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A usucapião extrajudicial, o livre convencimento e a Hidra de Lerna

A usucapião extrajudicial, o livre convencimento e a Hidra de Lerna

3/3/2022

Com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil em 2016, as discussões a respeito do “livre convencimento motivado” deveriam ter ficado no passado. Isso porque, após longo trabalho desenvolvido por parte da doutrina1 para demonstrar a inadequação de teses que admitem a livre formação do convencimento por titulares de decisões jurídicas com os paradigmas que sustentam o Estado Democrático de Direito, a palavra “livre”, sustentáculo normativo das referidas teses, foi retirada do artigo 371 do projeto de Código de Processo Civil.

Para afastar quaisquer dúvidas a respeito da superação da tese do livre convencimento pelo CPC de 2015, ou seja, de que não é possível extrair do artigo 3712 autorização para que decisões jurídicas sejam construídas no subjetivismo de quem decide, basta olhar a justificativa da emenda que deu origem ao citado dispositivo. Embora se reconheça que as justificativas de propostas legislativas, em regra, muito pouco contribuem para a interpretação de dispositivos legais e que a tarefa do hermeneuta é interpretar o que o legislador disse e não o que ele quis dizer, no caso do artigo 371 é possível extrair da justificativa os paradigmas, filosófico e jurídico, que sustentam a supressão do livre convencimento motivado da lei processual civil, daí a importância de consultá-la, como se passa a fazer:

Embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos, enfim, a interpretação e aplicação do direito, em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado “coparticipação”, com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade da superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte dos juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão.

Diante disso, ao atribuir sentido ao artigo 371, o intérprete não pode desconsiderar o fato de que o poder de livre convencimento, que, conforme destaca Streck3, está ligado ao que se pode chamar de privilégio cognitivo atrelado ao sujeito da modernidade e ao seu autoritarismo, foi expungido do projeto de Código de Processo Civil de 2015 como resultado do processo democrático de produção do Direito. Entretanto, a despeito da clareza da justificativa e da precisão redacional do referido artigo 371, parte da doutrina e alguns setores da justiça seguem incluindo a palavra “livre” na leitura do dispositivo, desconsiderando que o abandono da tese do “livre convencimento motivado” não se deu por acidente, mas, isto sim, tratou-se de um verdadeiro giro na forma de pensar a decisão jurídica, que não pode ser desconsiderado pelos juristas.

A inadequação de tal postura no âmbito do Poder Judiciário vem sendo amplamente denunciada por parte da doutrina, motivo pelo qual o foco de ataque ao problema neste artigo se dará em outro campo. Na senda dos que lutam pelo respeito à produção democrática do Direito, este texto busca chamar a atenção da comunidade jurídica para a “repristinação” da tese do “livre convencimento motivado” pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Em 15 de dezembro de 2017, mais de um ano após a entrada em vigor do novo CPC, o CNJ editou o Provimento nº 65, a fim de estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial, que passou a existir no Direito brasileiro justamente com o CPC de 2015 (art. 1.071). O artigo 13, §4º, do referido provimento, ao tratar da análise que o registrador de imóveis deve fazer dos documentos que instruem o requerimento de usucapião extrajudicial, resgata a tese do “livre convencimento motivado”, institucionalizando a discricionariedade no serviço público de registro de imóveis, nos seguintes termos:

A análise dos documentos citados neste artigo e em seus parágrafos será realizada pelo oficial de registro de imóveis, que proferirá nota fundamentada, conforme seu livre convencimento, acerca da veracidade e idoneidade do conteúdo e da inexistência de lide relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião. (grifo nosso).

Antes de adentrar no problema central do presente texto, cabe fazer um rápido nivelamento compreensivo acerca da atribuição decisória dos delegatários dos registros de imóveis, especialmente para os que estão chegando agora nas discussões que envolvem tais serviços públicos4. Nesse sentido, é importante ter presente que a razão de ser dos cartórios de imóveis é extraída do texto Constitucional. Conforme estabelece o caput do artigo 5º, a garantia da inviolabilidade do direito de propriedade é dever do Estado, que, para bem desempenhar a sua função, inseriu/manteve no Brasil, no que toca à propriedade imobiliária, um sistema de registro de direitos.

O sistema de registro de direitos sobre imóveis – consagrado em diversos dispositivos legais que compõem o ordenamento jurídico pátrio (e.g.: arts. 167, 169, 172 e 198, todos da lei 6.015/73; arts. 1.227 e 1.245, ambos do Código Civil) – atende a diretiva constitucional prevista no citado artigo 5º. Isso porque, ao mesmo tempo em que exige que os atos jurídicos envolvendo bens imóveis sejam registrados para gerar os efeitos que deles se esperam, impõe que o registro só seja lavrado após a realização da denominada qualificação registral5 pelo delegatário do serviço, profissional do Direito que age em nome do Estado. É em decorrência da atuação desse agente público que o Estado garante que os titulares de direitos sobre a propriedade imobiliária só os perderão ou poderão deles dispor se os instrumentos de formalização dos atos jurídicos estiverem de acordo com o Direito, seja para a proteção dos proprietários, seja para a proteção das demais pessoas envolvidas na relação jurídica em causa ou, ainda, de terceiros que devam respeitá-la.

Dito de outra forma, para bem desempenhar as suas atribuições, é dever do delegatário do serviço público de registro de imóveis, antes de lavrar o ato que lhe foi demandado, analisar se o título de formalização de direitos (escrituras públicas, instrumentos particulares, atos judiciais e atos administrativos) está de acordo com o ordenamento jurídico para, a partir dessa análise, proferir decisão fundamentada acerca da sua registrabilidade. A formatação do sistema registral imobiliário nos termos referidos coloca em destaque a importância da qualificação registral para que a razão de ser dos ofícios de imóveis seja alcançada, bem como evidencia aquela que é considerada pela doutrina6 a principal característica da atividade: outorgar segurança jurídica às relações sociais envolvendo direitos sobre bens imóveis.

Compreendido o alcance da decisão jurídica proferida pelos oficiais de registro de imóveis, ou seja, que das decisões oriundas da qualificação registral direitos poderão ser reconhecidos, fica fácil constatar que toda a discussão a respeito da inadequação da tese do livre convencimento motivado também se estende a tais serviços. E, analisando a tese do livre convencimento sobre a perspectiva da decisão jurídica do registrador, colocada em evidência pelo CNJ ao editar o Provimento nº 65, deve-se ter presente que a importância da discussão vai muito além do problema da apreciação das provas que instruem os pedidos de usucapião extrajudicial. Seguindo a senda de Streck7, pode-se dizer que, no âmbito das práticas jurídicas, essa discussão implica também a relação pretensamente livre que se estabelece entre o julgador e a interpretação do Direito, bem como a concepção equivocada acerca da independência do detentor da decisão jurídica.

Defender o equívoco em permitir que o registrador possa decidir conforme o seu livre convencimento não significa, de forma alguma, tolher a sua independência jurídica e tampouco qualquer proibição interpretativa que o transforme em um exegeta do século XIX. A autonomia de atuação do registrador imobiliário, no que se refere à qualificação registral, está garantida nos artigos 198 da lei 6.015/73 e 28 da lei 8.935/94. Contudo, como profissional do direito que exerce atividade jurídica em nome Estado, pode-se dizer que o oficial não possui carta branca para interpretar/decidir de forma livre, fazendo valer os seus pré-conceitos sobre o mundo, pois toda a sua atividade interpretativa/decisória será voltada, e, também, limitada pelo Direito (aqui entendido como conceito interpretativo construído intersubjetivamente, e não pela vontade individual do aplicador).

Afastar o livre convencimento da atividade jurídico-decisória não significa, portanto, restrição à autonomia dos titulares da decisão jurídica no exercício das suas competências/atribuições. Tal afastamento visa, isto sim, expurgar das práticas jurídicas tanto a ideia de que o livre convencimento motivado é da natureza da decisão (uma espécie de discricionariedade racionalizada) quanto o paradigma filosófico instituidor da modernidade: o sujeito solipsista, que, ao se libertar do “mito do dado”, seguiu rumo ao voluntarismo (a vontade de poder)8.

Assim, no que se refere aos documentos que instruem o requerimento de usucapião extrajudicial, o registrador deverá apreciá-los a partir de uma reconstrução baseada no sentido intersubjetivo que exsurge da linguagem pública, e não na sua convicção pessoal. E isso quer dizer que a atuação do registrador deve ser pautada pelo interesse público, que, no âmbito do sistema jurídico, compreende justamente o respeito à legalidade democraticamente construída e sua interpretação a partir de critérios públicos.

Do exposto, é possível extrair duas conclusões: a) a tese do livre convencimento motivado, seja do juiz ou do registrador, é completamente incompatível com os paradigmas que sustentam o Estado Democrático de Direito; e b) o Provimento nº 65 do CNJ comprova que, mesmo nesta quadra da história, a doutrina ainda não conseguiu blindar o Direito contra teses que remetem à aceitação de discricionariedades interpretativas/decisórias. Veja-se que, mesmo após ter sido superada pelo processo intersubjetivo/democrático de criação do Direito, a tese do livre convencimento motivado, como uma espécie de Hidra de Lerna9 do Direito, insiste em renascer.

Sendo essa a triste forma como o Direito e a sua autonomia vêm sendo tratados no Brasil, a doutrina daqueles que, ao levar os direitos a sério, consegue alcançar tais problemas tem se mostrado cada vez mais importante. Assim como Hércules, que, a fim de cumprir o segundo trabalho que lhe foi dado por Eristeu, jamais desistiu de matar a Hidra de Lerna – mesmo quando, ao cortar uma das nove cabeças do mostro, nasciam-lhe duas no lugar – a doutrina deve seguir denunciando propostas que, ao resgatar teses como a do livre convencimento, afastam-se da produção democrática do Direito. A tarefa é árdua. Contudo, se seguir apostando em travar o debate no plano hermenêutico, que permite ao jurista se dar conta de que os elementos interpretativos que fundamentam as decisões devem partir de critérios públicos estabelecidos com respeito à legalidade, não tardará para que, a exemplo do que fez Hércules com a Hidra de Lerna, se consiga decepar os argumentos que servem de sustentáculo para tais teses e chutá-los para dentro de um buraco profundo de onde jamais sairão.

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1 Contra a tese do “livre convencimento”, ver os verbetes 26 e 27 de: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos).

2 Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

3 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 213. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos).

4 Para aprofundar a temática, ver: BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento editora, 2021.

5 A nomenclatura é extraída da doutrina. Por todos, cita-se Silva, que analisou a origem e o sentido da expressão nos seguintes termos: “este exame prévio e profundo dos documentos que são apresentados constitui o que se chama de ‘qualificação’, palavra oriunda dos vocábulos latinos “qualis” e “facere”, que significa dar qualidade, dar aptidão aos documentos para serem admitidos nos lançamentos registrais”. SILVA FILHO, Elvino. A competência do oficial do registro de imóveis no exame dos títulos judiciais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 8, p. 52, jul./dez. 1981.

6 Ao analisar a finalidade dos sistemas registrais, Jardim identifica um traço comum em todos eles. Segundo a autora, “o registo não é uma instituição natural, mas sim uma instituição artificial: uma pura criação para atingir determinados fins do tráfico jurídico. O objetivo de todos os sistemas registrais é o mesmo – garantir a segurança jurídica dos direitos e a proteção do tráfico imobiliário”. JARDIM, Mónica. Efeitos substantivos do registo predial: terceiros para efeitos de registo. Coimbra: Almedina, 2015. p. 20.

7 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 212. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos).

8 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 212-214. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos).

9 GRENIER, Christian. Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 87-101.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.