Migalhas Infância e Juventude

A seletividade das mortes violentas e do ingresso no sistema socioeducativo

Não raro a arma que fere ou mata o adolescente periférico é a mesma que o faz vítima de sua violência, o agente estatal à serviço do Estado.

7/3/2023

O ano é 2023, porém, poderíamos facilmente dizer que vivemos tempos que nos remetem ao período anterior a redemocratização e do alcance a direitos fundamentais e essenciais à vida em sociedade.

Tempos sombrios nos chocam, mas isso ainda é pior para uma parcela da população, que, para além da supressão de direitos, ainda se vê mais à margem da sociedade e em condições de riscos. Os dados estatísticos falam por si e demonstram quão frágeis são. Eles são vítimas e algozes, numa sociedade que não pensa políticas públicas que visem minimizar a desigualdade, o acesso e a permanência, seja na educação, na saúde ou no mercado de trabalho.

Retratando em números, o Levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 traça o perfil daqueles que mais sofrem com as violências, não somente advindas de agentes estatais, mas de uma sociedade que é preconceituosa, racista, aporofóbica etc. Não raro a arma que fere ou mata o adolescente periférico é a mesma que o faz vítima de sua violência, o agente estatal à serviço do Estado.

Este mesmo levantamento, aponta que nos casos de mortes violentas, as vítimas são negras (77,9%), possuem entre 12 e 29 anos (50%) e são predominantemente do sexo masculino (90%), ou seja, a letalidade incide sobre um mesmo segmento: negros, jovens e pobres que circulam ou residem nas periferias. É inegável dizer que há uma seletividade.

Neste viés, a letalidade e o recorte racial também são observados entre crianças e adolescentes. Entre os anos de 2016 e 2021, cerca de 35 mil crianças e adolescentes até 19 anos foram mortos de forma violenta no país, como aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 83,6% das vítimas são adolescentes negros e em sua maioria (87,8%), do sexo masculino; 88,4% foram vítimas de arma de fogo e 43,4% destes crimes ocorreram em vias públicas. Ou seja, em nada se difere do que ocorre com a população adulta. O alvo é sempre o mesmo.

Não bastassem os números absolutos em casos de mortes violentas, outro recorte que nos faz refletir recai sobre a população encarcerada no país. Os dados refletem não somente a questão racial, mas a desigualdade social que assola o país. No ano de 2021, de um total de 820.689 presos, cerca de 429.255 presos, um total de 67,5% eram negros; em detrimento de 184.682 (29%) brancos. Em relação à faixa etária, 46,4% correspondem à idade de 18 a 29 anos, o que equivale também a população que mais é vítima das violências estatais e sociais.

Por muito tempo, quiçá ainda hoje, a prisão e o Direito Penal desempenham esse papel de alojar os excluídos da dinâmica social e econômica. Os dados que demonstram o expressivo encarceramento de pessoas por crimes patrimoniais ou praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa corroboram essa noção2. Essa lógica em nada se difere quando nos referimos aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2021, apontou que haviam 13.684 adolescentes internos e sob a égide do Sistema Socioeducativo, sendo 4.847 (34%) só no estado de São Paulo. Destes, segundo o Levantamento do SINASE, publicado em 2019, porém, com dados relativos a 2017, haviam sido apreendidos por: roubo (38,1%), seguido de tráfico de drogas e associação ao tráfico (26,5%) e homicídio (8,4%), ou seja, os crimes contra o patrimônio continuam sendo os principais responsáveis pela apreensão e internação de adolescentes.

Diante destes dados, é incontestável que a desigualdade econômica e social brasileira dificulta o pleno crescimento e o desenvolvimento de milhões de adolescentes, que se veem privados de oportunidades de inclusão social em seu contexto comunitário, vivendo em moradias inadequadas e à mercê de diversas problemáticas, como: restrições severas ao consumo de bens e serviços; estigmas e preconceitos; falta de qualidade no ensino; relações familiares e interpessoais fragilizadas; e violência em todas as esferas de convivência (Assis e  Constantino, 2005).

Corroborando com as autoras, Volpi (2001) salienta que os adolescentes em conflito com a lei são meras vítimas de um sistema social, ou “produto do meio”, e o delito é uma estratégia de sobrevivência ou uma resposta mecânica a uma sociedade violenta e infratora em relação aos seus direitos.

A análise que fazemos é que o Sistema Socioeducativo, assim como o Sistema Penal, possui uma seletividade nata, abarcando adolescentes negros, periféricos e privados ou com pouco acesso às políticas públicas básicas, muitas vezes, desde o momento de seu nascimento e, os dados acima comprovam tal teoria.

E ressaltamos que, ainda que haja a possibilidade de meios alternativos para a responsabilização destes adolescentes, que não a medida de internação (para os casos que não correspondem ao art. 122, I, ECA), eles seguem sendo “encarcerados”, como resposta aos anseios da sociedade e que, não raramente, remete à política higienista e de exclusão marcada pelos dois códigos de menores que antecederam o ECA.

Por fim, frente à tamanha problemática, acredita-se que, enquanto houver inflexibilidade por parte do Estado, em especial, na garantia dos direitos fundamentais e constitucionais devidos a esta população, de maneira preventiva e na promoção desses direitos e da cidadania, haverá ainda mais o aumento da vulnerabilidade destes jovens negros, pobres e marginalizados, cabendo aos agentes estatais, um olhar mais humano a eles,  maiores ofertas nos campos da educação e trabalho, podendo, no futuro, haver uma mudança nestas estatísticas, no quadro do encarceramento e na desigualdade social entre as raças. 

Referências

ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2005. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Ciência & Saúde Coletiva, p. 81-90.

FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui.

MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.1.12592.

VOLPI, M. Sem Liberdade, Sem Direitos: A experiência de privação de liberdade na Percepção dos adolescentes em conflito com a lei. São Paulo: Cortez, 2001.

__________

1 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Acesso aqui.

2 MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.