromissão apenas em ação reivindicatória ou indenizatória. A conduta cabe, agora, em qualquer tipo de ação em que o réu, ao mesmo tempo (i) não se considere legitimado passivo; e, (ii) tendo conhecimento da pessoa que realmente pode ostentar essa qualidade, faça a devida indicação nos autos do processo. Presente essa situação, o magistrado deverá abrir prazo de quinze dias para que o autor, se entender que deve aceitar a indicação (e pode não o fazer), altere a petição inicial com a substituição do polo passivo. Se assim ocorrer, ao autor será imposto o pagamento das despesas do réu excluído e dos honorários de seu procurador. Como já antecipado, o novo Código houve por bem eliminar as chamadas exceções instrumentais, dentre as quais a de incompetência relativa. Pelo novo modelo, tanto a incompetência absoluta como a relativa devem ser suscitadas como preliminar. Se for o caso (normalmente hipótese de incompetência de foro), a contestação poderá ter seu protocolo realizado no foro do domicílio do réu, sob comunicação imediata ao até então juiz da causa (que deverá decidir sobre sua própria competência para continuar ou não na direção do processo), de preferência por meio eletrônico. Cabe anotar que, no foro do domicílio do réu, pode não haver, ainda, nenhum juiz vinculado ao feito (por exemplo, nos casos de citação pelo correio). Nessa hipótese, a contestação será submetida a livre distribuição, apenas para que o juízo proceda a sua remessa ao juízo em que iniciado o processo. Se a citação ocorrer por meio de carta precatória, já terá havido distribuição ao juízo deprecado. Nessa hipótese, será conveniente que o magistrado determine que se aguarde o prazo para contestar. Uma vez juntada a contestação, com a alegação de incompetência, determinará sua remessa ao juízo deprecante. Se reconhecida a incompetência do juízo, os autos deverão retornar ao foro em oferecida originariamente a contestação, hipótese em que prevento será o juízo deprecado ou aquele ao qual a contestação foi distribuída. Delicada é a hipótese de que cuida o § 3º.  Nela, supõe-se que, ao momento da alegação da preliminar de incompetência, exista uma audiência de conciliação ou mediação designada e não realizada. Ora, já se viu que o prazo para contestar (e, evidentemente, oferecer em preliminar, a alegação de incompetência) flui após a realização da audiência antes referida ou do reconhecimento de sua inviabilidade. Assim, em tese, ao momento da contestação, não poderia ocorrer a hipótese descrita no parágrafo em referência. Como não se deve admitir a hipótese de um fragmento legal reger de um conjunto vazio, o que se pode admitir é que alguém, citado na forma do art. 334 para comparecer a uma audiência de conciliação ou mediação por ato de juiz que repute incompetente, antecipe em muito a oferta da contestação, que será apresentada antes do dies a quo para contestar, com amparo no § 4º do art. 218, que considera tempestivo o ato processual praticado antes do termo inicial do prazo. É uma solução que procura dar utilidade ao texto e ao parágrafo seguinte que, após a definição do juízo competente, defere a este a designação de nova data para a realização da audiência de conciliação ou mediação. Não se deve perder de vista, entretanto, que a solução preconizada frustra os objetivos do Código, com relação ao procedimento comum, que é justamente trazer a audiência em destaque para momento anterior à oferta da contestação e à cristalização dos rancores entre partes. Na defesa substancial ou de mérito, o réu deve lançar mão tanto das defesas diretas quanto das indiretas, isto é, tanto poderá negar a ocorrência do fato, quanto poderá requalificá-lo. Poderá admitir o fato com a exata qualificação atribuída pelo autor, mas apresentar outros, que tenham aptidão para obstar a consequência jurídica pretendida na inicial, por terem natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do direito do autor. Bem é de ver que o ato de contestar implica a necessidade, imposta pelo ordenamento processual, de que o réu se manifeste especificamente sobre os fatos agitados na petição inicial. Se assim não o fizer, poderá ocorrer a presunção de veracidade da versão apresentada pelo autor na petição inicial. Assim somente não ocorrerá se não for admissível a seu respeito a confissão, como, por exemplo, nas hipóteses previstas no art. 392 do CPC que preconiza não valer como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis. Ora, se não vale a confissão feita de modo expressão, perante o juiz do feito, com muito mais razão não caberá a presunção de veracidade dos fatos não impugnados. Também não cabe falar em presunção de veracidade se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público que a lei considerar da substância do ato. Conceda-se que essa é uma previsão de difícil ocorrência no mundo dos fatos haja vista que, antes de o juiz determinar a citação do réu para contestar, haverá de verificar a falta dos documentos indispensáveis à propositura da ação e, nessa circunstância, ao invés de determinar a citação, deverá, na forma do art.320 do CPC, abrir prazo para que o autor faça a juntada desse documento. Da mesma forma, não haverá presunção de veracidade se, apesar da ausência específica de manifestação as alegações do autor estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto. Cumpre ao réu impugnar de forma específica os fatos alegados pelo autor, sendo inviável a apresentação de contestação por negação geral, salvo se a defesa estiver sendo exercida por advogado dativo (advogado atribuído ao réu e não contratado por ele) por curador especial (em caso de incapaz que não tenha representante legal, ou cujos interesses conflitem com os daquele; ou réu preso ou revel citado por edital ou com hora certa) ou pelo Ministério Público. Nessas circunstâncias, muitas vezes, o responsável pela defesa não têm nenhum contato com o réu, e não pode, por isso mesmo, ter conhecimento dos fatos, isto é, da versão dos fatos sob a ótica do defendente. O réu, ao oferecer contestação, deve balizar-se pela já aludida eventualidade e apresentar todas as defesas que tiver, no mesmo evento. Essa necessidade se torna mais evidente quando se sabe que a regra é no sentido de que, se o réu não apresentou suas alegações sobre a matéria de fato nesse momento, não poderá mais fazê-lo, salvo se presente alguma das hipóteses deste artigo ou do art. 493, conforme será mais bem explicitado na parte final deste comentário. Assim, somente deduzirá novas alegações se (i) forem pertinentes a direito ou a fato superveniente, (ii) delas puder conhecer o juiz de ofício; (iii) por expressa disposição legal puderem ser formuladas em qualquer tempo e grau de jurisdição, como, por exemplo, a matéria prescricional de que trata o artigo 193 do Código Civil brasileiro; ou (iv) a parte demonstrar que não pôde realizar essas alegações por motivo de força maior, caso em que poderá fazê-lo até em grau de apelação, conforme dispõe o artigo 1.014 do Código de Processo Civil.  No que concerne à hipótese encartada no inciso I, é conveniente lembrar que, relativamente ao Código de 1973, houve uma espécie de elastecimento. Falava-se, antes, apenas em direito superveniente. Agora, cuida-se, também, de fato superveniente. Isso, entretanto, não altera substancialmente a equação processual, sobretudo em face das limitações impostas pela chamada estabilização objetiva do processo, de que trata o art. 329, I e II do CPC. Essa estabilização impede que um fato novo (tanto no sentido de sua ocorrência quanto no sentido de seu conhecimento pelas partes, que dele antes não puderam valer-se, como já preconizava o art. 517 do CPC de 1973) tenha aptidão para configurar alteração da causa petendi. Assim, a referência que fizemos ao art. 493 há de ser entendida, no que concerne à causa de pedir, tendo em conta a sua imutabilidade após a estabilização objetiva do processo. O fato novo há de ser conexo com os fatos que compõem a lide, mas não podem ir ao ponto de alterá-la.
Jorge Amaury Maia Nunes Desde HAMURABI a quimera de codificar e reter o Direito nos códigos habita as noites de sono dos Juristas. Não por outro motivo, obra magna de JUSTINIANO, depois conhecida como Corpus Iuris Civilis, teve o objetivo claro de, reunindo todas as normas do Direito Romano em um único corpo de leis, eliminar a balbúrdia legislativa que reinava para, dali em diante (529/533 da nossa era), bastar como fonte de aplicação do Direito, sem necessidade de ultrapassar suas fronteiras para tentar encontrar outros elementos necessários à regulação jurídica. Fora dele, não haveria nada para olhar. Constantino proibiu, assim, que contrariassem as leis que editou sob o pretexto de interpretá-las: "nós proibimos expressamente os jurisconsultos de ter a temeridade de acrescentar seus comentários e partilhar a sua confusão nesta coletânea." NAPOLEÃO BONAPARTE entrou para a História, certamente, como um personagem de lutas, de guerras e conquistas. É inegável, entretanto, que a ele muito deve o Direito Francês, em especial o Direito civil e o Direito Processual Civil. É exato afirmar que os revolucionários buscavam cortar as correntes que os ligavam ao antigo regime e todas as suas mazelas, aí incluída a sua legislação protetora das classes mais abastadas. Exatamente por isso, foram muitas as tentativas de codificação, desde os primeiros dias da revolução. Alguns projetos de CAMBACÉRÈS foram rejeitados, outros não prosperaram, e alguns outros, como o projeto JACQUEMINOT, jamais foram discutidos. NAPOLEÃO, alçado à condição de Primeiro Cônsul, em 22 do frimário do ano VIII (13 de dezembro de 1799), nomeou uma comissão para, de uma vez por todas, elaborar um projeto definitivo; TRONCHET, PORTALIS, BIGOT-PRÉAMENEU e MALEVILLE. Depois de algumas idas e vindas, o Código Civil foi finalmente aprovado em 21 de março de 1804. Logo a seguir, com o Império, o Código ganhou algumas modificações para ajustar-se ao novo modelo, foi republicado em 1807, agora sob o nome de Código de Napoleão. NAPOLEÃO tinha convicção de que seus feitos militares seriam esvaecidos com o tempo, em especial após a derrota de Waterloo, ficaria, para sua glória, o Código, mercê de seu sistema e de sua inegável clareza. No exílio, entretanto, teve ciência da obra de MALEVILLE (um dos quatro membros da comissão de elaboração do Código), primeiro comentarista da monumental obra. Ao saber dos comentários, teria afirmado: mon code est perdu! Os comentários, a interpretação, tudo levaria à destruição da lei. Esses exemplos dão conta da tentativa desenganada do legislador de estabelecer a lei à sua imagem e semelhança, expressão e instrumento de seu poder. Isso é imprevidência que não leva em conta a advertência que o Ministro do STF JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES gostava de repetir: a vida é muito mais imaginativa do que o mais hábil dos legisladores. A História mostra que o Corpus Iuris Civilis influenciou a formação do Direito de vários povos mercê das alterações e adaptações por que passou na Idade Média, com os trabalhos dos glosadores e pós-glosadores, que atualizaram um sistema jurídico de seis/sete séculos passados e permitiram, até, sua difusão por todo o mundo, especialmente pelo Ocidente. Também o Código de Napoleão mudou muito desde 1804, embora as alterações tenham sido menos significativas. A mudança é necessária para que a lei sobreviva e possa continuar a regular as relações sociais que estão em constante evolução. Deveras, a lei perfeita de hoje, se imutável, será a causadora do caos de amanhã. O Direito, especialmente o escrito, que tem horror à novidade (misoneísmo), há de mudar para manter-se. Isso, entretanto, não quer dizer que leis novas, leis recentes, já devam receber carimbos sobre a dimensão de sua aplicabilidade ou de sua não-aplicabilidade e que tracem contornos diversos daqueles claramente postos pelo legislador, como os que deverão passar a reger certo âmbito do Direito. Recentemente, veio a lume um novo Código de Processo Civil, ora em período de vacatio legis. Tanto os Maleville dos dias atuais, quanto os juízes do novo antigo regime vêm a público manifestar seu entendimento sobre a regência processual que vigorará em 18 de março do ano vindouro. O interessante é a interpretação sobre o que ainda não é eficaz, numa espécie de exercício de prognose, de futurologia. De um lado, doutrinadores dizem o que esperam seja a aplicação do novo Código. De outro, juízes afirmam os modos pelos quais entendem que devam (eles mesmos) aplicar o ordenamento processual civil de 2015. Ainda na semana passada, a ENFAM - Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados publicou sessenta e dois enunciados que bem dão a dimensão de como os juízes (mais bem dizendo, o Poder Judiciário) veem a aplicação do novo Código. Em princípio, a iniciativa é louvável, porque visa a uniformizar, no âmbito do Poder Judiciário, a forma de aplicação da Lex nova, o que implica obediência aos princípios da segurança jurídica e da isonomia, tão caros à cidadania. De outra parte, entretanto, o posicionamento ostentado em alguns dos enunciados chega a ser assustador, porque, claramente, faz-se tabula rasa daquilo que constitui o core da reforma empreendida pelo legislador nacional. Apenas a título de exemplo, cabe recordar que alguns dos princípios mais caros ao novo estatuto processual são o do contraditório democrático ou substancial (seja lá o que isso signifique) e o da não-surpresa, que se hospedam (não exclusivamente!) nos artigos 9º e 10 do novo código. Assim, não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida, e não será dada decisão, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual o juiz deva decidir de ofício. A ideia do legislador não poderia ser mais clara. Sem embargo disso, já no terceiro enunciado aprovado pela ENFAM tem-se esta redação: "É desnecessário ouvir as partes quando a manifestação não puder influenciar na solução da causa." Ora, em certo sentido, a afirmação encerra uma peculiar petição de princípio, que dá por provado o que tinha de provar, ou, no mínimo uma inversão na relação de imputação. Deveras, a não ser que se concedam aos magistrados mediúnicos poderes premonitórios (o que não se defere aos comuns mortais), não há como saber, antes da manifestação da parte interessada, se esse agir possui ou não aptidão de influir na solução da causa. O poder de influir na solução da controvérsia apresentada ao exame do Judiciário existirá, ou não, como decorrência natural dos elementos de fato aduzidos, da matéria legal e doutrinária suscitada e, agora, da matéria jurisprudencial que possa vincular o legislador. Também não merece acolhida, este outro, que é o enunciado 9 do ENFAM: É ônus da parte, para os fins do disposto no art. 489, § 1º, V e VI, do CPC/15, identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, sempre que invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula. Cabe reproduzir o texto do Código: Art. 489. São elementos essenciais da sentença: (omissis) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (I, II etc. omissis) V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no julgamento ou a superação do entendimento. Colocados sob exame conjunto o enunciado 9 e os dois fragmentos que cuidam de hipóteses em que não se considera fundamentada a decisão judicial, vê-se que a relação de pertinência é no mínimo complicada. Cindamos a análise. Consideremos, em primeiro lugar, o enunciado nº 9 em face do que dispõe o inciso V do § 1º do art. 489. O texto da lei é claro ao não considerar fundamentada a decisão que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem dar a razão por que o faz. Não há, portanto, nenhuma relação com o discurso do enunciado, que impõe à parte o ônus de identificar fundamentos determinantes de precedente ou de enunciado de súmula. Se fôssemos tentar estabelecer uma relação de correspondência, baseada na teoria dos conjuntos, entre o enunciado da lei (conjunto A), e o enunciado da ENFAM (conjunto B), o resultado seria apenas desastroso. Consideremos, agora, o enunciado nº 9 em face do inciso VI. Aqui, cogita-se que ausência de fundamentação quando o magistrado deixa de seguir enunciado de súmula ou precedente suscitado pela parte, sem dizer por que o não o segue. E poderia deixar de acolher o quanto suscitado pela parte se demonstrasse (i) a existência de distinção entre o invocado entendimento jurisprudencial e o caso em julgamento; (ii) a superação do entendimento. Ora, do exame que se faz do texto do § 1º do art. 489 não se consegue extrair algo que implique ônus da parte. Conceda-se que, por uma questão de lógica e atentos, todos nós, ao fato de que o velho brocardo indicador de que a cúria conheceria o Direito está cada vez mais em desatualizado, já para cair em completa dessuetude, temos que a parte que invoca o precedente deve fazê-lo no contexto da argumentação que traz. Quanto a isso, parece que alguma chance de salvação do enunciado do Judiciário existe, ainda que pequena. Agora, não há nenhuma hipótese em que o juiz deixe de seguir o precedente, com o dever de indicar a superação do entendimento, e possa transferir o dever de fundamentar a superação a qualquer uma das partes. Afinal, o dabo tibi ius ainda permanece. Esses são apenas dois exemplos de como se pretende tratar (ou detrimentar) o Código de Processo Civil que entrará em vigor no início do ano que vem. Da quinta dos calados, Napoleão sussurra nos ouvidos da cidadania nacional: ton code est perdu!
Guilherme Pupe da Nóbrega A supressão da admissibilidade dos recursos especial e extraordinário pelos Tribunais ordinários é um dos temas mais pujantes do Código de Processo Civil de 2015. A novidade não se fez presente no anteprojeto do novo CPC, que previa, em seu artigo 945, parágrafo único, o juízo de admissibilidade em segundo grau.1 Por ocasião da 7ª audiência pública voltada para os debates sobre a nova lei, ocorrida em Porto Alegre (RS) em outubro de 2010, houve singela sugestão, pela supressão da admissibilidade pelas Cortes ordinárias. A provocação, nada obstante, não surtiria efeito.2 Quando da conversão do anteprojeto no Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) 166/10, lá estava a admissibilidade, prevista no artigo 984, parágrafo único.3 A previsão foi mantida no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC) 8.046/10, no artigo 1.052, parágrafo único. No âmbito dessa Casa, porém, foi apresentada a emenda 825/2011, de autoria do deputado Gabriel Guimarães, que trazia como justificativas: (...) abusos vêm sendo perpetrados pelos assessores dos magistrados responsáveis; (...) Cerca de 90% dos recursos interpostos tem o seu seguimento denegado, e, na grande maioria das vezes, com base em fundamentos que não poderia ser objeto de juízo de admissibilidade; (...) Quando se deixa a cargo do Tribunal de origem a realização do juízo de admissibilidade dos recursos já mencionados, o processo fica parado, tranquilamente, por pelo menos um ano; (...)4 Cerca de 85% das decisões denegatórias são agravadas, o que mostra que não é tão eficaz assim esse método de filtragem dos recursos. A modificação proposta, nada obstante, receberia parecer contrário dos deputados Sérgio Barradas Carneiro5 e Paulo Teixeira.6 Apenas posteriormente, no âmbito de Comissão Especial, haveria a mudança7, posteriormente aprovada em Plenário. No Senado Federal, a modificação vingou, encontrando morada, na redação final da proposição, no artigo 1.030, parágrafo único.8 Não tardou a que surgissem críticas e questionamentos, notadamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ao fundamento de que a novidade teria o condão de inviabilizar ou dificultar sobremaneira os trabalhos naquelas Cortes.9 As preocupações repercutiram no Congresso, culminando em proposições legislativas tendentes a restabelecer, ainda no período de vacatio legis da lei 13.105/15, o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial em segundo grau: PLs 2.38410 e 2.468/1511, na Câmara; PLS 414/201512, no Senado Federal. De nossa parte, encaramos a supressão da admissibilidade do recurso especial e do recurso extraordinário pelos Tribunais em segundo grau é algo que tende a ser mais positivo que negativo, com todo respeito a quem possa pensar diversamente. Muitos foram os números apresentados de um lado e de outro a fim de defender as diferentes posições: há quem demonstre numericamente que grande quantidade de recursos são represados em segundo grau (isto é, inadmitidos por decisão que acaba não sendo atacada por agravo); há quem sustente, lado outro, também com números, que a esmagadora maioria dos recursos inadmitidos acaba subindo ao STJ e ao STF de qualquer maneira, via interposição de agravo. Não há, ao menos segundo as pesquisas que nossas limitações permitiram fazer, números confiáveis e definitivos que demonstrem de forma clara e em âmbito nacional qual a taxa de recorribilidade de decisões de inadmissibilidade de recurso especial e recurso extraordinário. Sem embargo disso, não se vislumbra na mudança proposta pelo CPC/2015 os efeitos nefastos projetados pela parcela a ela contrária. A percepção deste escrito, na verdade, é a de que o projeto político do novo Código é no sentido de substituir aqueles filtros de admissibilidade por "filtros de mérito". Explica-se: haverá, sim, barreiras que impedirão a subida indiscriminada de recursos. Essas barreiras, contudo, não mais se prenderão a requisitos formais e processuais, privilegiados em inadmissibilidade muitas vezes banalizada. Os óbices passam, em verdade, a um fortalecimento dos precedentes, que ganham eficácia vinculante de uma vez por todas no novo Código. Ilustra-se o que se quer dizer: afetado um recurso especial como paradigma de controvérsia repetitiva, poderá haver a suspensão de todos os processos que versarem sobre o tema, na forma do artigo 1.037, II, CPC/2015. Esses processos, obviamente, por estarem suspensos, não subirão ao STJ. Uma vez julgado o paradigma, eventuais recursos especiais que estivessem sobrestados, aguardando o julgamento do paradigma, terão negado seguimento, na forma do artigo 1.040, I, do CPC/2015. Se o processo ainda estiver em primeiro grau, poderá haver a desistência pelo autor, a teor do artigo 1.040, § 1º. São esses, também, processos que podem acabar sendo extintos por ali mesmo, sem subir ao STJ e ao STF. Para que se tenha uma ideia, em recente pesquisa realizada no sítio eletrônico do STJ, já havia 673 temas de recursos repetitivos julgados, 21 temas em julgamento e 72 temas já afetados, mas sem julgamento iniciado. São temas, sobre os quais há diversos processos, em que já há entendimento consolidado no STJ, consolidação essa que, por meio da dinâmica dos recursos repetitivos, funcionará como barreira à subida de casos idênticos, como dito anteriormente. O mesmo poderá acontecer em segundo grau, com o incidente de resolução de demandas repetitivas. Afetado caso paradigma, haverá a suspensão dos processos que, naquele Estado ou região, versarem sobre o tema, consoante o artigo 982, I. Julgado o incidente, a solução dada será replicada aos casos idênticos, na forma do artigo 985, I e II. Aqui, também, mais um filtro que terá o condão de impedir uma infinidade de processos de chegar ao STJ e ao STF. Essa maior valorização dada aos repetitivos, bem assim o novo instituto do incidente de resolução de demandas repetitivas repercutirão, ainda, na primeira instância, com a objetivação das hipóteses de improcedência liminar presentes nos incisos II e III do artigo 332, mais outro filtro possível. Ficam evidentes as barreiras criadas em primeiro (improcedência liminar) e segundo (repetitivos e IRDR) graus, que eliminarão muitos dos processos. Fica clara, ademais, a opção legislativa: aos casos repetidos serão aplicados os entendimentos consolidados; quanto aos casos inéditos, que se evitem os riscos de eles não chegarem ao STJ e ao STF por conta de uma desarrazoada inadmissibilidade pelos Tribunais ordinários. Daí por que a eliminação do juízo de admissibilidade em segundo grau. A semente que se busca plantar é no sentido de reforçar a previsibilidade jurídica nos casos repetitivos (o que, se espera, redunde numa menor litigiosidade e recorribilidade), ao mesmo tempo em que se pretende uma prestação jurisdicional efetiva quanto aos chamados leading cases. Por essas razões é que são encaradas com ressalvas as tentativas legislativas de restaurar a admissibilidade em segundo grau. Quando não pelos motivos antes aduzidos, pelo fato de elas representarem um recuo em mudança ocorrida ao longo de tramitação que não se deu de afogadilho e que ainda nem sequer produziu efeitos que permitam mais bem analisá-la, positiva ou negativamente. Não se ignora que, num primeiro momento, a supressão da admissibilidade dos recursos especial e extraordinário em segundo grau possa gerar um aumento na remessa de recursos ao STJ e ao STF; no médio e longo prazo -- e para isso é feito um Código --, é o que pensamos, tenderá a prevalecer o intento do legislador de barrar casos repetitivos e facilitar o trânsito de matéria inédita. Reconheça-se, nada obstante, que o tema é complexo e instigante, e a ele poderemos retornar, eventualmente. _____________ 1 Disponível em clique aqui. 2 "Que o juízo de admissibilidade do RE/REsp seja feito exclusivamente pelo tribunal competente para o julgamento da causa. Facilitaria a atuação dos advogados não radicados em Brasília, bem como diminuiria o número de recursos, evitando o agravo de instrumento contra a inadmissibilidade pelo juízo a quo". Disponível em clique aqui. 3 Disponível em clique aqui. 4 Disponível em clique aqui. 5 Disponível em clique aqui. 6 Disponível em clique aqui. 7 O registro é feito por BUENO, Cassio Scapinella. Projetos de Novo Código de Processo Civil Comparados e Anotados. Senado Federal PLS n. 166/2010 e Câmara dos Deputados PL n. 8.046/2010. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 498. 8 Disponível em clique aqui. 9 Clique aqui e aqui. 10 Disponível em clique aqui. 11 Disponível em clique aqui. 12 Disponível em clique aqui.
Guilherme Pupe da Nóbrega O CPC/1973, em seu rito ordinário, tinha na audiência preliminar, presidida pelo juiz, primeira oportunidade formal voltada para a tentativa de composição entre as partes. A audiência de conciliação ou de mediação no limiar do processo é "novidade"1 trazida pelo CPC/2015 que visa a estimular a autocomposição em fase processual em que os ânimos ainda não estejam tão acirrados - porque ainda não apresentada a contestação pelo réu -, que ocorre não perante o juiz, mas, sim, perante conciliador/mediador2, em ambiente menos formal e intimidador e mais propício ao desarme de espíritos. Cuida-se de inovação a favorecer o chamado sistema multiportas3, bem presente a ideia de que, sendo várias as veredas possíveis rumo à solução do conflito, deve o Judiciário, sim, ser o meio alternativo, subsidiário para dirimir controvérsias. Tamanha importância estabeleceu a realização da audiência como regra a encontrar apenas duas exceções: se os direitos envolvidos não admitirem composição ou se, tendo o autor já manifestado desinteresse na inicial, o réu, até dez dias antes da audiência, igualmente expressar que não pretende conciliar. É o que dispõem os incisos I e II do § 4º do artigo 334, CPC/2015. A fim de viabilizar a manifestação, pelo réu, sobre seu virtual desinteresse, a sua citação deve ocorrer com no mínimo vinte dias de antecedência em relação à data designada (artigo 248, § 3º, CPC/2015). Na hipótese de litisconsórcio unitário, o desinteresse deve ser manifestado por todos os litisconsortes (artigo 334, § 6º, CPC/2015); sendo simples o litisconsórcio, o desinteresse é manifestado autonomamente, adotado como termo inicial da contestação de cada litisconsorte a data do protocolo da respectiva petição pela não-realização (artigo 335, § 1º, CPC/2015). A regra de que a audiência ocorre antes da contestação também comporta flexibilização. A primeira exceção é trazida pelo artigo 331, § 1º, que dispõe que, indeferida liminarmente a petição inicial, e provida apelação interposta pelo autor contra a sentença terminativa, o prazo para contestação será contado da intimação, em primeiro grau, do retorno dos autos. É dizer, volvidos os autos ao primeiro grau, será o réu intimado - já houve a citação para oferta de contrarrazões - para contestar e, apenas em seguida, designada, se o caso, audiência de conciliação ou de mediação, já com a defesa ensartada aos autos. A segunda exceção consta do artigo 340, § 4º, CPC/2015, que dispõe que o réu, aduzindo a incompetência do juízo em preliminar, poderá apresentar sua contestação perante o foro de seu domicílio. Nessa hipótese, a defesa será remetida pelo juízo em que protocolizada ao juízo perante o qual tramita o processo, sendo suspensa a realização de audiência eventualmente já designada. Ato contínuo, apreciada a alegação de incompetência, sendo ela acolhida, será definitivamente cancelada a audiência previamente designada pelo juízo incompetente e designada nova data pelo juízo competente; sendo rejeitada a incompetência, nova data é designada pelo juízo, se necessário. Na situação trazida pelo artigo 340, § 4º, CPC/2015, perceba-se que o réu, que deve suscitar incompetência em contestação, pretende evitar o comparecimento à audiência no foro incompetente - por vezes distante de seu domicílio -, e, assim, "antecipa-se" e apresenta contestação a fim de invocar a incompetência. Nesse caso, em que a contestação antecede a audiência designada pelo juízo incompetente, o enfrentamento da defesa processual invocada pelo réu em preliminar de contestação finda por subverter a lógica estabelecida pelo CPC/2015: haverá audiência de conciliação ou de mediação perante o juízo reconhecido competente após a apresentação de contestação pelo réu. Firme no propósito de buscar a composição, o CPC/2015 estabelece a criação de centros de conciliação e de mediação no âmbito dos tribunais, prevendo a capacitação de conciliadores e de mediadores. Admite o Código, ainda, que as próprias partes indiquem a figura do conciliador ou do mediador ou que a audiência se realize por videoconferência (art. 236, § 3º, CPC/2015)4. O reforço é dado, ainda, pelo prazo mínimo de vinte minutos entre as audiências e pela possibilidade de que se realize mais de um encontro, em havendo necessidade para que se ultime a composição. O não-comparecimento de quaisquer das partes atrai sanção pecuniária por ato atentatório ao exercício da jurisdição5. A razão de ser da multa é de evitar o esvaziamento da audiência como instituto e, ao mesmo tempo, punir a parte que ignora a designação do ato processual e a mobilização de todo um aparato visando à composição das partes. A sanção é justificada, ademais, pelo fato de não servir o ódio pessoal como justificativa: a parte pode se fazer representar no ato processual por pessoa com procuração específica outorgando poderes para transigir (artigo 334, § 10, CPC/2015). Surge natural dúvida: qual o sentido de "forçar" a audiência quando uma das partes manifesta seu desinteresse? Sendo possível, no CPC/2015, a realização de mais de uma audiência voltada para a tentativa de conciliação, que celeridade seria trazida pela inovação? Premissa a merecer atenção é o fato de que o estímulo à autocomposição pelo CPC/2015 tem no desafogamento da Justiça ou na celeridade jurisdicional mera consequência. O que se visa, mais, é a que as partes - auxiliadas por seus advogados, que devem se fazer presentes - assumam a tarefa de resolver seus entreveros, participando ativamente da solução que, por isso mesmo, tenderá a ser "mais legítima". Dito de outro modo, o investimento que se pretende fazer na conciliação - e é este um dos projetos políticos do CPC/2015 - mira, sobretudo, seu potencial replicador: logrando êxito em determinada composição, as partes envolvidas na solução, dali pra frente, tendem a absorver a cultura conciliadora incutida pelo ordenamento, criando-se terreno fértil para que, a médio e longo prazo, o Judiciário vá sendo gradativamente abandonado como único meio para apaziguar conflitos. Nas hipóteses em que realizada a audiência de conciliação ou de mediação, atingida a composição em seu bojo, o juiz a homologa por sentença que põe fim ao processo, resolvendo o mérito (artigo 487, III, CPC/2015); inocorrendo audiência, ou sendo essa realizada, mas não se atingindo a composição, prossegue o processo para as respostas do réu, a etapa seguinte da fase postulatória. __________ 1 Nem tão novidade assim: a Constituição Federal de 1824 trazia em seu artigo 161 a previsão de que "Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum"; o artigo 16 da lei 9.099/1995, no procedimento especial dos Juizados Especiais Cíveis, a exemplo do rito sumário no antigo CPC/1973, dispõe que o réu é citado não para oferecer resposta, mas para comparecer a audiência de conciliação; o artigo 625-A da Consolidação das Leis do Trabalho prevê, ainda, as comissões de conciliação prévia como tentativa de composição anterior à instauração do processo. 2 O conciliador e o mediador são figuras que ganham proeminência no CPC/2015, recebendo atenção especial dos artigos 165 a 175. 3 A terminologia é atribuída a Frank Sander, professor de Harvard que em 1976 proferiu discurso na Roscoe Pound Confference sobre a insatisfação popular com a administração da justiça intitulado "Varieties of dispute processing". MOFFIT, Michael L. Special Section: Frank Sander and His Legacy as an ADR Pioneer. Before the Big Bang: The Making of an ADR Pioneer. In: Negotiation Journal, Outubro, 2006. Disponível em clique aqui. Conferir ainda: SANDER, Frank E.A. Varieties of Dispute Processing. In: The Pound Conference. 70 Federal Rules Decisions 111, 1976. 4 Já há notícia de conciliação promovida por meio do aplicativo Whatsapp - clique aqui. 5 Diferentemente do anterior procedimento sumário no CPC/1973, o comparecimento passa a ser encarado como dever em vez de encargo (lembrando que a consequência da não-desincumbência de encargo é uma situação de desvantagem. No caso do CPC/1973, essa desvantagem decorria eventualmente dos efeitos oriundos da revelia resultante do não-comparecimento, consoante o artigo 277,§ 2º, CPC/1973).
terça-feira, 18 de agosto de 2015

Litisconsórcio no CPC de 2015: quid novum?

Jorge Amaury Maia Nunes Indagar sobre novidades no CPC de 2015, em uma língua que muitos consideram morta, pode parecer um absurdo, uma contradição, uma tolice. Tudo bem, mas isso serve para demonstrar que o Direito codificado não vive somente da regência para o futuro. Seus institutos dependem de sedimentação, experimentação social. Precisam envelhecer e aprender. Aqui, o doutrinador pode identificar, sem receio de ser diferente em relação a outras áreas de conhecimento, processos de experimentação comumente conhecidos pelo binômio tentativa/erro. Por isso, percebemos que, às vezes, o novo não é tão novo assim. Muda-se a regência, altera-se o procedimento, burila-se a redação do texto legal, de sorte a atualizar um velho instituto e torná-lo mais consentâneo com os tempos de hoje, mais eficaz, mais utilizável e, até, mais ajustável ao sistema que se crê existir. Assim ocorre com o litisconsórcio no Código de Processo Civil que entrará em vigor daqui a alguns meses. Litisconsórcio, do latim litis + cum + sors, etimologicamente significa "os que têm a mesma sorte na lide". No Direito Processual moderno, dizemos que há litisconsórcio quando, em uma relação jurídica processual, um ou dois polos possuem mais de um sujeito. Ex.: dois autores e um réu; um autor e dois réus, ou duas ou mais pessoas no polo ativo e duas ou mais pessoas no polo passivo. Quando a pluralidade de partes se dá do ponto de vista dos autores, dizemos que há litisconsórcio ativo; quando se dá do ponto de vista dos réus, dizemos que há litisconsórcio passivo; quando se dá em ambos os polos da relação, dizemos que há litisconsórcio misto. No que concerne à formação de litisconsórcio, três circunstâncias podem ou devem autorizá-la: algumas vezes, as pessoas, embora não estejam obrigadas a tanto, optam por promover em conjunto um ação contra adversário(s) comum(ns); outras vezes, a lei impõe que haja litisconsórcio; outras, ainda, a própria natureza da relação jurídica que é trazida a juízo impõe a presença de mais de um sujeito o vale dizer que o litisconsórcio é necessário. Na primeira hipótese, tem-se o litisconsórcio facultativo (e.g., uma ação de indenização contra o proprietário de uma empresa de transportes terrestres, cuja causa de pedir está centrada em um único acidente automobilístico que vitimou todos os autores. As partes podem promover, se o quiserem, ações individuais contra o transportador; mas podem formar litisconsórcio, valendo-se de uma única relação processual para aviar seus pedidos). Nas duas últimas hipóteses, tem-se o litisconsórcio necessário. Ou porque a lei impõe a sua formação (v.g, nas ações de usucapião, o artigo 246, § 3º do CPC, que trata da citação, dispõe que deverão ser citados pessoalmente, os confinantes; outros eventuais interessados serão citados por edital, na forma do art. 259, I); ou porque a natureza da relação jurídica o exige (e.g., uma ação declaratória de nulidade de casamento: casaram-se duas pessoas com impedimento absoluto para casar entre si. O Ministério Público - a tanto legitimado pelo artigo 1549 do Código Civil brasileiro - somente poderia promover a ação contra ambos os cônjuges, sendo inadmissível e, até, inimaginável, que o fosse apenas contra apenas um deles. Trata-se de litisconsórcio necessário, porque a própria natureza da relação jurídica controvertida impõe a sua formação). Quanto à decisão a ser proferida no processo, o litisconsórcio pode ser: simples - as partes que estão litisconsorciadas em certo polo podem receber diferentes decisões, sem que isso ofenda a lógica do Direito; unitário - nessa modalidade, o magistrado, pela natureza da relação jurídica controvertida, deve dar uma decisão de mesmo teor para as partes que estejam litisconsorciadas. Em outras palavras, a parte vai receber a mesma decisão que for proferida em relação àquela com a qual esteja em posição de litisconsórcio. Por exemplo, na já suscitada ação de declaração de nulidade de casamento, ou bem haverá nulidade tanto em relação a João como em relação a Maria, ou bem o pedido será julgado improcedente em relação a ambos. Nesse último caso, dizemos que o litisconsórcio é necessário e unitário. Cabe notar que a dicção do Código de Processo Civil de 1973 a respeito do tema litisconsórcio não é exatamente a melhor. Deveras, dispõe o art. 47: Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica (incindível), o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. Ora, da leitura do dispositivo, percebe-se que o legislador, ao tentar conceituar o litisconsórcio necessário, acabou embaralhando a espécie com a do litisconsórcio unitário, que cabe em outra classificação. O necessário, que se opõe, ao litisconsórcio facultativo, tem como ponto de partida classificatório a obrigatoriedade ou não da sua formação. O unitário, que se opõe ao simples, tem como critério classificatório a sentença a ser proferida no processo. São, pois, dois critérios distintos, que foram encambulhados no mesmo dispositivo legal. Da leitura do art. 47, nota-se que somente a parte inicial (quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica) tem pertinência com o litisconsórcio necessário. A parte subsequente (o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes), ainda que com imperfeições, cabe na conceituação de litisconsórcio unitário, mas não na de necessário, haja vista que, nessa modalidade, o magistrado não é obrigado a decidir de modo uniforme. O Código de 2015 foi, no particular, mais preciso, ao dispor, verbis: art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes. O legislador desfez, assim, a confusão que se estabelecera. Cuidou, no artigo acima, apenas do litisconsórcio necessário e deixou o tratamento do litisconsórcio unitário para o art. 116, que tem esta redação: Art. 116. O litisconsórcio será unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes. Até aqui, só elogios ao Código, que tratou de litisconsórcio necessário e unitário em dois dispositivos distintos (art. 114 e 116), distinguindo com facilidade um de outro. Agora, a crítica. Do ponto de vista da regência legislativa, esses dois dispositivos deveriam ser seqüenciados. O legislador, entretanto, interpolou, no artigo 115, regras relativas a vicissitudes da sentença dada em processo em que haja ou devesse ter havido litisconsórcio, e o faz nestes termos: Art. 115. A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será: I - nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo; II - ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados. Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo. Ora, muito mais lógico teria sido regrar o litisconsórcio unitário no art. 115 e deixar para o 116 a regência das vicissitudes da sentença, até porque a hipótese versada no in. I, do art. 115, pressupõe que já se tenha conhecimento do litisconsórcio unitário. O pecado, de natureza meramente topológica, não é grave, mas deve ser apontado. O litisconsórcio pode, também, ser classificado com base no momento de sua formação: Litisconsórcio inicial - forma-se no início do processo. Já na petição inicial é indicada a presença de mais de um sujeito em dos polos, ou em ambos, da relação processual. Litisconsórcio ulterior - forma-se posteriormente. Em dado momento do fluxo do processo acrescentam-se partes em um ou em ambos os polos da relação, ou espontaneamente, ou mediante determinação do magistrado, quando for o caso de litisconsórcio passivo necessário, na forma do art. 115, parágrafo único do Código de Processo Civil. Quando, entretanto, a hipótese for de litisconsórcio ativo facultativo, a jurisprudência tem sido recalcitrante em admitir a formação ulterior, impondo que deva acontecer no momento do ajuizamento da demanda. Quase no mesmo sentido do entendimento jurisprudencial, a nova Lei do Mandado de Segurança, dispôs, no § 2º do art. 10, que o ingresso do litisconsorte ativo não será admitido após o despacho da petição inicial. Em ambas as hipóteses, vê-se clara a preocupação com a preservação do princípio do juiz natural. Regra geral, o litisconsórcio facultativo está regulado, no Código de 2015, pelas disposições do art. 113, nestes termos: Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;II - entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir;III - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito. Corrigiu, o novo Código, uma espécie de relação de continência entre as hipóteses tratadas nos incisos II e III, do art. 46 do Código de 1973 e o fez simplesmente eliminando o texto do então inciso II. Com efeito, quando se dizia, no inciso II, que: "cabe litisconsórcio quando os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito", é certo que se estava expressando uma situação contida no inciso II do novo Código, que, de teor mais abrangente, consagra também essa hipótese, quando prevê o cabimento do litisconsórcio quando entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir. Com efeito, o que caracteriza o litisconsórcio pela causa de pedir é justamente o fato de duas ações decorrerem do mesmo fundamento de fato (eadem factum) ou de direito. Nada diferente disso. Na hipótese do inciso III do art. 113, do novo Código (quando ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito), diferentemente do que dissemos em relação ao inc. III, não se trata de eadem factum, mas, sim, de factum simile. Questões, aqui, significam os elementos que devem ser apreciados para a resolução da causa, elementos que, sem ser os mesmos, são idênticos, iguais, parecidos. Com relação a essa hipótese de formação do litisconsórcio, adverte PONTES DE MIRANDA: "Se há afinidade de questão jurídica ou de fato, o litisconsórcio é chamado facultativo impróprio. Tem de estabelecer-se por acordo expresso ou tácito dos litigantes. É um litisconsórcio convencional sem que se pré-exclua a possibilidade de se começar o processo somente por uma parte, ou por mais litisconsortes, a que os outros se juntem por adesão, segundo os princípios da declaração unilateral de vontade aplicáveis ao chamamento explícito ou implícito do proponente ou dos proponentes em ação. Observe-se que esse litisconsórcio, à diferença dos demais, não traz determinação de competência. É preciso que a competência do Juízo exista por si mesma, para a cumulação subjetiva.1 Quadra consignar que o § 1º do art. 113 consagra uma espécie de recusabilidade da formação do litisconsórcio nestes termos: O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, na fase de conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento de sentença. O § 2º do mesmo artigo dispõe: O requerimento de limitação interrompe o prazo para manifestação ou resposta, que recomeçará da intimação da decisão que o solucionar. Sempre nos pareceu que a fórmula final (que vem do Código de 1973), interrupção do prazo para manifestação ou resposta como decorrência do pedido de limitação do número de litisconsortes, pode dar margem a chicanas de toda ordem, De fato, não é desprezível a especulação no sentido de que certos advogados possam requerer ao juiz que seja recusada a formação do litisconsórcio no polo ativo, apenas para obter a interrupção do prazo para resposta, que voltará a fluir por inteiro, após a intimação da decisão que deferir ou indeferir o requerimento. No que concerne à posição dos litisconsortes no procedimento processual, o legislador procurou tratar da matéria em duas regras distintas, verbis: Art. 117. Os litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos, exceto no litisconsórcio unitário, caso em que os atos e as omissões de um não prejudicarão os outros, mas os poderão beneficiar. O texto do novo Código é superior ao do art. 48 do Código de 1973, na medida em que excepciona de incidência da regra geral (consideram-se litigantes distintos) as hipóteses de litisconsórcio unitário, providência de que não cuidou o legislador anterior. No mais, o art. 49 do Código anterior (que não gerou nem gerará maior problema de aplicação ou interpretação) veio repetido de forma integral no art. 118 do NCPC, litteris: Art. 118. Cada litisconsorte tem o direito de promover o andamento do processo e todos devem ser intimados dos respectivos atos. Caberia aqui uma palavra sobre a exótica figura do assistente litisconsorcial que, no Código de 1973, é regulada no art. 54. No novo Código, a assistência passou a ser tratada topologicamente como uma figura de intervenção de terceiros, conforme regulado no art. 124 do CPC, in verbis: Art. 124. Considera-se litisconsorte da parte principal o assistente sempre que a sentença influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido. É certo que, pela redação do artigo acima transcrito, quando se diz "considera-se litisconsorte" é porque de litisconsorte não se trata, e, sim, uma figura híbrida, entre o assistente e o litisconsorte. A ideia, entretanto, não deveria prevalecer e poderia ter sido expungida do novo Código. Esse hibridismo, diria Ovídio Batista da Silva, seria o mesmo que demonstrar a quadratura do círculo. Na verdade, hipóteses de assistência litisconsorcial terminam por figurar situações de formação de litisconsórcio ulterior. A assistência litisconsorcial, no que concerne à redação do art. 124, sofreu pequena alteração para pior em relação à regência anterior. O novo Código excluir o verbo haver que constava da redação do art. 54 do Código de 1973, que fazia todo o sentido no contexto: "toda vez que a sentença houver de influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido". Isso é o correto e não: "toda vez que a sentença influir". De fato, no momento da admissão da assistência litisconsorcial, o que se sabe é que a futura sentença poderá vir a influir, mas não se sabe se ela efetivamente influirá! ____________ 1 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973. t. II, p. 28.
Guilherme Pupe da Nóbrega Questão importante diz respeito à discussão acerca da possibilidade de controle incidental de constitucionalidade pelo Superior Tribunal de Justiça. Partindo da premissa de que o recurso especial possui efeito translativo1, e de que (in)constitucionalidade de norma é matéria de ordem pública2, posiciono-me pela possibilidade do controle pelo STJ. Curioso, então, é analisar possível impacto do novo CPC nesse debate: vencidos pressupostos de admissibilidade, seria viável para o STJ adentrar exame atinente à constitucionalidade de norma? O Código de Processo Civil de 2015 trouxe, no caput de seu artigo 1.034, a seguinte norma: Art. 1.034. Admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça julgará o processo, aplicando o direito. Em leitura açodada, seria possível concluir que a norma se limita a positivar a súmula 456 do Supremo Tribunal Federal e o artigo 257 do regimento interno do Superior Tribunal de Justiça. Em verdade, contudo, o dispositivo vai além e traz ganho de qualidade para o ordenamento ao mais bem esclarecer que a aplicação do direito à espécie abarca "todas as questões de fato e de direito relevantes para a solução do capítulo impugnado", fortalecendo o papel do STF e do STJ como Cortes de revisão. Há, atualmente, divergência doutrinária sobre o alcance do "direito aplicável." Didier, Barbosa Moreira, Nery Jr., Câmara, Athos Gusmão Carneiro e Bernardo Pimentel defendem ampla liberdade para os Tribunais; Scarpinella Bueno, Eduardo Yoshikawa e Gleydson Oliveira limitam o julgamento à competência constitucional das Cortes.3 Também a leitura conferida aos dispositivos é divergente no STJ e no STF: nesse, o "aplicar o direito à espécie" permite adoção de fundamentos outros que não adotados pela decisão recorrida, muito embora não inviabilize a remessa dos autos à instância ordinária para que essa o faça4; já o STJ costuma ir além, reconhecendo efeito devolutivo amplo ao especial, inclusive para conhecimento de matéria de ordem pública não prequestionada, como a que demanda controle de constitucionalidade.5 Embora se reconheça, com certa dose de ceticismo, que a previsão do novo CPC dificilmente porá termo à discussão, por certo que deixa mais bem evidenciada uma opção legislativa que milita em favor de um amplo efeito devolutivo conferido ao especial e ao extraordinário, o que, segundo pensamos, abarca, mesmo, a análise da constitucionalidade, questão de ordem pública, pelo STJ.6 Tem-se ainda, por outro lado, inovação trazida pelo CPC de 2015 em seus artigos 1.032 e 1.033, na redação final da Câmara dos Deputados: Art. 1.032. Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional.Parágrafo único. Cumprida a diligência de que trata o caput, o relator remeterá o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que, em juízo de admissibilidade, poderá devolvê-lo ao Superior Tribunal de Justiça. Art. 1.033. Se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial. Trata-se de previsão de fungibilidade entre recurso especial e extraordinário, surgida como forma de se evitar exatamente a situação narrada pelo ministro Luís Felipe Salomão no REsp 1.334.097, quando o STJ se abstém de julgar o mérito recursal ao argumento de que não pode se imiscuir no contencioso constitucional, ao passo que o STF, ao deparar com o recurso extraordinário interposto concomitantemente, afirma haver mera "ofensa reflexa" à Constituição. O dispositivo traz ainda outra vantagem: por conta do óbice inserto na súmula 126 do STJ, por vezes, a parte recorrente, vislumbrando matéria constitucional no acórdão recorrido - e, como salientado também pelo ministro Luís Felipe Salomão, é cada vez mais difícil abandar os demais ramos do direito do direito constitucional -, a fim de se precaver contra o não-conhecimento do especial, interpõe especial e extraordinário, ainda que não haja, in casu, controvérsia constitucional pungente. Com a nova norma, a parte limitará a sua irresignação ao recurso que efetivamente entende cabível. Analisado o mérito recursal, caso o STJ entenda haver, subjacente ao enfrentamento do recurso, matéria de competência do STF, fará a conversão do especial em extraordinário, abrindo prazo para aditamento quanto à repercussão geral e, em seguida, remetendo o apelo ao STF. A indagação que surge é se a alteração fortalece ou enfraquece a possibilidade de controle difuso pelo STJ, debate que há muito se estende. Segundo este trabalho, a mudança não influencia a possibilidade de o STJ, ao julgar o especial, analisar, incidentalmente, matéria constitucional, desde que o exame, como dito, seja incidental. Isso porque, levada a norma ao extremo, toda questão infraconstitucional será, em alguma medida, constitucional, e, então, todo recurso especial seria convolado em extraordinário, o que não parece ser a intenção do legislador. Por outro lado - e nisto a mudança seria positiva, sobretudo em razão de o entendimento não ser tranquilo no seio do STJ -, caso aquela Corte entenda que a questão, mais que incidental, se transmuda em principal, ao invés de não conhecer do recurso ao argumento de que a Corte não se imiscui no contencioso constitucional por faltar-lhe competência, poderá remeter a matéria ao STF, fortalecendo a prestação jurisdicional. Assim, o objetivo é mitigar aparente conflito negativo de atribuições que possa vir a existir entre o STJ e o STF: um dos dois órgãos haverá, necessariamente, de dar uma resposta à pretensão do jurisdicionado. Mais: a fungibilidade não deixa de fazer um caminho de volta à origem comum dos recursos especial e extraordinário, espécies do gênero recurso extraordinário lato sensu. A crítica acessória que se faz, todavia, é quanto à ausência de previsão de que após o aditamento do recurso pelo recorrente, para inclusão da preliminar de repercussão geral, não seja oportunizado ao recorrido o aditamento de suas contrarrazões, o que, segundo penso, frustra o contraditório recursal, fato esse que ainda não parece ter sido percebido pela doutrina. Condensando a argumentação formulada até aqui, concluo para reconhecer ao recurso especial efeito translativo. Mais: em razão do referido efeito, é possível ao STJ, em sede de recurso especial, conhecer de matéria de ordem pública, mesmo não prequestionada, aí incluído exame incidental de inconstitucionalidade. Penso assim porque não faria sentido, sistematicamente falando, somente não reconhecer a possibilidade de controle incidental ao STJ ou impor, àquela Corte, a aplicação de norma inconstitucional: o argumento de que a competência do STJ é prevista constitucionalmente falece quando se presta a chancelar violação à própria Constituição. A despeito de alguma controvérsia ainda no âmbito do STJ, entendo que o novo Código de Processo Civil fortalece o papel do Tribunal como Corte de revisão e mais bem explicita o que seja "aplicar o direito à espécie", admitindo o enfrentamento de todas as questões "relevantes", o que abarca eventual exame incidental de inconstitucionalidade. Por fim, no que toca à fungibilidade, a despeito de aparentemente chancelar atecnias por se tratar, especial e extraordinário, de recursos de fundamentação vinculada, penso que, em razão de situações em que o STJ se abstém de enfrentar matéria constitucional e o STF entende que ofensa seria eminentemente reflexa, a mudança vem como remédio que previne a frustração na entrega da jurisdição. ______________ 1 Nesse sentido, Egas Dirceu Moniz de Aragão, José Frederico Marques, Paulo Henrique dos Santos Lucon, Fredie Didier Jr. A compilação foi feita por NOLASCO, Rita Dias. Aspectos polêmicos dos recursos cíveis. In: Série Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. Coord. Nelson Nery Jr. e Tereza Arruda Alvim Wambier. V. 10. São Paulo: RT, 2006, p. 485-486. Ainda: MELLO, Rogério Licastro Torres de. Atuação de ofício em grau recursal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 253. 2 MELLO, Rogério Licastro Torres de. Atuação de ofício em grau recursal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 256-257. No mesmo sentido: "sempre que, legitimamente, o exame da constitucionalidade se apresente útil ou conveniente para a decisão da causa, não devem os tribunais fugir à tese." MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 373. Ainda: SLAIBI FILHO, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 141. 3 Compilação, com citações, feita por ARAÚJO, Luciano Vianna. A aplicação do direito à espécie pelas Cortes Superiores: uma opção legislativa do projeto do Novo CPC? In: Novas Tendências do Processo Civil. Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Vol. 3. Salvador: JusPodium, 2014, p. 222-226. 4 Por todos, recentíssimo acórdão proferido nos EDcl no AgRg no RE 346.736, Segunda Turma, rel. Min. Ayres Britto, DJ de 18.6.2013: "3. Esse "julgamento da causa" consiste na apreciação de outros fundamentos que, invocados nas instâncias ordinárias, não compuseram o objeto do recurso extraordinário, mas que, "conhecido" o recurso (vale dizer, acolhido o fundamento constitucional nele invocado pelo recorrente), passam a constituir matéria de apreciação inafastável, sob pena de não ficar completa a prestação jurisdicional. Nada impede que, em casos assim, o STF, ao invés de ele próprio desde logo "julgar a causa, aplicando o direito à espécie", opte por remeter esse julgamento ao juízo recorrido, como frequentemente o faz." 5 Feita novamente a ressalva quanto aos precedentes da Corte Especial, já citados neste trabalho, que exigem o prequestionamento, arestos turmários, recentes, têm afastado a exigência, permitindo "aplicar o direito à espécie" inclusive para exercer controle de constitucionalidade: "1. Esta Corte não pode conhecer do recurso especial por violação de dispositivo da Constituição da República, mas nada a impede de interpretar norma constitucional que entenda aplicável ao caso para chegar à conclusão do julgado. Trata-se de aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça-RISTJ e da Súmula 456 do STF." Segunda Turma, AgRg no REsp 1.164.552, rel. Min. Castro Meira, DJ de 15.12.2009. No mesmo sentido: Segunda Turma, EDcl no nos EDcl no REsp 1.051.802, rel. Min Castro Meira, DJ de 23.6.2009. 6 Acena nesse sentido recente aresto emanado do STJ: "De fato, o que se veda é o conhecimento do recurso especial com base em alegação de ofensa a dispositivo constitucional, não sendo defeso ao STJ - aliás, é bastante aconselhável - que, admitido o recurso, aplique o direito à espécie, buscando na própria Constituição Federal o fundamento para acolher ou rejeitar a violação do direito infraconstitucional invocado ou para conferir à lei a interpretação que melhor se ajusta ao texto constitucional." (STJ, Quarta Turma, REsp 1.334.097, rel. Min. Luís Felpe Salomão, DJ de 10.9.2013)
Jorge Amaury Maia Nunes Temos lido e repetido que o sistema recursal, no mundo jurídico conhecido, serviu como instrumento de fortalecimento do detentor do poder político. Centralização ou distribuição de poder eram contempladas conforme as circunstâncias do momento. Quanto mais autoridade quisesse demonstrar e exercer o detentor do poder político, mais hipóteses recursais de sua própria competência ele instituía. Quanto menos precisasse demonstrar poder, mais restringia as hipóteses recursais. Se é certo que o recurso de apelação aparece como tal no período romano da extraordinaria cognitio, também o é o fato de que praticamente nesse mesmo momento surge a distinção entre sentença definitiva e interlocutio. Com efeito, assegura-se que, no tempo dos severos (entre 193 d.C e 235 d.C.), quando a sentença passou a ser proferida por um funcionário do Estado (e não mais por um iudex privatus) dela passou a caber o recurso de apelação. No mesmo tempo, o mesmo recurso passou a ser admitido se uma decisão interlocutória fosse proferida pelo funcionário do Estado. Ainda, porém, no baixo-império, ocorreu a proibição de apelar contra as interlocuciones, em várias constituições dos imperadores, procedimento que veio a consolidar-se no tempo de Justiniano. De maneira diversa, o Direito Canônico admitia o cabimento de apelação no curso do juízo, antes, portando da sentença definitiva. Concebia-se a apelação, então, em duas espécies, conforme fosse tirada antes ou depois da sentença definitiva (de acordo com as Decretaes de Gregório IX), situação que perdurou até ao século XVI, quando o Direito Canônico (Concílio de Trento) passou a ajustar-se ao direito secular e a vetar a apelação antes da sentença definitiva, salvo se a interlocutória tivesse força de definitiva (e como esse conceito teve força no mundo jurídico, desde então!). No Direito Português, antes do período das Ordenações, mais precisamente no período que coincide com a criação e reconhecimento do Reino de Portugal, como nação independente, nas leis herdadas da Espanha (Fuero Juzgo), criou-se uma espécie de competência para os bispos de Deus julgarem decisões dos juízes que julgassem "torto" contra os povos. Assevera MOACYR LOBO DA COSTA1 que a fonte dessa regra pode ter sido a Novela 86 de Justiniano, na qual o imperador estabeleceu que se o juiz cometesse uma injúria contra alguém, no curso de um processo, o que se sentisse agravado poderia ir ao Bispo (provavelmente, daí advém a expressão "vá queixar-se ao Bispo") que poderia corrigir o malfeito, deixando, porém, ao Imperador, a última palavra sobre o castigo que deveria ser infligido ao julgador que não observasse o comando do clérigo. A partir do Século XIII, Portugal começou a cortar o cordão umbilical que o ligava à legislação herdada da Espanha, havendo D. Afonso III, em seu reinado (1248 a 1279) estabelecido regras de processo, dentre as quais a que dava competência ao próprio rei para julgar as apelações das sentenças definitivas. Já em fins do século XIV, o Livro das Leis e Posturas (provavelmente a mais antiga coletânea de leis portuguesas, consoante magistério de MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA2) previa a autorização para apelação de todas as sentenças, quer fossem elas definitivas, quer fossem interlocutórias. Essa regra foi confirmada pelo sucessor, D. Dinis, sexto rei de Portugal. Com D. Afonso IV, a processo sofreu uma guinada. Ao que parece, descobriu-se que a apelação das decisões interlocutórias servia para procrastinar maliciosamente as demandas (tão contemporâneo, tão atual!), razão por que o rei editou lei determinando que somente fossem permitidas apelações de sentenças interlocutórias nos casos em que essas possuíssem força de definitiva, porque, após proferidas, não havia como proferir outras, ou se, uma vez proferida, gerasse dano que não pudesse ser reparado pela sentença definitiva. Se o agravo sofrido pela parte não coubesse nessas duas exceções somente poderia ser reparado durante o julgamento da apelação da sentença definitiva, sendo certo, entretanto, que o próprio juiz poderia revogar, a qualquer tempo, a sentença interlocutória que houvesse proferido, tanto ex officio quanto a requerimento da parte agravada. Provavelmente o não-acatamento, pelo juiz, do pedido de revogação da sentença interlocutória, deve ter sido a origem do agravo de instrumento. Se o juiz não quisesse revogar a sentença interlocutória, a parte que fosse agravada pela decisão, poderia apresentar queixa ao rei (querimas ou querimônias). Nas ordenações Afonsinas, em diversas passagens, encontra-se a expressão estormento d'agravo como hábil para narrar os percalços infligidos à parte pela decisão do juiz que não quis reformar a sentença interlocutória. Assevera, porém, MOACYR LOBO DA COSTA que o agravo de instrumento, tal como se o concebe, somente surgiu nas Ordenações Manoelinas de 1521. As Ordenações Filipinas, de 1603, preservaram a regência dos agravos, sendo clara a tendência que teve para hiperdimensioná-los. Desnecessário lembrar que as Ordenações Filipinas foram largamente empregadas no Brasil e, também, mesmo após a independência, constituíram a nossa primeira legislação processual. Conhecemos, por isso, àquele tempo, cinco modalidades de agravo: agravo ordinário, agravo de ordenação não guardada, agravo de instrumento, agravo de petição e agravo no auto do processo. Após a independência, a disposição provisória acerca da administração da justiça civil, de 1932, estabeleceu que os agravos de petição e de instrumento e de petição ficam reduzidos a agravos no auto do processo, deles devendo conhecer o juiz de direito, se interpostos do juiz municipal, e a Relação (tribunal), se a decisão tiver sido proferida por juiz de direito.3 Com o advento do Regulamento 737, inicialmente uma espécie de Código de Processo Comercial, que teve, posteriormente, seu âmbito de vigência material estendido às causas cíveis, foi extinto o agravo no auto do processo. Mantidos foram o agravo de petição e o agravo de instrumento (o critério distintivo entre ambos os recursos era geográfico, e medido em léguas. Se o juízo prolator da decisão agravada estivesse dentro de um raio de cinco léguas da instância superior, o agravo era de petição; caso contrário, o agravo seria de instrumento), cabíveis em dezessete hipóteses expressamente especificadas no art. 669 do mencionado regulamento. Na consolidação de Ribas, foi mantida a exclusão do agravo ordinário e do agravo de ordenação não guardada. Não cabe, neste curto espaço, o exame do agravo nos códigos estaduais, sendo certo alinhar, entretanto, a afirmação de que alguns deles foram pródigos em criar hipóteses de cabimento desses recursos. O Código Nacional de 1939, fruto do trabalho de Batista Martains, pugnava pelo princípio da oralidade, o que, em tese, teria o condão de eliminar, em vasta dimensão, a necessidade de recursos dessa natureza. Sem embargo disso, havia previsão numerus clausus para o cabimento dos recursos de agravo (de instrumento, de petição e no auto do processo), dispondo o art. 842: Além dos casos em que a lei expressamente o permite, dar-se-á agravo de instrumento das decisões: I, que não admitirem a intervenção de terceiro na causa; II, que julgarem a exceção de incompetência; III, que denegarem ou concederem medidas requeridas como preparatórias da ação; IV - que receberem ou rejeitarem "in limine" os embargos de terceiro. V, que denegarem ou revogarem o benefício de gratuidade, VI, que ordenarem a prisão; VII, que nomearem ou destituírem inventariante, tutor, curador, testamenteiro ou liquidante; VIII, que arbitrarem, ou deixarem de arbitrar a remuneração dos liquidantes ou a vintena dos testamenteiros; IX, que denegarem a apelação, inclusive de terceiro prejudicado, a julgarem deserta, ou a relevarem da deserção;; X, que decidirem a respeito de erro de conta ou de cálculo; XI, que concederem, ou não, a adjudicação, ou a remissão de bens; XII, que anularem a arrematação, adjudicação, ou remissão cujos efeitos legais já se tenham produzido; XIII, que admitirem, ou não, o concurso de credores, ou ordenarem a inclusão ou exclusão de créditos; XIV. Que julgarem ou não a prestadas as contas; XV, que julgarem os processos de que tratam os Títulos XV a XXII do Livro V, ou os respectivos incidentes, ressalvadas as exceções expressas; XVI, que negarem alimentos provisionais; XVII, que, sem caução idônea, ou independentemente de sentença anterior, autorizarem a entrega de dinheiro ou quaisquer outros bens, ou a alienação, hipoteca, permuta, sub-rogação ou arrendamento de bens. O agravo de petição caberia das decisões que implicassem a terminação do processo principal, sem lhe resolver o mérito, O agravo no auto do processo caberia das decisões: que julgassem improcedentes as exceções de litispendência e coisa julgada; II - que não admitissem a prova requerida ou cerceassem, de qualquer forma, a defesa do interessado; III - que concedessem, na pendência da lide, medidas preventivas; IV - que considerassem, ou não, saneado o processo. O Código de 1973 rompeu com a longa tradição do sistema recursal brasileiro e eliminou a especificação numerus clausus das hipóteses de cabimento do recurso de agravo. Criou regra geral que permitia o aviamento de agravo de instrumento sempre que se tratasse de decisão interlocutória. Não havia mais a especificação das hipóteses de cabimento. Ao mesmo tempo, o legislador eliminou o agravo de petição contra as sentenças terminativas e o agravo no auto do processo. Para a hipótese antes cuidada via agravo de petição o recurso cabível passou a ser o recurso de apelação. Com o passar do tempo, e de forma exótica, passaram a ser criados agravos regimentais (como se regimentos de tribunais fossem o veículo adequado para criação de recurso), até que o próprio legislador Federal passou a criar esses recursos, agora apelidados de agravos internos. O agravo no auto do processo não teve um correspectivo exato, mas é comum dizer-se que foi substituído pelo agravo retido, que, nos últimos tempos de vida do Código de 1973, adquiriu uma importância absoluta, destronando, em certo sentido, o agravo de instrumento. O novo Código de 2015, no art. 994, cuida de três espécies de agravo: agravo de instrumento; agravo interno, e agravo em recurso especial ou extraordinário. A ideia é retomar parcialmente a tradição e acabar com o costume de recorrer de toda e qualquer decisão interlocutória que se fixou com o Código de 1973. Para esse fim, o legislador de 2015 fixou no § 1º do art. 1009, que as questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões. Para bem fixar esse entendimento, deixou especificadas: Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: I - tutelas provisórias; II - mérito do processo; III - rejeição da alegação de convenção de arbitragem; IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica; V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação; VI - exibição ou posse de documento ou coisa; VII - exclusão de litisconsorte; VIII - rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio; IX - admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução; XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1o; XII - (VETADO); XIII - outros casos expressamente referidos em lei, como, por exemplo, contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que acolher pedido de sua revogação; da decisão que extinguir parcialmente o processo, ou que julgar parcialmente o mérito. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário. O rol dos documentos que devem compor o instrumento de agravo vem mais bem especificado no art. 1.017, nestes termos: Art. 1.017. A petição de agravo de instrumento será instruída: I - obrigatoriamente, com cópias da petição inicial, da contestação, da petição que ensejou a decisão agravada, da própria decisão agravada, da certidão da respectiva intimação ou outro documento oficial que comprove a tempestividade e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado; II - com declaração de inexistência de qualquer dos documentos referidos no inciso I, feita pelo advogado do agravante, sob pena de sua responsabilidade pessoal; III - facultativamente, com outras peças que o agravante reputar úteis. Além disso, acompanhará a petição o comprovante do pagamento das respectivas custas e do porte de retorno, quando devidos, conforme tabela publicada pelos tribunais. É certo, porém, que o legislador processual, seguindo a ideia que informou toda a estrutura do novo código, de aproveitamento ao máximo dos atos processuais, já deixou evidenciado que, diferentemente do que hoje ainda ocorre, a falta de qualquer peça que deva compor o instrumento, ou a existência de outra espécie de vício, não implica, de plano, a inadmissibilidade do agravo. Impõe-se, antes, a concessão de prazo para que o recorrente corrija o vício ou complemente a documentação exigida. Bendita legislação, que não cultua a forma pela forma e que reconhece a necessidade de privilegiar a matéria de fundo, verdadeiro tema da jurisdição. ________ 1 Estudos de História do Processo: Recursos. São Paulo: Fieo e Joen Editora, 1996, p., 143. 2 História do Direito Português, Coimbra: Almedina, 3ª. Edição, 1996, p. 266. 3 Essa regência teve fim com o advento da Lei 261, de 1841, sendo que o agravo de ordenação não guardada foi novamente expungido do nosso ordenamento em 1842.
Guilherme Pupe da Nóbrega Rodrigo Frantz Becker1 O Código de Processo Civil de 2015 trouxe dispositivo que introduziu no diploma processual uma técnica de julgamento "inovadora". Por essa técnica, no julgamento da apelação, do agravo de instrumento ou da ação rescisória, se não se obtiver unanimidade, será ele suspenso, e prosseguirá apenas com a presença de outros julgadores, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, até então obtido antes da suspensão. Cuida-se de técnica que objetiva fazer valer o voto minoritário, de modo a garantir que esse voto não seja apenas uma dissidência, mas uma efetiva posição que mereça uma análise por um maior número de julgadores. No código de 1973, essa ampliação do julgamento, guardadas pequenas diferenças de procedimento, é provocada por instituto específico, catalogado como espécie recursal: os embargos infringentes. Os embargos infringentes (art. 530, CPC/73) têm (ou tinham?) o intuito de, em novo julgamento, com ampliação do colegiado, fazer prevalecer o voto minoritário, vencido em decisão embargada na qual a maioria haja provido apelação para reformar sentença ou na qual tenha sido julgado procedente pedido em ação rescisória. O CPC/15, é bem verdade, extinguiu os embargos infringentes como espécie recursal, mas inseriu dispositivo no artigo 942 que impediu a extinção da essência daquele recurso2. Em verdade, o novo CPC foi além, elastecendo, em relação aos CPC/73, as hipóteses em que haverá necessária ampliação do julgamento: o caput do artigo 942, diferentemente dos embargos infringentes, não restringe a "técnica de ampliação do julgamento" à apelação que haja reformado a sentença, o que abre brecha para que a apelação julgada de forma não-unânime para manter a sentença também atraia o julgamento por colegiado ampliado; também se prevê no mesmo artigo 942, de forma inovadora, julgamento ampliado no caso de agravo de instrumento quando houver reforma da decisão agravada que haja enfrentado mérito. Essa manutenção de um "julgamento ampliado" ou de um "julgamento em "etapas sucessivas", que funciona como uma espécie de confirmação do acórdão em determinadas hipóteses, causa especial estranheza, sobretudo porque desde o anteprojeto do CPC/15 propugnava-se pela extinção dos embargos infringentes, ponto pacífico no âmbito da Comissão de Juristas.3 Transformado o anteprojeto no PLS 166/10, foi mantida a supressão (art. 907).4 Quando da tramitação do então ainda projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados (PL 8.046/10), porém, o debate surgiu. No parecer do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, há a menção de que teria havido "muitos pedidos de retorno dos embargos infringentes ao projeto", e que a justificativa seria a de que com o recurso "prestigia-se a justiça da decisão, com a possibilidade de reversão do julgamento, em razão da divergência". O relator na Câmara dos Deputados reconheceu, por outro lado, a existência de argumentos favoráveis à extinção do recurso. A solução por ele proposta, então, teve cunho político, adotando-se uma espécie de meio-termo que buscou garantir "à parte o direito de fazer prevalecer o voto vencido, com a ampliação do quórum de votação, e, de outro, acelera[r] o processo, eliminando um recurso."5 Posteriormente, o parecer definitivo no âmbito da Câmara dos Deputados, apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira, encampou as razões e a proposta feita pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro, mantida a "técnica de julgamento" como solução intermediária.6 Retornando o projeto ao Senado Federal, a técnica de julgamento (apelidada de "embargos infringentes automáticos") foi amplamente discutida e, em um primeiro momento, afastada pelo relatório do Senador Vital do Rêgo, aprovado no Senado Federal em 27 de novembro de 2014, sob as seguintes razões: Apesar de louvável preocupação do dispositivo com o grau de justiça do julgamento colegiado em sede de apelação, ele incorre em um excesso que merece ser podado. É que a parte derrotada nessa instância poderá, ainda, reivindicar reanálise do pleito na via dos recursos excepcionais, respeitadas as limitações objetivas das instâncias extraordinárias. E mais. Problemas de alocação de desembargadores em órgãos fracionários dos tribunais surgiriam, dada a necessidade de convocação de novos julgadores para complementação de votos. Na prática, "poderia haver estímulo à alteração dos tribunais, a fim de que os órgãos fracionários passassem a contar com pelo menos cinco julgadores, o que, sem ampliação do número total de membros da Corte, implicaria redução no número de órgãos fracionários e, por extensão, da capacidade de julgamento do Tribunal.7 Entretanto, por ocasião da votação definitiva do projeto, optou-se por reinserir o dispositivo que exigia unanimidade nos julgamentos em apelação, rescisória e agravo de instrumento, sob pena de se aplicar a técnica regulada no art. 942 do CPC/15. Voltou a ideia que deveria ter desaparecido. Os embargos infringentes foram extirpados do rol do art. 994, mas a sua essência retornou como "técnica de julgamento", inserida no título que antecede a parte recursal propriamente dita e que trata da "ordem dos processos nos Tribunais". A alocação da norma não foi sem sentido. A inovadora técnica de julgamento não é recurso por ausência de voluntariedade, na medida em que o julgamento será suspenso para convocação de dois outros juízes, independentemente da vontade das partes. Pode-se dizer, sem erro, que se trata de uma técnica a ser aplicada de ofício, imperativamente, pois não há margem para que a parte renuncie ao direito de ver o voto minoritário prevalecer; ela é impelida a aceitar a técnica. Daí porque a técnica foi excluída da parte recursal, despida do manto dos embargos infringentes, e realocada, in natura, no título preparatório aos recursos. O novo endereço da norma, porém, não a desnatura: possui a técnica de julgamento - ou qualquer outro nome que se queira lhe dar - o gene dos embargos infringentes. Mas por que essa substituição, aparentemente inócua? Como adiantado brevemente, houve tentativas de se justificar a necessidade da técnica de julgamento por razões assim sintetizadas: (i) prestígio à justiça da decisão e possibilidade de reversão; (ii) valorização da divergência; (iii) baixa incidência dos embargos de divergência, substituídos agora por uma técnica mais célere. Nenhuma dessas razões, contudo, se sustenta. O que é, em primeiro lugar, "justiça da decisão"? Ainda que a tal técnica de julgamento propicie a reforma, a decisão, que poderá passar a ser "justa" para o vencedor, se tornará injusta para o sucumbente, que certamente buscará as instâncias extraordinárias. É dizer, mesmo o julgamento por colegiado ampliado não confere à decisão nenhuma garantia de justiça, do contrário nem sequer haveria necessidade de se prever recursos contra essa decisão aos Tribunais Superiores. Ademais, o que parece ser mais eficiente a fim de que se busque a tal justiça da decisão ou a sua reversão: a revisão pela instância ad quem (efeito devolutivo do gênero recurso extraordinário) ou um julgamento, ampliado, horizontal, no âmbito da mesma instância prolatora da decisão que se reputa "injusta"? Em nosso sentir, a primeira hipótese. Quanto ao argumento da valorização da divergência, faria ele, talvez, algum sentido no CPC/73. No CPC/15, porém, a divergência já é valorizada sem que se faça necessária a tal técnica de julgamento: na forma do artigo 941, § 3º, o "voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento." A divergência, pois, subsidiará o exame do recurso interposto à instância ad quem, mantida a possibilidade de reversão sem que se imponha "escala" horizontal obrigatória. Ao revés, o risco é que a nova técnica de julgamento mascare a divergência. Explica-se: segundo levantamento feito por Marcelo Navarro Ribeiro Dantas8, 31 (trinta e um) dos 32 (trinta e dois) Tribunais da Justiça Comum (Federal e Estadual) não possuem cinco Desembargadores em suas câmaras/turmas, o que quer dizer que a cada vez que a técnica de julgamento houver de ser adotada, será necessário importar Desembargadores de outros colegiados, que igualmente estarão sujeitos àquela mesma técnica de julgamento, dependendo, também, de Desembargadores de outros órgãos, e assim sucessivamente. Não é exagero então imaginar que, por ocasião do julgamento da ação rescisória, da apelação ou do agravo de instrumento os colegiados, por uma questão de preservação da viabilidade dos trabalhos, passem a preferir a prolação de decisões unânimes, ainda que com ressalva de entendimento pessoal diverso, apenas para evitar a necessidade de ampliação do colegiado e postergação do julgamento definitivo. Finalmente, quanto à baixa utilização dos embargos infringentes, o motivo, ao invés de justificar a manutenção de sua essência, foi razão determinante justamente para sua extinção. A técnica de julgamento, ademais, aparenta trazer ganho mínimo em termos de celeridade (não haverá, apenas, o prazo recursal dos embargos infringentes e nem prazo para contrarrazões), sabido que, de fato, o que consome o tempo do processo é o prazo até que se julgue o recurso com ampliação do colegiado. Por todas essas razões, o sentimento que fica é que a técnica de julgamento prevista no artigo 942 do CPC/15 foi solução política que desvirtuou instituto jurídico, desvirtuação essa que tende a trazer novo problema em momento em que a novel legislação se prestaria a resolver problemas antigos. ___________ 1 Advogado da União. Mestrando em Direito pela UNB. Professor de Processo Civil na ESA/OAB-DF e no IMAG-DF. Coautor do livro "Direito Processual Civil - Série Advocacia Pública", da editora Método. Conselheiro Seccional da OAB-DF. 2 Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores. § 1º Sendo possível, o prosseguimento do julgamento dar-se-á na mesma sessão, colhendo-se os votos de outros julgadores que porventura componham o órgão colegiado. § 2º Os julgadores que já tiverem votado poderão rever seus votos por ocasião do prosseguimento do julgamento. § 3º A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em: I - ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença, devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno; II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito. § 4º Não se aplica o disposto neste artigo ao julgamento: I - do incidente de assunção de competência e ao de resolução de demandas repetitivas; II - da remessa necessária; III - não unânime proferido, nos tribunais, pelo plenário ou pela corte especial. 3 Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil : anteprojeto / Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. - Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010, p. 27. Disponível em clique aqui. Acesso em 18/3/15. 4 Clique aqui. Acesso em 18/3/15. 5 Parecer do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, p. 57. Disponível em clique aqui. Acesso em 18/3/15. 6 Parecer do Deputado Paulo Teixeira, p. 60. Disponível em clique aqui. Acesso em 18/3/15. 7 STRECK, Lênio Luiz, O que é isto - Os novos embargos infringentes? Uma mão dá e a outra... (Clique aqui) 8 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. A problemática dos embargos infringentes no projeto do novo Código de Processo Civil. In: FREIRE, Alexandre et. al. (org.). Novas tendências do processo civil. Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodium, 2013, p. 727-738.
terça-feira, 21 de julho de 2015

A regência dos recursos no novo CPC (Parte II)

Dando prosseguimento à abordagem da parte geral dos recursos no Código de Processo Civil de 2015 (lei 13.105), privilegiando, naturalmente, as mudanças trazidas pela novel legislação, iniciamos esta segunda parte pelo artigo 9951, que dispõe sobre como deve ser entendido, doravante, o efeito suspensivo relativamente aos recursos cíveis. Em regra, costuma a doutrina dizer que os recursos possuem efetivo devolutivo, suspensivo, regressivo ou de retratação, expansivo, translativo e substitutivo (obviamente, estão misturados, aí, efeitos da recorribilidade, da interposição e do julgamento dos recursos). Segundo Barbosa Moreira2, diz-se que um recurso tem efeito suspensivo quando impede a produção imediata dos efeitos da decisão. O mesmo processualista indica que não se trata apenas de impedir a execução imediata, pois há provimentos constitutivos e declaratórios, os quais não comportariam execução, que também podem ser impugnados por recurso que possuem efeito suspensivo. Dessa forma, ressalvada exceção contida na lei, a suspensividade abrangeria toda a eficácia da decisão, além de sua eventual força como titulo executivo. O efeito suspensivo é uma qualidade não propriamente do recurso, mas sim da particular recorribilidade, que tem a aptidão de adiar a produção dos efeitos da decisão impugnada, mesmo antes da interposição do recurso e que perdura até que se encerre o ciclo do julgamento do recurso interposto. Dizia-se, com razão, que, sob a égide do Código de 1973 a regra era a suspensividade dos recursos. Para a sua exclusão, haveria a necessidade de existência de norma expressa. Nesse sentido, Barbosa Moreira adverte que a regra, na matéria, é a suspensividade, como, aliás, ressumbra do tratamento dado, no particular, à apelação. Por conseguinte, sempre que o texto silencie, deve entender-se que o recurso é dotado de efeito suspensivo, conclusão reforçada pela leitura contrario sensu do artigo 497. Décadas atrás, Ovídio Baptista3 esclarecia que a tendência do direito moderno consistia em restringir os recursos com efeito suspensivo e que essa tendência não estava sendo seguida pelo direito pátrio. A necessidade de respeito à celeridade e efetividade do processo (sem prejuízo da segurança) pugnava por que a suspensividade ope legis cedesse passo à suspensividade ope judicis, tema que frequentou as discussões legislativas travadas durante a tramitação do projeto de código, ora transformado em lei. O novo código não chegou a adotar a atribuição da suspensividade ope judicis, mas, ao menos, inverteu os termos da questão. Pela regência do art. 995, percebe-se que, agora, a regra é a ausência do efeito suspensivo. Esse somente incidirá se houver regra expressa, que é o que ocorre, por exemplo, com o recurso de apelação. Houve necessidade de que o art. 1009 dissesse, expressamente, que aquele recurso possui efeito suspensivo. O parágrafo único do artigo 995 trouxe regra de atribuição de efeito suspensivo a recurso que o não possui, desde que presente o periculum damnum irreparabile e demonstrada a probabilidade de provimento do recurso. Já era regra constante no art. 558 do Código de 1973, no Título X, Capítulo VII, Da Ordem dos Processos no Tribunal, que, entretanto, falava em "relevância da fundamentação". Agora, de maneira topologicamente mais bem posta, frequenta o Título II, Capítulo I, que cuida das disposições gerais sobre recursos. Bem é de ver que, com outra redação, o dispositivo comparece de forma abundante no § 4º do art. 1012, que cuida especificamente do recurso de apelação. A norma inserta no artigo 1.003, de sua vez, encambulhou, no caput e parágrafos, temas relativos aos prazos recursais: duração do prazo, formas de intimação quanto aos prazos, sujeitos intimáveis, regras sobre contagem de prazo, formas por meio das quais se considera satisfeito o ônus dentro do prazo, etc. Ainda que o artigo pareça extremamente detalhista e procedimentalista, assim o é justamente para evitar dúvidas a respeito do tema. Com relação ao caput, nele restou fixado o entendimento de que a contagem do prazo deve ser feita a partir da data em que os detentores de capacidade postulatória são intimados da decisão. Dentre esses, nenhuma dúvida pode existir no que concerne aos advogados, à Advocacia Pública, à Defensoria Pública ou ao Ministério Público são intimados da decisão. Os primeiros são a própria encarnação, no Direito brasileiro, da capacidade postulatória. Os demais são órgãos que exercem a atividade institucional do agir em juízo e cuja intimação é sempre pessoal e na pessoa de algum de seus membros a tanto legitimado. Quanto à intimação da sociedade de advogados, não nos pareceu de boa técnica sua inserção no caput. Sociedades de advogados não advogam. O que talvez tenha querido dizer o legislador (e que poderia ser lançado em um parágrafo) foi que a intimação feita à sociedade de advogados estende seus efeitos, para fins de contagem de prazo, aos advogados que a integrem, tenham sido, ou não, nominados na publicação. Pela nova regência da matéria, o prazo para interposição dos recursos cíveis foi quase que totalmente unificado. Com efeito, ressalvados os embargos de declaração, que hão de ser opostos no prazo de cinco dias (art. 1023), os demais recursos serão interpostos e respondidos no prazo de quinze dias. Cabe recordar, aqui, que, por força do disposto no art. 219, para efeito de contagem dos prazos processuais, sejam legais ou judiciais, devem ser computados apenas os dias úteis; mais bem explicitando, apenas os dias em que normalmente ocorre funcionamento do foro (v.g., sábado é dia útil, mas não deve ser considerado para fins de contagem de prazo processual, por força do disposto no art. 216). Os feriados que ocorram no meio do prazo devem ser descontados. Bem por isso, reza o § 6º do artigo que o recorrente tem o ônus de comprovar a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso. Já a jurisprudência dos tribunais superiores assim o exigia, mesmo antes da existência de norma positivada. Muito mais razão o Judiciário terá, agora, para fazê-lo. Quanto ao tema, convém, aqui, mencionar a evolução da jurisprudência pátria. Em um primeiro momento, o STJ entendeu que a comprovação de feriado local, ou de não funcionamento do foro, deveria ocorrer mediante a oferta de documento idôneo, já no ato da interposição do recurso. Mais recentemente, entretanto, o STJ passou a entender que essa demonstração pode ocorrer a posteriori, até por ocasião da oposição de agravo regimental (AREsp 538914, DJ de 11/11/14). O art. 1006 não trouxe diferenças substanciais em relação ao art. 510 do Código de 1973. Mais analítico, entretanto, teve oportunidade de elucidar certas questões que, vem por outra, assombravam os militantes do Direito. Fala-se, agora, em "certificado o trânsito em julgado" e fica claro que a respectiva certidão há de fazer menção expressa à data em que ocorreu o trânsito. Com efeito, uma coisa é a data da certidão e outra, diversa e mais importante, é a data do trânsito em julgado. É essa que importa, por exemplo, para a fixação do dies a quo do prazo para a propositura da ação rescisória de que cogita o art. 966 deste Código. Parece que no artigo sob análise deveria haver a menção a dois prazos: (i) o primeiro, para a certificação do trânsito em julgado: (ii) o segundo, para providenciar a baixa dos autos ao juízo de origem. O constante ao final do texto legal, somente contempla a segunda necessidade. Quanto à primeira, deve ser forrada de toda a cautela por parte do escrivão ou secretário. É certo que deve ser, também, prazo de cinco dias. A questão complexa, entretanto, é encontrar o dies a quo da contagem do prazo, máxime porque o escrivão ou secretário, no caso, atuará independentemente de despacho. Explica-se: a decisão transita em julgado quando (a) ainda que cabível o recurso, não foi ele interposto; (b) já não cabe nenhum recurso. Ora, o servidor do Judiciário não tem nem deve ter atribuição para afirmar que o recurso X ou Y é ou não cabível, na situação tal ou qual, principalmente nas hipóteses em que se vislumbre a possibilidade de interposição de um recurso de fundamentação vinculada. Ademais, se interposto um recurso, aparentemente incabível, não pode nem deve o servidor (que tenha essa compreensão sobre o descabimento) certificar o trânsito em julgado. Deve, isso sim, fazer a conclusão dos autos ao detentor da jurisdição, que é quem tem competência para deliberar a esse respeito. Assim, embora o prazo para certificação do trânsito em julgado seja de cinco dias, na forma do art. 228 do Código, é conveniente que o servidor aguarde a fluência do prazo normal dos recursos, que é de quinze dias, para, somente após e sem que tenha sido interposto recurso, certificar o trânsito em julgado. Após a certificação começará a correr o prazo para providenciar a baixa dos autos ao juízo de origem. O art. 1007, de sua vez, cuida, de forma exaustiva, do chamado preparo, que, na lição de Barbosa Moreira consiste no pagamento prévio das despesas relativas ao processamento do recurso. Deve ser prévio e comprovado no momento da protocolização da petição recursal, a não ser motivo relevante impeça o recorrente de cumprir a exigência legal como, por exemplo, a falta de coincidência entre os expedientes forense e bancário. Na Justiça Federal, que possui legislação específica a respeito do recolhimento do preparo, a parte pode comprovar o pagamento no prazo de cinco dias (art.14 da lei 9.289/96). É certo que, em algumas circunstâncias, a exigência do preparo não se faz presente. Deveras, há certas hipóteses de dispensa de preparo, fundadas ora em critério objetivo, ora em critério subjetivo. São exemplos de dispensa de preparo fundada em critério objetivo: os embargos de declaração (art. 1023 do Código) e os recursos interpostos em processos regidos pela Lei n. 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, por força do seu artigo 198, I. No processo eletrônico, é dispensado o pagamento do porte de remessa e de retorno, mas não o valor do preparo. Exemplos de dispensa de preparo fundada em critério subjetivo são os recursos interpostos pelo Ministério Público, União, Estados e Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias, na forma do § 1º do artigo em análise, e também pelos beneficiários da justiça gratuita. À irregularidade no cumprimento da exigência formal do preparo (por insuficiência) a lei comina a pena de deserção. A sanção não será aplicada sem que antes seja oportunizado à parte que lhe complemente o valor no prazo de cinco dias. Sob a égide do Código de 1973, a ausência de comprovação da realização do preparo resultava na inadmissibilidade do recurso, já que operada a prec1usão consumativa do direito de recorrer, de nada adiantando a posterior apresentação da guia de recolhimento do preparo após a interposição do recurso, ainda que essa interposição tivesse sido realizada antes da exaustão do prazo para recurso. Com a nova regência da matéria, antes da aplicação da pena de deserção, pela não comprovação do recolhimento, deve ser o recorrente intimado, na pessoa de seu advogado, para realizar o recolhimento em dobro do preparo, inclusive porte de remessa e retorno. Na hipótese de equívoco no preenchimento da guia de custas, que atemorizava a advocacia, não mais implicará a imediata aplicação da pena de deserção, cabendo ao relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de cinco dias. Quanto à assistência judiciária gratuita, já decidiu o STJ que obstar a subida de agravo de instrumento desacompanhado da guia de recolhimento do porte de remessa e retorno, tendo sido interposto o recurso especial (inadmitido ao fundamento da deserção) justamente para discutir o desacolhimento do pedido de gratuidade da justiça, importa usurpação de competência; e também que, havendo pedido de gratuidade da justiça como preliminar de recurso, este não pode ser julgado deserto antes de analisado o referido pedido, e, no caso de não-acolhimento, antes que seja oportunizado à parte o recolhimento do preparo (RESP 440.007, DJ de 19/12/02). Cabe um apontamento adicional sobre a questão relativa à assistência judiciária: a jurisprudência do STJ, após permanecer pendular por algum tempo, firma, agora, por sua corte especial, o entendimento de que a parte beneficiária da gratuidade da justiça deve, no ato da interposição do recurso especial, demonstrar isso, ou renovar o pedido de gratuidade, apesar da clareza da lei no sentido de que a gratuidade compreende todos os atos do processo (AgRg nos EREsp 1182705, DJ de 19/11/14). Às disposições gerais atinentes aos recursos no novo CPC volveremos novamente. ____________ 1 Art. 995. Os recursos não impedem a eficácia da decisão, salvo disposição legal ou decisão judicial em sentido diverso. Parágrafo único. A eficácia da decisão recorrida poderá ser suspensa por decisão do relator, se da imediata produção de seus efeitos houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, e ficar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso. 2 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 3 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso, vol. 1. Porto Alegre: Fabris, 1987
terça-feira, 14 de julho de 2015

A regência dos recursos no novo CPC (Parte I)

Jorge Amaury Maia Nunes No primeiro texto produzido para esta Coluna, fizemos algumas menções muito rápidas sobre o tratamento dispensado pelo novo Código de 2015 à regência dos recursos cíveis. Sempre atentos às dimensões que deve possuir um texto dessa natureza, julgamos necessário cuidar das nossas primeiras impressões sobre o assunto em dois artigos (o de hoje e o da próxima terça-feira), sem desconsiderar, evidentemente, a necessidade do exame de particularidades e novidades sobre qualquer um dos recursos específicos, mencionados no art. 994 do Código de Processo que entrará em vigor em 18 de março de 2016. Vamos ao que interessa! Quando se examina o tema relativo aos recursos, em Direito Processual, a primeira observação que tem de ser levada em conta é a advertência no sentido de que qualquer conceituação deve partir de um dado direito positivo. Não há possibilidade de encontrar um conceito amplo, geral e irrestrito, que seja capaz de englobar o que se entende por recurso nos diversos ordenamentos jurídicos. De outra banda, parece que o legislador fez bem em acolher a advertência do jurista romano Lucius Priscus (omnis definitio in iure civili periculosa est) ao não conceituar recurso, até porque, antes não conceituar do que conceituar mal (o que ocorreu com diversos institutos conceituados de maneira insuficiente no Código de Processo Civil de 1973, como, por exemplo, o litisconsórcio necessário e a coisa julgada). Deveras, um simples exame da doutrina mais à mão deixa claro que, mesmo com parcial convergência de opiniões entre os doutrinadores, nenhum entendimento é igual ao outro a respeito da adequada e completa definição do termo. Pode dizer-se que a necessidade de ser ouvido mais de uma vez sobre o mesmo caso é quase um imperativo antropológico. Percebe-se isso até no seio familiar, em que as crianças, contrariadas pelo pai no atendimento de seus desejos, procuram a figura materna (duplo grau de jurisdição familiar), como a pedir abrigo à pretensão exercida. Se contrariadas pela mãe, num primeiro momento, dirigem-se ao pai, sempre na tentativa de ver acolhido seu pleito. A simples noção empírica permite essa verificação. Na seara do Direito, os recursos servem para apaziguar os espíritos e funcionam como uma segunda força de convencimento sobre aquele que teve seus interesses contrariados pelo Estado. Além dessa função, os recursos também são um importante meio de controle da unidade e uniformidade do Direito. E assim se dá porque há um dever/poder do detentor do monopólio da jurisdição de garantir ao jurisdicionado as condições de satisfação que constituem a promessa de todos os ordenamentos jurídicos que professam a ideia de Estado Democrático de Direito (progresso individual, bem comum, segurança jurídica, implementação de direitos fundamentais consagrados na carta política, etc.). A ideia de recurso, para fins de aproximação conceitual, está associada à de procedimento que permite um novo exame do processo, sentido esse expresso pelos dicionários como "percorrer novamente". Assim, o recurso no segundo grau de jurisdição passa a ser considerado uma repetição, total ou parcial, do que ocorreu no primeiro grau. É difundida a afirmação de que, até pela origem latina do termo - recursus -, o recurso de natureza processual teria origem em Roma, mais exatamente no período da cognitio extraordinaria (embora essa prática já fosse conhecida há muito mais tempo). Antes desse período, o processo civil romano já conhecera outros dois, o da legis actiones e o per formulas. Juntos, esses dois compuseram um grande período, chamado da ordem jurídica privada (ordo iudiciorum privatorum), assim conhecido porque, nele, o processo se dividia em duas fases, uma das quais era eminentemente privada. Com efeito, primeiro, havia uma fase in jure, que se passava perante um funcionário do Estado. Depois, uma fase in judicio, que se passava perante um juiz privado encarregado de proferir a sentença, juiz esse que não fazia parte da estrutura de poder estatal e que não se subordinava a ninguém. Não, cabia, pois, nessa estrutura, pensar em recurso. A partir do já mencionado período da cognitio extraordinaria em diante, ocorreu a extinção dessas duas fases processuais. O processo, do início ao fim, passou a tramitar perante um funcionário do Estado. Começou, desde então, a ganhar forma a figura da appelatio como uma maneira de recorrer ao detentor do poder político contra a decisão proferida pelo funcionário. Essa tendência consagrou-se, mais tarde, no Corpus Juris Civilis e daí em diante acompanhou todo o evolver da civilização. É indicado como certo, entretanto, que a Revolução francesa seria origem do reexame e do duplo grau de jurisdição. As fontes históricas não admitem absoluta segurança sobre essa conclusão, embora seja admissível dizer que, com a Revolução, houve um maior grau de institucionalização do duplo grau de jurisdição, que é a base lógica da existência dos recursos. No Brasil, que é, no particular, tributário do Direito Português, as origens dos recursos podem ser buscadas desde as Ordenações Afonsinas, passando pelas Ordenações Manuelinas e pelas Filipinas que regeram o nosso processo civil, mesmo após a independência. O conceito de recurso não é algo que seja pacífico em doutrina. Há, entretanto, a possibilidade de indicar alguns pontos de contato entre as várias tentativas, sendo sempre considerado, para os fins deste artigo, o ordenamento positivo brasileiro. O primeiro aspecto relevante é o fato de os recursos fazerem parte de processo em curso, não constituindo, portanto, nova relação processual independente. São, portanto, de natureza endoprocessual, na medida em que devem ser exercidos no mesmo processo em que foi proferida a decisão contra a qual se quer ou se pode recorrer. Há, por certo, outras formas de hostilizar uma decisão judicial, fora da relação jurídica processual em que proferida. Essas formas, entretanto, não são consideradas, entre nós, recurso.  É usual dizer-se que os recursos são espécies do gênero remédio. Parece-nos desnecessária a utilização dessa classificação, vocacionada à farmacologia. A ciência jurídica trabalha com outros institutos e outras categorias que são plenamente capazes de albergar os recursos. Preferimos, por isso, dizer que o recurso tem caráter de ônus processual. É, pois, uma situação jurídica ativa, como ensinava MIGUEL REALE, no sentido de que se destina à satisfação de um interesse próprio, o que o distingue de um dever, destinado à satisfação de um interesse alheio. Sua não-realização tem como consequência a perda de possível posição de vantagem no processo. Os objetivos do recurso (rectius, do recorrente, quando dele se utiliza) são a invalidação, a reforma, a integração ou o esclarecimento de uma decisão judicial. Para o Estado, os objetivos são a promoção da melhor, mais sistemática e uniforme aplicação da lei, como forma de zelar pela inteireza e unidade do ordenamento jurídico e garantir a implementação do princípio da segurança jurídica. No direito brasileiro, os recursos podem ser opostos/interpostos pelas partes litigantes, pelo Ministério Publico ou por um terceiro. Somados todos esses elementos, é possível apresentar um conceito razoável: recurso é o ônus processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público ou de um terceiro, para que, na mesma relação jurídica processual, em continuidade ao exercício do direito de ação, possam postular a anulação, a reforma, a integração ou o esclarecimento de decisão judicial. A rigor, são recorríveis os atos jurisdicionais que caracterizem decisões interlocutórias ou sentenças/acórdãos (desde que presentes, por óbvio as hipóteses de cabimento previstas em lei). Atos de mero expediente, a princípio, porque não expressam juízo de valor, não ensejam o aviamento de recurso. Sem embargo disso, se, sob a nominação de despachos, despachos de mero expediente, atos de expediente, ou qualquer outra, estiver oculto um pronunciamento judicial de conteúdo decisório, é possível a sua correção por meio de recurso, desde que o novo Código contenha previsão sobre essa possibilidade. Como já dito alhures, os recursos somente cabem enquanto a decisão judicial não transitou em julgado (aliás, uma das virtualidades do recurso é justamente a de retardar a formação do trânsito em julgado). Quando se trata de decisão transitada em julgado, o meio de impugnação deve ser procurado dentre as chamadas ações impugnativas autônomas (v.g., ação rescisória), ressalvado o caso da ação de mandado de segurança que (desafortunadamente) embora seja uma forma impugnativa autônoma, é dirigida contra decisão não transitada em julgado. O art. 994 do novo Código especifica quais os recursos cabíveis no Processo Civil brasileiro, atendendo, assim, ao chamado princípio da taxatividade. Por esse princípio, somente se considera recurso o que se encontra previsto em lei federal e que somente por lei federal pode ser criado. Na seara do direito processual civil, além de eventuais recursos criados por lei federal extravagante, os recursos são apenas os ali enumerados. É verdade que a enunciação dos recursos cabíveis não alterou muita coisa em relação ao Código de 1973, embora, no exame específico de cada tipo recursal, seja possível apontar um tratamento mais adequado dos recursos em espécie, com possíveis ganhos de efetividade. Destaca-se o fato de que o Código de 1973 cuida, no art. 496, do recurso de agravo, sem especificar a que agravo se reportava (somente com o exame do art. 522 daquele Código percebia-se a cisão entre o agravo retido e o agravo de instrumento, além, é claro, do pontual agravo interno e do agravo do art. 544 do Código de 1973). De modo diverso, o art. 994 do novo Código já indica as espécies de agravo: (II) agravo de instrumento; (III) agravo interno; (VIII) agravo em recurso especial ou extraordinário. Do exame do novo Código, percebe-se que não caberá mais falar em agravo retido e, também, que o agravo de instrumento passará a ter aplicação pontual. Deveras, a associação que o Código de 1973 faz entre interlocutória e recurso de agravo perde parcial sentido no Código de 2015. Caberá agravo, doravante somente de (i) decisões interlocutórias em casos expressamente especificados; e (ii) de sentenças que o legislador não ousou nominar como tais. Destaca-se, também, no novo Código, a supressão da figura autônoma do recurso de embargos infringentes, que consta no artigo 496 do Código de 1973, substituído por uma fase adicional no julgamento perante os órgãos da jurisdição ordinária, com ampliação do quorum julgador. É certo pôr em dúvida a aplicação prática dessa nova forma de julgamento estendido, sobretudo no âmbito de tribunais (como o TRF da Primeira Região) cujas turmas sejam formadas por apenas três membros. Em contrapartida, os embargos de divergência, que trazem, no Código de 1973, a expressa designação de cabimento apenas nos casos de recurso especial e extraordinário, agora vêm sem essa dicção restritiva. A uma primeira e isolada leitura, seria possível imaginar que seu cabimento fora estendido a causas de competência originária dos tribunais ordinários. A interpretação sistemática conduz, entretanto, apenas ao cabimento desse recurso perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, quando por outro motivo não seja, em decorrência de sua topologia. Deveras, o dispositivo está encartado no Título II, Capítulo VI, que tem este título: Dos recursos para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça. No âmbito dos referidos tribunais é que se pode e deve considerar o alargamento das hipóteses de cabimento desse recurso. Antes, restrito à impugnação de decisões proferidas por turmas, em recurso especial ou em recurso extraordinário; agora, cabível de decisão de qualquer órgão fracionário, em recurso especial, recurso extraordinário, ou em ações de sua (do STJ e do STF) competência originária. Em homenagem ao mencionado princípio da taxatividade e à falta de previsão legal, não são considerados recursos, embora sejam considerados como sucedâneos de recursais: (i) o pedido de reconsideração, que não suspende, nem interrompe o prazo para interposição de verdadeiros recursos; (ii) a correição parcial; (iii) a remessa obrigatória ou reexame necessário, elemento indispensável e integrativo da sentença  que somente se formará e terá aptidão para transitar em julgado após o exame pelo tribunal de segundo grau; (iv) a ação rescisória; (v) os embargos de terceiro; (vi) a medida cautelar inominada, ainda que aviada para tentar conferir efeito suspensivo a recurso; (vii) os agravos exclusivamente regimentais; (viii) o mandado de segurança contra ato judicial. Vale o apontamento no sentido de que, com a robusta adoção do agravo interno, parece que o campo para a criação dos chamados agravos exclusivamente regimentais ficou bastante reduzido. Não duvidemos, entretanto, da criatividade humana!
O dever de motivar as decisões judiciais não nasceu de um momento para o outro, nem, muito menos, o princípio da persuasão racional, que impõe ao magistrado critérios de demonstração do caminho lógico que percorreu (intraprocessual, registre-se) para chegar à decisão sobre o caso concreto. Não há certidão de nascimento, com data precisa. É certo, entretanto, que, mesmo sem obrigatoriedade de o fazer, os juízes romanos tinham o hábito de motivar suas decisões, talvez como forma de expressar o seu sentire (daí, sentença). Com o declínio do Direito Romano, uma espécie de irracionalidade tomou conta dos julgamentos, que passaram a basear-se em provas que contavam com a intervenção divina para a descoberta do possuidor do direito (ordálios, juramentos, julgamentos de Deus etc.), sendo inexpressiva a motivação humana para a entrega da prestação jurisdicional. Somente em fins do sec. XII e início do sec. XIII é que começa a retomada da racionalidade no julgamento dos litígios. A lei começa, em alguns setores da Europa, a tomar lugar do costume, ressalvado o sistema de common law que permaneceu muito mais histórico do que legal, mas que, por força da ideia de judge-made-law, teve, desde sua lenta formação (após 1066, com a invasão da Inglaterra por GUILHERME da Normandia), necessidade de motivação da decisão judicial (desde 1290 havia compilações das decisões judiciais que podiam servir como precedentes, ainda não obrigatórios), exceção feita ao trial by jury (hipótese em que o júri julgava sem ouvir testemunhas ou admitir provas) que somente passou a admitir provas no sec. XVI1. No que concerne ao direito positivado, e dentro das limitações de uma pesquisa rápida, conseguimos retroceder, na história do Direito Português, até o período das ordenações Manuelinas, de 1521, que já traziam, no Livro III, Título L, a regência sobre o dever de motivação da sentença por parte do juiz. Aliás, àquela altura, somente o príncipe não tinha o dever de motivar. Como a redação da época pareceria muito estranha ao leitor, preferimos transcrever o texto das Ordenações Filipinas, de 1603, que reproduzem aquele regramento quase que inteiramente e cuja linguagem é bem mais próxima da hoje praticada: Título LXVI Das sentenças definitivas Todo Julgador, quando o feito for concluso sobre a definitiva, verá e examinará com boa diligência todo o processo, assi o libello, como a contestação, artigos, depoimentos, a elles feitos, inquirições, e as razões allegadas de huma e outra parte; e assi dê a sentença difinitiva, segundo o que achar allegado e provado de huma parte e da outra, ainda que lhe a consciência dicte outra cousa, e elle saiba a verdade ser em contrario do que no feito fôr provado; porque sómente porque somente ao Priucípe que não reconhece Superior, he outorgado per Direito, que julgue segundo sua consciência, não curando de allegações ou provas em contrario, feitas pelas partes, por quanto he sobre a lei, e o Direito não presume, que se haja de corromper por affeição.2 No direito francês, o dever de motivação das decisões judiciais foi positivado pela primeira vez no Decreto de 16 de agosto de 1790, que cuidava da organização judiciária da França na visão dos revolucionários de 1789, nestes termos: Título V, artigo 15 A redação dos julgamentos, tanto em apelação quanto em primeira instância, conterá quatro partes distintas. Na primeira, os nomes e as qualificações das partes serão enunciados. Na segunda, as questões de fato e de direito que constituem o processo serão postas com precisão. Na terceira, o resultado dos fatos reconhecidos ou constatados por instrução, e os motivos que determinaram o julgamento serão exprimidos. A quarta, enfim, conterá o dispositivo do julgamento. (tradução livre; destaques, por óbvio, não estavam no original)3 Somente, porém, com a Constituição de 5 do frutidor do ano III (22 de agosto 1795) a matéria ganhou estatura constitucional. Deveras, o art. 208 dessa constituição cuidou do dever de motivar atribuído aos juízes do novo regime, verbis: Art. 208. As sessões dos tribunais são públicas; os juízes deliberam em segredo; os julgamentos são pronunciados em voz alta; eles são motivados e são enunciados os termos da lei aplicada.4 Daí em diante o regramento constitucional ganhou o mundo. Na história do Direito Processual civil brasileiro, além das já mencionadas Ordenações do Reino, cumpre lembrar que o vetusto regulamento 737 também previu, no seu art. 232, que na sentença o juiz deveria motivar "com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a Lei, uso ou estilo em que se funda."5 O Código de 1939 seguiu no mesmo rumo e cuidou da motivação nos arts. 118 e 280. Da mesma forma, o Código de 1973 cuidou do assunto nos arts. 131 e 458. De tão importante, a Constituição previu a exigência de motivação em seu artigo 93, IX. O Código de 2015, nessa mesma esteira, dispôs acerca da exigência de fundamentação dos julgados em seu artigo 11. Como vetor de realização de ditames constitucionais, todavia, a novel legislação foi bem além do Código anterior, para estabelecer as hipóteses em que não considerará atendida aquela exigência. Essas hipóteses, embora se estendam por todo o Código (arts. 984, § 2º, 1.029, § 2º, 1.038, § 3º, e 1.043, § 5º), estão concentradas no artigo 489, § 1º6, que parece ter compilado alguns dos expedientes mais utilizados na praxis judiciária a pretexto de desincumbência da obrigação de fundamentação de julgados. Aparentemente, é o inciso IV que mais tem chamado atenção, a considerar não-fundamentada a decisão que "não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador." Insurgências de todo jaez pulularam: estar-se-ia a burocratizar a Justiça, impondo-se aos magistrados o enfrentamento de todo e qualquer argumento, ainda que infundado e de má-fé, em detrimento da celeridade; haveria vilipêndio à separação de poderes, invadindo o Legislativo seara reservada à atuação judicial, com a morte da máxima iura novit curia. De nossa parte, cremos que as críticas não prosperam. Sendo a jurisdição exercício estatal de poder - poder que emana, antes, do povo (artigo 1º, parágrafo único da CRFB/88) -, a fundamentação das decisões proferidas no exercício dessa atividade, para muito além de garantia processual, é mecanismo de controle que instrumentaliza a submissão do poder público não somente à fiscalização das partes, mas ao crivo social, legitimando a própria jurisdição, desempenhada com déficit democrático. Eis o escólio de CALAMANDREI: A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois, se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado desorientou.7 Com a superação do jusnaturalismo e do positivismo hermético como propostas de sistemas fechados, a argumentação como limitação ao subjetivismo se impôs. Nesse contexto, ganharam força como alternativas viáveis a hermenêutica e as teorias da argumentação, ambas voltadas para um sistema aberto em que a mera subsunção é rechaçada.8 Exige-se elo a vincular o compreender da hermenêutica e o explicar da filosofia analítica.9 No que toca especificamente ao inciso IV do § 1º do artigo 489 e às críticas contra ele tecidas, pensamos que não há falar em "burocratização". O ônus impõe o enfrentamento apenas e tão somente dos fundamentos "capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada", e não de toda e qualquer alegação. Sendo esse o caso, a conclusão sobre se um argumento é ou não fundado pressupõe, antes, que o argumento seja analisado. O que se exige, então, é que o magistrado decline as razões pelas quais o entende infundado. Finalmente, não há falar em vulneração à separação de poderes. O Legislativo é o poder legitimado democraticamente para realizar pela lei os objetivos constitucionais, merecendo especial destaque que a orientação trazida pelo CPC de 2015 não somente não é nova, como encontra chancela do órgão máximo do Judiciário: Se o exame de algum fundamento possível seria idôneo, por si só, a influenciar o resultado do julgamento, não é lícito ao colegiado deixar de ponderá-lo. Esta é exigência direta do postulado da inteireza da motivação, corolário da garantia constitucional da fundamentação necessária das decisões (CF, art. 93, IX), como bem observa Cândido Rangel Dinamarco. Só se cumpre o mandamento constitucional, quando o órgão judicante se não omita sobre questões cujo deslinde possa levá-lo a decidir de maneira diferente.10 O tema, como se vê, é instigante e não há nenhuma pretensão em dele fazer algo simplista, de modo que é assunto a que retornaremos futuramente. _________ 1 Cf. Gilissen, John. Introdução histórica ao Direito, 2a. Edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 214. 2 Ordenações Filipinas, Livros II e III, Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 667. 3 No original: La rédaction des jugemens, tant sur l'appel qu'en première instance, contiendra quatre parties distinctes. Dans la première, les noms et les qualités des parties seront énoncés. Dans la seconde, les questions de fait et de droit qui constituent le procès seront posées avec précision. Dans la troisième, le résultat des faits reconnus ou constatés par l'instruction, et les motifs qui auront déterminé le jugement, seront exprimés. La quatrième enfin contiendra le dispositif du jugement. 4 No original: Article 208. - Les séances des tribunaux sont publiques; les juges délibèrent en secret ; les jugements sont prononcés à haute voix ; ils sont motivés, et on y énonce les termes de la loi appliquée. 5 Rosa, Eliézer. Capítulos de História do Direito Processual Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975, p. 169. 6 Art. 489. (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento 7 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 9. ed. São Paulo:Clássica Editora, p. 199. 8 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: A. Kaufmann, W. Hassemer (org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. 6ª ed. Trad. de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. 134 e 151-153. 9 ZACCARIA, Giuseppe. Razón jurídica e interpretación. Madrid: Civitas, 2004, 145. 10 STF, Pleno, ADPF 79-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 17.8.2007.
Jorge Amaury Maia Nunes A linguagem do Direito é muito característica, diversa daquela empregada, por exemplo, nas ciências médicas, nas ciências biológicas, na geografia, etc. Se dissermos a um aluno da área pertinente que um fígado é um fígado, um coração é um coração e que um osso está fraturado, teremos algumas chances de mostrar fisicamente a ele a existência de órgãos do corpo humano a que se convencionou chamar de fígado, de coração, ou, mais facilmente ainda, de mostrar um osso (in casu, um osso seccionado). Na sequência, poderemos mostrar a outros alunos uma folha, um caule, um inseto, uma ilha, um istmo, uma península. Enfim, poderemos estabelecer uma correspondência "de verdade" entre algo de existência visível e o termo convencionalmente ajustado para funcionar como significante. No Direito, o mesmo não acontece. Não podemos mostrar, no mundo físico, um penhor, uma anticrese, um direito subjetivo, um dever, uma sub-rogação. O direito, diria CALMON DE PASSOS, é um construído do homem, que se ressente de correspondência de "verdade" no mundo físico. Tentamos forrar-nos a essa deficiência lançando conceitos teóricos no direito positivo, como se pudéssemos, assim, transmudá-los em conceitos empíricos eventualmente universalizáveis. Tentamos definir recurso, sentença, decisão interlocutória, perempção, prazo dilatório e coisa julgada. Nossas definições, porém, não têm o condão de dar uma essência qualquer a esses institutos, especialmente ao da coisa julgada, cujos contornos ficarão sempre ao sabor das idéias do legislador. Conceitos sociais mudam com a sociedade. O Direito Romano entendia por res iudicaata um julgamento tido por verdadeiro, enquanto não fosse objeto de retratação ou de reforma (mas poderia sê-lo). Somente com o florescimento do Direito Canônico tomou-se a expressão em um novo sentido, de decisão que não pode mais ser reformada ou retificada (Decretais de GREGÓRIO IX, liv. II, tt. XXVIII, capítulo 13, apud GARSONNET, Traité, vol. III, p. 542, nota 10). No Direito brasileiro, a coisa julgada sempre foi motivo de preocupação legislativa, muito antes das angústias teóricas dos processualistas mais modernos, muitos anos antes das novas concepções de LIEBMAN, ou das pelejas acadêmicas entre OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA e BARBOSA MOREIRA. Deveras, COELHO RODRIGUES, jurista piauiense que brilhou no tempo do Império, preocupava-se com o assunto e, ao apresentar seu projeto de Código Civil (anterior ao de CLOVIS BEVILACQUA e que lhe serviu de parcial inspiração), apresentou também, em 1893, um "Projecto da Lei Preliminar do Codigo Civil", verdadeira Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, que disciplinava a coisa julgada, fazendo-o nestes termos, verbis: "considera-se cousa julgada a decisão judiciária contra a qual não cabe mais recurso ordinário às respectivas partes." (art. 5º, § 3º). Como se sabe, o projeto foi recusado e, em seguida, foi contratado Bevilacqua para apresentar novo projeto. A proposta de COELHO RODRIGUES, se em lei tivesse sido convolada, teria colocado o Brasil no rol dos países de inspiração monista, em que a coisa julgada é impugnável por meio de recurso e não por meio de ação rescisória. Deveras, no direito comparado, os recursos que se prestam a impugnar a coisa julgada são tipicamente classificados de extraordinários, justamente porque atacam a coisa julgada e não porque (como no Brasil) são dirigidos a uma instância dita de superposição. Assim é, por exemplo, no direito português, cujo novo CPC de 2013 dispõe, no art. 628: A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. No direito italiano, o critério distintivo dos recursos também se correlaciona com a coisa julgada. Daí advém a distinção entre os meios ordinários de impugnação, que impedem a formação da coisa julgada formal e os meios extraordinários, que visam ao ataque da própria coisa julgada e dão, por essa razão, lugar a um novo e distinto processo. No Direito Francês, o Código de Processo Civil, que disciplina a matéria no art. 480, assevera que "o julgamento que decide, no seu dispositivo, todo ou parte do principal, ou aquele que delibera sobre uma exceção de procedimento, um não-conhecimento ou qualquer outro incidente, possui, desde sua prolação, autoridade de coisa julgada relativamente à controvérsia que ele resolve." O art. 500 do mesmo código estabelece que "possui força de coisa julgada o julgamento que não é suscetível de nenhum recurso suspensivo da execução." Dessa amostra, de que o sistema brasileiro não faz parte (adotamos, ao revés, o sistema dualista), parece lícito afirmar que conceitos que tais (coisa julgada, recurso, etc.) somente possuem fixação de contornos em face de dado ordenamento positivo. Não há um único conceito de coisa julgada ou de recurso que possa ser atribuído a todos os direitos em todos os momentos históricos. Nem por isso, entretanto, o legislador do Código de Processo Civil de 2015 ficou muito à vontade para fazer alterações profundas no conceito que fora adotado pelo legislador de 1973, no art. 467. Sem embargo, fez alguns reparos que vinham sendo insistentemente sugeridos pela doutrina, nos últimos 40 anos. Assim, por exemplo, o novo texto não mais associa ao conceito de coisa julgada material uma espécie de eficácia que torne imutável a sentença. A expressão "eficácia", que nunca foi do agrado dos doutrinadores (no sentido que lhe atribuiu o art. 467, sob menção, porque não poderia ter espaço no mesmo rol das outras eficácias conhecidas e consentidas por robusta parcela da doutrina: declaratória, condenatória, constitutiva, executiva e mandamental), foi suprimida e substituída pela expressão "autoridade". Certamente que os estudos doutrinários sobre o novo código irão destinar vários terabytes ao armazenamento de textos sobre o conceito de autoridade, ainda mais sobre uma autoridade que imutabiliza e indiscutibiliza uma decisão. Não será tarefa fácil, máxime porque, no limite, a expressão tem vínculos com conceitos de poder e dominação, sempre discutidos na seara das ciências afins do direito, sem muitos acordos. Por enquanto, e sem perder atenção para a origem latina da palavra (auctoritas), pensamos ser possível entender autoridade como um comando inerente à decisão. Ganho de qualidade houve no fato de que, diferentemente do que fizera o Código de 1973, o novo Código não associou a coisa julgada à prolação de sentença. Fala-se, agora, em tornar imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso. Com isso, além de dissociar coisa julgada de sentença, o novo conceito ainda conseguiu explicitar que se tratava de decisão de mérito, o que não ocorria no Código pretérito que, em face da omissão, findava por misturar os conceitos de coisa julgada formal e de coisa julgada material. Ainda que ocioso, é bom lembrar que o Brasil manteve-se fiel ao fato de que, diferentemente do que preconizara COELHO RODRIGUES, somente haverá coisa julgada, se não couber recurso de espécie alguma, seja ordinário, seja extraordinário. Também o art. 503 trouxe inegáveis ganhos, não somente ao especificar que a decisão tem força da lei nos limites da questão principal expressamente decidida (a deixar evidente que a escolha do legislador foi no sentido de evitar interpretações que conduzam ao reconhecimento de coisa julgada implícita. Somente transita em julgado o que foi evidentemente decidido), como também ao regular de forma inovadora a resolução da chamada questão prejudicial. Realmente, é sabido de todos que, na vigência do Código de 1973, é possível a propositura de ação declaratória incidental (art. 5º e 325) para que o juízo decida principaliter sobre questão prejudicial existente no processo. Se nenhuma das partes lançar mão da declaratória incidental, o magistrado deverá de qualquer forma decidir, mas o fará incidenter tantum, isto é, a decisão que tomar a respeito da questão prejudicial não terá aptidão para a formação da coisa julgada material e poderá vir a ser rediscutida em qualquer outro processo que venha a ser instaurado. No Código de 2015, o legislador, por amor à efetividade do processo, houve por bem abolir uma série de incidentes, dentre os quais essa modalidade de ação declaratória. Pela nova regência, a parte não mais necessita da propositura específica da declaratória incidental para que o magistrado se pronuncie sobre a questão prejudicial, com força de decisão apta a transitar em julgado. A dizer de forma mais específica: no novo código, terá aptidão para transitar em julgado a resolução da prejudicial, realizada de maneira expressa pelo juiz, desde que, na forma do art. 503, § 1º: (i) dessa resolução dependa o julgamento de mérito; (ii) a seu respeito tenha havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; (iii) o juízo tenha competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal; e (iv) não haja, no processo, restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o exame adequado da prejudicial em tela. É certo que o texto, como será visto, não é dos melhores, mas isso não é capaz de empanar a qualidade e oportunidade da ideia, vocacionada para a simplificação do processo e para a ampliação do iudicium quando presentes os elementos de cognição aptos à formação adequada do convencimento do julgador. Aplausos, por isso, ao legislador que, entretanto, peca no varejo. Se se trata de verdadeira questão prejudicial, é claro que o julgamento do mérito depende de sua resolução. Até pela origem da palavra, é possível perceber: prejudicial, aqui, vem de praeiudiciales, ações declaratórias do direito romano (normalmente ligadas ao status civil de pretenso litigante) e que necessariamente deveriam ser decididas antes de se permitir trânsito à ação principal. Prejudicial vem de prae + iudicare, no sentido de julgar antes, julgar primeiro. Assim, dizer que da resolução de uma questão prejudicial depende o julgamento do mérito é uma espécie de evidência apodítica. Ou bem temos uma questão prejudicial e seu julgamento se impõe antes do julgamento da chamada questão principal, ou, se o julgamento prévio não se impõe, então não se trata de verdadeira questão prejudicial. Além das questões brevemente suscitadas acima, os arts. 504/508 do novo Código trazem poucas alterações, que são de cunho meramente redacional e não alteram o sentido dos artigos correspondentes no Código de 973, ressalva feita ao art. 472 do velho Código, cuja segunda parte foi suprimida (nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros). Assim, permanecem em aberto as velhas discussões sobre (i) o que realmente é tornado imutável e indiscutível na decisão de mérito transitada em julgado: (ii) os limites subjetivos da coisa julgada. Porque o espaço não autoriza e porque a competência pouca não nos permite mais do que isso, limitamo-nos a fixar o entendimento de que a imutabilidade da coisa julgada está circunscrita ao conteúdo declaratório constante na parte dispositiva da decisão que não mais se submete a recurso e que não se abrigam sob o manto da coisa julgada (i) os elementos (motivos) conducentes a essa declaração, ainda que importantes para o esclarecimento do dispositivo; nem (ii) a versão dos fatos acolhida pelo magistrado como verdadeira para servir de fundamento da decisão. No que concerne aos limites subjetivos da coisa julgada, ainda que alguns pontuais questionamentos doutrinários ainda remanesçam, prevalece o vetusto entendimento de que a coisa julgada é lei para as partes entre as quais é dada, e não pode prejudicar terceiros. Sem embargo disso, eventuais efeitos declaratórios ou constitutivos de uma decisão poderão atingi-los. Se atingidos, poderão em juízo debater especificamente esse aspecto. Se possível e se necessário, retornaremos ao tema.
Os artigos 475-L, II e § 1º, e 741, II, parágrafo único, introduzidos no Código de Processo Civil de 1973 pela lei 11.232/05, já consagravam verdadeira hipótese de flexibilização da coisa julgada ao permitir, em sede de impugnação a cumprimento de sentença e em embargos à execução contra a fazenda pública, a invocação de inexigibilidade de obrigação contida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional ou em interpretação ou aplicação de lei ou ato normativo declaradas em desconformidade com a Constituição pelo Supremo Tribunal Federal. Embora não houvesse previsão expressa, preferível a interpretação conforme a Constituição adotada por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery1, no sentido de que a decisão pela inconstitucionalidade proferida pelo STF, para o fim de sustentar impugnação/embargos à execução, haveria de ser anterior ao trânsito em julgado da decisão convertida em título executivo, homenageada assim a coisa julgada. O CPC de 2015 manteve a essência2 das normas antes mencionadas, que passaram a possuir morada nos artigos 525, § 1º, III, e § 12 e 535, III, § 5º, substituídos os embargos à execução contra a fazenda pública pela impugnação, eis que agora admitido o cumprimento de sentença também contra ente fazendário. Inovação digna de nota foi inserida nos artigos 525, § 12, e 535, § 5 do CPC/2015, exigindo-se, na esteira do entendimento doutrinário retromencionado, que a decisão do STF pela inconstitucionalidade, para o fim de impugnação aventando inexigibilidade da obrigação, deveria anteceder o trânsito em julgado da decisão convertida em título executivo judicial, em homenagem à coisa julgada protegida pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição. Dúvida naturalmente haveria de surgir: e quando a decisão do STF pela inconstitucionalidade fosse posterior ao trânsito em julgado da decisão convertida em título executivo judicial? O novo Codex trouxe a resposta nos §§ 15 e 8º dos artigos 525 e 535, respectivamente, dispondo que, proferida a decisão pelo STF, no sentido da inconstitucionalidade da lei/ato normativo ou da sua aplicação/interpretação após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo - atenção! - será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. É claro que o objetivo deste trabalho não deve ser a discussão sobre questões cosméticas, ou de estrutura da lei, mas não se pode deixar de indicar, previamente a qualquer exame de natureza substancial, que a inserção dos §§ 15 e 8º nos arts. 525 e 535, respectivamente, ofende a ideia de topologia, de sistema, que orna o conceito de Código. Há normas específicas para cuidar das hipóteses de cabimento de ação rescisória (art. 966 do novo Código) e do dies a quo da contagem dos prazos decadenciais para a sua propositura, sendo o art. 975, do mesmo Codex, pródigo nessa regência, destinando três parágrafos ao assunto. Lá seria a sede própria para tanto, e não os arts. 525 e 535, que cuidam de cumprimento da sentença. Feito o apontamento, convém anotar que o foco deste escrito, sob a ótica da segurança jurídica e da coisa julgada, está precisamente na inovação trazida pelo CPC/2015 concernente ao termo inicial do prazo decadencial para ajuizamento da rescisória: o trânsito em julgado da decisão do STF pela inconstitucionalidade da lei/ato normativo em que fundada a decisão exequenda. A tese já era defendida por Teresa Arruda Alvim Wambier e por José Miguel Garcia Medina em trabalho sobre o tema, como é possível depreender do excerto abaixo: (...) no caso da rescisória com o objetivo de desconstituir a coisa julgada que se forma sobre sentença proferida com base em lei posteriormente tida como inconstitucional em ação declaratória de inconstitucionalidade, o prazo só pode começar a contar a partir do julgamento da ação declaratória de inconstitucionalidade.3 A justificativa para o raciocínio supra estaria em que seria ilógico admitir início e exaurimento de prazo para ajuizamento de rescisória com esteio em fundamento ainda não passível de ser invocado. Não se comunga desse pensamento. Não é de hoje a discussão acerca da (ir)rescindibilidade de decisões fundadas em dispositivos supervenientemente declarados inconstitucionais pelo STF. Um dos autores deste trabalho, ainda em 1993, em dissertação de mestrado, já aludia a acórdão do STF proferido em 1968 no RMS 17.976, relator o ministro Moacyr Amaral Santos (RTJ 55/744), para sustentar ser a coisa julgada óbice à nulidade ex tunc oriunda da declaração de inconstitucionalidade pelo STF: Queremos crer que a melhor doutrina se encontra entre aqueles que vêem na coisa julgada uma limitação até natural aos efeitos retroativos da decisão de inconstitucionalidade. (...) Será a decisão rescindível ou anulável (arts. 485 e 486 do CPC0, dentro dos prazos conferidos pela lei para utilização da ação rescisória ou para a ação de anulação, conforme o caso. Após isso, convalesce, como qualquer sentença nula por outro motivo que não o aqui em discussão.4 Esse mesmo raciocínio foi encampado por voto lapidar proferido pelo ministro Celso de Mello, relator no RE 592.912, 2ª turma, DJ de 22/11/12: (...) ocorrendo tal situação [trânsito em julgado de decisão fundada em norma posteriormente declarada inconstitucional pelo STF], a sentença de mérito tornada irrecorrível em face do trânsito em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de uma específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória), desde que utilizada, pelo interessado, no prazo decadencial definido em lei, pois, esgotado referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, que se revela, a partir de então, insuscetível de modificação ulterior, ainda que haja sobrevindo julgamento do Supremo Tribunal Federal declaratório de inconstitucionalidade da própria lei em que baseado o título judicial exequendo.5 O tema voltou recentemente à balha no julgamento, pelo STF, do RE 730.462, na sessão de 28/5/156, ocasião em que os ministros Roberto Barroso e Gilmar Mendes consignaram não se confundir eficácia normativa, ou abstrata, da decisão de inconstitucionalidade, a retirar ab ovo a norma inconstitucional do ordenamento, com eficácia executiva, vinculante, nascida, essa, não da inconstitucionalidade da norma, mas da decisão do STF. O efeito vinculante, ou eficácia executiva, não retroage para atingir decisões transitadas em julgado. É dizer, transitada em julgado a decisão fundada em norma inconstitucional assim declarada apenas posteriormente pelo STF, quando já exaurido o prazo decadencial para aviamento da rescisória, a coisa julgada funcionaria como "modulação temporal ope legis", dada a falta de instrumento processual viabilizador de sua desconstituição. Ressalva feita à duvidosa existência de eficácia executiva de uma decisão proferida em controle abstrato de constitucionalidade (que ofende a ideia de executividade, e que não se pode amparar na ideia de efeito vinculante), a conclusão é de ser aceita. O ministro Fux chegou a mencionar o CPC/2015 e o termo inicial do prazo decadencial, fazendo a ressalva quanto à modulação dos efeitos da decisão do STF em prol da segurança jurídica, mas sem se imiscuir com profundidade no ponto, que obviamente não integrava a moldura sobre o que se estava a decidir. Fê-lo, igualmente, o Ministro relator, Teori Zavascki, sem emissão de juízo de valor. O Ministro Celso de Mello, de sua vez, aduziu que faria juntar ao seu voto as razões de decidir do acórdão proferido do RE 592.912, antes mencionado. A constitucionalidade dos §§ 15 e 8º dos artigos 525 e 535 frente à coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da CF) é, portanto, tema ainda pendente de enfrentamento. De nossa parte, a coisa julgada, pensamos, merece preponderar sobre a possível retroatividade da declaração de inconstitucionalidade, porque à época em que aperfeiçoada aquela, vigorava a presunção de constitucionalidade da norma em que fundada, presunção essa reforçada pelo controle difuso de constitucionalidade sempre passível de exercício, ex officio, pelo juízo prolator da decisão.7 A rigor, o problema nem deveria existir porque é da natureza do controle concentrado de constitucionalidade, nos ordenamentos jurídicos que o adotam (cf. Constituição da Itália e da Áustria) a eficácia prospectiva da decisão. Assim, a posterior declaração de inconstitucionalidade da norma, em puro controle concentrado, não surte nenhum efeito em relação às causas já decididas. No Brasil e em Portugal, que adotam um sistema misto, é que se tem essa paixão essencial pela eficácia ex tunc. A Constituição de Portugal, ao menos, lançou, no art. 282, 3 e 4, normas que podem excepcionar essa eficácia, regência que foi parcialmente copiada, no nosso ordenamento, em sede infraconstitucional. O termo inicial diferenciado vulneraria a segurança jurídica8, não seduzindo, como justificativa, o argumento de que o prazo decadencial somente se iniciaria a partir do momento em que viável a fundamentação da rescisória no julgado do STF. A invocação da inconstitucionalidade em que fundada a decisão transitada em julgado era possível ainda na fase de conhecimento, sendo atingida pela eficácia preclusiva da coisa julgada, e ainda o será após o trânsito em julgado, nos termos do artigo 966, V, do CPC/2015, notadamente com uma relativização cada vez maior da súmula 343/STF. Em defesa da segurança jurídica, entendemos, pois, que o termo inicial do prazo decadencial para aviamento da rescisória deve ser o do trânsito em julgado da decisão rescindenda, e não da decisão do STF. Proferida essa quando já exaurido o prazo para rescisória, conservar-se-á decisão inconstitucional. Isso porque o "risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização ('rectius': desconsideração) da coisa julgada."9 Parece, pois, que os multicitados §§ 15 e 8º dos artigos 525 e 535 não se compadecem com o princípio constitucional do respeito à coisa julgada. A matéria, contudo, ainda será objeto de muito debate, e ao tema retornaremos, se necessário for. ______________ 1 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 14ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 920, itens n. 35. 2 Passou-se a admitir, para o fim de impugnação com base em inexigibilidade da obrigação, decisão proferida pelo STF em controle difuso, prescindindo-se da providência elencada pelo artigo 52, X, da Constituição Federal, o que finda por transcender a eficácia inter partes da declaração de inconstitucionalidade. 3 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. Hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003, p. 208. 4 NUNES, Jorge Amaury Maia. A ação declaratória de constitucionalidade: eficácia erga omnes e efeito vinculante no direito brasileiro. Belém: Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, 1994, p. 148-149. 5 Em idêntico sentido, MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Vol. III, 2ª ed./2ª tir. São Paulo: Millennium Editora, 2000, p. 344, item n. 698; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 715-717, itens n. 28 e 30, e p. 1.132, item n. 14. 6 Embora não publicado o acórdão, o vídeo do julgamento está disponível no seguinte link: clique aqui. 7 No sentido de ser o controle de constitucionalidade matéria de ordem pública: MELLO, Rogério Licastro Torres de. Atuação de ofício em grau recursal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 256-257. No mesmo sentido: "sempre que, legitimamente, o exame da constitucionalidade se apresente útil ou conveniente para a decisão da causa, não devem os tribunais fugir à tese." MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 373. Ainda: SLAIBI FILHO, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 141. 8 É de se imaginar o exemplo de sentença transitada em julgado, fundada em norma décadas depois declarada inconstitucional pelo STF, passível, depois de longo período de tempo, de ser rescindida. 9 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 715-717, itens n. 28 e 30, e p. 1.132, item n. 14.
Jorge Amaury Maia Nunes No artigo que inaugurou esta coluna, dedicamos um breve comentário ao Livro V, da Parte Geral do novo CPC, que cuida da Tutela Provisória (de urgência e de evidência), para indicar que, nele, pulularam inovações - em especial a estabilização da decisão do art. 304 -, não sendo ainda possível saber se as soluções preconizadas foram as melhores. Convém, neste novo artigo, tentar verticalizar um pouco mais o exame do tema, ainda que com o risco de, mais tarde, rever o que estamos a escrever neste momento. Pecado maior do que o erro é a omissão deliberada. Vamos começar, então, com o que nos parece menos problemático e, após, avançaremos para a chamada vexata quaestio da estabilização da decisão e das possibilidades de objetá-la. Não será preocupação do presente exame a questão relativa à tutela de evidência (ou, como pretende o legislador processual, tutela "da" evidência), que ficará para outra oportunidade. No novo CPC, pretendeu-se dar um tratamento único às tutelas de urgência, antecipatória e cautelar, como se ambas fossem provisórias. Afinal, este é o título do Livro V: Da Tutela Provisória, embora somente a tutela antecipada possua caráter autenticamente provisório. A tutela cautelar, no estrito sentido do termo, é temporária e não provisória, porquanto não será substituída por uma decisão definitiva sobre o mesmo mérito. É que o mérito da cautelar é específico (cabe no binômio periculum damnum irreparabile e fumus boni juris) e não se confunde com o mérito da ação a que se apelida de principal. Provisória é a tutela antecipada que dá, agora, o bem da vida vindicado. E é provisória porque está em oposição à tutela definitiva, que é a fixada em sentença proferida após a realização de atividade cognitiva exauriente. É bem de ver que, sob os auspícios da reforma de fins de 1994, o legislador processual tratou de estender a chamada antecipação de tutela ao procedimento comum, sendo lugar comum na doutrina a afirmação no sentido de que, presentes os pressupostos autorizadores do art. 273, o juiz anteciparia os efeitos práticos da decisão que poderia vir a ser deferida. Em outras palavras, propiciaria a entrega o bem da vida no mundo físico, nada obstante, no mundo da criação da norma jurídica individual (sentença), a matéria ainda permanecesse em estado de pendência, à espera da realização da cognição exauriente. Da simples regência da matéria no novo Código, e apesar do discurso ensaiado pelo legislador, percebe-se, primo ictu oculi, que essas duas tutelas continuam a ser diversas, ainda que se tenha tentado uniformizar os pressupostos para seu deferimento. O discurso é negado pela própria evidência normativa. Deveras, basta ter em conta que o legislador sentiu-se obrigado a abrir no Título II, do Livro V, três capítulos: o primeiro para disposições gerais; o segundo para cuidar da tutela antecipada requerida em caráter antecedente; e o terceiro para cuidar da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, de cuja leitura percebe-se, claramente, a diferença do tratamento dispensado a um e outro tipo de tutela. Ao que parece, o legislador pretendeu afastar-se do discrímen histórico - conforme antiga lição de Ovídio Araujo Baptista da Silva, no seu Do Processo Cautelar, 3ª. edição, Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 13/14 - que havia, desde o direito medieval, entre os conceitos de periculum damnum irreparabile e periculum in mora, este último relativo a certas causas que, dada a sua simplicidade, relevância, ou urgência da matéria a ser examinada, a prudência e a lógica recomendavam que fossem tratadas por um procedimento sumário. O primeiro, perigo de dano irreparável, relativo a qualquer causa em que se impusesse uma resposta jurisdicional expedita, em decorrência da irrupção de um elemento de risco de dano iminente. Afirma Ovídio, ainda com arrimo na doutrina italiana, que o primeiro conceito responde ao risco da tardividade, enquanto que o segundo responde ao risco da infrutuosidade. Em favor da separação conceitual, cabe lembrar, também, do clameur de haro (invocação a ROLLON, primeiro duque da Normandia), no direito francês, que tem vinculação com o periculum damnum irreparabile, mas não com o periculum in mora, como parece defluir da lição de GARSONNET (Traité Theorique et Pratique de Procédure, deuxième édition, tome huitième, Paris: Librairie de la Société du Recueil Géneral des lois et des arrêts, 1904, p. 284). Essas duas referências históricas, do direito francês e do direito italiano medieval, dão luzes bastante fortes da distinção que existe ou deve existir entre a tutela cautelar e a tutela da tardividade.Como parece esmaecida a distinção entre os dois institutos, temos de lidar com o Código de 2015, com as cautelas devidas, e não esquecidos de que razões históricas iluminam a existência desses dois tipos de tutela. Na regência do Código de 1973, a tutela cautelar pode ser instaurada antes ou no curso do processo principal, enquanto que a chamada antecipação de tutela pressupõe que já tenha sido aviado o processo principal, na medida em que esta, antecipação, é ato judicial do processo, externado por meio de uma decisão interlocutória que entrega ao autor, desde logo, os efeitos práticos obteníveis em uma eventual sentença de procedência, desde que o juiz entenda presentes os requisitos previstos no art. 273 (prova inequívoca, rectius, prova convincente, e verossimilhança da alegação, rectius, alto grau de probabilidade de a demanda ser resolvida em favor do autor). No Código de 2015, dada a pretendida uniformização de regência, é possível, antes do aviamento da ação principal, tanto a formulação de requerimento de tutela antecipada, quanto o requerimento de tutela cautelar. Em outros termos, as duas modalidades de tutela podem ser requeridas em caráter antecedente. Como a tutela cautelar antecedente ou preparatória já tem uma larga identificação nos fastos do Direito, os questionamentos sobre a sua adoção, também pelo novo código, não serão certamente de monta, nem parece que haverá alguma resistência de parte dos cultores do direito. O mesmo não se diga, entretanto, em relação à tutela antecipada requerida em caráter antecedente. De fato, o aspecto novidadeiro do procedimento engendrado trará muitas dúvidas e hesitações quanto ao alcance e à dimensão do novel instituto. Convém explicitar a regência do procedimento e os questionamentos que se oferecem à meditação. Diz o artigo 303 do CPC de 2015 que, quando a urgência for contemporânea ao momento em que a ação pode ser proposta, o autor pode formular petição inicial em que conste somente o requerimento da tutela antecipada (desde que seja indicado qual pedido de tutela final será formulado em momento posterior), com a indicação da lide, do direito que se busca realizar, do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo (em certo sentido, trata-se de uma cópia parcial do art. 801 do CPC de 1973, que cuida da petição inicial do processo cautelar, aqui adaptado para o pedido de antecipação de tutela) e do valor da causa, que deverá considerar o pedido de tutela final. Há a possibilidade de emenda da inicial, no prazo de cinco dias, se o magistrado entender que não há nos autos, ainda, elementos suficientes para a concessão da tutela antecipada. O legislador cuidou, aqui, de emenda da petição inicial. Hipótese diversa é a de aditamento. Com efeito, na petição de requerimento de tutela antecipada de que trata o art. 303, o autor deverá indicar, claramente, que pretende valer-se da regência do caput do artigo e que aditará a inicial, se concedida a antecipação, no prazo de quinze dias ou em outro maior que venha a ser concedido pelo magistrado. No aditamento, poderá complementar a argumentação, juntar novos documentos e confirmar o pedido de tutela final. Se entender presentes os requisitos exigidos (probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo), o magistrado concederá a tutela antecipada, caso em que (i) o autor deverá aditar a inicial, como mencionado acima e, se não o fizer, o processo será extinto sem resolução de mérito; (ii) o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou mediação de que trata o art. 334 do novo CPC. Se não chegarem a bom termo na audiência ou se esta não se realizar por desinteresse de ambas as partes, ou porque a natureza do direito em discussão não permite autocomposição, abrir-se-á o prazo para contestação. Questão delicada é a que sugere a regência do art. 304, seguinte. De fato, esse fragmento da lei processual trata da "estabilização" da decisão que concede a antecipação de tutela, na hipótese de não-interposição do recurso de agravo de instrumento, caso em que, diz o § 1º, o processo será extinto. Daí decorre que haverá uma tutela não exatamente provisória, mas que também não é definitiva. O tratamento dispensado à matéria pelo legislador é algo exótico: pela letra da lei, se o réu não opuser recurso de agravo de instrumento, ainda que haja ofertado contestação, a decisão será estável. Então, qual o sentido de continuar com o processo de cognição exauriente? Nenhum. Anote-se, a esse respeito, que o legislador, com certo receio da novidade que instituiu, não afirmou ser uma hipótese de extinção do processo com resolução de mérito, ou sem resolução de mérito. Preferiu ficar em perigoso silêncio. Ocorre que essa abulia legiferante, em vez de evitar ou apaziguar problemas teórico-práticos, teve o condão de suscitar uma miríade de intrincadas questões de difícil solução, tais como as debuxadas acima. Uma primeira análise sugere, de logo, que ofende a lógica e o bom-senso, a regra que impõe seja o processo extinto, apenas pela falta de recurso, porque isso leva à inaceitável conclusão de que, num mesmo processo, a cognição precária deve prevalecer em relação à cognição verticalizada, exauriente, própria dos juízos ordinários. Ora, é da natureza dessas decisões proferidas em juízos meramente de probabilidade, a sua reversibilidade. Não por outro motivo, o art. 294 do novo CPC dispõe que a tutela provisória pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo e sua execução segue as normas do cumprimento provisório da sentença (art. 297, parágrafo único). Além disso, o texto da lei e a sua hesitação põem em evidência vários outros graves percalços que deverão ser sentidos quando da aplicação do procedimento em exame. O primeiro deles concerne ao fato de que não há, na doutrina do processo civil brasileiro, um conceito pronto do que seja tutela antecipada estável ou estabilizada. Parece ser algo mais constante do que a simples antecipação de tutela, precária, provisória, mas menos seguro do que a coisa julgada material. Tanto é assim que o próprio § 2º do art. 304 prevê a possibilidade de que qualquer das partes venha demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada. Demandar no mesmo ou em outro processo, como parece sugerir MARINONI (Marinoni, Luiz Guilherme, et. al. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 317), numa espécie de simples prosseguimento da ação antecedente, ou em ação completamente autônoma, mas perante o mesmo juiz, como deflui da literalidade dos §§ 2º e 4º do art. 304? E se a parte não demandar no prazo decadencial de dois anos, qual a consequência? O que fazer em relação a essa decisão estável? Reconhecer o seu trânsito em julgado e admitir, a partir daí, a fluência do prazo para propositura de eventual ação rescisória, ou, de outro lado, permitir que aquele contra o qual foi produzida a tutela provisória possa discutir, em qualquer outro processo que não o de que trata o próprio art. 304, mas no mesmo grau de jurisdição? Quanto a esses questionamentos, soa rigorosamente absurdo entender que um procedimento sumário (e é natural a criação de procedimentos sumários, de estrutura vária, no ordenamento jurídico) seja concebido de sorte a permitir a sua extinção, mesmo ante a oferta de contestação, pelo simples fato de não haver sido tirado recurso de uma decisão de natureza precária. Aduza-se, em favor de nosso entendimento, o fato de que a necessidade de contestar somente ocorrerá se frustrada a autocomposição e após o aditamento ofertado pelo autor (até porque, não ofertado o aditamento, o processo será extinto sem resolução de mérito, com cessação da eficácia da tutela antecipada que foi concedida), situação em que, pela lógica, terá ocorrido a ordinarização do procedimento, a sugerir a necessidade de realização de cognição exauriente. Decorre do exposto acima que, sem embargo do texto expresso do art. 304, c/c § 1º do mesmo artigo, que dispõe sobre a extinção do processo se não houver interposição do recurso de agravo, a única possibilidade de interpretação que se conforma com o princípio do devido processo legal hospedado em nosso texto constitucional, e do respeito ao contraditório efetivo, princípio erigido em base dessa reforma processual, é aquela que privilegia o entendimento de que toda e qualquer forma de resposta do réu, em especial a contestação, é suficiente para (i) impedir a estabilização da tutela antecipada concedida e a extinção prematura do processo; e (ii) provocar o exercício da cognição exauriente por parte do órgão jurisdicional competente. No concernente ao segundo questionamento, i.e, se houver efetiva extinção do processo porque ausentes recurso e respostas possíveis, sem que tenha ocorrido, também, no prazo decadencial de dois anos, a propositura da ação (§ 2º do art. 304, c/c § 5º do mesmo artigo) para rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada, o que acontecerá? O legislador parece encaminhar o tema, de forma adrede, para inadmissão de formação da coisa julgada material (§ 6º do art. 304: a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilização dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo), mas com a criação de uma estabilidade da decisão que concedeu a antecipação que, após a fluência do prazo de dois anos, não encontraria meios de impugnação. A perplexidade é grande. Deveras há uma espécie de fetiche que se impõe à doutrina brasileira, no sentido de que somente têm aptidão para produzir coisa julgada as decisões proferidas em processo de cognição exauriente, razão por que negava, peremptoriamente, que sentença proferida em processo cautelar (em que a cognição é sumária) fizesse coisa julgada material. Cabe registrar que esse entendimento encontrou bem sucedida oposição, sendo mesmo de crer serem em maioria os doutrinadores que acolhem a coisa julgada material nessa hipótese. Resenha feita, há mais de dez anos, por GELSON AMARO DE SOUZA, indicava o crescente número de doutrinadores que aderiam explícita ou implicitamente a esse entendimento (SOUZA, Gelson Amaro de. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002) e outros que, mesmo sem admitir explicitamente a formação da coisa julgada material, pregavam o cabimento da ação rescisória de sentença proferida em processo cautelar. Admitindo, como admitimos, que a coisa julgada material se opera sobre o teor declaratório da decisão, parece-nos viável a formação de coisa julgada nos processos sumários, todos eles calcados, sejam quais forem os efeitos preponderantes da decisão proferida, em parte substancialmente declaratória. Em outras palavras, não é crível admitir como correto o raciocínio no sentido de que juízos de cognição sumária dispensam o teor declaratório da decisão. Antes de dar algo, antecipar algo, ou antecipar os efeitos práticos de algo, o magistrado, obviamente, declara as razões de fato e de direito que o autorizam a tanto, declara o que constitui o suporte que lhe permite a regulação da situação controvertida que lhe foi submetida a exame. É no mínimo uma petição de princípio afirmar que processos sumários não admitem sentença com força de coisa julgada. É certo, entretanto, que o tema da coisa julgada em processos sumários (especificamente, dos processos sumários determinados) lamentavelmente não se comporta nos espaços angustos de um artigo com dimensões limitadas pela necessidade editorial, mas isso não obsta a anotação rápida no sentido de que não há nenhuma categoria lógica que a impeça essa ocorrência, como não impede, por exemplo, a formação de coisa julgada na ação de mandado de segurança (típico procedimento sumário), ou nos embargos de terceiro senhor e possuidor. Em outro momento, ao discutir a coisa julgada no novo CPC, exploraremos esse ponto de forma mais verticalizada. Em arremate, que não queira o legislador apelidar de coisa julgada a estabilidade dessa decisão, tudo bem, mas isso não será óbice ao cabimento de ação rescisória, quando por outro motivo não seja, em face do que dispõe o § 2º do art. 966, do novo Código, que admite a rescisória, mesmo que não se trate de sentença transitada em julgado. Ou isso, ou haverá de ser admitido o cabimento de outra ação de procedimento ordinário que não aquela mencionada no § 2º do art. 304, porque inocorrentes os efeitos próprios da coisa julgada (positivos e negativos) e, também, em homenagem ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, cujo menoscabo não está ao alcance do legislador processual.
Guilherme Pupe da Nóbrega A improcedência liminar do pedido foi introduzida no Código de Processo Civil de 1973 pela lei 11.277/06, na onda das reformas processuais. Com o instituto, passou a ser possível que o juiz deixasse de determinar a citação do réu e julgasse desde logo o mérito, ou seja, adentrasse o exame da causa de pedir e do pedido, para rejeitá-lo. Natural questionamento não demorou a surgir: o exame do mérito, sem citação do réu, não estaria a vulnerar o contraditório e o devido processo legal? O questionamento serviu de fundamento, mesmo, para o ajuizamento, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.695, até hoje pendente de julgamento. A resposta, contudo, segundo este escrito, é negativa. A decisão dada pelo juiz será necessariamente desfavorável ao autor e, via de consequência, favorável ao réu, motivo por que não se frustra o contraditório. A improcedência liminar respeita, ademais, o devido processo legal, estabelecido pela lei de forma mais sofisticada quando presentes hipóteses específicas. Feito esse registro inicial, convém, para o fim de aprofundar a comparação entre os tratamentos dispensados à improcedência liminar por um e outro Código, transcrever a norma na lei de 73, estabelecida no artigo 285-A: "Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada." Do ponto de vista técnico, a norma trazia equívocos. Em primeiro lugar, porque não há falar em "matéria controvertida" se a improcedência liminar do pedido acontece antes da citação do réu. A controvérsia pressupõe conflito entre alegações, conflito esse que faz surgir os chamados pontos controvertidos, questões a serem dirimidas pelo juiz e que integram o objeto do processo. Dado que a improcedência liminar ocorre antes da citação, ainda não foi ofertada contestação pelo réu, razão por que não há, ainda, controvérsia. Ora, as alegações do autor não encontraram oposição da parte contrária. Outra imprecisão contida no antigo artigo 285-A dizia respeito ao requisito de que a matéria fosse "unicamente de direito". Toda demanda, porém, traz consigo, em alguma medida, elemento fático. Desde Miguel Reale e sua teoria tridimensional do direito que as normas vêm colorir fatos, preceitos primários a atrair a incidência de dispositivo legal - ressalva que merece ser feita é a hipótese de controle de constitucionalidade in abstracto. A expressão "casos idênticos" também se revelava inconveniente. Quando se fala em casos idênticos, se pressupõe identidade dos elementos da ação (partes, pedido e causa de pedir). A norma inserta no artigo 285-A, quando falava em sentença de "total improcedência em outros casos idênticos", dava a entender que ou haveria coisa julgada (se a sentença proferida no "caso idêntico" já houvesse transitado em julgado), ou haveria litispendência (se a sentença proferida no "caso idêntico" ainda não houvesse transitado em julgado). Obviamente, a norma busca, em verdade, alcançar casos distintos (porque ao menos as partes serão diferentes), mas com causas de pedir e pedidos, esses sim, idênticos. Derradeira inconsistência residia na expressão "reproduzindo-se o teor da [sentença] anteriormente prolatada". Quando desse pela improcedência liminar do pedido, o juiz não deveria "reproduzir" a sentença antes prolatada. Ao menos o relatório da sentença haveria de ser diferente. O que se pretendia dizer é que a sentença de improcedência liminar adotaria as razões de decidir das sentenças antes proferidas, com adaptação, no mais, às peculiaridades do caso concreto, argumento esse que ganha ainda mais força em razão do ônus argumentativo que com o CPC/2015 recai de forma expressa sobre o juiz ao enquadrar o caso concreto à hipótese que dê ensejo à improcedência liminar (artigo 489, § 1º, V, CPC/2015). O ganho de qualidade técnica com o novo Código, pois, foi evidente. A redação foi simplificada, retificadas as impropriedades aduzidas acima. Eis, aliás, a norma inserta no antes mencionado artigo 332, em seu caput: "Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido (...)." As expressões "matéria controvertida unicamente de direito", casos idênticos" e "reproduzindo-se o teor da [sentença] anteriormente prolatada" desapareceram. Especificamente sobre a substituição do termo "matéria unicamente de direito" por "causas que dispensem a fase instrutória"1, houve, para além de melhoramento técnico, uma ampliação do âmbito de incidência da norma, que passa a abarcar a hipótese em que haja matéria fática e todas as provas pré-constituídas já sejam trazidas na inicial, mas insuficientes para respaldar a pretensão autoral. Dito de outro modo, os fatos provados pelo autor já com a inicial dispensam a fase instrutória. A uma, porque todas as provas necessárias já acompanharam a inicial e, a duas, porque despicienda a produção de provas pelo réu. O exemplo dado no parágrafo anterior, agora alcançado pela norma trazida pelo artigo 332, CPC/2015, somente é possível porque o que justifica a improcedência liminar é o entendimento jurídico já consolidado em sentido contrário ao pedido autoral. Ainda que se admitam como verdadeiros os fatos alegados pelo autor (por força de provas pré-constituídas), esses fatos não produzem os efeitos por aquele almejados. A divergência, pois, não é quanto a que fatos trarão que consequências jurídicas, mas quanto a fatos trazidos pelo autor que têm já sedimentadas na jurisprudência consequências jurídicas distintas das invocadas por ele. Ainda quanto ao ponto, a dispensa da fase instrutória como requisito da improcedência liminar do pedido evidencia a lógica do instituto: prescindindo-se de produção de provas, o processo, caso seguisse seu rito "normal", teria o mérito julgado antecipadamente (artigo 355, I, CPC/15)2. A diferença entre a improcedência liminar e o julgamento antecipado do mérito, pois, seria, no segundo caso, a citação e oferta de contestação pelo réu. Como a improcedência liminar pressupõe o absoluto descabimento da pretensão do autor, dispensada, mesmo, a defesa do réu, haveria economia de tempo com a antecipação da sentença e a eliminação da contestação, absolutamente desnecessária. No novo Código há, ademais, ganho com a objetivação das hipóteses em que seja possível a improcedência liminar. Em lugar de deixar margem ampla ao subjetivismo judicial sobre a aplicabilidade da improcedência liminar sempre que "no juízo já houver[sse] sido proferida sentença de total improcedência", o CPC/2015 delimita, restritivamente, quando o instituto será possível: sempre que a pretensão contrariar enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. Mais: ao trazer como nova hipótese de improcedência liminar o pronto reconhecimento da decadência ou da prescrição, o CPC/2015 corrige equívoco antigo do Código anterior, que situava a matéria nas hipóteses de indeferimento liminar da inicial (artigo 295, IV, CPC/1973). O equívoco se dava em razão de o artigo 267, I, CPC/1973, prever que o indeferimento liminar da inicial redundava na extinção do processo sem resolução do mérito, quando, em verdade, o reconhecimento da prescrição ou da decadência importa em extinção com resolução do mérito. Correto, pois, o CPC/2015, que retira a matéria das hipóteses de indeferimento liminar da inicial e a situa como caso de improcedência liminar. Pois bem. Caso o autor apele da sentença de improcedência liminar, o magistrado terá o prazo de cinco dias para retratar-se. Havendo retratação, será o réu citado para a audiência de conciliação ou de mediação, sendo retomado o natural curso do processo. Não havendo retratação, o juiz citará o réu para oferecer contrarrazões no prazo de quinze dias, em seguida remetendo os autos ao Tribunal. Vale registrar que o ônus argumentativo do autor contra sentença fulcrada em uma das hipóteses dos incisos do artigo 332 se voltará para a demonstração da singularidade de seu processo, isto é, que a demanda atual não é igual à outra em que proferida a decisão paradigmática, e que, por isso, não pode ser aplicada ao seu caso. A exemplo do que abordado na apelação contra a sentença que indefere liminarmente a inicial, caberia aqui dúvida sobre se em sede de apelação eventualmente provida pelo Tribunal contra sentença de improcedência liminar adentrar-se-ia de pronto o julgamento do mérito em segundo grau. O artigo 1.013 do CPC/2015 traz as hipóteses da chamada "teoria da causa madura", que reza que quando o Tribunal cassar/reformar a sentença de primeiro grau, estando o processo em condições de julgamento, deverá a Corte, em vez de remeter os autos ao juízo de primeiro grau para prolação de nova sentença, proferir, ela própria, a Corte, desde logo, acórdão julgando a contenda. A improcedência liminar está fora das hipóteses enunciadas pelo artigo 1.013, que cuidam da aplicabilidade da teoria da causa madura, à exceção, unicamente, da prescrição e da decadência, insertas no § 4º daquele dispositivo ("Quando reformar sentença que reconheça a decadência ou a prescrição, o tribunal, se possível, julgará o mérito, examinando as demais questões, sem determinar o retorno do processo ao juízo de primeiro grau"). Isso quer dizer que é em tese possível ao tribunal, provido o apelo e cassada a sentença de improcedência liminar do pedido por reconhecimento da prescrição ou da decadência, julgar desde logo o mérito. Nas demais hipóteses de improcedência liminar, provido o recurso, serão os autos devolvidos ao primeiro grau. A natural preocupação que já se levanta sobre o instituto da improcedência liminar consiste no engessamento dos juízos de primeiro grau e do risco de que casos diferentes acabem caindo em "vala comum". Aliás, são essas questões que sempre surgem quando da abordagem dos diferentes institutos presentes no novo Código que refletem o fortalecimento dos precedentes judiciais. São esses, porém, temas para escritos futuros. ____________ 1 Retificação semelhante foi realizada no artigo 355, I, CPC/2015, aprimorando-se a redação em relação ao artigo 330, I, CPC/1973. 2 Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando:I - não houver necessidade de produção de outras provas;