Dinâmica Constitucional

Apoio a ditaduras: omitir-se é tomar parte

A falta de manifestações contundentes contra o regime nicaraguense por parte do Brasil configura apoio tácito à nefasta ditadura.

10/3/2023

Em recente reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil se recusou a acompanhar a moção ratificada por mais de 50 nações, em repúdio pela reiterada prática de crimes contra a humanidade, cometidos na Nicarágua pelo regime do ditador Daniel Ortega.

Trata-se de grave equívoco cometido pela diplomacia brasileira, certamente orientada, neste sentido, pelo governo.

A falta de manifestações contundentes contra o regime nicaraguense por parte do Brasil configura apoio tácito à nefasta ditadura.

Ao assim agir, o governo brasileiro silencia frente à prática de crimes humanitários, devidamente relatados e comprovados pela comunidade internacional.

É inegável que apoiar ditaturas macula a imagem de qualquer país que pretenda ter protagonismo no cenário externo.

Quando um Estado respalda, ainda que de forma velada, regimes ditatoriais, passa a se afastar de um patamar mínimo de civilização, que deve guiar a ação internacional.

As feições totalitárias do regime imposto por Daniel Ortega são inquestionáveis e não passam despercebidas pela comunidade internacional, que luta pela preservação dos direitos humanos.

A conclusão da ONU é que, para calar opositores, o regime comete crimes contra a humanidade.

Vale lembrar que a Nicarágua está nas mãos de um ditador que governa com mão de ferro há pelo menos 16 anos. O quadro é de grave crise institucional e humanitária.

É notória a prática de gravíssimas perseguições contra aqueles que discordam do regime. Execuções, prisões arbitrárias, torturas, estupros e até mesmo retirada compulsória de nacionalidade fazem parte do cardápio de graves violações contra os direitos humanos.

O mundo assiste a um conjunto de medidas de viés totalitário, patrocinadas pelo Estado, voltadas à perpetuação no poder de um determinado grupo político.

Para agravar a situação, o governo Ortega se vale de grupos milicianos armados, de caráter paramilitar, que atuam violentamente contra toda a sorte de opositores.

Líderes religiosos, organizações de direitos humanos, observadores internacionais e jornalistas independentes vêm sendo expulsos do país, como forma de calar as suas vozes.

Há relatos, inclusive, de confisco de bens de organizações internacionais e de órgãos de imprensa por parte do Estado.

Em um país majoritariamente católico, nem mesmo líderes religiosos foram poupados. Vista como inimiga do regime, pelo fato de ter se disposto a mediar o conflito e assumir o papel de proteger as vítimas, a Igreja passou a sofrer forte repressão.

Religiosos foram presos e expulsos do país. A celebração de cultos por parte de críticos do regime foi proibida e até mesmo universidades ligadas à Igreja foram fechadas.

O poder executivo passou a controlar todos os poderes de Estado. Não mais se cogita de um Judiciário independente.

Fica claro que o pequeno país da América Central é vítima de terrorismo de Estado, com a finalidade de minar qualquer oposição política. Suprimir qualquer voz dissidente é a estratégia do regime.

A gravidade das ações do governo de Daniel Ortega contra os seus opositores exige uma forte reação por parte de todos aqueles que se dizem protetores dos direitos humanos.

Não há espaço para contemporizar, já que não se pode ser flexível ou transigente com tamanhas atrocidades.

Infelizmente, muitos daqueles que se dizem defensores dos direitos humanos calam-se em oportunidades cruciais, sobretudo quando determinados ditadores têm laços históricos com ideologias ou líderes que admiram.

Uma atitude seletiva, que em nada contribui para a meta de proteção integral da dignidade humana.

Falta, aos defensores seletivos dos direitos humanos, a noção elementar de que a única ideologia que move a causa deveria ser aquela que coloca o ser humano no centro das considerações de qualquer pensamento ou ação política.

Preferências ou inclinações partidárias devem ser protegidas em qualquer estado de direito, mas não ao ponto de chancelar violações ao bem mais caro à civilização: a dignidade humana.

As ideologias políticas de direita e de esquerda podem – e devem - ser compatíveis com o dever de proteção dos direitos humanos. Quando um expoente dessas ideologias se afasta da razoabilidade, deve ser plenamente rechaçado pela comunidade internacional.

O fato de Ortega ter uma ligação com líderes mundiais de esquerda não pode servir de justificativa para lhe passar panos quentes. Não é por menos que governos esquerdistas, como os da Colômbia e do Chile, firmaram, ao contrário do Brasil, o documento crítico ao regime.

Eis a seletividade que envergonha. Muitos que – com razão - teciam fortes críticas ao governo Bolsonaro, nada falam da omissão do atual governo em relação à tragédia que o povo nicaraguense sofre.

Estaríamos diante de categorização seletiva da prática de genocídio, uma nova categoria do direito internacional?

Não é possível apenas criticar o totalitarismo praticado por determinado campo e ignorar práticas igualmente nefastas provenientes de outro espectro ideológico. Incoerência, neste caso, é eufemismo.

Um agir com servilismo político, no lugar de postura crítica e reflexiva, voltada à perpetuação da cultura humanista e democrática.

A omissão de governos em combater ditaduras de estimação costuma ser justificada por meio de argumentos de baixa envergadura técnica.

Um deles é o recurso à soberania da nação estrangeira, que atrairia o princípio da não-intervenção.

Um Estado não pode invocar soberania para violar direitos humanos. Entendimento contrário coloca qualquer país fora de consensos mínimos que devem guiar o bloco internacional de constitucionalidade.

Outro seria a necessidade de se preservar a autodeterminação dos povos. Mais uma vez, um argumento fácil de ser afastado.

Quando uma população se vê subjugada pelo poder, torna-se incapaz de resistir à força e à opressão. O corpo social perde as condições mínimas para determinar o seu próprio destino.

A proteção da dignidade humana traduz um fim supremo de todo o direito,1 de modo que a sua afirmação como fundamento do Estado2 lhe conduz ao cume do ordenamento jurídico, como conceito-chave na relação entre a pessoa e o Estado.3

É por esta razão que a defesa dos direitos humanos perpassa a delimitação das fronteiras nacionais, traduzindo-se em verdadeiro imperativo para a comunidade internacional.

Do ponto de vista das relações internacionais exsurge a figura de um dever de proteção fundamental, que obrigue os Estados que fazem parte de tratados internacionais a não compactuarem com as violações sistemáticas aos direitos humanos.

A ordem internacional de inviolabilidade da dignidade humana tem a importante função de rechaçar todo e qualquer comportamento estatal que expresse uma falsa valoração do ser humano, por meio de ações que imponham fins aparentemente mais elevados à custa da própria pessoa.4

A proteção da dignidade humana é o valor jurídico mais elevado da comunidade internacional.

Com base neste fundamento, há que se aplicar o conceito de jurisdição universal, que legitima um Estado a investigar e julgar crimes cometidos fora de seu território, ainda que por meio da ação de estrangeiros.

A ideia é potencializar as chances de responsabilizar individualmente as autoridades que insistem em violar direitos humanos, ao agir escudadas por instituições corrompidas e dominadas pelo regime.

Não é demais lembrar que pelo menos uma das vítimas do regime era brasileira.

Trata-se de perspectiva adicional dos deveres de proteção internacionais dos direitos humanos, que obrigam os Estados a garantir justiça para as vítimas.

Na prática, a postura de abstenção do governo brasileiro na ONU vai em direção contrária. Falta, à chefia de Estado, clareza no sentido de que contemporizar com ditaturas, ainda que sob o argumento de manter canais abertos de diálogo, implica grave insulto às vítimas de tão cruel regime.

Não há como deixar de tecer críticas à postura do Brasil neste caso. Não se pode nem dizer que a prudência – sempre recomendável nas relações internacionais sensíveis – justificaria a omissão do Estado brasileiro.

Afinal, não há nada que poderia prejudicar os interesses internacionais do Brasil, pelo fato de se posicionar, veementemente, ao lado de dezenas de nações amigas, contrárias à tirania.

Por fim, não basta o Brasil expressar preocupação com os relatos de graves violações de direitos humanos na Nicarágua e se oferecer para receber os cidadãos degredados, ao mesmo tempo que se omite de chancelar documentos internacionais voltados à condenar a ditadura.

É necessário que o Brasil se junte, sem rodeios, ao conjunto das ações que são tomadas pelos órgãos internacionais competentes.

A omissão, neste caso, configura nítida forma de conivência, deplorável em todos os sentidos.

__________

1 BENDA, Ernst. Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht. In: Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen. et al. (Hrsg.). HVerfR. 2., neub. und erw. Aufl. Berlin, New York: Gruyter, 1994, Rdn. 4.

2 SILVA, José Afonso da. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n. 212, abr.-jun. 1998, p. 92.

3 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1988, B. III/1, p. 15.

4 STEIN, Ekkehart; FRANK, Götz. Staatsrecht. 20., neu. Auf. Tübingen: Mohr, 2007, § 29, p. 235s.

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Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque