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Fisco municipal deve respeitar o valor do contrato de compra e venda na cobrança do ITBI

Com o julgamento do REsp 1.937.821/SP, reduziu-se a discricionariedade de autoridades tributárias municipais quanto à adoção de métricas particulares de mensuração do "valor venal" de imóveis.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Atualizado às 13:12

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A transferência de propriedade de um bem imóvel é perfectibilizada mediante registro da escritura de compra e venda na matrícula do respectivo imóvel, evento que toma lugar perante o competente registro de imóveis. De igual sorte, a transferência de propriedade de imóveis implica a incidência do ITBI - Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - a ser arcado pelo adquirente. Se, de um lado, por certo tempo perdurou o agir questionável de fiscos municipais, majorando a base de cálculo do imposto mediante avaliações unilaterais de imóveis, por outro lado, a prática tende a cessar por conta de recente posicionamento do STJ.

O ITBI é um imposto de competência municipal. Está disciplinado, em essência, no art. 156 da Constituição Federal e nos arts. 35 a 42 do CTN - Código Tributário Nacional. Em linhas gerais, pode-se afirmar que o imposto deve ser pago pelo contribuinte que adquiriu bem imóvel, passando a ser seu proprietário.

O valor pecuniário a ser pago a título de ITBI depende da fixação de dois parâmetros: a base de cálculo e a alíquota. A base de cálculo do imposto, como dispõe o art. 38 do CTN, será o "valor venal" dos bens transmitidos. Já a alíquota varia de município para município, exemplificativamente, sabe-se que, salvo exceções legalmente previstas, a alíquota corresponde a 3% em São Paulo1, 2,7% em Curitiba2e 3% em Porto Alegre3. Nesse sentido, se um imóvel sediado em São Paulo tem valor venal de R$ 1.000.000 milhão e é adquirido sem financiamento, aplicando-se a alíquota de 3%, caberá ao adquirente pagar o montante de R$ 30.000 mil a título de imposto.

Não obstante, a redação constante do art. 38 do CTN acabou dando azo a interpretações distintas e conflitantes. Embora o termo "valor venal" prontamente remeta ao valor de venda do bem imóvel, nem sempre o valor é diretamente obtido a partir do contrato de compra e venda que deu azo à transferência de propriedade e, por conseguinte, à incidência do imposto. Sabe-se que inúmeros fiscos municipais adotaram métricas próprias para aferir o valor de imóveis, exemplificativamente, valores correntes de transações de mesma natureza, valores de áreas vizinhas, características do imóvel, infraestrutura urbana da região, dentre outros aspectos correlacionados.

É dizer, os fiscos municipais procuraram criar mecanismos para proteger-se do valor atribuído aos imóveis exclusivamente por parte de proprietários e adquirentes no âmbito de contratos de compra e venda. Por vezes, o valor do contrato de compra e venda somente é levado em conta, para fins de determinação do valor devido a título de ITBI, caso supere o valor indicado pela métrica adotada pelo fisco4. Esse cenário, de um lado, resguarda a autoridade municipal de avaliações fraudulentas de bens imóveis; por outro lado, também dá origem a críticas, pois permite que a fazenda municipal goze do melhor dos dois mundos: os critérios do fisco para avaliação de imóveis são observados quando implicam majoração de arrecadação, mas são descartados quando implicariam redução de arrecadação5.

De mais a mais, outra problemática relacionada ao tema diz respeito ao fato de que a avaliação advinda do fisco, no mais das vezes, era imposta ao contribuinte unilateralmente, de imediato, sem a instauração de processo administrativo que permitisse contraditório6. Isto é, na prática, caso um contribuinte adquirisse um imóvel por um valor "X", e.g., R$ 1.000.000 milhão, mas o fisco municipal lhe impusesse a obrigação de recolher o imposto por um valor "X + Y", e.g., R$ 1.250.000 milhões, não era dado ao contribuinte a oportunidade de comprovar que o montante constante do contrato de compra e venda era uma melhor representação do valor "real" do imóvel, seu valor de venda no mercado, do que aquela obtida a partir da métrica adotada pela autoridade tributária.

Em que pese haja inúmeros julgados pátrios ratificando a adoção de critérios próprios por parte dos fiscos municipais para aferição do "valor venal" de imóveis a compor a base de cálculo do ITBI7, o cenário jurisprudencial não mais suporta referido entendimento. A partir do primeiro trimestre de 2022, à ocasião do julgamento do recurso especial 1.937.821/SP, STJ, em sede de julgamento de recurso especial representativo de controvérsia, assentou que o "valor venal" do imóvel, para fins de definição da base de cálculo do ITBI, é aquele declarado pelo contribuinte no contrato de compra e venda, salvo exceções em que as discrepâncias são de pronta aferição: 

"6. Em face do princípio da boa-fé objetiva, o valor da transação declarado pelo contribuinte presume-se condizente com o valor médio de mercado do bem imóvel transacionado, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade, estando, nessa hipótese, justificada a instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de cálculo, em que deve ser assegurado ao contribuinte o contraditório necessário para apresentação das peculiaridades que amparariam o quantum informado (art. 148 do CTN).

7. A prévia adoção de um valor de referência pela Administração configura indevido lançamento de ofício do ITBI por mera estimativa e subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois representa arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo."

(STJ, Recurso Especial nº 1.937.821/SP, Primeira Seção, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. em 24.02.2022, DJe em 03.03.2022)

Dentre os fundamentos suscitados pelo Relator em prol da adoção do valor declarado pelo contribuinte como base de cálculo do ITBI, destaca-se o argumento de que o preço de determinado bem imóvel não irá variar tão somente por conta de características intrínsecas ao bem, tal como localização e metragem, mas também a partir de outros aspectos igualmente relevantes, como os interesses pessoais do comprador, "escassez do imóvel na região, proximidade com o trabalho e/ou familiares, etc." e do vendedor, "necessidade de venda para despesas urgentes, mudança de investimentos, etc.". O relator, porém, faz a expressa ressalva de que o valor constante do contrato de compra e venda não deve ser adotado como base de cálculo quando o preço praticado entre os particulares for "nitidamente incompatível" com o preço de mercado.

De igual sorte, o precedente analisa a conduta dos fiscos municipais sob a ótica do instituto do lançamento tributário. Segundo o relator, o ITBI somente comportaria lançamento originário por declaração ou por homologação; "sendo inviável ao fisco proceder, de antemão, ao seu lançamento de ofício.". Explica-se: o lançamento de ofício é aquele "realizado por iniciativa da autoridade tributária"8. Ocorre que as particularidades do ITBI não admitem que o lançamento tome lugar por exclusiva ação da autoridade tributária, pois esta não tem acesso ao contexto fático que resultou no valor constante do contrato de compra e venda subjacente: "não dispondo de todos os elementos fáticos necessários ao juízo de certeza quanto ao valor do imóvel transmitido, não há como a administração dispensar a participação do contribuinte no procedimento regular de constituição do crédito".

De todo modo, o posicionamento da Corte Superior não extirpa do fisco municipal a possibilidade de impugnar o valor a ser adotado para fins de cálculo do ITBI. O que ficou assentado é que eventual impugnação passaria a depender de prévio processo administrativo, o que permitirá ao contribuinte exercer seu direito de defesa.

Apesar da objetividade dos termos constantes do acórdão do recurso especial  1.937.821/SP, subsiste certo temor de que não se verifique, de imediato, mudança no agir de todo fisco municipal. Em que pese a administração esteja vinculada às decisões do Poder Judiciário9, não se pode ignorar a possibilidade de que a medida, majoração da base de cálculo mediante adoção de critérios próprios, siga economicamente racional aos municípios, basta que seja diminuto o número de contribuintes que se insurja contra o ato administrativo.

Não obstante, tendo-se presente os termos do precedente advindo do STJ, impugnações judiciais por parte dos contribuintes deverão ser exitosas, salvo ausência de similitude fático-jurídica ou posterior superação do entendimento por parte da Corte. Impõe-se destacar que o recurso especial 1.937.821/SP foi julgado na sistemática de recurso repetitivo, in casu, tema repetitivo 1.113, implicando a vinculação do poder Judiciário à sua ratio decidendi10 por força do art. 927, III, do CPC. Ainda, consoante art. 489, § 1º, VI, do CPC, eventual decisão que não siga o precedente invocado pela parte será considerada decisão não fundamentada, e, portanto, nula11.

O quadro jurisprudencial assentado pelo Tribunal da Cidadania a partir do julgamento do tema repetitivo 1.113 já ecoa em decisões judiciais de TJs. A título exemplificativo, nota-se que o TJ de São Paulo conta com diversos acórdãos fazendo expressa referência ao precedente, de modo a assegurar ao adquirente de bem imóvel a possibilidade de pagar o ITBI com base no valor constante do contrato de compra e venda celebrado com o prévio proprietário, e, assim, afastando métricas unilaterais de administrações municipais12.

Em conclusão, o recurso especial 1.937.821/SP representa uma vitória dos contribuintes. O STJ, frente a um cenário potencialmente ambíguo, afinal as métricas dos fiscos particulares podiam servir tanto ao positivo propósito de evitar fraudes quanto ao negativo propósito de simplesmente majorar a arrecadação tributária, optou por privilegiar a boa-fé do contribuinte, garantindo a prevalência do valor por ele declarado como base de cálculo do ITBI. Caso a autoridade tributária municipal entenda que a compra e venda subjacente contou com preço inadmissível, terá ampla possibilidade de impugná-lo, desde que, para tanto, instaure procedimento administrativo, em que o contribuinte terá a oportunidade de exercer sua defesa.

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1 Lei Municipal nº 11.154/1991. Art. 10. O imposto será calculado: II - nas demais transmissões, pela alíquota de 3% (três por cento).

2 Lei Complementar Municipal nº 108/2017. Art. 9º A alíquota do imposto é de 2,7% (dois vírgula sete por cento) para qualquer transmissão, exceto nas hipóteses dos arts. 10 e 11 desta lei, quando houver disposição diversa.

3 Lei Complementar Municipal nº 197/1989. Art. 16 A alíquota do imposto é de 3% (três por cento), exceto nas hipóteses dos incisos abaixo, quando houver disposição diversa: (...).

4 "A aferição da base de cálculo é feita caso a caso, podendo o Fisco acatar o valor pelo qual está sendo realizada a compra e venda noticiada pelo contribuinte ou, se inferior ao valor de mercado, lançar o tributo por montante superior que efetivamente corresponda ao valor venal." PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. - 13. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 421.

5 "[...] [O]s Municípios, em virtude de problemas socioeconômicos, desrespeitam de maneira desenfreada, por meio do desvirtuamento do exercício de sua respectiva competência tributária, os princípios sedimentados na estrutura de nosso sistema jurídico, visando implementar a sua fonte primária de renda, qual seja a tributação. Tal fato pode ser comprovado a partir da análise das diversas legislações ordinárias municipais, as quais, no que tange ao ITBI, adotam como sua base de cálculo o preço da venda do bem imóvel, quando este ultrapassar o seu valor venal, o que demonstra nitidamente a ganância destes entes políticos em enriquecer os cofres públicos às custas da desconsideração do denominado Estatuto do Contribuinte, o qual tem por finalidade circunscrever a atuação do Poder Tributário aos dizeres de nosso Texto Supremo." CONTIPELLI, Ernani de Paula. A base de cálculo do ITBI. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 35, nov.-dez./2000.

6 Sobre o ponto, vale destacar que o art. 1º, § 2º, da Lei Federal nº 7.433/1985, com redação dada pela Lei Federal nº 13.097/2015, dá origem a interpretações no sentido de que a legislação, ao determinar que "o Tabelião consignará no ato notarial a apresentação de documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos", teria "imposto aos tabeliães de notas a proibição de lavrar escritura referente a imóvel sem exigir prévia comprovação do pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis entre vivos." (GUEDES, Maurício Barroso. Comprovação do recolhimento do ITBI perante o Tabelionato de Notas ou do Registro de Imóveis? Revista de Direito Imobiliário, vol. 80, jan.-jun./2016.

7 Exemplificativamente, veja-se o seguinte julgado: "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS A TÍTULO DE ITBI. BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO. VALOR VENAL DO IMÓVEL. ART. 38 DO CTN. ESTIMATIVA FISCAL NÃO INFIRMADA POR PROVA IDÔNEA. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO IMPUGNADO. 'A base de cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel objeto da transmissão ou da cessão de direitos reais a ele relativos, ficando à repartição municipal, ante sua competência exclusiva (art. 156, I da CF), a discricionariedade para realizar sua própria estimativa fiscal, a partir dos critérios legais que garantam a isonomia de tratamento e de atribuição de valor. Impossibilidade de se considerar, para efeito de cálculo do tributo, o valor da efetiva transação imobiliária realizada.' ('ut' ementa da Apelação Cível nº 70070695465, julgada pela 22ª Câmara Cível deste Tribunal). [...]. Precedentes desta Corte. RECURSO PROVIDO." (Apelação Cível, Nº 70082155086, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Miguel Ângelo da Silva, Julgado em: 29-08-2019)

8 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. - 35. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 181.

9 "O Código de Processo Civil em vigor reafirma, de maneira irretorquível, que o conteúdo de um precedente é o próprio conteúdo da lei por ele interpretada. Noutros termos, é a norma jurídica vigente em nosso ordenamento. Dessa observação, exsurgem importantes consequências que atingem todo ordenamento jurídico e condicionam a aplicação da lei conforme o conteúdo a ela atribuído pelas Cortes Superiores. A referência feita pelo caput do art. 927 aos juízes e tribunais evidentemente não exclui a sujeição da Administração e dos tribunais administrativos aos precedentes. De um lado, porque seria ilógico e anacrônico imaginar que os atos produzidos pelos integrantes do Poder Judiciário, responsáveis pelo controle da legalidade, estariam sujeitos aos precedentes, mas não estariam os atos administrativos judicialmente controlados. De outro lado, porque o precedente corresponde à expressão final da lei (norma)." PANDOLFO, Rafael. Jurisdição constitucional tributária: reflexos nos processos administrativo e judicial. - 2. ed. - São Paulo: Noeses, 2020, p. 226 e 227.

10 "O que vincula nas decisões capazes de gerar precedentes são as razões constantes da sua justificação, as quais devem ainda ser lidas a partir do caso exposto no seu relatório. A decisão judicial é compreendida aí como um fato institucional - ou, como prefere a doutrina, como um "ato-fato". O precedente pode ser identificado com a ratio decidendi de um caso ou de uma questão jurídica - também conhecido como holding do caso. A ratio decidendi constitui uma generalização das razões adotadas como passos necessários e suficientes para decidir um caso ou as questões de um caso pelo juiz." MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos mediante processo comum, volume 2 [livro eletrônico]. - 6. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 796-797.

11 "Sentença sem motivação é, por preceito constitucional, sentença nula." DONIZETTI, Elpídio. Novo Código de Processo Civil comentado. - 2. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Atlas, 2017, p. 619.

12 A título exemplificativo, destaca-se: "APELAÇÃO - Mandado de segurança - ITBI. Ordem concedida para reconhecer que o imposto deve ser calculado sobre o valor venal do IPTU ou de negociação, o que for maior. Alegada legalidade do valor de referência adotado pelo Município. Descabimento. Imposto que deve ser calculado sobre o valor do negócio, conforme tese fixada pelo STJ no julgamento REsp 1937821. [...]" (TJSP, Apelação nº 1045247-90.2021.8.26.0053, Rel. Des. João Alberto Pezarini, j. em 13.04.2022).

Gabriel Lucca Garibotti

Gabriel Lucca Garibotti

Advogado tributarista na Gaiga Advocacia.

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