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Os contratos na revisão e atualização do Código Civil brasileiro: Oportunidade para criar oportunidades

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Atualizado em 3 de novembro de 2025 16:22

Algumas reflexões introdutórias

O PL 04, de 2025, do Senado Federal da República está sendo discutido em audiências públicas neste momento, novembro de 2025, por uma comissão especial de senadores escolhidos para a tarefa de analisar e debater os diferentes aspectos do projeto para, então, propor uma redação a ser votada pelo conjunto daquela casa parlamentar. Para além de uma perspectiva técnica e jurídica de análise a instalação dessa comissão de senadores e as participações, já são centenas delas, de emendas de parlamentares daquela casa e de cidadãos presentes às audiências públicas, o momento é de intensa vitalidade da democracia brasileira, vigorosa no debate em torno da lei mais importante para o cidadão comum: o CC, que rege nossas vidas de antes do nascimento até depois de nossa morte.

O CC de 2002 de destacada relevância para trazer a sociedade brasileira para o século XX, em que as relações pessoais e negociais já não guardavam similitude com aquelas do século XIX quando o Código de 1916 foi gestado, hoje é ele próprio que não dá mais conta da complexidade e da diversidades dessas relações. O século XXI, de intenso avanço tecnológico, de grandes mudanças nas relações pessoais, que assiste à transformação dos valores morais e dos afetos, que abriga a economia de dados como ponto principal para o desenvolvimento econômico-financeiro das empresas e das nações, clama por um CC atualizado a essas novas perspectivas que se impõem, que não pedem licença para existir, e que poderão nos atropelar se resistirmos em aceitar a necessidade da mudança.

Se atribui a Georges Ripert (1880-1958) a frase: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito". Para não correr esse risco a sociedade brasileira precisa se empenhar em aprimorar seu Direito Civil, participar intensamente do debate que está sendo construído no parlamento, contribuir para o aprimoramento do PL 04, de 2025, e garantir que a realidade não se sobreponha ao direito e não faça dele um aspecto secundário subjugado por práticas sociais que se consolidam como autênticas, mesmo às margens da lei. Esse é o pior cenário para uma sociedade que tem por objetivo ser justa, livre e solidária.

A interpretação dos contratos civis e empresariais na revisão e atualização do CC

A redação proposta para o art. 421-B no PL 04, de 2025, realiza em boa hora a taxinomia dos contratos no direito brasileiro de modo que haja clareza de que existem contratos celebrados entre empresas, contratos de consumo, contratos de trabalho e contratos civis.1

Trata-se de aspecto de grande relevância para permitir que sejam aplicadas a cada uma dessas relações exatamente o tratamento legal mais adequado e produtivo, de forma a evitar práticas que tragam insegurança jurídica como acontece, por exemplo, quando se aplica a lei de proteção e defesa do consumidor a relações empresariais que, a rigor, abrigam um vulnerável. Ou, quando há tratamento empresarial para uma relação trabalhista camuflada para impedir a proteção ao trabalhador em suas vulnerabilidades. Nenhuma dessas situações é positiva, por isso se impõe que seja respeitada a classificação dos contratos, dando a cada um deles o tratamento que sua configuração ontológica exige.

Nessa perspectiva, o art. 421-C do PL 04, de 20252, é objetivo e pragmático quando fornece parâmetros a serem aplicados à interpretação das cláusulas nos contratos civis e empresariais, portanto, presumidamente simétricos e paritários, de forma a respeitar, principalmente, a natureza do contrato, os objetivos perseguidos pelas partes naquela negociação e o fato de que são contratos em que os interesses econômicos devem ser respeitados, como garantia do desenvolvimento e do valor social da livre iniciativa.

Nelson Rosenvald3 ensina:

(...) Podemos dizer que o contrato contemporâneo é um ponto de encontro entre direitos fundamentais. A gradação da autonomia privada irá oscilar conforme a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas. Portanto, a intensidade da intervenção do princípio da igualdade material e a solidariedade no âmbito conferido primariamente à liberdade dos particulares, por intermédio das cláusulas gerais da boa-fé objetiva, função social do contrato e equilíbrio contratual, dependerá de estarmos diante de contratos empresariais (autonomia privada forte), civis (autonomia privada média) ou consumeristas/massificados/adesão/administrativos/mercados regulados (autonomia privada fraca).

(...)

Paritário é o contrato personalizado e negociado, sendo que na fase pré-contratual há diálogo sobre o conteúdo entre sujeitos que o redigem. Por sua vez, simétrico é o contrato no qual o processo de negociação e execução se dá sem preponderância de uma das partes. Em princípio, não se pressupõe assimetria ou vulnerabilidade, presumindo-se que as partes dispõem dos mesmos poderes de negociação. (...)

E Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk4 afirma com rigor científico:

O contrato paritário, ou seja, aquele que não é de adesão, contém em si presunção de liberdade substancial das partes que justifica, de per se, a imposição de autolimitação por parte do juiz (intervenção mínima) e, por consequência, a excepcionalidade da revisão contratual.

A presença, adicionalmente, da simetria (ou seja, a ausência de relação de dependência entre de um contratante frente ao outro), justifica ampliação dos espaços livres de coerção. As assimetrias que afastam a presunção legal precisam ser suficientemente relevantes, de modo a se constituírem como grave déficit concreto de liberdade substancial (ou seja, da possibilidade concreta de fazer escolhas valorosas), a ponto de ensejarem verdadeira relação de dependência de um contratante frente ao outro. Não é qualquer disparidade econômica ou informacional que afeta de modo relevante a possibilidade concreta de realizar escolhas.

Tudo isso vem em suporte aos pilares sobre os quais se erige a força obrigatória dos contratos, quais sejam, o valor jurídico da promessa, como expressão jurígena advinda do exercício da liberdade, e a tutela da confiança legítima. 

A redação proposta para o art. 421-C leva em conta características que são essenciais aos contratos civis e empresariais, como a natural disparidade e assimetria desses tipos contratuais; a diversidade entre a boa-fé objetiva no campo empresarial e aquela que deve ser praticada em outras atividades, porque na atividade empresarial a boa-fé objetiva não prescinde da realização do resultado de lucro desejado pelas partes, único fator que as leva a se relacionarem; e, a relevância de usos e costume entre empresários de qualquer porte econômico, prática que subsiste no plano nacional e internacional até mesmo em contratos de grande relevância econômica como os contratos de resseguro, firmados entre seguradoras e empresas resseguradoras.

O art. 421-C também destaca a relevância da atipicidade natural dos contratos civis e empresariais para a interpretação de suas cláusulas; e, o tratamento que deve ser dado ao sigilo empresarial, forma de proteção dos segredos empresariais ou negociais, cada vez mais relevantes em ambiente econômico em que prepondera a utilização de dados, algoritmos e inteligência artificial em sistemas computacionais sofisticados para os quais a proteção dos códigos e fontes é imprescindível.

As características peculiares de cada modalidade de contrato precisam estar no centro do trabalho intelectual do intérprete e aplicador do Direito. Os contratos simétricos e paritários, ainda que com objetivos semelhantes como a compra e venda, a locação ou a transferência de tecnologia, guardam características próprias produzidas pelas partes contratantes para a melhor adequação a seus objetivos e esses aspectos, precisam ser considerados no trabalho de interpretação, em especial para solução de conflitos em ambiente judicial ou extrajudicial.

Outro aspecto relevante da revisão e atualização do CC brasileiro, PL 04, de 2025, está alocada no art. 421-E5, que trata da interpretação de contratos conexos, interligados, coligados ou redes de contratos, fenômeno cada vez mais comum no ambiente de negócios em diferentes partes do planeta.

Patrícia Cândido Alves Ferreira6 evidencia em suas reflexões:

[...] O formato horizontal (ou menos verticalizado) de empresa também se torna cada vez mais frequente, em especial com a modernização da gestão dos negócios, a tecnologia da informação e o controle da cadeia de suprimentos externa, os quais permitem custos de transação menores e mecanismos de preços mais brandos. Empresas horizontalizadas podem operar, por exemplo, na terceirização e na descentralização de serviços ou na aquisição de insumos de empresas parceiras, de modo a se concentrarem apenas em seu produto ou serviço final.

Arnaldo Rizzardo Filho7, pesquisador do tema de redes contratuais, contribui com suas reflexões:

A economia contemporânea compõe-se de relações contratuais organizadas em formato de rede, como as redes de franquias, de agências e de distribuições, algumas plataformas digitais, as associações comerciais e os pools imobiliários, que são relações contratuais coletivas, coordenadas e cooperadas. Estruturalmente, as relações contratuais do capitalismo industrial são prototipadas segundo estruturas verticais em que as partes, consideradas em suas individualidades, competem ela maior vantagem econômica da relação. Já as relações contratuais do capitalismo de aliança possuem estruturas horizontalizadas, em que as partes, pensadas no coletivo do qual fazem parte, cooperam e coordenam-se em busca do benefício econômico geral.

Juan Ignacio Ruiz Peris, catedrático de Direito Mercantil da Universidad de Valencia, Espanha, define rede empresarial como "(...) um conjunto de empresários juridicamente independentes, porém economicamente vinculados e interdependentes como consequência de compartilharem a exploração de um bem jurídico, sinais distintivos, tecnologia, modelo de empresa, produtos que se distribuem ou serviços que se prestam".8 (tradução livre).

A coligação entre empresas por meio de redes ou de contratos coligados é uma realidade na atividade econômica há muito tempo. O exemplo das franquias é o mais usualmente mencionado, porém a distribuição de combustíveis no Brasil talvez seja um dos mais antigos modos de coligar contratos e empresas. Nesses contratos, o distribuidor de combustível firma um contrato com a Petrobrás para aquisição de produtos; igualmente firma um contrato com uma pessoa jurídica que atua como posto distribuidor de combustíveis; mas, também estabelece relação contratual de locação de imóvel para que o posto se instale e o combustível seja distribuído naquele local específico. E, por fim, firma com o proprietário do posto de combustível vários contratos de comodato em relação aos tanques de armazenamento de combustível e da testeira que exibe a logomarca do distribuidor, e um contrato em que autoriza o uso da marca de sua logomarca.

Não à toa se atribui a Ronald Coase a definição da empresa como um "feixe de contratos", o que o autor explica como necessidade para redução de custos, prática que tem se tornado cada vez mais frequente na sociedade contemporânea em que as diferentes empresas se organizam em colaboração econômica umas com as outras, construindo cadeias de suprimento e serviços cada vez mais complexas e eficientes.

Nessa perspectiva contemporânea de redes contratuais o CC brasileiro, no PL 04, de 2025, trás uma importante contribuição para a interpretação dessa nova modalidade de relações contratuais, importante para destravar a atividade empresarial para que ela tenha cada vez mais criatividade para assegurar a eficiência dos negócios, em especial no mundo digital que vivemos na atualidade.

Conclusões possíveis neste momento de debates do PL 04 de 2025.

O Direito Civil brasileiro vive um momento produtivo que pode trazer ganhos importantes para toda a sociedade. O debate em torno do PL 04, de 2025, do senador Rodrigo Pacheco, entregue a uma comissão especial de senadores para análise, discussão de emendas e debates em audiências públicas, poderá ter como resultado uma adequação significativa do regime jurídico de contratos civis e empresariais à realidade da produção econômica contemporânea, em que as empresas buscam soluções cada vez mais digitais, inovadoras, eficientes e que atendam os mais diversos núcleos sociais em diferentes regiões do planeta.

As críticas, sugestões e propostas encaminhadas à Comissão do Senado por diferentes atores sociais e econômicos será uma contribuição ao aprimoramento dos objetivos e do próprio texto do projeto, mas será também o exercício da democracia direta, instrumentalizada por diferentes grupos de interesse por meio dos espaços criados para o diálogo técnico-jurídico, social e econômico.

A sociedade brasileira não pode perder a oportunidade de participar da construção de um CC que atento às experiências consolidadas a partir de 2003, com a entrada em vigor do Código liderado por Miguel Reale, avance para inserir mudanças que propiciem melhores condições sociais e econômicas para todos.

Por que deveríamos perder essa oportunidade? Não! É hora de avançar, aprimorar e construir o Direito Civil do século XXI. Não devemos deixar passar essa oportunidade.

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1 Art. 421-B. Deve-se levar em conta para o tratamento legal e para a identificação das funções realizadas pelos diversos tipos contratuais, a circunstância de disponibilizarem:

I - bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas, típicos dos contratos celebrados entre empresas;

II - bens e serviços terminais das cadeias produtivas ao consumidor final, marca dos contratos de consumo;

III - força de trabalho a uma cadeia produtiva, característica dos contratos de trabalho;

IV - bens e serviços independentemente de sua integração a qualquer cadeia produtiva, como se dá com os contratos civis.

2 Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.

§ 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise:

I - os tipos contratuais que são naturalmente díspares ou assimétricos, próprios de algumas relações empresariais, devem receber o tratamento específico que consta de leis especiais, assim como os contratos que decorram da incidência e da funcionalidade de cláusulas gerais próprias de suas modalidades;

II - a boa-fé empresarial mede-se, também, pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte;

III - na falta de redação específica de cláusulas necessárias à execução do contrato, o juiz valer-se-á dos usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual;

IV - são lícitas em geral as cláusulas de não concorrência pós-contratual, desde que não violem a ordem econômica e sejam coerentemente limitadas no espaço e no tempo, por razoáveis e fundadas cláusulas contratuais;

V - a atipicidade natural dos contratos empresariais;

VI - o sigilo empresarial deve ser preservado.

§ 2º Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econômica entre as partes, não se aplicará o disposto neste artigo.

3 ROSENVALD, Nelson. Comentários ao Artigo 421 do Código Civil. In PELUSO, Cezar [et.al] Código Civil Comentado. 16ª ed. Barueri: Manole, 2022, p. 451.

4 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovsky. O Direito Contratual No Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 12/6/25.

5 Art. 421-E. Devem ser interpretados, a partir do exame conjunto de suas cláusulas contratuais, de forma a privilegiar a finalidade negocial que lhes é comum, os contratos:

I - coligados;

II - firmados com unidade de interesses;

III - celebrados pelas partes de forma a torná-los estrutural e funcionalmente reunidos;

IV - cujos efeitos pretendidos pelas partes dependam da celebração de mais de um tipo contratual;

V - que se voltem ao fomento de vários negócios comuns às mesmas partes.

6 FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. A empresa, o mercado e os contratos na visão de Ronald Coase. Disponível aqui. Acesso em 2/11/25.

7 RIZZARDO FILHO, Arnaldo. Curso de Redes Contratuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022, p. 237.

8 PERIS, Juan Ignacio Ruiz. Del Contrato Bilateral a La Relación de Red. In PERIS, Juan Ignacio Ruiz (Director). Hacia Un Derecho para Las Redes Empresariales. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2009, p. 09.

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FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. A empresa, o mercado e os contratos na visão de Ronald Coase. Disponível aqui. Acesso em 2/11/25.

RIZZARDO FILHO, Arnaldo. Curso de Redes Contratuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

ROSENVALD, Nelson. Comentários ao Artigo 21 do Código Civil. In PELUSO, Cezar [et.al] Código Civil Comentado. 16ª ed. Barueri: Manole, 2022.

RUZYK, Carlos Eduardo Pianovsky. O Direito Contratual No Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 12/6/25.